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S. CRISTÓVÃO

I

Um dia, numa floresta, ao entardecer, quando por sob as frondes ressoavam as buzinas dos porqueiros, e lentamente na copa alta dos carvalhos se calavam as gralhas, um lenhador, um servo, de surrão de estamenha, que rijamente trabalhara no souto desde o cantar da calhandra, prendeu a machada ao cinto de couro, e, com a sua égua carregada de lenha, recolheu, pelos caminhos da aldeia, ao castelo do seu Senhor.

Diante de cada cruz pregada nos troncos da mata, tirava o seu barrete de pele de coelho, rezava uma ave-maria. Ao passar na lagoa, mais reluzente, sob a amarelidão da tarde entre os seus altos canaviais, que uma moeda de ouro nova, deixou um molho de carqueja e de achas para o ermita, que ali erguera a sua choça de rama. E adiante, num pinheiral, apesar de já luzir no alto a estrelinha da tarde, e o bom trabalhador ter fome, parou até encher o saco de uma velhinha que, tremendo, e arrimada a um bordão, apanhava agulhas e pinhas. A velha murmurou: «Deus te dê alegria em tua casa»

Longamente ainda, ora por caminhos claros que soavam como lajes, ora sob a ramaria alta, por veredas fofas de musgo, tilintavam no silêncio e na penumbra os guizos da égua. E a noite cerrava-se, quando para além de uma ponte de tabuado que tremia sobre uma torrente, seca por aquele lento Agosto, o povoado apareceu entre o arvoredo do vale, com a capela branca e toda nova que o Senhor do Castelo andava erguendo a S. Cosme.

O lenhador, com a sua égua, meteu por uma longa alameda de faias, atrás de um carro que chiava lentamente, carregado de mato. A estacada, que outrora cercava a aldeia, apodrecera sob os sóis, sob as chuvas, ao abandono, durante os longos e fartos anos de paz: e as cabanas repousavam entre os pomares, em segurança e fartura. Dos tectos, bem cobertos de colmo, seguros por lascas de lousa, subia o fumo lento e cheiroso das pinhas e das agulhas ardendo com abundância nas lareiras. Em todas as cortes grunhiam porcos. Pelas quelhas mais escuras, as raparigas passavam para os serões, sem temor, com a sua roca à cintura. Por trás dos muros de adobe, morria o murmúrio dormente dos terços e das coroas rezadas em coro, nas contas. Raramente um rafeiro latia por trás da cancela ou das sebes. No adro, o forno senhorial ainda ardia, tanta era a fartura do pão a cozer. E junto da fonte toldada pelas ramagens de um ulmeiro, no banco de pedra onde aos domingos os velhos vinham julgar os pleitos de gados ou de águas, os dois archeiros do Castelo, que todas as noites rondavam a aldeia, dormiam sem cuidados como frades, com os seus arcos caídos no chão.

Lentamente, ao rumor lento dos guizos, o bom lenhador e a sua égua passaram, ao fim do povoado, a alta taberna do Galo Preto, que estendia através da estrada a sua comprida vara enfeitada de louro. Dois romeiros, com vieiras na murça de burel, bebiam

à porta por grossos pichéis de estanho. Dentro um pobre menestrel, de longa guedelha caída sobre o gibão em farrapos, tangia a sua viola de três cordas: e um frade mendicante com a sacola sobre os joelhos, um caldeireiro com os tachos de latão e a ferramenta pousada ao lado no chão de terra negra, jogavam os dados sobre um banco, na penumbra das grossas pipas, que tinham todas uma cruz branca, para que os maus espíritos não azedassem o vinho.

O bom lenhador apressava a sua égua: e bem depressa, do alto de um cerro coberto de azinheiras, avistou em baixo o rio, o largo rio escuro que corria, mudamente, sob os quatro arcos de uma velha ponte romana, que tinha ao meio uma capelinha nova, onde palidamente, na névoa húmida, bruxuleava uma lâmpada. Para além, na outra margem, era uma longa colina suave, onde se erguia, acompanhado de arvoredos e cercado de muralhas como uma cidadela, um mosteiro rico de Domínicos.

Mas, descendo o cerro, o caminho estreito, por onde, sob a estrelada mudez da noite, iam tilintando os guizos da égua, corria fundo e negro entre altos barrancos. E como aí, por vezes, de noite, aparecia um estranho pastor, de cabelos cor de fogo, e seguido por dois lobos familiares, o bom lenhador murmurou, voltado para o santo lugar onde nasce a estrelinha de alva, o nome do anjo Gabriel.

Depois, sem temor, atravessou o pinheiral. Já então trilhava as terras do solar do seu Senhor. Vastos pastios de gado, campos onde se fizera a ceifa, desciam até ao rio, que um choupal bordava, escuro e cheio de rouxinóis. E sobre um forte outeiro, logo o

Castelo apareceu, negro, formidável, com altas muralhas, os grandes cata-ventos em forma de dragões e de aves heráldicas no cimo de cada torre, e, na mais alta, a chama clara do seu alto farol.

Uma calçada de grossas lajes, orlada de faias, conduzia ao terreiro, para onde abria, sob a torre de menagem, a estreita porta chapeada de ferro e a ponte levadiça, que sempre descida, naqueles doces anos de paz, tinha as cadeias de ferro enferrujadas. De um lado do terreiro havia um pequeno alpendre, coberto de rama, onde se vendia, à vasilha, o bom vinho branco das vinhas senhoriais. Do outro lado, negrejavam os gros-sos barrotes das forcas patibulares. Um velho olmo assombreava o banco de pedra, onde, pelas tardes de Verão, o Senhor vinha julgar os delitos, receber vassalagens, ou marcar as portagens devidas pelos mercadores que, com longas récuas de machos carregados, passavam por dentro das suas terras. Nenhuma claridade saía das janelas das torres, mais esguias que fendas. As rãs coaxavam na água negra dos fossos.

O bom lenhador costeou as compridas muralhas, onde por vezes uma mancha mais clara, na pedra negra, era como uma cicatriz de batalha numa face requeimada; e passando pela alta cancela de uma sebe, que ao longe se perdia nos prados escuros, penetrou por uma estreita poterna, aberta na muralha como uma fenda abobadada, e guardada por um cão enorme, cuja corrente de ferro arrastava nas lajes.

Dentro, no vasto recinto murado, para além de um poço de bordas baixas, encimado por um pombal, a casa senhorial erguia a sua fachada simples e severa, de onde saía, através dos vidros miúdos encaixilhados em chumbo, a claridade pálida dos brandões da sala, ao lado da luz mais vermelha das cozinhas. Um torreão redondo, com balcão, erguia a uma esquina o seu agudo tecto de escamas de lousa, encimado por um vasto cata-vento em forma de bandeira desdobrada. Aos cantos da casa, esguios dragões alados, voltavam para o pátio as goelas escancaradas, por onde as chuvas se escoavam nos regueiros da cisterna. E a lanterna de um servo, que passava sobre o terraço, alumiava grossas filas de abóboras pousadas no parapeito, secando ao sol.

O bom lenhador descarregou a égua na tercena da lenha. Depois, tirando o seu barrete de pele de coelho, empurrou a grossa porta da cozinha, armada de puas de ferro.

Sob a chaminé, enfeitada de réstias de cebola e de ramos de louro seco, tão vasta que abrigava, de cada lado da lareira, um longo banco de carvalho, uma chama clara de troncos, ardendo sobre brasido, alumiava as paredes caiadas, onde pendiam de ganchos de ferro odres de vinho, caldeirões reluzentes, e os sacos de especiarias. Com o seu longo avental de couro, um barrete de couro na cabeça rapada, o mestre cortava, sobre um cepo imenso de pau, um anho esfolado. Um servente, de braços nus, regava de molho, com uma longa colher de ferro, as grossas peças de carne que assavam nos espe-tos, mais longos que lanças de guerra. Dois lebréus brancos enroscados dormiam diante do lume. E rente do muro, sentados em tripeças, já os moços das abegoarias, os pastores, os cordoeiros, esperavam a ceia, calados, com os seus gorros na mão.

Mas um pajem, de longos cabelos encaracolados, e trazendo um jarro lavrado, ergueu ao fundo a grossa cortina de estamenha, que tapava uma imensa porta em arco, ornada com duas cabeças de lobos. E o bom lenhador dobrou humildemente o joelho, entrevendo para além, já alumiada para a ceia, por tochas de cera, a sala senhorial: a vasta mesa tapetada de ervas frescas; as duas lanças transversais por cima, suspensas do tecto por correntes de ferro, carregadas de grossos pães de sêmea; a alta cadeira de espaldar, no topo, encimada por um alto brasão, tendo ao lado um poleiro onde dormiam dois falcões; a imensa chaminé de pedra, ao fundo, com figuras em relevo que agitavam armas. Todos os servos se tinham erguido. E quase imediatamente, arrastando os seus sapatos de pano amarelo, o despenseiro apareceu, calvo e gordo, com o seu molho de chaves. Era ele que distribuía as rações aos pastores, aos cordoeiros, aos tosquiadores, aos forneiros, e aos outros servos do domínio que não ceavam nas cozinhas do solar: e bem depressa o bom lenhador recebeu no seu saco de estopa o pão de sêmea, o pichel de vinho, e a posta de carne salgada, devida nos dias de grande corte.

De novo o bom lenhador empurrou, sem ruído e humildemente, a porta da cozinha. Passou a poterna da muralha, que abria para os jardins e para o jogo da bola.

Atravessou a rua de limoeiros que dividia os jardins e o pomar, onde docemente cantavam na sombra os repuxos e a água das regas; ladeou a casa do cabanal e a eira, alvejando, toda caiada de fresco, sob a claridade das estrelas; e passando entre as abegoarias e a liça dos pajens, que desenrolava entre mastros enfeitados de bandeirolas a sua pista areada de saibro, saiu por uma porta da alta estacada, que circundava a quinta senhorial. Para além eram vastos prados, pastagens descendo até ao rio, onde uma larga avenida de olmos abrigava a cordoaria do castelo. Um outro cerrado de sebe espinhosa cercava estas fartas dependências rurais, defendidas ainda por armadilhas para os lobos, valas eriçadas de puas, e pequenas torres de adobe onde ardia uma lanterna.

O bom lenhador passou esta sebe, e meteu pelas azinhagas, a caminho da sua cabana, aninhada entre os pinheiros e faias à orla da floresta, que, desde os coutos onde ele todo o dia trabalhava, vinha pelo interior das terras vestindo vale e monte. Por entre os troncos dos pinheiros mansos, o largo rio alvejava em baixo à claridade das estrelas.

Os pirilampos faiscavam na ponta das sebes. Um aroma de madressilva adoçava o ar.

O bom lenhador atravessou, sobre uma ponte feita de troncos, um riacho que saltava entre rochas, onde os pajens da castelania vinham pescar trutas. Um rouxinol cantava em baixo entre a ramaria dos choupos. Adiante havia uma cruz de pedra coberta de heras, que tinha um braço partido. Piedosamente o bom lenhador tirou o seu barrete de pele de coelho. O seu coração simples, nessa noite, sentia como um contentamento desacostumado. Ouvindo o sino do mosteiro, que nas colinas além do rio tocava a vés-peras, murmurou uma salve-rainha, com uma devoção maior, certo de que a Virgem o escutava, debruçada do Céu, toucada de todas aquelas estrelas que rebrilhavam mais que o ouro. Já, a distância, sob o céu pálido, se arredondavam os cimos dos arvoredos, onde se escondia a sua cabana. A mulher, a boa companheira, esperava por ele fiando à lareira. Estugou o passo e, subitamente, da sombra de um chorão debruçado à beira do caminho, surgiu um moço, de olhos brilhantes como lumes, coberto com uma túnica branca, encostado a uma vara branca, que parou diante dele, e disse sorrindo:

– Entra contente na tua morada, que teu filho há-de ser um grande santo!

E subitamente desapareceu. Um aroma vivo, como de incenso misturado a cravos, passou de leve no ar. E as relvas altas do prado, ondeavam, dobradas, como se as roçasse um manto de seda fina.

O bom lenhador ficara imóvel, tremendo, na sombra que se adensou, mais cerrada, sob as ramagens das faias. E mal compreendia a quem tão docemente falara aquele moço, de olhos mais claros que lumes de altar. A sua boa companheira não lhe dera ainda um filho naqueles longos anos, tão serenamente passados, desde a manhã de

Natal em que por sobre a neve dura brilhando ao sol, ao fino som da rabeca que o menestrel tangia, coroada de rosas, ele a trouxera à cabana construída por suas mãos, com a madeira por suas mãos rachada. Como poderia pois, no seu lar que nenhum riso de criança alegrava, crescer, para sua glória, um grande santo?... Arrepiado, penetrou por sob a ramaria, espreitando, escutando, na esperança e no terror de surpreender ainda uma claridade, um rumor daquele mensageiro estranho, que vestia de branco como os anjos. Todo o bosque estava mudo e ermo. Então entrou na sua alma simples um grande medo de todos os seres invisíveis que, vindos do Céu, ou vindos do Inferno, de repente surgem nos caminhos escuros. Começou a correr por uma estreita azinhaga até aos castanheiros que abrigavam a sua cabana. Uma fenda de luz saía da porta, entreaberta à frescura doce da noite. O rafeiro que a guardava, com a sua coleira eriçada de pregos, latiu alegremente. Entrou, limpando na face o suor que o alagava.

Sentada à lareira numa tripeça, a sua boa companheira esperava, fiando. A panela de ferro fervia, suspensa por uma corrente sobre o lume. A um canto da arca, as malgas vidradas, as canecas de estanho reluziam bem limpas. Sobre a palhoça do catre, o lençol de estopa era branco e fresco. Todo o dia a boa companheira lidara para o asseio do seu lar. O lenhador pendurou junto à chaminé o seu machado, e, nem à ceia, nem deitado junto dela no catre, revelou à mulher o encontro com aquele moço de olhos resplande-centes.

Receava que ela, tão séria e justa, repreendesse o seu orgulho. Porque mandaria

Deus um anjo, com tão maravilhoso recado, a um rude servo, de saião de estamenha?

Decerto não fora a ele que o moço, brilhante de claridade, anunciara a santidade de um filho... Se Deus os tivesse escolhido para tão grande ventura, não seria por ele, rude como os troncos da sua mata, mas pela sua boa companheira, tão séria, diligente no trabalho, clara de alma, compassiva aos mais pobres, sempre alegre, e tão leal! Nela e não nele, estavam decerto os méritos divinos.

E enquanto ela, direita, robusta, e corada como uma maça, enchia as malgas da ceia, o lenhador sentia abrir-se no seu coração, como uma flor que sob o orvalho reflorescesse, uma ternura doce e melhor por aquela que, em tantos anos, tornara a sua pobre cabana lugar mais apetecível que a casa rica de um senescal ou o castelo do seu

Senhor.

II

Era o tempo das vindimas nas vinhas da castelania. Uma manhã, cedo, ao cantar das calhandras, quando o bom lenhador prendia ao cinto o seu machado, partindo para o castelo onde ia rachar a lenha miúda, a sua companheira, que se sentara na arca com os braços cruzados, disse de repente, toda séria e vermelha:

– Meu homem, vamos ter um filho.

Ele ficou diante dela, mudo, como no espanto de um milagre. Depois balbuciou, pediu uma certeza. Ela estava tão segura, que já na véspera, enquanto ele andava trabalhando no souto, fora ao Mosteiro comungar, para que a Santa Hóstia fosse o primeiro alimento da criancinha que em si trazia, e que assim recebia logo o corpo e o sangue de Jesus. O bom lenhador tornou a emudecer, como deslumbrado, coçando a barba rude. Então a boa companheira, pensando que ele, assim silencioso, se amargurava na alma com aquele filho que vinha para ser, como eles, um servo, preso

àquela terra de florestas como qualquer carvalho que só serve para render, e quando não rende se abate, lembrou quanto a vida servil era fácil e branda nos domínios do bom castelão. Já tão velho, paternal, o bom Senhor amava os seus servos, e velava por eles como searas dos seus campos. Havia tantos anos que as masmorras estavam vazias, que o senescal perdera as chaves. Sempre que os homens eram chamados para compor os telhados ou limpar os fossos, voltavam contentes com um bom salário. Quando, montado na sua mula, percorria as terras, parava a aconselhar os trabalhadores, sem mesmo consentir, nos dias de vento, que eles tirassem os seus barretes. O preço da moagem, e o da fornada, no moinho e no forno senhoriais, fora por ele abaixado... E a boa menina, a herdeira daquele domínio, onde haveria outra tão caridosa e suave? Era ela que ligava, com os seus dedos mais brancos que os de uma Nossa Senhora, as feridas dos pegureiros. Se a ventania levava o colmo de uma cabana, logo ela o mandava consertar. Nos grandes frios, distribuía pelos velhos vinho antigo e peles de carneiro... Se a vida era assim fácil e branda na castelania, bem podiam eles estar contentes com o filho que lhes nascia, para ser um servo contente sob aqueles bons senhores.

– Não é verdade, meu homem?

A face do lenhador resplandecia, como um ouro sem liga sob um raio de sol.

– Bendito seja Deus por eu te ter conhecido, mulher!

Apertou fortemente nos braços a companheira valente, e partiu para o trabalho.

Pelo caminho que levava ao castelo, sorria, vaga e deslumbradamente, para o céu e para as árvores. E a cada instante lhe alvoroçava a alma aquela promessa lançada, sob a escuridão das faias, pelo moço de olhos resplandecentes. Era esse, pois, o filho anunciado que se devia tornar um grande santo? Quase assustado, não ousava crer num tão maravilhoso favor de Deus. Um servo gerar um santo! Quando o seu Senhor, tão poderoso, doador de capelas, acolhedor de peregrinos, que fora em moço libertar Jesus

Cristo da maldade dos Turcos, não lograva o favor de um filho, para governar as suas terras, seria ele, servo rude, de saião de estamenha, rachador de madeira, o escolhido por Deus para dar àquelas gentes o dom maravilhoso de um santo, para as proteger, e chamar sobre elas a amizade dos Céus? Tal não podia ser, e mesmo em o pensar, em o esperar, ele sentia confusamente o perigo de um orgulho que ofenderia Jesus e os outros santos, e desde logo alhearia a sua protecção do menino que lhe ia nascer.

Decidiu então não pensar mais naquela promessa: mas quando ao recolher à cabana, de noite, passava junto ao bosque de faias, os seus passos, a seu pesar, se tornavam mais lentos, e parava, escutava, com o coração a bater tão fortemente, que as suas pancadas ansiosas eram como as que se dão a uma porta fechada sobre um tesouro.

E a mudez, a negrura impassível do bosque davam uma indefinida, fugitiva tristeza ao seu coração, como se uma água fresca, em hora de sede, se lhe secasse entre as mãos.

Entrando, porém, na cabana, todo ele sorria contente, vendo a sua companheira que fiava já a teia do enxoval. Ele tomava a um canto as madeiras que escolhera com carinho, as ferramentas que lhe emprestara o carpinteiro do castelo, e trabalhava no berço do seu menino: – porque em ambos todas as ocupações, todos os pensam2ntos eram unicamente em serviço daquele filho, que lhes parecia milagroso e raro como uma estrela que de repente brotasse, e começasse a dardejar os seus raios na ponta de um galho seco. Ambos começavam a ter ambições: ela quereria ser, depois de criar o menino, a tecedeira do castelo: ele pensava no lugar do chefe-mateiro, que estava velho e pedira ao Senhor para repousar. Quando o Inverno começou, consideravam mesmo quanto a sua cabana era desabrigada e rude; e o bom mateiro começou todas as manhãs, mal luzia a primeira claridade, a trabalhar nos reparos, pondo colmo novo no tecto, tapando fendas, preparando um chão de tabuado, onde mais tarde os pezinhos nus do menino não sentissem a frialdade da terra negra. Depois limpou, arcou a horta, que cercou de um silvado, defendendo, isolando mais o seu lar, que ia encerrar um tesouro.

Por vezes a sua companheira queria ajudá-lo nestas tarefas piedosas. Ele não consentia, num receio constante de que se fatigasse, viesse mal àquele corpo precioso, que a seu pesar, por vezes, imaginava escolhido por Deus, e que contemplava então com pasmo como um relicário numa capela. Era sempre para ela a malga maior, a fatia mais larga de pão, no desejo de a sentir forte, comunicando força ao seu filho; procurava por toda a floresta mel silvestre, para misturar ao vinho que ela bebia aquecido à lareira; e como a moleira do moinho senhorial, junto ao rio, assistia na hora dolorosa a todas as servas da castelania, o pobre mateiro não cessava de a servir, de lhe levar sacos de pinhas, de lhe rachar a lenha, e mesmo, arregaçando as mangas de estamenha, pretendia limpar as rodas da azenha. A boa comadre, cruzando os braços sobre o avental enfarinhado, dava os seus conselhos; e já por ordem dela, o bom mateiro todas as noites, com uma longa vara, batia as ramas do arvoredo que abrigava a sua cabana, para que não viesse nelas pousar alguma coruja, que, piando de noite, faria nascer a criança medrosa e com os olhos tortos. Mas o seu maior cuidado era queimar na lareira galhos de azinho, para que o leite da mãe fosse abundante e forte.

O Inverno no entanto viera, tormentoso e negro: e nos longos crepúsculos, sentados na tripeça, ao lume da lareira, estes dois servos simples pensavam somente no seu filho. Ele contava, recontava na memória as peças de ouro poupadas naqueles longos anos e enterradas debaixo da arca, e noutras ainda que pouparia, para pagar o padre-mestre que ensinasse ao seu filho as letras e o latim... Por que não? Quantos filhos de servo tinham cantado missa nova! E a seu pesar, aterrado sob o seu orgulho incorrigível, via o seu filho com uma mitra cravejada de ouro, em vestes recamadas de ouro, atravessar sob um pálio os caminhos de aldeia, juncados de rosas e de erva-doce.

A mãe, essa, calada, movendo o seu fuso, só via o seu filho pequenino, muito gordo, com a face cheia, lisa, e corada como uma manhã, rindo sobre o seu colo.

Uma noite, que ela assim pensava, adormeceu, fatigada de ter lidado, já pesada, todo aquele dia de Abril, quente e longo. E quase imediatamente se viu sentada, no adro da capela, na aldeia, um domingo de festa, no primeiro dia de Maio: em volta as raparigas dançavam, ao som da rabeca que tocava um menestrel; os moços mais fortes lutavam sobre a relva; um servo do castelo vendia vinho de uma grande pipa enfeitada de louro; e um cavaleiro, todo armado, segurava um cavalo de grandes clinas, tão bravo que ninguém o podia montar... E eis que, de repente, o seu filho aparece com um gibão de pano azul, um capuz escarlate como o filho de um mercador, e logo derruba na luta os mais fortes, amansa o corcel indomável, faz empalidecer de amor todas as raparigas só com volver os olhos radiantes, e, tomando a rabeca do menestrel, começa tão divi-namente a tanger, que todos os pássaros saíam das ramarias, e vinham, maravilhados, pousar nos seus ombros largos. Ela tremia, num infinito orgulho. E em roda todos, erguendo os barretes, bradavam:

– Eis o mais belo, o mais destro, o mais forte. Seja ele o Rei de Maio!

Acordou ao clamor triunfal. O seu homem arcava o seu machado. E quando ela, ainda ofegante, lhe contou o seu sonho, ele permaneceu muito tempo pensativo, porque os sonhos são como tapeçarias que os anjos desenrolam e em que estão bordados, em cores claras, os destinos que hão-de ser.

Ambos acordavam de manhã, a um grande canto de pássaros, tão alegre e ruidoso como se todas as cotovias e melros, da floresta, estivessem celebrando uma festa sobre o colmo da sua cabana: e em torno ao catre flutuava estranhamente um fresco cheiro de verduras e flores novas. Mas a mulher do lenhador não se podia erguer, num cansaço que a tornava mais pálida que um linho muito lavado: e bem depressa, gemendo, pediu ao seu homem que fosse buscar a moleira caridosa e hábil, porque chegava a sua hora de glória e de dor. E, ainda gemendo, a boa mulher começou logo a sua oração a Santa

Margarida.

Atirando o machado que apertara ao cinto de couro, o bom lenhador correu através dos campos, ansiosamente, pisando sem dor os milhos novos, saltando as sebes em flor. A moleira carregava um saco cheio sobre o seu jumentinho branco.

Descarregou logo o saco, saltou ela para sobre o jumento, e através das azinhagas, a moleira galopando, o lenhador correndo, pararam à porta da cabana, quando do seu beiral se erguia, tomando o voo, um casal de pombas brancas. Era um feliz prenúncio: – e enquanto o lenhador ia prender o jumentinho no eido, a moleira entrou na cabana depois de riscar no chão uma cruz com o pé, murmurando o nome de Santa Margarida.

Mas voltou logo, trazendo nas mãos um largo cinto de couro, com que a boa fiandeira apertava as saias, e gritou pelo lenhador, para que ele corresse à capela, atasse o cinto na corda do sino, e repicasse nove repiques, rezando nove ave-marias. Eis de novo o bom lenhador correndo, com o cinto apertado ao peito, preciosamente: desceu aos choupais, frescos e cheios de sombra; correu ao comprido do rio, todo reluzente de sol, que uma grossa barca, com armas de um D. Abade e toda carregada de pipas, subia lentamente à sirga; galgou os lameiros, onde os gados pastavam, ao som das flautas dos pegureiros; abalou pela estrada, por diante da taberna do Galo Preto, de onde carvoeiros da mata o chamavam, erguendo alegremente os pichéis de estanho... Ele, sem escutar, seguiu: mas teve de parar, de repente, porque dos lados da ponte, com um lampejar de armas e um brilho de sedas claras, desembocava uma rica cavalgada, a caminho do castelo. Um clarim suava triunfalmente; guardas barbudos e graves traziam as lanças erguidas, ao alto; uma bandeira, no ar, desdobrava o seu grande brasão de cores estridentes; os pajens, empoeirados dos caminhos, conduziam à rédea azémolas carregadas de pesados cofres pintados a escarlate e ouro; – e um fidalgo, moço, de barba negra, com um falcão no punho, ria de cima do seu alto corcel, coberto com um xairel de veludo azul, com um frade que cavalgava ao lado, numa mula toda branca. Galgos ágeis corriam em roda; e um troço de lanças seguia, erguendo grande poeira.

Curvado, cosido contra a sebe espinhosa, com o seu barrete na mão, o bom mateiro saudava humildemente, esperava com o coração a bater de ansiedade. Ao seu lado, outros vilões dobravam o joelho; e um velho alto murmurava que aquele era um barão de outras terras, que chegava para noivar com a filha do bom castelão. Mas de repente alguns cavaleiros paravam: uma das azémolas, espantada, atirara ao chão os cofres de escarlate e ouro: e um senescal, correndo logo, reclamou todos os vilões ali juntos para virem erguer os cofres, carregar novamente a azémola. E o bom mateiro lá se adiantou, aflito, com os olhos quase enevoados de lágrimas, mal podendo atar as cordas que prendiam os cofres nas andilhas da azémola. Três vezes o senescal o injuriou. E a sua pobre companheira sofrendo por não repicarem os santos sinos, que amansariam a sua dor!

Mas o animal, carregado de novo, aquietou, levado à rédea pelos pajens; e os cavaleiros trotaram na poeira, que o sol dourava. Então, livre, o lenhador correu desesperadamente à capela que servos do castelo andavam caiando de fresco. Ajudado pelo sacristão, um velho corcunda a quem ele às vezes rachava lenha, atou o cinto de couro à corda grossa do sino: – e bem depressa, no azul cheio de sol, cantavam alegremente os novos repiques devotos. Para maior segurança acendeu ainda, num altar, duas velas a Santa Margarida. Depois, confiado na misericórdia do Céu, recolheu à sua cabana.

Os olhos quase se lhe enevoavam de lágrimas, quando, da azinhaga por onde ia arquejando, a avistou, sob as grandes árvores. Mas não lhe pareceu nesse instante tão escura e humilde.

O Sol, que batia em redor nas ramagens, tinha um desacostumado esplendor. A cruz branca, que ele pintara na porta para afugentar os demónios, reluzia, como feita de uma luz clara. Das sebes, a seu lado, saía um aroma mais doce que incenso. As grandes papoilas entre a erva, as flores silvestres, pareciam maiores, com grandes cores de festa.

Regatos que não via, borbulhavam alto, com um som fresco de riso.

Ele pasmava desta beleza rara, que nunca vira nestes caminhos familiares. E eis que, subitamente, do lado do rio, rompem, num repique festivo, os grandes sinos do

Mosteiro, e do lado do castelo a sineta da capela lança também pelo azul um repique argentino. Todo o céu tinha uma alegria de festa. E quando chegou à porta da sua cabana, os pinheiros em redor, movendo as altas ramas, pareciam cantar.

Entrou. Sobre o catre, a sua companheira jazia imóvel, branca como o lençol, já composto e liso, que a cobria. E, diante do lume que estalava, a moleira, abatida sobre uma tripeça, sustentava no colo o menino, estendido num pano branco... Mas o pobre lenhador, que estendera os braços, como se ante ele se abrissem as portas do Céu – recuou espavorido. O seu filho era um monstro!

Escuro, coberto de uma pele rugosa e áspera; com uma face vaga, informe, onde as feições faziam como vagas protuberâncias nodosas; as mãos enormes enclavinhadas sobre o ventre felpudo; torto das pernas que findavam em dois pés agudos, como os de um fauno, todo ele parecia uma raiz sombria, raiz de árvore estranha, ainda negra da terra negra de que fora arrancada. E nem gemia. Era como o rudimento de um ser vegetal!

Duas lágrimas amargas e lentas rolaram pela barba do bom lenhador. Deu um passo para a beira do catre. Na face branca, e como morta, da sua companheira, duas lágrimas corriam também, como na amargura de um sonho desfeito.

III

Como aquele ser informe decerto ia morrer, o próprio pai, aterrado e chorando, o baptizou, e lhe deu o nome de Cristóvão.

Durante três dias, durante três noites, Cristóvão não mamou, não gemeu, imóvel no berço, que o lenhador e a sua companheira constantemente velavam, numa esperança teimosa, sentindo naquela pele rugosa e dura o calor de um sangue forte. Uma tarde que ambos cansados tinham adormecido, sentiram subir, de entre os lençóis do berço que rangia, um rumor singular como o lento balar de um anho muito robusto. Cristóvão descerrara as pálpebras moles, e eles viram enfim os seus olhos de um azul-pálido, como a flor da pervinca. A mãe, radiante, arrebatou-o contra o seio que a abundância de leite sufocava: – e em poucos sorvos, largos e fundos, Cristóvão esvaziou um dos peitos.

Começou então a viver de uma vida intensa e rápida. Dormindo, a sua respiração era mais que uma brisa entre ramos; ao acordar os seus gritos abalavam a cabana; e na sua voracidade, sem parar, secava o leite da mãe, chupava através de um pano largos pedaços de mel silvestre, e ficava trincando com impaciência o dedo que, para o consolar, o pai lhe metia entre as gengivas, mais duras que pedras.

E, no entanto, aquela monstruosidade, que o assemelhava a uma grossa e negra raiz, compunha em formas familiares de um corpo grosseiro, mas humano. A pele, perdida a aspereza negra, era lisa e vermelha como uma casca de maçã: a cabeça emergia dos ombros como numa decisão de começar a vida; e as pernas agora direitas, com dois grandes pés chatos, eram tão fortes que, se as agitava, quase fazia tombar o berço.

E bem depressa, com terror da mãe, não coube no berço. Como era no calor de

Maio, o bom lenhador fazia com musgo seco, recoberto de um mantéu, um leito na horta, onde o deitavam sob uma mimosa em flor. Mas Cristóvão rolava para fora do mantéu, procurando a terra quente e mole, onde se estendia, se dilatava com delícia, como num elemento preferido, sorrindo quieto, num sorriso mudo, que deixava já. transparecer o brilho de um dente. Começaram então a aparecer, voando, por sobre os legumes da horta, borboletas de cores prodigiosas, como o lenhador nunca vira. Uma roseira seca havia um ano, e que tinha apenas o tronco mirrado, rebentou em grandes rosas que perfumavam todo o ar. Os melros que ali acudiam, fazendo um canto incessante e festivo, emudeciam quando a enorme criança dormia, com os seus grossos punhos fechados. A mimosa, todas as árvores em redor, vieram estendendo as suas ramarias, como toldos de abrigo, para o lado onde se estendia o mantéu. E um dia a mãe, entreabrindo a porta do eido, avistou, espantada, um enorme veado, que por cima da sebe, com os altos paus entre a folhagem, contemplava Cristóvão, com a gravidade de um avô.

Era então tão pesado que a boa mulher vergava, mal o podia transportar da porta para o berço. E todavia tinha só seis meses. A moleira que parava, com o seu jumentinho carregado de sacos, diante da cabana, para o ver, pasmava das suas cores vermelhas, da sua força, dos seus membros perfeitos e daquele sossego em que per-manecia, todo um longo dia de Verão, sentado, cravando na mesma pedra ou no mesmo ramo os seus olhos azulados, sem brilho e sem vida. E ela via nesta transformação um milagre de Santa Ana.

Muito antes do Natal, Cristóvão começou a andar. Já corria toda a horta, era quase da altura da sebe – e se, para se segurar, atirava a mão a um ramo, o ramo rachava como sob o esforço de um homem forte. O pai vivia no encanto e deslumbramento desta força magnífica: – e o seu prazer era contemplar a criança erguendo uma grossa panela de ferro, ou caminhar para a lareira abraçado a duas imensas achas de lenha. Não duvidava que ele viria a ser o homem mais valente de toda a castelania, e já o imaginava soldado, com uma pesada armadura, comandando os terços da castelania. No coração da mãe havia uma surda, vaga tristeza, por aquele crescer maravilhoso de força e de formas. Já o não podia trazer ao colo; Cristóvão tinha apenas um ano, e já não era o seu menino, o seu pequenino. Os ternos cuidados da sua maternidade eram já para ele inúteis. Não necessitava amparar-lhe os passos, nem meter-lhe na boca a comida. Enorme, tão forte como ela, Cristóvão, quando tinha fome, levantava a tampa da arca e partia ao meio as broas mais duras. O lenhador marcara na parede, com um traço branco, a altura do filho, pelo Natal: – e cada dia os riscos subiam mais alto, quase rente à prateleira da louça.

Aos dois anos a sua cabeça pequenina, coberta de uma lã espessa e loura, já dava pelo cinto do lenhador. Os saiozinhos de pano, que ela cosera com tanto amor, jaziam inúteis no fundo da arca, sem que ele tivesse jamais sido bastante pequenino para se mostrar, com eles, pela sua mão, aos domingos, no adro da aldeia. E quando o via, ainda mudo e inocente como uma criancinha de peito, e já tão grande, enchendo quase a porta da cabana, onde costumava estar horas, parado, a olhar monotonamente o ar e o sol, a pobre mãe, desconsolada, sentia uma lágrima humedecer-lhe a face.

O que a consolava era senti-lo tão manso e doce. Se ela, assustada, lhe tirava o machado do lenhador, que ele gostava de erguer, ou se o afastava do lume, que incessantemente o atraía, ele não mostrava nem resistência nem impaciência. Não era mais inerte um fardo de lã. Permanecia longas horas na tripeça em que o sentava, ou à sombra, debaixo da cerejeira da horta. O seu encanto era ver fiar a mãe, atento profundamente ao rodar, ao cantar do fuso. E a cada instante lhe tomava a mão, para nela pousar um beijo mudo, sem brilho, que não findava. Ela apertava-o ao seu coração, murmurando, desolada:

– Por que não és tu mais pequenino?

E, no entanto, já perto dos quatro anos, não falava. O único som que saía, cavo e grosso, dos seus lábios cor de aurora, era: Han! Han! Se tinha sede apontava com um grande dedo, rosnava: Han! Han! Para sair mostrava a porta, e grunhia, com os olhos. vagos, para a mãe: Han! Han! A pobre mulher já perdera a doce esperança de o ouvir jamais chamar mãe e pai. Já não duvidava de ter concebido um mudo, um imbecil. E na sua dor, num resto de orgulho, não permitia que Cristóvão transpusesse a sebe da horta, descesse abaixo, aos caminhos, com receio que os trabalhadores da floresta, as vizinhas da aldeia, o encontrassem, descobrissem a sua monstruosidade, lamentassem a tristeza do seu lar.

Mas o que sobretudo a aterrava era a insensibilidade de Cristóvão à dor, como coisa diabólica. Uma vespa mordera-o na face, e ele nem chorava, nem a pele lhe inchara. Sentava-se indiferentemente sobre musgo fresco, ou sobre as seivas espinhosas.

E um dia mergulhara a mão na água a ferver, e retirara-a, quieto, como se ela fosse de pedra.

– Ai! meu homem – murmurava a pobre mãe – que malogro o nosso!

Ele suspirava, sombriamente. Toda a sua alegria, diante daquela robustez primeira do filho, tão prometedora, se mudara em dor constante, perante a sua deformidade – porque Cristóvão não falava, tinha a simplicidade de um serzinho no berço, e já lhe dava pelo ombro, forte como ele, com grandes músculos, mãos formidáveis que brandiam no ar a sua machada tão facilmente como uma varinha de olmo. Já não falava no seu filho aos outros servos da castelania, carvoeiros, serradores, companheiros da floresta. Se ao menos Cristóvão falasse, tivesse, naquela estatura de homem, os modos de um homem... Iria com ele para o trabalho, não revelaria a sua idade – e seria como um companheiro moço e robusto que habitava no seu lar. Mas, assim, imenso, com uma vasta face, os ombros de atleta, ele passava horas, esgaravatando a terra, como uma criancinha, contemplando de rastos o caminhar das formigas, ou, quieto, chupando um dedo.

Já na aldeia, entre os servos do castelo, corria que o filho do lenhador era um monstro. Decerto fora algum feiticeiro, seu inimigo, que assim lhe lançara uma sorte temerosa. E alguns, mais afoitos, vieram rondar, espreitar em torno da cabana de

Cristóvão, para ver o enfeitiçado. A pobre mãe, uma tarde, sentira grossas risadas, rente

à sebe da horta, adivinhara estas curiosidades que vinham escarnecer a dor do seu lar.

Tinha agora sempre fechada aquela porta da sua cabana, tão limpa, tão honesta, e por onde até aí ela deixara passar os olhares de todos, tão livremente como os raios do Sol.

Quando alguma comadre da aldeia, alguma serva do castelo, a chamava de fora, ela antes de abrir, empurrava para fora, para o escuro das árvores, o seu pobre monstro, que lá ia movendo os pés tardos, com baba ao canto do queixo. O seu desejo seria erguer em torno da sua morada um muro, um alto cerrado de tábuas, que a isolasse de toda a terra.

E juntamente sofria em ter assim enclausurado o seu pobre Cristóvão, naqueles escassos palmos de cabana e de horta, em o trazer escondido como um fruto amaldiçoado, de que ela se envergonhava. Toda a sua alma simples e recta andava afogada em tristeza e sombra. E já não duvidava que a monstruosidade do seu filho, era o castigo que a

Virgem Maria dera ao seu orgulho de mãe. Tão certa andara de que o seu Cristóvão seria divinamente lindo, como o Menino Jesus que S. José erguia nos braços, que a

Virgem se escandalizara no fundo dos Céus. E bem justamente! Como poderia o fruto, de um ventre servil, ser igual em beleza ao fruto de um ventre divino?

Uma tarde que assim pensava, movendo o seu fuso, sentiu na horta um rumor, e como pedras batendo a folhagem da cerejeira. Inquieta, abriu o loquete, e viu três pagens do castelo que por trás da sebe, joviais e cruéis, escarneciam o seu filho, e lhe atiravam, como a um bicho numa toca, pedras e torrões secos. E Cristóvão, mais forte que os pajens, mas sem compreender, apenas erguia a mão ante a face, imóvel no meio da horta assoalhada. Ela arrebatou-o desesperadamente para dentro, atirou a porta, enquanto os pajens, ofendidos com a audácia da serva, apedrejavam os muros da. cabana. Desde esse dia a pobre mãe começou a definhar. Era uma dor surda, um desconsolo de tudo, que a deixava longas tardes imóvel, com a roca esquecida na cinta, o fuso caído no chão, perdida, entorpecida numa melancolia sem fim e sem nome. Todo o trabalho lhe pesava como um fardo inútil. Quase lhe custava a vestir Cristóvão, que nem o seu grosso gibão de estamenha sabia enfiar, e que quase fazia corar a pobre mãe, com o seu enorme corpo nu, grande como o dela, e que lhe parecia a nudez de um estranho, de um homem, que invadira o seu lar. À noite, silenciosa e pálida, repelia a sua malga de caldo, que Cristóvão logo devorava em silêncio. E não queria que o seu homem, assustado, chamasse o físico do castelo. Para quê? «O meu mal, murmurava, há-de crescer, e crescer...». As tardes na cabana eram tristes como as de um hospital.

Tão fraca que se não podia mover do catre, ela contemplava o seu homem, sentado ao lado, com um longo olhar de saudade, o olhar humedecido de quem vai partir. Ele, com as mãos dela entre as suas, só instava para que ela experimentasse algum dos remédios, que aconselhava a moleira, contra aquela míngua de corpo: e para o contentar, ela acedeu a atar ao pescoço um saco onde estava metida uma rã e a comer um caldo de margaridas apanhadas à Lua cheia. Mas, sem dor, sem agonia, o seu pobre corpo ia como que desaparecendo, tão magro e transparente, que ela via a vermelhidão da lareira através das mãos abertas.

Desde que ela adoecera, Cristóvão não abandonara a beira do catre, pasmando para a mãe, ansiosamente, como no esforço de compreender por que ficava ela deitada e de olhos adormecidos, quando o sol envolvia a cabana, e até as árvores tinham acordado. Por vezes tocava-lhe o braço, o ombro, com um pequenino gemido triste. Ela murmurava, com toda a sua alma:

– «Meu pobre filho! meu pobre filho!» Mas voltava o rosto amargamente, se o via ir, com os seus passos lentos e balançados de urso doméstico, erguer com uma só mão a pesada bilha de água, esvaziá-la de um trago.

Era então o fim do Outono. Já o lenhador, ao recolher, sacudia o saião, todo molhado da humidade da floresta: e um grande vento por vezes gemia nos pinheirais.

Toda a noite a candeia ficava acesa. Numa enxerga, ao lado da lareira, Cristóvão dormia sob peles de cabra, fazendo um grande vulto na sombra, ressonando tão fortemente como uma forja. E a pobre mulher, o homem ao lado, sentado na tripeça, entorpecido de fadiga e de sono, não dormia, pensando no abandono e na tristeza em que cairia aquela pobre cabana, de que ela fizera um ninho tão doce! Quem cozinharia a sopa do seu homem, quem trataria daquele pobre monstro, que nem sabia enfiar o seu gibão? Um grande soluço sacudia o seu peito magro: – e o lenhador, despertando, estremunhado, arranjava a manta que cobria o catre, ou ia remexer as brasas da lenha.

Uma noite, em que havia um grande silêncio no arvoredo e no ar, porque caía a neve, ela sentiu um grande frio que lhe passava no rosto, e através do desmaio que a tomava, estendeu a mão, apalpando para dizer para sempre adeus ao seu homem. E os seus olhos vagos e lentos encontraram então os olhos do seu Cristóvão, que se erguera, embrulhado numa pele de cabra, e estava aos pés do catre, atento, e como esperando, num espanto. Moveu os lábios para lhe pedir que se deitasse, se agasalhasse, mas só pôde suspirar, desfalecida... E pareceu-lhe que, diante, o seu filho começava a crescer visivelmente; já os seus cabelos ruivos tocavam o tecto da cabana: o colmo esgaçou, e, através da abertura, Cristóvão crescia para o céu mais alto que os pinheiros, já com a face perdida entre os flocos de neve; e tão feio e monstruoso que as estrelas fugiam pelo ar, como almas assustadas. Deu um grito. O pobre lenhador despertou, debruçado logo sobre ela, a tremer. A sua companheira parecia adormecida. Então Cristóvão veio lentamente em torno do catre, e pondo as mãos, de leve, sobre os cabelos que um suor humedecia, gritou:

– Ó mãezinha, mãezinha, não durmas!

Cristóvão falara! O seu filho falava! Um rubor de infinito contentamento subiu-lhe ao rosto macerado, que ficou imóvel, sorrindo: – e a boa fiandeira partia desta terra, para além...

IV

Logo à porta a velha, apertando as mãos, contava como Cristóvão se conservava quieto, e tão bom, brincando na horta ou atento às histórias, que ela sabia, de fadas e de mouros. O lenhador coçava a barba, contente: – e Cristóvão, diante da lareira, onde a lenha estalava, sorria pasmadamente, sacudindo as mãos cheias de terra.

Quando os frios vieram, a serradeira, às vezes, ao lidar na cabana, gemia, esfregando os joelhos. Cristóvão arregalava para ela os olhos compadecidos. E um dia que ela coxeava, gemia mais, saindo para a fonte, Cristóvão timidamente tocou na asa do grosso cântaro de barro, murmurando, muito vermelho: «Eu vou». Espantada, ela deixou, ficou à porta vendo Cristóvão desaparecer entre os olmos e logo voltar, subindo a vereda, sob a chuva fria, com o cântaro que lhe pesava menos no braço estendido que uma malga ligeira. Todo ele sorria, com um contentamento profundo. A velha limpou-lhe os cabelos molhados – e, pela vez primeira, desde que guardava a cabana, tomando

Cristóvão como um ser humano, falou das dores dos seus pobres ossos, no seu homem que lhe deixara a velhice sem pão, na morte que vinha perto com uma grande foice. Mas a face que Cristóvão erguia para ela, agachado à lareira, voltara à imobilidade, sem alma e sem calor, de uma face feita de pedra. E foi para o seu velho gato, que tomara no regaço, não para Cristóvão, que a serradeira prolongou, no silencio, os queixumes da sua velhice. Nessa tarde, porém, Cristóvão varreu a cabana com a vassoura que a velha,

A cerejeira na horta estava coberta de cerejas: o lenhador outra vez trabalhava nos soutos, desde o cantar da calhandra: – e a viúva de um carvoeiro da mata vinha, todos os dias, cuidar da cabana e guardar Cristóvão. Era uma velha muito magra e sombria, que surdia de entre os pinheiros, encostada a um bordão, acompanhada por um gato negro.

Nos primeiros dias, a cada passo, agachada sobre o lume, ou fiando à porta, voltava para os membros imensos de Cristóvão com inquietação os seus olhinhos luzidios, que os grossos pêlos das sobrancelhas cobriam. Aquele ser disforme, que o pai chamava «o menininho», e que ela vinha guardar, enchia-a de espanto, quando erguia até à boca o enorme cântaro cheio de água, ou tapava toda a porta da horta, parado, a chupar o dedo, a olhar para o Sol. Debalde o bom lenhador lhe afiançara a sua mansidão, a sua simplicidade: a velha serradeira temia aquela mansidão muda, como uma toca escura e sem ruído, de onde pode surdir uma fera. Mas quando, durante longos dias, ela o viu quieto sob a cerejeira, sorrindo às formigas que lhe trepavam pelas pernas já peludas, ou, encruzado diante da horta, pasmar, chupando um dedo, para o fuso que ela fiava – a velha reconheceu a sua simplicidade, e considerou que ele era como um animal caseiro, porco gordo ou borrego, que pertencesse à choupana. Para não sentir mesmo pousados nela aqueles olhos azulados e sem brilho, e aquele corpo disforme atravancando a cabana, tapando a luz, empurrava-o para a horta, e lá lhe levava, ao bater do meio-dia, a sopa e a ração de broa, numa grande malga, que pousava no chão: e Cristóvão ali passava os seus dias, sentado, remexendo a terra com os dedos lentos e vagos, seguindo o ramalhar das folhas, ou, a passos lentos, rente da sebe, alongava para os campos, para os arvoredos de além, o olhar pasmado e sem brilho, com a quietação do boi farto. A serradeira, no entanto, varria o chão, areava as ferragens do armário, batia o colchão do catre, ou sentada à porta fiava até que, às Trindades, soavam no caminho os guizos da

égua branca, que o bom lenhador trazia à rédea. coxeando e gemendo, lhe metera nas mãos.

E, desde então, ele começou a fazer pouco a pouco todos os trabalhos domésticos.

Através do longo Inverno a serradeira não se moveu mais do canto da lareira, fiando na sua roca, com o gato agachado aos pés. Cristóvão ia encher a bilha à fonte, acendia a lareira, areava a panela, polia as ferragens do armário, batia os colchões dos catres – e mesmo aos sábados, numa doma cheia de água quente e cinza, fazia a barrela da roupa.

E, em todos estes serviços, punha uma aplicação, um interesse profundo. Todo o seu imenso corpo se tornava mais ágil, mais pronto. Já dos seus grossos lábios, que só se alargavam num sorrir pasmado e morto, saíam murmúrios vivos: «Está bem! Ficou bem... Cristóvão limpou!»

À noite, à ceia, esfarelando com lentidão a broa no caldo, o lenhador contemplava com espanto o seu Cristóvão, que lhe parecia diferente, mais atento, desentorpecido, conhecendo já que ele abatia árvores numa floresta, que a égua branca, e as terras, e os gados que pastavam, pertenciam a um Senhor, e que aos domingos se descansava para visitar Deus na sua casa, onde os sinos cantavam no ar. Mas o que encantava o bom lenhador era o cuidado novo de Cristóvão em o servir – desejo que lhe nascera no coração de repente, sem que ninguém lá o semeasse. Mal o sentia subindo das terras, ia, com o seu andar embalado e lento, tomar a rédea da égua, para a levar para o curral, onde a palha estava serrotada, e o balde cheio de água; na cabana, de joelhos, desapertava-lhe os cordões das grossas botas de couro, que a lama cobria; e estendia diante do lume, com cuidado, o seu surrão de estamenha, traspassado das humidades da mata. O bom lenhador murmurava, radiante como um bem-aventurado: «Foi Deus que te mandou, filho meu!» E nos olhos com que Cristóvão lhe sorria, ele, apesar de rude e simples, percebia uma claridade, um brilho desacostumado. O seu inocente já pensava, já compreendia. Pálida ainda e hesitante, mas certa e de todo visível, uma almazinha despontava naquele corpo imenso, como uma pequena luz numa grande torre.

Depois da ceia, aproveitando o resto do candil, o lenhador tinha já o contentamento inefável de conversar com o seu filho, como outrora com a sua boa companheira – contar o seu duro dia na mata, a árvore que fora derrubada, as madeiras vendidas para as obras do Mosteiro, as queixas dos serradores contra o senhor senescal.

O seu pobre lar perdia a frialdade e o silêncio, que até aí, engolido tristemente o caldo, o fazia estirar no catre viúvo, tão triste que até o ramalhar dos sobreiros lhe parecia um gemer humano. Agora tinha um companheiro – e podia, com felicidade, começar a envelhecer.

Teve então orgulho no seu filho, desejou que na aldeia o conhecessem. Cristóvão crescia sempre – e era já, antes dos dez anos, como um homem de grande corpo e de grande força, que conservasse, na face lisa e sem barba nem penugem, a candidez de uma criança, alta apenas como uma sebe. Um cabelo ruivo e encaracolado, que lhe nascia nas sobrancelhas cerradas, cobria-lhe a cabeça pequenina, como um barrete muito justo de lã de carneiro, até ao pescoço, onde os músculos tinham a saliência, a rijeza, a amplidão dos de um touro. A boca larga constantemente se alargava mais num sorrir para tudo, de candidez e pasmo. E os seus olhinhos, pequeninos como contas azuis, tinham uma doçura que se derramava, em redor, como uma carícia vagarosa e compassiva. Todos os seus vastos membros se moviam com uma lentidão tímida: e, mesmo para descer à fonte ou contornar a sebe da horta, se acostumara a trazer um bordão, a que apoiava, quando parado, as duas mãos enormes, e por cima o queixo pesado, marcado com uma cova funda. De uma peça de camelão azul, que o pai há muito guardava na arca, o alfaiate dos pajens do castelo talhara-lhe um capuz de romeira, e um gibão direito como um saco que, franzido na cinta por uma tira de couro, caía em pregas longas e grossas sobre as botas escarlates, com relevos cosidos de cordovão amarelo. E, assim enroupado e limpo como um filho de mercador, o levava o pai todos os domingos, sorrindo de orgulho, pelos caminhos, à missa na aldeia.

Cristóvão penetrava na velha igreja, de muros severos como os de uma cidadela, com um enleio, um medo vago. Ele sabia que aquela alta casa de pedra, com lâmpadas que rebrilhavam, era de Deus Nosso Senhor, que tinha uma assim em cada aldeia, onde, nos dias quietos e silenciosos em que se não trabalhava, o povo, vestido de panos novos, o vinha visitar e louvar. E desde o domingo de Maio, em que ele descera da cabana, através dos campos verdes, entre as sebes de madressilvas, para ouvir a sua primeira missa, sempre aquela casa de Deus Nosso Senhor deixara, na sua alma simples, o terror de um lugar muito rico, muito triste, e todo cheio de mistério. Uma grande sombra fria caía das abóbadas escuras. Todas as imagens, sobre os altares, lívidas, emaciadas, pareciam sofrer: – o moço nu que torcia o corpo amarrado a uma árvore, e traspassado de frechas; a rainha, tão triste, sob a sua coroa de ouro, e no seu manto de cetim, com o coração varado por sete espadas; o monge, com um resplendor de prata, que mostrava as chagas das mãos abertas. Em tocheiros de ouro lavrado ardiam longos lumes de tristeza.

Panos de veludo, de seda, com recamos rebrilhantes, tapavam recantos de onde por vezes saía como o murmúrio de um gemido. Toda a multidão dobrava para as lajes as faces cheias de um pensar triste. E a faixa de luz de uma fenda, aberta na muralha, alumiava a melancolia maior, o Homem pregado numa cruz com pregos, com sangue vivo nos joelhos, no peito, nos pés, que erguia a face atormentada para o Céu e parecia chamar, num abandono. E assim, pois, era a casa do Senhor, cheia de ouros, de sangue que escorria, de veludos magníficos, de tristeza e de mudez!

Diante do altar maior, no entanto, um velho, todo calvo, coberto com uma capa resplandecente, alargava os braços, beijava a toalha bordada da ara, voltava as folhas de um grande livro, ofertava para as alturas um bolo de farinha muito alva, bebia por. um copo onde jóias faiscavam. Voltado para ele, ao lado do pai, Cristóvão ajoelhava como o pai sobre as lajes, traçava uma cruz sobre a testa, martelava o peito com os seus duros punhos: – mas permanecia tão insensível e alheio à adoração que ante ele se desenrolava, como o pilar de pedra escura, a que findava por se encostar, fatigado daquela melancolia da casa de Deus. Os seus olhos então embebiam-se numa grande pomba branca, que se conservava imóvel, com as asas abertas, por cima do sacrário, e que cada domingo o atraía mais, sempre ali, fiel, paciente, sem que uma das suas penas estremecesse: só ela era doce, alegre, natural, na sua brancura adorável, e macia à vista: com um bico claro, patas rosadas, só ela não tinha, no seu corpo de pomba, nem ouro, nem sangue: natural, e igual às outras pombas, só ela o não assustava, nem deslumbrava: – e Cristóvão não compreendia por que se conservava ali, naquela sombra fria, entre granitos, ao lado de agonias e dores, e não vinha voar e arrulhar com as outras, sobre os castanheiros do adro.

O seu incerto pensamento ia então para os prados que atravessara, descendo das cabanas, para a verde frescura do choupal, para o sol que aquecia os lagartos dormindo nas pedras brancas. Teria decerto gostado de ficar lá, pelos campos, pela beira do rio, todo o longo domingo, sentindo a erva fresca entre os joelhos, roçando a mão pela frescura das ramagens baixas. Mas nos domingos era necessário visitar, louvar a Deus

Nosso Senhor. Só assim, como lhe afirmava o pai, se subia depois ao Céu. Ele, decerto, iria um dia para o Céu. E uma inquietação passava na sua alma, porque o Céu, como a

Igreja, se lhe afigurava escuro, pesado, com ouros, grandes panos de seda, Homens cobertos de sangue, Rainhas com o pobre coração varado de espadas – um sítio, além, nas alturas, muito rico, e muito triste. Quanto melhor a horta em que vivia, com a cere-jeira, a sebe de madressilva, e a salsa junto da doma! Um rumor passava entre os pilares de pedra, todas as faces sorriam, mais claras. O senescal descia do seu banco, a missa findara. E um contentamento enchia o coração de Cristóvão, tornando a ver os castanheiros do adro.

Então, pouco a pouco, tomou mais familiaridade com florestas e prados. Já corria a sua grossa mão sobre a doçura dos musgos; trepava aos troncos para espreitar para dentro da densidão das folhagens; estirava-se no meio das relvas altas, rolando os seus cabelos crespos pela brancura das margaridas. E ao mesmo tempo descobria, dentro de toda esta natureza, uma vida múltipla, vasta, activa e maravilhosa. A terra, que ele remexia com os seus dedos grossos, estava toda mole dos vermes que a habitavam; cada hastezinha de relva abrigava um povo de insectos, mais numerosos que a gente da aldeia, aos domingos, sob os castanheiros do adro; cada folha cobria uma asa; nas espessuras, longos dorsos peludos roçavam as suas pernas lentas; olhinhos brilhantes espreitavam de entre a negrura das tocas; o restolhar dos matos dizia a passagem das feras. Um confuso, obscuro amor por todos estes seres, crescia no seu coração simples.

Passava horas encantadas, estirado nas ervas à beira de uma poça clara, admirando os insectos de grandes patas que riscam a água lisa; chamava com as mãos, sorrindo, todos os veados que, à orla das clareiras, subitamente mostravam a face majestosa e séria, entre os troncos dos castanheiros; e parava nos carreiros verdes de humidade e musgo para acariciar o dorso dos sapos.

Assim a floresta se lhe tornava familiar e íntima, e nela passava os dias, nos retiros mais densos, enterrado entre as verduras, agachado contra uma rocha, de bruços sobre uma poça de água, sem se mover, vegetando na doçura infinita de sentir os seus longos cabelos emaranhados nas folhas, os ombros aquecidos pelo mesmo sol que batia as pedras, as rãs saltando sobre os seus pés como sobre troncos meio enterrados nas ervas húmidas. Só a fome o fazia recolher à cabana. Os seus passos desprendiam-se a custo, como se já tivesse raízes: todo ele cheirava a torrão e humidade, e era, na penumbra da tarde, como um tronco que se separava de outros troncos. Crescera tão prodigiosamente que se agachava todo para transpor a porta da cabana. Como nenhuma tripeça sustentava o seu peso, sentava-se no chão diante da lareira aos pés do pai, embebido no espanto, na admiração daquela força.

O bom lenhador então já lhe não dizia ao partir para a mata: «Cristóvão, não saias da nossa horta, que te pode vir mal». E pouco a pouco começou então a percorrer, maravilhado, os prados, as bordas do rio, os densos arvoredos, para que tantas vezes da porta da cabana se tinham alongado os seus olhos pasmados e vagos. Lento e incerto, como uma rês tresmalhada, descia pelos caminhos abertos, orlados de sebes, parando a cada passo, ficando a pasmar para os trigais altos, para os longos prados, macios e doces

à vista como veludo verde, todos avivados de margaridas, papoilas e botões-de-ouro; cortando pelos choupais, ia admirar, durante longas e mudas horas, o correr e o brilhar do grande rio; ou penetrava sob os pinheirais, onde se esquecia até ao entardecer, vago e pensativo, respirando com espanto e amor a frescura, o silêncio e o aroma das resinas.

Depois recolhia à cabana devagar, com os braços caídos, a face no ar, risonha e contente.

De noite sonhava com ramagens tenras que lhe acariciavam a face, com águas claras e frias que fugiam, cantando, entre os seus pés nus, enterrados na areia. E quando de manhã outra vez, fechando o loquete de pau da cabana, descia para os campos, era em todo o seu coração como um desejo de abraçar, num abraço inteiro, toda a terra que via, desde as flores silvestres dos caminhos até a vasta floresta que cobria as colinas, magnífica e sombria. Mas era nele como uma timidez, um pudor, que o retinha mesmo de tocar nas amoras...

V

Um pajem levou-o pela alta escada, e tendo erguido uma tapeçaria, deixou-o numa sala, em abóbada, onde um tronco de árvore ardia sob uma alta chaminé, e lanças agudas brilhavam encostadas às paredes nuas e frias. Um galgo branco entrou correndo e pulando, e logo atrás o castelão e uma dama apareceram, com pajens que os seguiam, e um padre que trazia nas mãos um breviário. Uma túnica de veludo orlada de peles envolvia o corpo magro do Senhor, caindo sobre os sapatos pontiagudos, também orlados de peles. A barba ruiva avançava, dura e pontiaguda: o nariz era como o de um abutre: e sob o barrete de veludo, a grenha crespa, fugia, para trás, como uma romeira hirta. O alto beguin da dama roçava quase o alto da porta; o seu vestido escuro arrastava nas lajes, e os olhos baixos pareciam contemplar as mãos caídas e cruzadas, mais pálidas que cera, de onde pendia um rosário. Um truão ao lado deles, anão e corcunda, pousava com um orgulho burlesco a mão nos grossos copos de uma espada de pau.

O pai de Cristóvão caíra de joelhos, e como Cristóvão permanecia de pé, com o seu barrete de pele debaixo do braço, ele puxava-lhe pelo saio para que ajoelhasse também. Os seus joelhos por fim vergaram, ressoaram nas lajes. E diante o Senhor, puxando entre os dedos os pêlos da barba dura, a dama com um sorriso tímido, e o capelão de mãos cruzadas no ventre, contemplavam os grossos membros de Cristóvão.

A uma ordem do Senhor, ele ergueu-se, deu um passo. O Senhor apalpou-lhe os músculos, puxou-lhe mesmo a carapinha: – depois, a nova ordem sua, três homens trouxeram uma enorme espada de ferro, enferrujada, que parecia a dava de Hércules.

Com um movimento ligeiro, Cristóvão brandiu-a no ar. Então o truão, arrancando a sua espada de pau, avançou para Cristóvão com os ademanes de um espadachim: os guizos do seu barrete tilintavam; a sua corcunda torcia-se grotescamente; e com uma vozinha esguia, gritava: «Peravante! Deus o manda!» Então Cristóvão baixou a espada de ferro; a sua boca fendeu-se, mostrou unia cavidade imensa – e saiu dela uma risada enorme, troante, ressoante, que abalou os vidros nos seus caixilhos de chumbo. A dama tapou os ouvidos com as mãos pálidas; os pajens por trás abafavam o riso; – e com um gesto da sua mão cabeluda, o Senhor mandou que conduzissem Cristóvão às cozinhas.

Em baixo, na cozinha, sob a alta chaminé, grandes peças de carne, em espetos, assavam diante de uma fogueira enorme que estalava – enquanto que, nas caçarolas suspensas de correntes de ferro, a água fervia fazendo palpitar as tampas. Os cozinheiros, com rolos de pau muito branco, enrolavam massas; um jorro de água cantava numa bacia de pedra; e duas aias muito velhas, sentadas em escabelos, fiavam junto da janela, onde cresciam manjericões Um servo trouxe uma malga enorme, onde uma enorme colher de pau vinha espetada na espessura dos legumes e das febras de carne. Com a cabeça baixa, Cristóvão devorava: – mas, junto da porta escura, subiam, vindos de baixo, gemidos de homens como no esforço de carregar um fardo muito pesado: Cristóvão deixou a colher, limpou a boca com as costas da mão, e desapareceu sob o arco escuro: – e daí a momentos subia trazendo às costas uma vasta pipa de arcos de ferro: atrás vinham dois homens, limpando ainda o suor, a arquejar. Para

Os pajens que, pela tarde, vinham à fonte rir com as moças, tendo falado dele, nas veladas do castelo, o castelão quis vê-lo. E uma manhã, seguido do pai que pusera os seus melhores trajes, subiu a colina, que levava à ponte levadiça. Dois archeiros, com saiões de couro, guardavam a porta; e os molossos no pátio puxavam furiosamente as correntes que os prendiam, ladrando, com as patas erguidas, contra o gigante que passava. A fachada do castelo erguia-se majestosamente, com um alto portão ogival sobre degraus de mármore, duas torres aos cantos com telhados agudos, cobertos de lousa em escamas; e a cada janela havia um vaso de barro amarelo, onde crescia um craveiro. recompensar Cristóvão, o cozinheiro ofereceu-lhe uma terrina cheia de vinho: ele bebia lentamente, segurando-a nas duas mãos, com os olhos cerrados.

Depois, apanhando o seu barrete de pele de coelho, saiu. As aias corriam às janelas para o ver. De sobre as ameias os homens de armas debruçavam-se: e ele caminhava, confuso, coçando devagar a grenha.

No entanto o Inverno sobreveio. Os caminhos estavam brancos de neve. E sobre os ramos descarnados e nus, os pássaros caíam mortos. Uma tarde o pai de Cristóvão voltou pálido da floresta, e sentou-se à porta a olhar o Sol que descia ao fundo do vale.

Cristóvão estava adiante, sentado, encabando toscamente uma lâmina de foice. Quando o Sol se sumiu sentiu por trás um gemido; voltou-se: – o pai estava com a cabeça caída contra a parede da casa, a mão sobre o coração. De noite, os gritos de Cristóvão atroa-vam a aldeia. Vieram homens com forquilhas, mulheres encolhidas nos mantéus, erguendo, diante da face, uma lanterna. O cadáver estava estirado no chão sob um lençol. E à porta, que enchia com o seu vasto corpo, Cristóvão chorava estridentemente.

Dois dias, duas noites, Cristóvão ficou estendido à porta com a face contra o chão: por vezes um soluço sacudia-o todo; depois a sua imensa forma era tão imóvel como os troncos em redor, derrubados e rígidos. O Inverno e a fome tinham espalhado pelos caminhos gente sinistra, que assaltava os casebres. Um bando veio subtilmente numa dessas noites: e, penetrando pela janela aberta, roubou tudo dentro, os vestidos, as ferramentas, o grão da arca, as roupas do catre – enquanto, prostrado, Cristóvão resso-nava lentamente, como o ruído de um rio na escuridão.

De manhã, vendo o casebre vazio, Cristóvão desarraigou um choupo novo, limpou-o de todos os ramos, e apoiando-se ao vasto tronco, subiu pelo monte, desapareceu.

VI

Quase esquecera os homens: e no seu espírito simples apenas muito confusamente restava a memória dos casais, dos lugares, e das crianças rindo por trás das sebes. Os seus dias passava-os imóvel, olhando: por vezes movia um braço com a lentidão de um ramo sacudido da aragem: e quando os trovões estalavam, erguia um instante a face para o céu; depois, recaía na sua imobilidade.

Um dia, porém, sentiu tilintar guizos, e vozes que falavam. E por trás de umas rochas surgiu uma fileira de mulas carregadas, que homens armados conduziam. Como a noite descia, os homens pararam numa clareira: daí a pouco ardia um fogo claro, tapetes juncavam o chão, e os homens, sentados em roda, passavam de mão em mão um pichel de vinho. Cristóvão toda a noite, de entre a floresta, os espreitou: – e uma curiosidade infinita tomava-o de ouvir de perto as suas falas, beber do pichel, aquecer-se ao fogo claro. Se eles quisessem, ele conduziria algum dos fardos.

Um estranho, singular impulso o levava a querer bem àqueles homens – e toda a

Durante um ano viveu na serra. E pouco a pouco, naquela solidão, longe de toda a vida humana, ele quase perdeu a sua humanidade, e foi como um pedaço da montanha que o cercava. Sentado durante dias, imóvel, os seus grossos membros broncos não se distinguiam das rochas: o mesmo vendaval esguedelhava-lhe os cabelos e as ramarias das árvores: e a sua voz, quando se erguia, confundia-se com o rugir das torrentes. As feras não tinham medo dele; as aves pousavam sobre os seus braços como sobre troncos dobrados. A serra era solitária. Outrora vivera lá um ermita, mas as penitências tinham-no extenuado. Um anjo descera a buscá-lo, e a cabana que ele habitava desfizera-se, prancha a prancha, sob os chuveiros do Inverno. Durante um ano Cristóvão não vira um olhar humano pousar-se nele, nem uma voz humana tinha alegrado o seu coração. noite rondou para que as feras não atacassem o rancho.

De manhã, eles enrolaram os tapetes; a longa fila de machos desceu a encosta, e os guizos que tilintavam perderam-se pelas quebradas.

Então, um frio estranho, um frio que ele não compreendia, que não vinha do vento, nem da neve, arrefeceu Cristóvão até ao coração. E, através da sua simplicidade, sentia que não teria tanto frio, se ouvisse outras vezes vozes humanas, e os passos de animais conduzindo fardos, e uma fogueira acesa por mãos de homens.

Começou então a percorrer a serra, os desfiladeiros, os barrancos, os vales, os bosques, as rochas que conhecia. E de cada vez aquela sensação de frio o mordia tanto, e tanto, que subitamente se sentiu como exausto: a cabeça pendeu-lhe entre as mãos, e grandes lágrimas rolaram-lhe pela face. A tarde caía; a noite veio, cheia de estrelas. E

Cristóvão, imóvel, sentia, através das lágrimas, surgirem-lhe como visões de coisas des-vanecidas, uma velha carregada de lenha, e arquejando sob o fardo; crianças que não podiam passar um rio; uma junta de bois que não podia puxar um carro carregado de pedras. E um desejo imenso vinha-lhe de sacudir aquele frio, trabalhando, carregando o fardo da velha, ajudando a junta de bois. Tomou o seu cajado, e começou a descer a serra.

VII

Uma tarde, na fonte, as mulheres viram como uma torre que avançava: as mais novas fugiram de medo, mas outras mais velhas erguiam as mãos e diziam: «É

Cristóvão! É Cristóvão!»

O seu vasto corpo crescera ainda, e a sua grenha ruiva ia mais alta que as mais altas árvores; lento nos movimentos, cada um dos seus passos parecia despregar-se do chão, com dificuldade; todo ele cheirava a torrão e a arvoredo; uma barba ruiva, como um capim queimado, cobria-lhe a face: – e os seus olhos azuis conservavam, como os de uma criança, um espanto perpétuo.

Ao chegar junto da fonte baixou a cabeça, bebeu com lentidão; depois, limpando os beiços, olhava, com um bom sorriso, as mulheres, que já sem medo, reconhecendo o filho do lenhador, se juntavam em torno dele, tocando-lhe com as toucas altas pelo joelho, e erguendo os olhos pasmados para as alturas da sua face.

Obtuso de espírito, ele não reconhecia ninguém – mas sorria sempre. Pouco a pouco, porém, na grande penumbra do seu espírito, decerto surgiram certas memórias dos tempos, que, ainda pequeno, era o servo da aldeia, e os seus enormes braços moveram-se com lentidão como procurando de novo fardos a levantar, fraquezas a socorrer. E quase imediatamente, vendo uma velha que passava, vergada sob um molho de lenha, tirou-lho e meteu-o, como uma simples acha, sob o braço; depois como um carro com pedra passava, tão pesado que os bois o não podiam puxar, desatrelou o gado, tomou o timão. Mas avistando ainda o moleiro, que picava o seu velho burro carregado de sacos de farinha, com os seus cinco enormes dedos ergueu os fardos do jumento: atirou ainda para os ombros um pobre velho, manco, que mal se arrastava – e assim, com o molho de lenha debaixo do braço, o velho pendurado do pescoço, os sacos pendentes da mão, o pesado carro de pedra preso pelo outro braço, começou a caminhar para a aldeia, seguido das mulheres, que acenavam para o lado, para as portas dos casais, e gritavam: «É Cristóvão! é Cristóvão!»

Despojado dos fardos, foi-se sentar no cruzeiro – e a sua cabeça chegava ao seio de Jesus crucificado, e parecia repousar sobre ele. No entanto, de toda a aldeia, gente corria a ver Cristóvão. Os homens vinham da taberna, limpando à pressa os beiços: as mulheres vinham fiando, outras trazendo ainda na mão as hortaliças dos caldos. As crianças, ao princípio assustadas, vendo que ele lhes estendia a mão com um bom riso, saltavam-lhe para cima da palma, e ficavam de lá rindo e acenando com os barretes, como do alto de um eirado. O regedor das terras veio por fim diante de Cristóvão rolando os olhos redondos, coçando o queixo, e falando baixo ao archeiro que o seguia, desconfiado decerto daqueles fortes músculos, que podiam arrasar a aldeia, tudo roubar, e vencer os archeiros; mas decerto todas as suas algemas não eram bastante fortes para algemar aqueles enormes pulsos, por onde as crianças trepavam, como por troncos de cimeiros: e afastou-se com dignidade, coçando sempre o queixo agudo. Mas duas mulas zurravam, por trás do caminho – e apareceram dois guardiões do convento, que, decerto avisados, desviavam-se do caminho para ver o enorme gigante. Todas as mulheres dobraram o joelho, e os homens, com os barretes na mão, baixavam os olhos: – e então o mais velho espicaçou a mula com os calcanhares até a fazer chegar junto de Cristóvão.

Para experimentar, com receio que em tão grande corpo habitasse Satanás, fez o sinal-da- cruz, murmurou três vezes o nome de Jesus. Cristóvão fez também uma cruz sobre a testa. Então, tranquilo, o guardião começou a andar em volta dele, batendo os calcanhares nos ilhais da mula, para o examinar, como um monumento. E a cada grosso músculo, a cada detalhe de força, uma ideia surgia nele: e falava baixo ao outro, que aprovava, com um sorriso reverente. Por fim o guardião gritou: «Cristóvão, se queres ganhar o teu pão, vai amanhã, a matinas, à portaria do convento».

Os dois frades picaram as mulas. Pouco a pouco a gente recolhera aos casais, de onde saía o fumo das lareiras acesas. Uma a uma, as estrelas brilhavam. E Cristóvão só, cansado, estirou-se junto ao cruzeiro, onde o sacristão veio acender uma lâmpada.

Estirado de costas, Cristóvão olhava as estrelas. Eram as mesmas que ele tantas vezes contemplava na serra: – mas pareciam-lhe mais brilhantes, mais próximas, e derramando um calor como lâmpadas que alumiam uma morada humana. E ele mesmo, enfim, sentia vir daqueles casebres, que em volta se acendiam e mandavam o seu fumo para o céu, um calor que o penetrava até ao coração. Adormeceu sorrindo.

De manhã, chegou do outro lado do vale, em frente do mosteiro. Uma muralha envolvia-o como a um castelo: – e por trás da porta, de grossa pregaria, os cães inquietos agitavam as cadeias de ferro. No pátio enorme uma faia abrigava a roldana de um poço. Altas fachadas, com reixas nas janelas, erguiam-se em redor: – e ao fundo, junto à entrada da capela, havia um banco de pedra onde um guardião lia o breviário.

Ao ver Cristóvão, fechou o breviário – e examinou-lhe outra vez, com satisfação, os grandes membros serviçais. Depois, por um corredor, alto e fresco, levou-o a um claustro que cercava um jardim: ruas areadas contornavam os canteiros de flores; ao meio cantava um repuxo; e um espaço, entre paredes que a hera revestia, estava lajeado, como chão de igreja. Aí quatro frades, de hábitos arregaçados, jogavam a bola; outros, mais longe, conversavam ao sol; e sob um caramanchão o abade dormitava, com as mãos cruzadas no ventre.

Mas quando Cristóvão apareceu, tudo se interrompeu, todos ergueram as faces, um rumor correu de espanto: – e o guardião diante de Cristóvão, que hesitava, com o seu barrete na mão, fazia-lhe sinais para o levar até ao abade.

Sua Senhoria deu um salto na cadeira ao encarar com o monstro. Depois ergueu as mãos ao Céu, com olhos de piedade. Para mostrar a força de Cristóvão, o guardião mandou-lhe erguer uma pilastra partida que jazia no chão. Cristóvão brandiu a pilastra, como um simples cajado: e todos os frades recuaram com grandes ahs maravilhados.

Cristóvão fora trazido para servir no convento, fazendo o trabalho de muitos serventes. O rancheiro, porém, perguntava se era na realidade uma economia – porque ele igualmente comeria a ração de muitos homens. Os frades argumentavam com gravidade. O abade, porém, decidiu. Além da economia, o convento ganhava a glória de possuir o mais forte de todos os homens. E imediatamente Cristóvão foi levado às cavalariças, para as limpar.

Foi o servo da comunidade – e sobre ele recaiu todo o serviço do convento, onde havia oitenta frades, trinta noviços, e dependências inumeráveis. Varria os pátios, limpava as mulas, cavava as hortas, caiava os muros, carregava os sacos de farinha, acarretava os feixes de lenha – e era ele que trazia das pedreiras as grandes pedras para as obras da lavandaria. Durante longos meses os seus fortes ossos rangeram sob o trabalho violento. Substituía as cavalgaduras, puxando os carros pesados, com eixos de ferro. Todo o dia, dentro do convento, na cerca, sob o sol ou sob a chuva, a sua forte figura se movia no trabalho contínuo: só por vezes descansava, para tirar do poço um balde de água, que punha à boca, e secava de um trago. À noite, estendido sobre as lajes do pátio, dormia de um sono de animal, entre os cães soltos, que lhe punham as patas sobre o peito, como sobre um rebordo de muralhas, para ladrar contra os ruídos da noite.

Todos os anos, na véspera da Candelária, o padre-mestre reunia os serventes, e interrogava-os sobre a doutrina. Cristóvão não pôde responder, nem sequer enfiar o padre-nosso. Não sabia quem criara o Mundo – e eram-lhe desconhecidos os casos do

Paraíso. Aterrado com tão negra ignorância, o abade ordenou que Cristóvão assistisse à aula de História Sagrada. O seu imenso corpo não cabia nos bancos da escola: e o padre-mestre dispôs que Cristóvão, encostando-se ao muro do pátio, aplicasse a cabeça

à janela aberta da aula.

Quando a sineta do estudo tocava, Cristóvão chegava ao muro: – e a sua imensa grenha surgia no parapeito da janela. Todos os discípulos riam –e os mais inquietos atiravam-lhe aos olhos caroços de frutos ou vibravam-lhe, como pequenas lanças, penas de pato que se lhe enterravam na grenha. Ele sorria, com paciente respeito.

Sentado no estrado o mestre ensinava – e Cristóvão, como através de uma névoa, entrevia as coisas maravilhosas do começo do Mundo. Um Deus enorme, grande como ele, alargando os seus braços potentes, separava o Sol e a Lua; a sua voz era o trovão que rolava; e o seu sopro ora fazia curvar as florestas, ora encapelava as vagas. Mas os homens começavam a povoar a terra, e Deus entrava logo em grandes cóleras. Ao seu capricho as cidades tombavam, sepultando sob as ruínas as criancinhas que sorriam nos berços; vastos prados secavam, e os gados balavam lamentavelmente de fome; um grande terror tomava a terra: – e os homens viviam no terror daquela mão imensa, que só saía das nuvens para os devastar.

De noite, o doce sono fugia de Cristóvão. E, encolhido, voltava para o céu os olhos desconfiados. Se Deus reparando nele, de repente, fizesse sobre ele cair o fogo que queimara Gomorra? Todo o barulho o inquietava: e numa noite de trovoada os seus gritos acordaram todo o convento.

Mas o padre-mestre bem depressa começou a explicar os dogmas. E foi como se toda a Terra e Céu perdessem a sua realidade, ficando apenas deles baixas névoas que flutuavam. Nas alturas já não governava um homem forte e velho, de longas barbas: – mas uma trindade, que era de três, mas que formava um só, e era um Pai, um Filho, e um Espírito que tinha asas. O pecado não era fazer mal, mas nascer, e a água, escor-rendo de uma concha, lavava-o como um linho sujo. Cristóvão arregalava os olhos desmedidamente – e as prédicas do padre-mestre eram como névoas que flutuavam intangíveis, Logo esvaídas apenas formadas. Sentia como uma tristeza diante daquelas coisas inacessíveis: – e o suspiro que lhe fugia do peito fazia voltar os noviços, que, às escondidas do padre, lhe faziam visagens como de demónios.

Um só parecia simpatizar com Cristóvão. Era um moço franzino, que tinha a sua banca junto da janela, sobre a qual caíam os caracóis dos seus cabelos louros. As suas mãos pálidas folheavam de leve um in-fólio: – e havia em todo ele como a gravidade de um letrado e a doçura de uma virgem.

Todos os dias Cristóvão o via chegar da aldeia com o seu tinteiro metido no cinto, o rolo de papel sob o braço: e todas as tardes o seguia com os olhos quando ele, finda a aula, regressava à aldeia, folheando ainda pelo caminho algum livro onde havia cores brilhantes. Por vezes via-o parar, colher as flores silvestres do caminho. Ou alegremente, deitando os seus longos cabelos para trás, cantava sob a doçura da tarde.

Sempre que passava junto de Cristóvão, dizia-lhe: «Deus te salve!» E Cristóvão sentia como uma carícia na alma. Muitas vezes pensava nele – e voltava-lhe à lembrança o que ouvira ao padre-mestre, dos anjos que desciam à Terra, se misturavam

às ocupações humanas. Ia então colocar-se no caminho em que ele passava. E um dia que os caminhos estavam alagados pela chuva, Cristóvão ofereceu-se para o passar ao colo. Desde então procurava maneiras de o servir. Nos dias de calor, tinha para ele a bilha de água mais fresca: e nos dias de frio, fazia depressa no pátio um fogo de rama, para ele aquecer os pés húmidos antes de subir aos claustros. Por fim, como o Inverno se avizinhasse, com os crepúsculos mais escuros, Cristóvão seguia-o na sua volta à aldeia, para o proteger dos lobisomens, ou dos maus encontros: e quando vieram as chuvas, ofereceu-se para o levar às costas como um macho, até à porta da sua morada.

Então pelo caminho conversavam baixo: Cristóvão contava os seus trabalhos no convento, o moço dizia os seus desejos de ser militar, conhecer o mundo, percorrer as cidades. Seu pai era o regedor das terras e destinava-o para padre; mas ele queria casar com uma prima, chamada Etelvina, que morava ao pé do castelo, para além do Pego das

Donas. E um dia que assim conversava, o moço contou a Cristóvão que às vezes ia encontrar essa rapariga, longe, à orla de um bosque; mas temia que a surpreendessem os archeiros do pai, que rondavam os campos, ou os servos do castelo mandados pelo pai de Etelvina. Se Cristóvão quisesse, podia ficar à orla, vigiando os caminhos, como uma torre, e se viesse alguém chegando, avisá-los com um grito. Cristóvão disse: «Irei para onde me mandares».

VIII

O sítio onde se encontravam era num claro de arvores derrubadas, à orla do bosque. Havia ali uma torre outrora erguida pelo conde da Ocitânia. O Diabo um dia derrubara-a; e ainda se distinguiam nas pedras tisnadas os vestígios das garras do

Tentador. Um terror afastava dali os passos humanos: mas a abundância das flores silvestres, a doçura dos musgos, oferecia, aos audazes que lá chegavam, um asilo fresco de paz silvana. Era ali que se encontravam Alfredo e Etelvina. Para chegarem mais depressa, Cristóvão tomava Alfredo aos ombros, e com passadas de côvados, saltando as ribanceiras, transpondo os lameiros, chegava lá primeiro, ao cair fresco da tarde. Por um caminho que contornava a colina, viam descer Etelvina, que levantava o seu vestido cinzento, por causa dos espinhos das sebes. Como voltava da igreja, trazia um livro na mão. As suas duas tranças louras caíam-lhe pelos ombros. As longas pestanas, dos seus olhos baixos, faziam-lhe uma sombra na face da cor e doçura de uma rosa branca. E junto da sua escarcela soavam as tesouras, as chaves, o dedal, pendentes da cinta por correntes de prata. O bom estudante dobrava diante dela o joelho: e tomando-a pela mão delicada, caminhava com ela pelo bosque, parando para lhe tirar, da orla do vestido, as silvas que se lhe prendiam. Ela tinha sempre para Cristóvão um sorriso, a que se mistu-rava o brilho dos seus olhos: e ele de pé, vigiando o caminho, ficava pensando naqueles olhos, que lhe pareciam estrelas. No arvoredo em torno cantavam as aves: um aroma de verduras, de pinheiros, de madressilvas, flutuava no ar: e por vezes os passos de uma corça roçavam por entre a espessura das faias tenras. E Cristóvão, apoiado a um forte cajado, lançava os olhos em redor, pelo vale. Mas ninguém se aproximava da torre derrocada. E ele, pouco a pouco invadido pela doçura da tarde, pensava em doçuras que recebera – na carícia das mãos de sua mãe sobre a grenha crespa, nas festas das crianças que por vezes sem medo lhe trepavam aos joelhos. Uma melancolia tomava-lhe o peito.

E, na sua vaga ternura, desejava apertar contra si todo aquele vale, e as nuvens dos céus, e a água que fugia cantando.

No entanto Alfredo e a sua bem-amada vinham repousar, sentados numa pedra.

Ele olhava a fímbria do seu vestido, ou segurava os seus dedos delicados, que arrancavam uma a uma as flores dos malmequeres. Por vezes ele colhia um ramo; ou apanhando o livro dela, que caíra a seus pés, voltava as folhas; ela debruçavas-se, e os fios soltos dos seus cabelos roçavam os ombros de Alfredo; e muitas vezes assim se esqueciam, com os olhos postos na mesma página que não voltavam, corados, com o peito a arfar.

Mas um dia que ambos passeavam longe, ao fundo dos pinheirais, com os ombros juntos, Cristóvão Ousou tocar o livro, esquecido sobre uma pedra, e com os seus grossos dedos voltar as folhas. Eram linhas negras que não compreendia; mas uma emoção tomou-o diante das imagens cheias de cor. Parecia ser uma história – e começava por uma criancinha, que num curral, entre uma vaca e uma jumenta, sorria, toucada de estrelas, nos joelhos de uma mulher pálida. Depois a mesma criança, já major, e sempre coroada de estrelas, falava diante de um grupo de velhos barbudos, que espalmavam as mãos com espanto. Quem era esse, pois, que, tão novo, assombrava a velhice sapiente? Mais longe os dedos de Cristóvão, virando as folhas duras, encontravam o mesmo ser, que ele reconhecia pelo seu aro de estrelas, já homem, envolto numa túnica, passeando à beira de um lago: e não cessava mais de aparecer, pondo as suas mãos sobre os entrevados, estendendo os braços para as crianças, desatando as ligaduras dos mortos, consolando as multidões. Montado num burro, pene-trava as portas de uma cidade, entre um povo que o aclamava movendo folhas de palma; sentado sob um sicômoro, ouvia duas mulheres, que fiavam a seus pés; de joelhos, entre oliveiras, orava sobre um monte; preso em meio de soldados, com tochas, comparecia ante um juiz que erguia o dedo, pensando.

E Cristóvão sentia uma ansiedade de compreender, quando viu diante de si os dois noivos com os braços enlaçados, que sorriam. Surpreendido, Cristóvão fechou o livro. E como Etelvina, vendo a sua larga face perturbada e cheia de piedade, lhe perguntava se ele amava o Senhor, Cristóvão moveu a cabeça, sem compreender. Pois quê? ele não conhecia o Senhor e não amava a sua doçura? Tão grande escuridão naquela alma encheu-a de piedade: e um escrúpulo rosou-lhe as faces, pensando que, enquanto ela se ocupava de amar, alguém, ao pé dela, vivia sem conhecer o Senhor. E então, para que bem merecessem de Jesus, e para recompensar a protecção de Cristóvão, ela pediu a

Alfredo que lessem o santo livro àquele homem simples, que o ignorava.

Foi ao outro dia, por uma tarde de Outono. Já as árvores se desfolhavam; mais tristemente cantava o regato; e uma palidez banhava o céu. Para ouvir melhor, Cristóvão sentara-se sobre um alto monte de pedras derrocadas. Alfredo, rindo, trepara ao seu vasto joelho – e Etelvina sentou-se no outro joelho, tão simplesmente como se fora uma rocha ou um cômoro de relva. Os seus pezinhos cruzaram-se como os de um anjo: as suas mãos pousavam castamente no regaço. Defronte, Alfredo abrira o livro: – e com a vasta face de Cristóvão entre eles, era como se estivessem sentados nos membros frios e duros de uma enorme estátua de pedra.

E toda a tarde, no silêncio do arvoredo, Alfredo leu a vida do Senhor. Disse a estrela brilhando sobre o seu berço, e os pastores de longe vindo para ele, misturados aos Reis que traziam tesouros. Depois homens duros chegavam com alfanges: e o

Menino sorria adormecido no colo da mãe, enquanto a burrinha, toque, toque, os levava para o Egipto. Lá repousavam sob uma palmeira: o sol vermelho descia nas areias do deserto: e o Menino, rindo, puxava as barbas de seu pai, cujo cajado floria como um ramo de açucena. Mas era tempo que, o longo rolo sobre o joelho, Santa Ana ensinasse a ler o Menino: seu pai sorria por trás na sua grande barba: S. Joãozinho, ao lado, escutava com a mãozinha apoiada à face; e dois anjos no alto erguem a mão, param os ventos, para que nenhum ruído perturbe o Menino que aprende. Depressa o Menino aprendeu, porque eis que velhos barbudos, de mitra, arregalam os olhos espantados do seu saber

Cansado de ler, Alfredo parava, com o dedo entre as folhas do livro. E na face simples de Cristóvão havia tanto espanto, como na dos doutores: o seu grosso lábio tremia. E murmurou humildemente, e já cheio de amor:

– Mas que fez o Menino?

Quem sabe? Um doce silêncio caia sobre a terra. Em Nazaré, o carpinteiro aplaina a sua tábua, e S. João com os cabelos ao vento partia para o deserto. Mas já ao longe brilham as claras águas de um lago, com barcos amarrados na areia: Jesus fala devagar, erguendo o braço; e os pescadores deixam as suas redes, os semeadores esquecem a sementeira, os publicanos deixam os seus postos, os pobres saem dos cotovelos das estradas, e Jesus, seguido de todos, começa a caminhar pela Judeia. Uma incomparável doçura enche a vida dos homens. Jesus está entre eles. Os que não podiam ver, aclamam o esplendor da luz; os que não andavam, galgam, cantando, as colinas; todos os demónios se somem; os mortos desatam as suas ligaduras; não há dor que não espere consolação; as crianças têm um amigo, e as multidões, nas aldeias, vêem o pão nascer do pão.

Porque vai ele a Jerusalém, terra dura, onde os homens, com as barbas agudas, gritam uns contra os outros, brandindo rolos da Lei? Mas, que importa! Ele vai para tornar os homens melhores, e o povo vai com ele, cantando. É então que o céu se começa a tornar escuro. Os fariseus tramam baixo sob as arcarias do templo. E uma ansiedade pesa na terra...

E uma ansiedade enche também a face de Cristóvão. Porque não permanecera ele sempre Menino, sobre os joelhos da mãe, quando a Estrela luzia, e ele estendia a mãozinha para o focinho da vaca? Ou, se devia ser homem, porque deixou ele a beira do lago, e os caminhos verdes, onde a cada um dos seus passos a terra se tornava melhor, e melhor a alma dos homens?

– Tens pena, Cristóvão?

Era Etelvina que assim murmurava com os olhos apiedados.

Ele moveu a cabeça, em silêncio. O seu vasto peito arfava, e um terror invadia-o de o ver a ele, tão bom, naquela cidade onde os homens eram tão duros.

– E depois?

Alfredo disse então os dias derradeiros. Tristemente, Jesus, sozinho, sobe, ao cair da tarde, para o vergel de Betânia. Aí são as melancolias de uma felicidade que finda.

Madalena, desgrenhada, lava os seus pés cansados. Marta fia, com um fiar tão lento como se fiasse um sudário. Mas já Jesus se senta para a última ceia. S. João inclina a cabeça sobre o seio do Mestre. Judas aperta, sob a túnica, a sua negra bolsa. Jesus diz:

«Em breve não estarei mais entre vós». A noite é escura; Jesus sobe devagar o monte, onde há oliveiras; e um anjo, todo coberto de negro, marcha no ar ao seu lado. Um vento passa no ramo das oliveiras. Um rumor de armas vem com o vento 4ue passa...

Nos olhos de Cristóvão borbulhavam grossas lágrimas. E Alfredo dizia as tochas surgindo na escuridão das ramagens, os soldados brutais, e a prisão do Senhor. Porque o prendiam assim, e levavam, a ele, mais doce que o anho? Ei-lo que passa! E os seus pés, que encontravam o caminho do bem, sangram sobre as lajes duras, da casa de Pilatos à casa de Caifás. Traz sangue na face, as mãos arroxeadas pelas cordas, os ombros riscados pelas vergas: – e a sua doçura é tão grande que diz: «Por que me bateis?» A cruz que lhe dão é tão pesada, que cai uma vez, outra vez, ferindo os joelhos nas pedras, com grandes bagas de suor na face... Mas eis que em tropel todos sobem a colina: cravam com grandes pregos as suas mãos sobre o madeiro; cravam no madeiro os seus pés, com grandes pregos... E da água com que ele secava a sede das multidões pede, sem que ninguém o escute, um trago que mate a sua sede. Os homens maus atiravam pedras à sua cruz. E todo o mal era feito Àquele que não fizera senão bem!

E então um grande suspiro abalou o vasto peito de Cristóvão, e, na solidão do bosque, gritou:

– Oh! porque não estava eu lá com os meus braços!

Os dois bem-amados estavam de pé diante dele, e o homem enorme chorava.

Chorava pela morte d’Aquele que conhecera tão tarde. Chorava por todos os que, morto ele, perdiam o amigo melhor dos homens. -– Mas por que o mataram? por que o mataram? E Cristóvão, deixando os dois, desceu a colina, chorando.

A noite caía no vale. Um vento triste vergava os canaviais. Cristóvão seguia e chorava. Os seus vastos pés empurravam as rochas como seixos. O seu ombro, ao passar, quebrava os ramos tenros. Oh! se ele estivesse então no monte escuro onde o prenderam! O seu braço sacudiria, como ervas secas, as espadas reluzentes. Tomaria sobre o seu ombro o Mestre adorável. Fugiria com ele para a paz dos campos; e como um cão fiel, junto aos seus passos, defenderia dos soldados, dos padres, aquele corpo que era de Deus, e espalhava Deus entre os homens.

A noite caíra, Cristóvão parou. E sentado sobre uma rocha, com grandes lágrimas sobre a face, olhava as estrelas que, uma a uma, marcavam os pontos do céu. Era ali, naquela altura, que ele habitava. Oh! se ele pudesse subir lá, e ver como era a sua face, e sentir a doçura das suas mãos! Porque não voltaria ele mais para consolar os pobres, secar as lágrimas, agasalhar as criancinhas, e nutrir as multidões? Agora, que todos o amavam, ninguém o prenderia: o caminho que ele seguisse seria juncado de rosas; os bispos, nas suas capas de ouro, cantando e balançando os incensadores, viriam ao seu encontro. E para o defender, os barões correriam, cobertos de ferro e com lanças, nos seus grandes corcéis! Por que não voltava? Ele seguiria pelo mundo os seus passos ligeiros: a cada instante afastaria as silvas, que o não magoassem; com grandes brados espantaria os cães que ladram às portas dos castelos; fardos que houvesse, com alegria ele os levaria; só ele, e mais ninguém, colheria os frutos para o Senhor, ou iria buscar a

água às nascentes melhores. De noite, faria com rama uma cabana para o abrigar do vento mau: – e estenderia o seu braço, para que nele repousasse a sua cabeça cansada. E assim pensando, um imenso amor erguia-lhe o peito: – e, de pé numa rocha, os seus braços estendiam-se para o céu, para neles estreitar Aquele que, para o salvar, fora pregado na cruz. E três vezes chamou: «Jesus, Jesus, Jesus!

Então, perto dele, ouviu como um pranto que cortava o silêncio da noite. Vinha de longe, de onde brilhava uma luz de cabana. Os seus passos foram para lá, esmagando a terra fresca. E mais perto reconheceu o soluçar de uma mulher que chorava. Decerto alguém sofria muito. Havia ali orfandade ou viuvez, uma miséria que erguia os braços para o céu. Por que não vinha o Senhor? Se ele habitasse a Terra, para aquele casebre iriam os seus passos. Ele iria atrás humildemente, seguindo-o. Mas Jesus estava além, por trás daquelas estrelas. Por que não iria ele, como se seguisse o Senhor? Mais vivo e triste, o pranto cortou a noite. E Cristóvão devagar, e com medo, bateu à porta do casebre.

IX

Longos dias são passados, e Cristóvão, na aldeia, servo de todos. As portas do convento nunca mais as transpôs: porque lá habitam a paz e a abundância, o celeiro está cheio de trigo, a adega cheia de vinho, uma grande alegria e orgulho reinam nos corações – e para lá não iriam decerto os passos de Jesus, nem os seus a seguir o seu

Senhor. Mas na aldeia há os velhos, os mendigos, os tristes, os órfãos, as viúvas; e a força dos seus braços pertence a esses, como o amor do seu coração, porque assim mandaria o seu Senhor.

Simples e tímido, Cristóvão impõe os seus serviços: mas toda a fraqueza, que recorre à sua força, ganha a gratidão da sua alma. E pouco a pouco, sentindo nele um amparo, todos os fracos vieram a ele – de sorte que, desde que nasce a estrela de alva até que a noite cobre o vale, Cristóvão trabalha com tanta alegria, que o pesar dos maiores fardos lhe parece uma carícia, e nas feridas piores de curar sente um perfume inefável. Ele lavra a terra dos velhos; desbasta as florestas a grandes golpes de machado; seca os pântanos, com grossas pipas que carrega às costas; puxa os carros para que os bois não se esfalfem; transporta aos ombros os coxos; guia os passos dos que não vêem; vai ao longe mendigar o pão e a lenha dos pobres; embala os berços; cava as sepulturas dos mortos: – e quando não há vento, ele, retesando os braços, faz girar a mó dos moinhos. Constantemente o seu nome é gritado por cima das sebes dos casais. Este tem o burro doente, e é Cristóvão quem transporta os fardos; aquele precisa um ceifeiro, e Cristóvão parte com a foice; aquele tecto precisa colmo, e Cristóvão trá-lo

às braçadas; para fazer o casebre da viúva não há pedra, e Cristóvão chega da remota pedreira, gemendo sob os blocos da rocha. E Cristóvão quem sopra o fogo do ferreiro; é

Cristóvão quem sacode, a matinas, a corda do sino; é ele que, sozinho, abre nos lameiros a calçada nova; é ele quem escava os poços nos pátios dos casais. À noite estava prostrado. Quando os grandes invernos alagavam a aldeia, abrigava-se num vasto alpendre que mal o cobria todo: de Verão estendia-se junto ao cruzeiro, e os primeiros pássaros, chalrando de madrugada, pousavam sobre os seus ombros, como sobre colinas escuras.

Aos domingos repousava, e esse era o seu dia melhor, porque as crianças brincavam com ele. Sentindo-o doce e paciente, todas corriam para ele como para um grande bicho que as divertia: e trepando por ele, era como o vivo prazer de trepar a

árvores e a torres. Por vezes, com as mãos pousadas na terra, ele oferecia o seu vasto dorso, em que cavalgavam, presos pelas cintas, uma longa fileira de corpinhos ágeis e vivos: e dando corcovos, imitava, entre as risadas alegres, o urro do leão ou o heróico relinchar de um corcel. Além disso sabia fazer, com as suas mãos cabeludas e cheias de terra, todas as sortes de brinquedos – flechas de caça, pequenos carros que rodavam no pó, barcos com velas para vogar no pego. Para tudo as crianças o tinham pronto – e só se recusava quando eles tentavam estragar a fruta verde, ou fazer mal aos melros.

Mas, de todas as crianças da aldeia, uma governava superiormente o seu coração.

Era a filha de uma viúva – daquela que Cristóvão ouvira chorar, e à porta de quem batera, como mandado por Jesus, seu amo. O pai morrera nessa noite – e à pobre mulher não restava ninguém no mundo para tratar as terras, cuidar das ovelhas. Mas, desde essa noite, uma grande força útil entrara no casebre. Cristóvão foi o servo fiel: – e nenhuma horta na aldeia andou mais bem regada, nenhum gado apascentado em prados melhores, nenhum torrão mais fundamente arado. Um riso da criança (que se chamava Joana), o seu jeito de lhe puxar as barbas, recompensava-o de todo o trabalho. Mesmo brincando com as outras, era em Joana que pensava. De noite rondava a porta do casebre, a escutar se ela chorava no seu berço. Cedo, de manhã, ia postar-se na horta entre os limoeiros, à espera que ela corresse de dentro com os seus bracinhos abertos: e todo o dia ficava sentindo nos cabelos, nas barbas, a doçura das suas mãozinhas, que o arrepelavam. Ele amava-a por toda a sua pessoa – a covinha da face quando ria, a graça da sua voz hesitante, os seus pés mal seguros sobre a terra lavrada. Amava-a sobretudo pela sua fraqueza –e não antevia vida melhor do que passar eternamente a servi-la, e a ser alegremente arrepelado. O seu prazer maior era trazê-la escarranchada aos ombros; ela ria, agarrada aos seus longos cabelos; e ele caminhava grave e vaidoso, como se conduzisse a sagrada hóstia.

Por vezes comparava-a ao Menino, ao Menino divino, que ria no seu curral, e aprendia a ler no grande livro de Santa Ana. Os seus olhos claros e largos deviam ser como os de Joana. E o seu pesar era não saber ler, para abrir sobre os joelhos um livro, onde o seu dedinho espetado fosse seguindo as letras grossas. Decerto, Jesus, se conhecesse Joana, a devia amar. Ela era inocentinha como uma flor do valado: e o seu anjo da guarda esperava quieto, quando ela parava no caminho, a remexer na terra, à procura de bichos. Por mais longe que andasse trabalhando, sentia a voz de Joana se ela o chamava, como se a voz viesse de cima, do Céu – e apressava então a obra, à força dos braços, para correr ao seu encontro, não se esquecendo de trazer as amoras de que ela gostava, ou medronhos, menos corados que a sua facezinha. Durante horas então acamaradavam – e Cristóvão era tão simples que, para a entreter, só sabia repetir a voz dos bichos, dançar pesadamente como um urso. A mãe dizia:

– Cristóvão, Cristóvão, muito tempo gastas com a menina... Olha a lenha... Olha o gado

Ele baixava a cabeça, abria a cancela: e ainda se voltava, já longe, para sorrir, com a sua vasta face iluminada.

Ora no meio desta felicidade, começou um murmurar na aldeia. O guardião do convento não perdoara a Cristóvão ter ele abandonado os seus serviços à ordem; e os frades que passavam, ou os que vinham pregar à tarde no adro, diziam depois que, segundo os livros, todos os gigantes tinham pactos com Satanás. Decerto, este era doce e serviçal. Mas assim eram as artes dos servos do Demónio, que durante um tempo se faziam doces e afáveis, para melhor se apoderarem das almas. As mulheres, ouvindo isto, ficavam pensativas. Era então em Maio: já as macieiras tinham flor, e as primeiras espigas dos trigos saíam da terra, e os prados enverdeciam. Mas eis que, uma noite, grandes relâmpagos luzem sobre o vale, um trovão rola sobre as serras – e subitamente, com o estalido de lanças entrechocando-se, caiu o granizo. Longo tempo caiu, arrasando o colmo dos casebres, matando os rebentos novos, esmagando as frutas, devastando o gado nos apriscos. De manhã toda a aldeia estava pobre: – e os homens corriam pelos campos, a olhar os destroços, enquanto as mulheres, juntas no adro, carpiam como num funeral. Um padre veio logo do convento, e estendendo a mão, demonstrou que, por causa dos endurecimentos das almas, viera aquela visitação. Por que persistiam eles em acamaradar com um servo do Demónio? Cristóvão, como todos os gigantes, era um emissário de Belzebu: – via-se-lhe o Inferno nos olhos, nas barbas que o fogo crestara, e na sua fingida humildade. Mas eles continuavam a dar-lhe o pão e o sal, e aí estava que o Senhor lhes devastara as sementeiras. Toda a tarde assim falou – enquanto Cristóvão andava no campo, atando os ramos caídos, secando os charcos, compondo os tectos dos casebres.

Os homens, no entanto, tomavam os seus cajados. O balio, chamado, tocou a trompa para reunir os seus archeiros. As mulheres escondiam as crianças: outras plantavam cruzes à porta da casa. O abade mandara tocar o sino. E era como quando na aldeia aparecia um bando de lobos.

Cristóvão devia vir por uma azinhaga, onde se postaram os homens com os cajados, os archeiros com os seus arcos retesados, e o padre, atrás, alçando a cruz com mão trémula. E num bando as mulheres da aldeia, até as velhas trôpegas, esperavam para ver o feiticeiro espancado e expulso. Todos eles tinham recebido os serviços de

Cristóvão; a todos ele cavara a terra, transportara os carretos, rachara a lenha, tosquiara o gado. Mas, em cada um desses serviços, cada um via agora como um ardil de Satanás.

Mil coisas lembravam, que o condenavam. Uma noite aparecera um velho desenterrado.

Quem o desenterrara senão Cristóvão? Às vezes, de noite, luziam na treva da aldeia dois grandes olhos vermelhos. De quem seriam senão de Satanás, que vinha alta noite conversar com Cristóvão? Por que não rezava ele nunca no adro? Outros acudiam, afirmando que ele tinha, nas costas, pintada uma caveira. Era decerto o sinete da Morte.

E alguns que duvidavam, lembrando-se da sua doçura, da sua bondade, receavam defendê-lo, para que não parecessem, diante do frade, ter inclinação pelo Inimigo.

Assim o esperavam, quando, pelo caminho que descia da serra, ele apareceu, vergado sob um imenso molho de troncos. O padre imediatamente ergueu alto o crucifixo, e os archeiros retesaram o arco – e do bando um clamor subiu, enquanto se abaixavam a apanhar grossas pedras.

Cristóvão parara espantado: – e tão certo estava do amor de todos, que se virou para trás, para ver que inimigo ruim ou homem de temer subia o caminho, e despertava assim a cólera da aldeia. Mas o caminho estava vazio, já escuro. E era contra ele que o frade erguia a cruz, os besteiros apontavam os dardos, e os punhos tremiam de cólera no ar!

Vade retro! Vade retro! – gritava o frade.

– Aos corvos! Aos corvos, o malfazejo! – clamava a multidão.

Deixando escorregar dos ombros o molho de troncos, que tombou esmigalhando a sebe, Cristóvão ergueu a face, alargou os braços: – e durante um momento o espanto fez tão feia a sua face, que o bando recuou, as mulheres fugiram alçando os braços. Mas o frade, com o crucifixo trémulo no ar, acumulava os exorcismos; o balio, com a vara, acirrava a multidão – e as pedras partiram, arremessadas com tanto medo, que todas se perderam no mato , em redor. Então, sem temor, Cristóvão deu um passo lento. Os seus olhos esbugalhados sondavam a turba ruidosa: via ali, gritando contra ele, todos os que auxiliara: o moleiro, a quem servira de alimária, e carregara os fardos, brandia contra ele um cajado; a viúva do ferreiro, a quem soprara a forja, tinha duas pedras nas mãos; e as crianças, que ele acariciava no adro, gritavam: «Aos corvos! aos corvos!» Então uma grande dor varou o seu coração simples. A aldeia não o queria mais. Como um bicho malfazejo, como um lobo, ele era escorraçado. Duas lágrimas enevoavam as suas vastas pupilas, que reluziam: e baixando a cabeça, com humildade, Cristóvão desceu o caminho. Então a multidão ganhou ânimo. As pedras, voando, bateram nas suas espáduas, cansadas de todos os fardos; uma seta emaranhou-se na sua guedelha hirsuta.

Cristóvão desapareceu.

Diante dele estava a serra: para a serra subiu lentamente. E uma só dúvida tumultuava no seu coração: – por que o tinham perseguido? que fizera ele? Amava a todos, servia a todos. Era que o seu trabalho não parecia bastante útil? Ele não podia tirar mais força dos seus músculos, nem fazer que, para a labutação, os dias fossem maiores. Por que o apedrejavam então? E uma recordação entrou na sua alma, a memória de Jesus, que só fizera o bem, e que os homens tinham flagelado contra uma coluna de pedra. Ele era, pois, como o Senhor, um perseguido. E um amor maior crescia na sua alma por Jesus, sentindo confusamente que houvera entre os seus destinos uma igualdade de sofrimento... Os seus braços erguiam-se para a Lua que subia. Ali, nas alturas, estava o Senhor. E mesmo vendo a Lua tão brilhante e triste, ele pensava se não seria essa a face do Senhor!

Assim pensava, sentado numa rocha. Os olhos de um lobo luziram entre o mato.

Ele pensou que talvez, esfomeado, o lobo descesse à aldeia. E erguido, deu um brado, espantou a fera para os altos, para longe dos caminhos que desciam à aldeia. Ele via-os, esses caminhos, por entre os pinheiros. E, em baixo, as luzes mortiças, mais longe o

Pego da Dona, brilhando como um disco de prata. Aí era o casebre onde, a essa hora,

Joana dormia. Nunca mais ele a veria deitada na sua canastra, coberta com o mantéu negro da mãe. Nunca mais as suas mãozinhas lhe arrepelariam as barbas. E uma tristeza imensa tomava-o, uma vontade de se deitar para sempre na serra, e ficar ali até que os seus ossos brancos se não distinguissem das rochas brancas. Mas quem faria rir Joana, como ele, quando a erguia nos braços até à rama dos mais altos pinheiros? E quem lavraria o campo da viúva? Essa, decerto, lamentava a sua saída da aldeia. Nela sempre encontrara doçura, e um rosto que sorria na sua tristeza. Se ela o visse, decerto diria:

«Cristóvão, olha o gado; Cristóvão, olha a lenha!...» Se os outros o perseguiam, ela ao menos o acolheria. E agora Cristóvão esperava a madrugada para descer ao casebre de

Joana.

Ténue e fresca, a madrugada nasceu por fim na serra. Rastejando entre os arvoredos, agachado para que a sua cabeça não fosse vista acima das árvores, rodeou a serra, veio ao casebre da viúva. A cancela estava fechada. O galo cacarejava, sobre o monte de mato. Já decerto o lume se acendera dentro, porque da telha vã saía fumo: e as cotovias cantavam muito alto no céu claro. Cristóvão apareceu por trás, defronte da porta do aido. Um grito assustado cortou o ar. A viúva vira Cristóvão, e, arrebatando

Joana, que brincava no chão, fugiu para dentro do casebre, gritando como o padre:

Abrenuntio!

Cristóvão ficou imóvel. Também ela, pois, o temia, não o queria mais! Não havia em toda a aldeia já um coração que se lembrasse. As crianças fugiam dele. Por quê? lentamente afastou os passos, tão triste que o canto das cotovias quase o fazia chorar.

Ao lado o Pego da Dona rebrilhava, como um espelho redondo. Debruçado sobre ele, olhou a sua face. Então, pela vez primeira, sentiu a sua fealdade. Decerto o repeliam por ser disforme. Esse era o seu pecado. E carregado com o peso da sua fealdade, Cristóvão para sempre deixou os lugares onde nascera.

X

Longos dias caminhou. O país era deserto, com rochas, grandes despenhadeiros.

A sede levou-o a um regato, que cantava entre pedras. Bebeu, e foi seguindo aquela

água clara que fugia. Ao fim de longas marchas encontrou um rio. Colinas suaves, onde branquejavam casas, erguiam-se dos dois lados da corrente serena e muda, orlada de salgueiros. Uma ponte antiga ligava as duas margens – e tendo-a passado avistou, erguidos, recortados na manhã clara, os muros de uma cidade. Quase de repente duas portas, sob uma torre que encimava a muralha, rodaram: – e delas irrompeu uma multidão que fugia. Era gente que trazia às costas as enxergas, as bilhas de água. As crianças, chorando, agarravam-se às saias das mães; os velhos erguiam os braços, para que esperassem por eles; – e por vezes todos se afastavam de algum cavaleiro, que, embuçado no manto, a pluma do chapéu ao vento, se escapava ao galope de um ginete magro. Um fumo, como de fogueiras, subia por trás das muralhas; as ameias não tinham sentinelas; e todo o ar estava cheio do dobrar de finados, badalado nas torres.

A turba que fugia, vendo Cristóvão, corria mais espantada, tropeçando, caindo sob o peso dos fardos; ele estendia os braços para amparar os velhos; o terror crescia: – e em torno das suas pernas, como em volta de torres, a multidão debandava, gritando.

Chegou por fim à entrada da cidade. Dois soldados, atónitos, fecharam as portas.

Cristóvão galgou o fosso, transpôs as muralhas. Diante dele abria-se uma rua, com trapos caídos nos enxurros, e todas as portas fechadas sob as tabuletas, que rangiam na haste de ferro ao vento agreste. Um fétido terrível tornava o ar pesado: e dois frades, erguendo o hábito, fugiam de um homem que se espojava no chão, com a face toda verde, a boca escancarada, gritando por água! Cristóvão correu para ele, ergueu-o nos braços, levou-o a um chafariz, onde a água jorrava de carrancas. O homem bebeu a largos tragos – as suas pernas inteiriçaram-se, e ficou nos joelhos de Cristóvão morto, já quase decomposto. Mas, de uma casa próxima, gritos soavam; e, erguendo a face, viu uma velha, esguedelhada, que da esguia janela, onde restava um pé de flor seca num vaso, chamava por socorro, torcendo os braços. Das janelas vizinhas faces pálidas espreitavam. Mais longe, prantos novos se ergueram. Cristóvão, tendo posto o cadáver no chão, olhava espantado sem compreender a dor que parecia pesar na cidade. De uma taberna, subitamente, saíram soldados bêbados, cambaleando, cantando, com as faces lívidas de uma noite de vinho e de orgia. Cristóvão ia interrogá-los – quando um de repente caiu, torcendo-se numa agonia. Os outros, subitamente desembriagados, fugiram. E Cristóvão acudia ao agonizante, quando ele ficou hirto, morto. Ao fundo da rua passava uma procissão, em que um padre, de túnica branca, erguia um relicário que reluzia, enquanto mulheres, atrás, descalças, desgrenhadas, torciam os braços, da mando para o Céu misericórdia. Os sinos não cessavam o seu dobre a finados: e homens tra-zendo barricas de breu, acendiam às esquinas fogueiras que subiam ao ar, fazendo estalar os vidros das gelosias.

Um padeiro, mais pálido que uma tocha, abria a uma esquina as tábuas da sua loja. Cristóvão dirigiu-se a ele, e curvando-se, com as mãos nos joelhos, perguntou-lhe que mal corria na cidade, e porque soavam tantos prantos. O homem recuara, inquieto, perguntando por seu turno se ele viera com saltimbancos para se mostrar. Cristóvão disse que não, e com um gesto mostrou o horizonte distante de onde vinha. Então o homem aconselhou-lhe que fugisse, porque a cidade toda morria da peste negra.

Quando assim falavam, um ruído de correntes arrastadas ressoou no lajedo. E dois homens, com cadeias de ferro presas aos pés, apareceram, trazendo um morto numa padiola. Atrás outros homens, de faces sinistras, com correntes aos pés, traziam outros mortos... Eram os forçados das galés, que iam enterrar os mortos, guardados por soldados, que faziam estalar no ar compridos látegos de couro. Então Cristóvão tomou aos ombros os dois mortos que jaziam junto à fonte, e começou a seguir os forçados.

Assim saíram as portas, até chegar a um olival, onde estava plantada uma cruz. Uma vala irregular e tortuosa atravessava sob a ramaria pálida. À pressa, os forçados atiraram os mortos para dentro, e com as enxadas lançaram sobre eles uma ligeira camada de terra. Ao ruído, bandos de corvos, que pousavam nas oliveiras, bateram o voo, grasnando furiosamente.

Cristóvão sacudiu as mãos da terra, e sem atender aos brados dos soldados que o chamavam, recolheu à cidade, ao acaso, por outra porta, que estava toda tomada por outro funeral, onde havia frades, escudeiros com círios em torno de um caixão, cujo pano de veludo tinha um brasão bordado. Então, todo o dia percorreu as ruas, socorrendo os que caíam, desviando os mortos do meio das calçadas – e ao escurecer já se tornara tão familiar, que das gelosias gritavam: «Eh homem!» Ele vinha, carregava os mortos para a vala, limpava as imundícies dos pátios, corria a encher as bilhas de água – e mesmo alimentava as crianças que choravam sozinhas nos casebres.

Como em todas as casas havia um morto, e se receava o contágio, a multidão errava pelas ruas, entregue ao terror e ao delírio. As mulheres, os velhos, corriam às igrejas, a implorar as relíquias, saltavam por cima dos cadáveres que atulhavam os adros. Estes, julgando que o mundo ia findar, corriam às tabernas, arrombavam as pipas, e as blasfémias dos ébrios juntavam-se ao pranto das mulheres. A cada esquina havia rixas – e por vezes, numa rua deserta, onde todos os moradores tinham morrido,

Cristóvão tinha de expulsar os porcos, que roíam ossos humanos. De resto os animais, abandonados, percorriam as ruas, e por vezes um cavalo espantado, um touro fugido do matadouro, corriam, esmagavam a gente, e era Cristóvão que os segurava com os seus punhos enormes.

A cada instante os gritos dos doentes abandonados o detinham. De rastos, ele introduzia o seu vasto corpo pelas escadas estreitas, e ia dar de beber aos doentes, limpar-lhes as imundícies, oferecer-lhes o seu vasto peito para eles morrerem sobre o calor de um coração humano. Por vezes um moribundo queria a extrema-unção; mas os padres tinham fugido, os raros que ainda havia não bastavam para tantos moribundos; e

Cristóvão, tomando um crucifixo, de joelhos, bradava junto do leito fétido: «Jesus, meu

Senhor, sê com este infeliz

Todas as noites havia grandes penitências. Bandos de homens, de mulheres seminuas, corriam as ruas, rasgando as carnes, cobrindo a face de lama, cantando cânticos ferozes em que as invocações ao Senhor se confundiam com apelos ao

Demónio. Por vezes, de repente, uma voz gritava: «E culpa dos judeus!» E a multidão, tomando chuços, agarrando fachos, corria às casas dos judeus, que apareciam oferecendo sacos de ouro, e caíam sob os golpes, ou ficavam com as barbas queimadas.

Nas ruas ricas os palácios estavam fechados: e através das janelas sentiam-se músicas e o tinir das baixelas de prata, porque alguns pensavam que se devia esperar a morte no seio do prazer. Outros, porém, iam de casa em casa, em festas seguidas : –e viam-se cavaleiros, sem manto, com gotas de vinho nas barbas agudas, caminharem na rua, entre tocadores de bandolim e de flauta, tropeçando com os seus imensos sapatos bicudos nos cadáveres abandonados: e, para os ver passar, surgiam aos balcões mulheres pálidas, com o seio descoberto, peles de arminho na orla do vestido, e a cabeça coberta de uma mitra aguda de onde pendiam molhos de longas fitas, que o vento fazia ondear como flâmulas de mastros.

Toda a noite Cristóvão trabalhara. Como os guardas não fechavam as portas, por vezes os lobos, atraídos pelo cheiro da podridão, apareciam nas ruas escuras. E

Cristóvão, que juntava os cadáveres, corria contra eles bradando, com uma tocha na mão. Os mortos, que assim juntava, ia-os de manhã sepultar nos campos de oliveiras.

Depois ia colher à serra ervas aromáticas, que salvam da infecção, e pondo-se às esquinas oferecia-as à gente que saía das suas moradas e que, tomando um molho, se afastava respirando-o com confiança. Como os ladrões abundavam, Cristóvão vigiava as casas dos cambiadores da moeda, dos joalheiros: e se surpreendia uns homens correndo, com alguma coisa escondida sob o saião, tirava-lha e ia depositá-la numa igreja. Era ele quem distribuía a água, varria as imundícies, acendia fogueiras para depurar o ar. E pouco a pouco, era tão conhecido, que as mulheres, vendo a sua sombra passar rente das gelosias, chamavam sobre ele a bênção do Senhor. Os ricos atiravam-lhe bolsas com que ele ia comprar pão às viúvas. Os seus passos eram por vezes embaraçados pelas crianças, que se prendiam às suas pernas como a colunas. Os mercadores confiavam-lhe as suas tendas. Quando ele se ajoelhava à porta de uma igreja, dentro as orações eram mais ardentes. E como ele acarretava as lenhas dos soldados, polia as suas armas, rondava por eles as portas – os soldados gritavam na rua: «Viva Cristóvão!»

Uma tão grande popularidade inquietou o sobrinho do príncipe, que, tendo seu tio fugido da peste, com os seus tesouros e concubinas, governava a cidade, e queria, por ambição do poder, ganhar as simpatias do povo. Mas a sua face lívida e dura, sobre um corpo enfezado e corcunda, desagradava às mulheres pela sua fealdade, aos soldados pela sua fraqueza. Um dia em que ele seguia uma procissão, com as relíquias de S.

Teódulo, o povo, à sua passagem, permaneceu com o joelho apenas dobrado. Logo atrás, porém, entre o povo vinha Cristóvão, como uma torre entre casebres. Um mercador rico dera-lhe vinte varas de pano de Flandres, para um saio: e todo ele sorria na sua simplicidade, agitando duas palmas verdes que as confrarias dos Irmãos Hospi-taleiros lhe tinham dado, como emblema da sua caridade. Ao vê-lo, o povo, que se apertava contra as portas fechadas, rompeu a gritar o seu nome entre bênçãos: «Bom

Cristóvão! Cristóvão grato ao Senhor!» Uma dama atirou-lhe a flor que tinha no seio.

Os velhos baixavam a cabeça como na passagem de um justo.

O conde, adiante, tornara-se mais pálido. E nessa noite dizia, sentado à lareira, desapertando o gibão: «Quem me livrará daquele monstro que transvia o povo!» Os guardas, tendo combinado baixo, a um canto, vieram, cercando a sua alta cadeira de espaldar, animar por adulação o seu secreto pensamento. Não era conveniente, na verdade, que um ser disforme, dos que se mostram nas feiras, ganhasse assim raízes no coração do povo... De resto, a sua força seria depressa domada com fortes correntes de ferro. E não havia, fora da cidade, um despenhadeiro, onde se poderia lançar o corpo do imenso bruto? E quando, na manhã seguinte, Cristóvão começava o seu almoço junto da catedral, um pajem veio, sorrindo, e convidou-o a ir à presença do príncipe, que lhe queria dar ouro, e vestidos que conviessem a um homem tão serviçal. Pensando que os vestidos serviriam a cobrir os presos, que a miséria trazia nus, Cristóvão sacudira as mãos, onde a broa se esfarelara, e obedeceu ao pajem, que corria para lhe seguir as pas-sadas.

Apenas Cristóvão entrara no palácio, as grossas portas, eriçadas de ferros, foram fechadas. O conde, que estava num balcão, gritou agitando o gorro emplumado: «Eh

Cristóvão!» E como ele movia um passo, sorrindo, com a face erguida para o balcão, de onde pendia um veludo franjado de ouro – dois soldados meteram-lhe bruscamente entre as pernas uma trave, e Cristóvão tombou no lajedo. Logo, de todas as portas, rom-peram homens inumeráveis, que cobriram o imenso corpo deitado, como as formigas cobrem um tronco. Num momento foi amarrado com grossas correntes de ferro: e para que nenhum grito dele saísse, uma mordaça tapou-lhe a boca. Depois todos, recuando vivamente, contemplaram em silêncio o gigante vencido. O príncipe desceu para o ver, com damas, cujas caudas eram como longas tiras de tapete sobre o pátio. E os pajens cuspiam sobre a sua face barbuda. Ele pensava no Senhor que fora flagelado – e mais nos pobres que ele servia, e que decerto nesse dia sentiriam a sua falta. Todo o dia assim ficou, cercado de lacaios, de cozinheiros, que deixavam o serviço para o vir ver. E no coração de alguns havia uma compaixão.

A noite desceu, escura, sem uma estrela. Então Cristóvão abriu os olhos. Os ã fila, soltos, rondavam o pátio. A sentinela dormia, à porta, encostada à lança: e das altas ogivas do palácio vinha um clarão, e um rumor de violinos. Então Cristóvão retesou os músculos – e com grande ruído todas as correntes estalaram. Diante da grande forma erguida, os molossos fugiram, latindo. A sentinela, largando a lança, fugiu. E Cristóvão, de um só golpe de ombros fazendo estalar a porta, saltou o fosso, entrou nas ruas desertas. Mas de repente parou, pensando que, se revelasse a traição do conde, o povo, os soldados, que o não amavam, lhe fariam mal, e, se a calasse, o conde, decerto, o faria matar. Assim se ficasse, ou o seu sangue correria, ou correria o sangue dele por sua causa. E então Cristóvão dirigiu-se à grande porta da cidade. À luz de um retábulo da

Virgem os soldados jogavam os dados. E vendo Cristóvão, perguntaram-lhe se o príncipe lhe dera uma bolsa, ou panos para um vestido. Cristóvão murmurou:

– O príncipe deu mais que eu esperava.

E passou, penetrou nos caminhos, deixando para sempre a cidade onde fora bom aos aflitos.

XI

Longos dias Cristóvão errou pelos caminhos que uma tarde chegou ao sopé de uma montanha, cujas rochas o Sol poente cobria de cor-de-rosa. Um homem, com um hábito de frade, um longo capuz de onde saía uma barba branca, subia lentamente os córregos alcantilados, gemendo sob um molho de lenha. Cristóvão pedira ao velho para carregar ele a lenha. O frade, receando um demónio, traçou no ar uma cruz, e como

Cristóvão repetisse sobre o peito as linhas santas, o frade consentiu que ele lhe tirasse o molho dos ombros. E limpando o suor com a manga esfarrapada do hábito enquanto caminhava ao lado de Cristóvão, perguntou-lhe se ele fugira dos homens que o mostravam numa feira: e como Cristóvão dissesse que vinha da cidade, de além, o frade compreendeu que ele viera decerto atraído pela santidade daquela montanha povoada de ermitas. E pensava: «Aqui está um homem, decerto simples, e de força imensa, que poderia aliviar dos seus trabalhos os santos varões que ali habitam, deixando-lhes mais tempo para aperfeiçoar a alma, e dar batalha segura ao Tentador...

Então foi guiando Cristóvão até que chegaram a uma choupana feita de ramos, entre pedras alcantiladas. À porta da cabana, cravada entre duas pedras, erguia-se uma cruz tosca, e ao pé, sob uma caveira, pousava, aberto, um grande in-fólio. Dentro da cabana havia só um leito de folhas secas, e uma bilha com a asa quebrada.

O ermita, tendo indicado a Cristóvão o sítio onde devia deixar o molho de lenha, tomou de uma buzina pendurada à porta da cabana, e afastando os longos pêlos do bigode branco, lançou três sons roucos, que ecoaram nas quebradas. Cristóvão, tímido, considerava cada movimento do ermita como uma acção de santidade. Então, das sendas várias do monte, começaram a aparecer, caminhando devagar, uns apoiados a bordões, outros com as mãos escondidas nas mangas, ermitas, a quem um longo capuz escondia a face. O primeiro que chegou, dando com Cristóvão, fez o sinal-da-cruz, e depois, com um gesto, chamou os outros, que, assim apressados, saltaram de rocha em rocha. Quase todos tinham longas barbas, grisalhas e incultas, as túnicas esfarrapadas, e o lodo dos caminhos seco em crosta nas pernas. Com um gesto lento coçavam pelo corpo a vérmina que os cobria: e, se as pernas ou os braços se lhes tinham chagado, erguiam as túnicas como tirando contentamento daquelas misérias da carne. Alguns, porém, eram novos, ainda robustos, mas tão pálidos já, que as faces sob o capuz eram como uma cera na sombra. Todos se curvavam diante do monge que guiara Cristóvão; e depois ficavam mais calados e mudos que imagens sobre um túmulo. Mas então o ermita, que parecia ter a autoridade de um prior, explicou que, ao sopé da montanha, voltando de recolher a lenha, encontrara aquele homem de corpo imenso e de imensa força, mas tão simples que não sabia de onde viera, nem em que terra nascera. E logo lhe acudira, como inspiração de cima, a ideia de o recolher, e de o ocupar no serviço dos santos irmãos que habitavam a serra, à maneira do que praticara Santo Antão no Egipto, que, para que os seus irmãos do ermo, e ele próprio, se absorvessem melhor na oração, e mais livres ficassem para dar combate ao Demónio, tomara um negro de muita força, que conduzia a água, rachava a lenha, segurava nas mulas dos peregrinos, transportava as coifas das provisões. Assim, de ora em diante, tendo quem os servisse, nas suas almas não haveria mais cuidados do que a conquista do Céu. Tendo findado, e baixando a face sob o capuz, como recolhido em oração –os ermitas, sem quebrar a sua mudez, retomaram os caminhos da serra, e um a um foram-se sumindo entre as rochas e os robles.

Só com Cristóvão, o ermita, voltando à cabana, trouxe um pedaço grosso de broa, de que deu uma parte a Cristóvão. Ambos beberam da bilha: – e tendo ordenado a

Cristóvão que fosse com a lenha às costas, através da serra, para a distribuir pelas ermidas esparsas, estendeu-se em frente da cruz, e, pousando a cabeça sobre uma pedra, ficou mergulhado em oração.

Cristóvão partiu. Cada ermita lhe ensinava, sem falar, com um mover lento da mão, a ermida mais vizinha. Em todas, a mesma caveira alvejava ao pé da mesma cruz.

E àquela hora da tarde todos estavam à porta da ermida partindo o seu pão, e tendo ao lado, interrompido, ou o livro que liam, ou o grande rosário que desfiavam, ou algum cesto que encanastravam, ou as esteiras que teciam. À porta de cada cabana pendia uma buzina e um molho de disciplinas, com pontas de ferro. Quando Cristóvão chegava, todos alçavam o olhar baixo: nalguns o olhar era sereno, de uma serenidade morta; noutros refulgia com um vago clarão de terror, ou uma viva luz, que parecia alongar-se numa curiosidade sem fim. Humildemente, Cristóvão depunha o molho de lenha com respeito, como junto de um altar: e os monges, tendo seguido o seu movimento, baixavam de novo a face sob o capuz. Quando Cristóvão voltou à ermida do prior – ainda o encontrou estendido, com a cabeça pousada na pedra, dando por vezes um suspiro. Então, calado, foi sentar-se a distância numa pedra.

O Sol descia ao longe, vermelho como uma amora. Nenhum rumor cortava a placidez do ar. Os homens pareciam estar muito longe: – e depois daqueles dias passados na cidade empestada, Cristóvão sentia toda aquela serenidade entrar-lhe nalma como uma carícia sem fim. Mas lembrava todos aqueles que deixara, e mesmo lhe parecia ver certos detalhes – a casa da esquina onde ele ia levar pão às crianças abandonadas, o velho a quem ia chegar a bilha da água. Decerto sentia a falta desses seres que socorria: – mas naqueles ermitas havia tanta fraqueza, tanta necessidade, que decerto seria doce ocupar-se no seu serviço. O sol desaparecera. Todo o vale de rochas estava negro. Por vezes um grande pássaro escuro esvoaçava. Uma estrela pequenina luzia, depois outra. O santo prior orava, com a face sobre a pedra fria. E Cristóvão, cansado, estendeu o imenso corpo na terra, adormeceu.

Alta noite acordou: – um som lento, desolado, de buzina, caía de rocha em rocha pelo silêncio da serra. Era como o apelo de um coração aflito: – e imediatamente o prior, correndo de dentro da cabana, se atirou de joelhos diante da cruz, rezando, com furor tumultuoso. Decerto, longe, algum irmão estava sofrendo uma tentação do

Inimigo, e já meio vencido, soprava a buzina avisando todos os ermitas para que o ajudassem com as suas orações a rechaçar Belzebu. Sentado no seu rochedo, Cristóvão olhava, cheio de simplicidade, sem compreender, com as mãos pousadas sobre os joelhos–quando de outro lado da serra, lá no cimo, outra buzina soou, chamando socorro para outra alma atacada. Mais tumultuosas se precipitaram as orações do ermitão. Mas a buzina ressoava mais aflita! E então o santo homem, desesperado, gritou a Cristóvão que acendesse uma fogueira perto da cruz, para que ela, destacando em negro sobre o vermelho do lume, fosse vista pelos demónios, que nessa noite pareciam dar um ataque terrível à santa montanha.

Ferindo lume com duas pedras, Cristóvão, rapidamente, fez uma fogueira, soprando com as faces inchadas: a lenha nova estalou, uma chama subiu, outros lumes em breve apareceram na negrura da serra: – e os sons das buzinas decresciam como as

ânsias de um coração que sossega. Um silêncio pesou então. Cristóvão cerrara as pálpebras. E o prior, um momento, aqueceu à chama as suas mãos trémulas.

Mas os seus olhos fixavam-se na chama, com uma atracção crescente: um clarão de cobiça iluminava-lhe a face, e a sua língua apareceu a beira da boca seca, como adiantando-se para uma grande peça de carne tenra, vermelha, chiando ainda no largo prato onde fora assada... Chegou mesmo a estender a mão aberta. Mas deu um grito.

Onde tinha ele os espíritos, que não reconhecera uma ilusão do Inimigo, que o vinha tentar pela gula?! Furioso, ordenou a Cristóvão que apagasse a fogueira.

Com os braços em cruz, passeou então no estreito terraço bordado de pedras. A sua boca seca mascava com um ruído contínuo: – e ia balbuciando orações. Os olhos de

Cristóvão, fixos no brasido vermelho que restava do fogo, iam-se cerrando. Toda a montanha se calara. E como insensivelmente atraído, o ermita voltou a olhar o brasido, que vermelhava numa brasa viva. O que ele agora via eram montões de dinheiro, ducados de ouro, montes de rubis escarlates que se esboroavam, uma infinita rutilação de tesouros. Bastava baixar a mão, e teria tesouros para comprar um condado, erguer catedrais, assalariar mercenários, comprar jóias às rainhas, ter todas as satisfações do poder, e do amor, e do orgulho eclesiástico. E todavia o ermita sorria, sacudia a barba branca, murmurando: «Bem vejo a tua ilusão, oh Maldito, que me julgavas despreve-nido!

Mas a minha alma está forte, e nela, como o archeiro na torre, a oração vigia, cheia de força!...» E com o pé espalhou os carvões ardentes. E Cristóvão pensava na sua simplicidade: «Quantas coisas vê este homem, que eu não vejo! Decerto é por causa da sua sabedoria e da sua santidade».

No entanto, o ermita recolhera à sua cabana: mas, apenas entrara, soltou um grito, e saiu recuando, com os braços abertos, que pareciam sacudir uma visão. Era uma mulher, de esplêndida brancura e toda nua, que ele encontrara deitada de costas sobre o seu catre de folhas, com braços abertos que o esperavam e o chamavam. E durante um momento, as suas mãos, como impelidas por uma força oculta, tinham-se estendido para ela irresistivelmente: mas nos pés, tão brancos, reconhecera um pé de cabra – e, tendo-se benzido freneticamente, a mulher evaporara-se, como um fumo negro, através dos ramos da cabana. Mas quase cedera à temerosa ilusão – e se no momento em que lhe estendia os braços tivesse morrido, era o Inferno, a danação completa! Então agarrou violentamente as disciplinas, e arrancando a túnica, gritou: «À obra, à obra santa!» As duras correias de couro de boi, armadas de unhas de ferro, cingiam-lhe a cinta, rasgavam-lhe a pele do dorso. A cada golpe, dava um gemido rouco: mas, pouco e pouco, de duros e aflitos os gemidos tornaram-se lentos e lânguidos: – e o pobre ermita, a cada vergastada, murmurava: «Socorro, meu Senhor, socorro, que estes golpes que dou em mim começam a ser como um contacto delicioso!... Faz que eu sofra, Senhor!

Dá ardor infinito aos vergões que sulcam a minha carne! Sopra para dentro das feridas a tua cólera! Que ela me queime e arda, como um pez inflamado!...» E, de repente, caiu como morto, com os braços estendidos.

Cheio de piedade, Cristóvão ergueu-o do chão, e empurrou-o como um corpo morto para dentro da cabana, onde ele ficou estirado, com algum lento gemido que por vezes o sacudia.

A manhã clareava. Cristóvão adormeceu.

Então começou, desde esse dia, o seu serviço entre os ermitas. Todas as manhãs ia buscar um tonel à fonte, que brotava em cima, de entre rochas, e ia enchendo, de ermida em ermida, as bilhas de barro. Depois cortava a lenha, amassava o pão, que se cozia num forno de tijolo, junto de uma capela onde os santos homens ouviam missa e comungavam. Era ele quem tocava o sino, punha giesta sobre o altar – e, por ordem do prior, espalhava seixos sobre o chão da capela, para que os joelhos dos ermitas se mace-rassem.

Pela tarde, tendo reunido as esteiras, as alpercatas, os cestos, que os ermitas fabricavam, descia a uma povoação do outro lado da serra, onde trocava aquelas obras das santas mãos pela farinha, por ervas, e pelo vinho das galhetas. Todos estes serviços eram fáceis e doces. Mas, pouco a pouco, Cristóvão sentia como uma melancolia e um desejo das cidades e da vida dos homens. A montanha era triste e sem verdura; – mas a sua tristeza vinha sobretudo do silêncio, da amargura, da desolação dos santos que a povoavam. Todo o dia era por eles consumido a gemer, mesmo quando trabalhavam – e o seu esforço constante era a martirização dos corpos, onde se lhes instalava o Inimigo.

Mesmo imóveis, quietos, se estavam mortificando: uns traziam um cinto de pregos, que lhes rasgava a carne; outros introduziam debaixo do hábito formigas ou vespas que os picavam; outros suspendiam do pescoço uma pedra enorme, e caminhavam arquejando e tropeçando. Toda a doçura humana lhes era alheia. Ao pão que coziam misturavam terra; a água, só a queriam já envelhecida e pútrida. Por vezes alguns permaneciam, dias e dias, imóveis, de pé sobre uma pedra, com as mãos espalmadas, sob a chuva, e, quando o sono ou a fome os iam vencer, enterravam uma espinha aguda no peito; outros dormiam com a cabeça sobre uma pedra, outra pedra sobre o estômago, outra sobre as pernas juntas, e eram como cadáveres de justos lapidados. Por vezes, Cristóvão oferecia-se para lavar as chagas, tirar os espinhos dos pés, curar com cinza e água a mordedura dos insectos. Mas todos o repeliam, e para tornar as feridas mais irritáveis expunham-nas ao sol ardente, ou deitavam-lhes areia fina. Um imenso sofrimento cobria a montanha; e sobre ela o Sol parecia uma lâmpada triste, através dela o vento um gemido angustiado.

Era, porém, de noite, que ela se tornava terrível. Animados pela escuridão, os demónios subiam por cada caminho, para atacar os santos homens. Em cada cabana era uma luta temerosa. Os santos tinham a oração, as suas longas disciplinas armadas de unhas de ferro: mas os demónios, por seu lado, tinham as coisas deliciosas a que as almas sucumbem. Aos ermitas que vinham esfomeados, os diabos ofereciam longas mesas, cobertas de flores, onde os pavões assados arqueavam as penas entre os montes de fruta e os blocos de gelo; aos que tinham sido cavaleiros, mostravam montes de ouro, armas invencíveis, longos exércitos para ir conquistar remos e saquear cidades ricas; aos velhos faziam ofertas de mitras, que lhes dariam entre os homens a suprema autoridade das coisas santas; – e a todos a tentação suprema, a Beleza, a Mulher, ora magnífica, desenrolando as tranças, erguendo uma túnica de gaza, ora delicada, escondendo com os braços o peito nu, e sorrindo fragilmente.

Mas quando as seduções não bastavam, os demónios, furiosos, tentavam o terror.

Então eram serpentes pavorosas, surgindo de entre as rochas; vastas asas moles e fétidas que, com um golpe, derrubavam; figuras colossais, listradas de branco e negro, que brandiam forquilhas, vertendo uma baba de fogo. Os gritos dos ermitas atroavam a serra; as buzinas ressoavam; uma furiosa rajada de orações subia para as nuvens; as correias das disciplinas voavam no ar, com gotas de sangue: – e, espantados pela grandeza da penitência, os demónios cediam, abalavam, limpando o suor, esfalfados.

Uma grande piedade enchia então o coração de Cristóvão. Porque sofriam assim aqueles homens bons, que encanastravam as vergas, caminhavam com a face baixa, não faziam nenhuma ofensa e só apeteciam o Céu? O seu desejo era ajudá-los, rechaçar ele só, com a sua grande força, as turbas negras do Inferno. Então, ao menor apelo da buzina, corria para o lado do ermita atacado. Arquejando, com os imensos punhos fechados de santa cólera, avançava na escuridão. Mas onde estava o Demónio? Ele via o santo ermita recuar com pavor, via o escuro lugar para onde ele estendia a cruz, como uma lança... Mas se se arremessava para lá, os seus braços vingadores só encontravam a noite negra. Quantas vezes ele encontrava o ermita, que tremia todo, e murmurava: «Oh como é branca, e doce à vista, e cheia nas suas formas!...» Cristóvão compreendia: era decerto uma mulher, a temida Mulher, que arqueava os braços, descobria o peito... Para a empolgar, a esganar, ele quase rastejava no chão, colhendo o hábito. Mas as suas mãos indignadas só agarravam o tojo, os musgos de uma pedra fria. Então ele próprio clamava para os terríveis demónios: «Vinde para mim, vinde para mim!» E, arrancando um tronco, atirava tremendos golpes, ou, arrancando uma imensa lasca às penedias, arremessava-a através da noite. Os troncos batiam contra os troncos; as rochas, com estridor, quebravam sobre as rochas. E diante dele, nada havia, senão a montanha. Pois era possível que ele nunca ferisse um dos demónios inumeráveis, que ali vinham de noite? Ia então, mal clareava a madrugada, procurar, com a cabeça baixa, as pegadas dos diabos fugidos, algum chifre que lhes tivesse partido, ou sobre a terra chamuscada alguma gota do sangue maldito. Encontrava apenas as violetas lustrosas de orvalho. E então recolhia à sombra dos seus robles, bocejando com lentidão.

Pelas festas do ano, o povo da aldeia subia à montanha, vinha visitar os ermitas.

Uns, doentes, aflitos com males, amparados pelos parentes, vinham implorar a saúde

àqueles amigos do Senhor. Outros pediam a sua intervenção para obter uma colheita abundante, ou a herança perdida. As mulheres traziam os filhos para que eles, tocando-os na cabeça, lhes dessem vida forte e próspera: – e as que eram estéreis vinham implorar as doçuras da maternidade. A montanha era como um arraial de peregrinos. As crianças, correndo, tropeçavam nas muletas dos coxos. As raparigas, com uma flor metida na orelha, formavam danças no adro da capela. Os que tinham feito promessas arrastavam-se de joelhos sete vezes em torno das cruzes, ou penduravam no altar pés de cera, laços de fitas e cestos de frutas. Como voltariam tarde para a aldeia, quase todos traziam provisões, e, dependurando os mantéus nos troncos das árvores, faziam grande círculo em torno das melancias abertas, bebendo dos pichéis de vinho.

Os ermitas iam por entre a turba, e por vezes mal podiam mover os passos lentos, envolvidos, suplicados pelos feridos que, fartos de unguentos, pediam que lhes tocassem nas chagas com o rosário, pelos mendigos que queriam que lhes sarassem a sarna, pelas velhas hidrópicas que descobriam o ventre, esperando um remédio do Céu.

Outros queriam apenas a bênção. Havia faces inquietas que pediam uma profecia sobre as vindimas. Outros estendiam os rosários para eles os benzerem. E os ermitas tocavam as feridas, prometiam boas colheitas, sossegavam as mães dos endemoninhados.

Depois o prior subia ao púlpito rústico, feito de pedras, e enumerava as obras gloriosas da montanha. Onde houvera, mesmo na Tebaida, no tempo sublime dos

Antãos, dos Pacómios, uma penitência mais alta? E mostrava as suas faces emagrecidas pelos jejuns, as suas carnes rasgadas pelas flagelações. Uma imensa admiração arrebatava as turbas piedosas. E todos queriam ver nos corpos dos santos a evidência da sua santidade. E só havia então ermitas mostrando as chagas que eles tinham assanhado, as pisaduras que lhes deixavam as pedras onde dormiam, os dentes estragados pelo pão azedo a que misturavam cinza. As mulheres erguiam as mãos, chorando. As mais ardentes arrancavam pedaços da túnica dos ermitas, que guardavam no seio como relíquias. Os velhos beijavam a terra onde eles tinham pousado os pés. Diante das cabanas havia multidão a admirar a dureza dos leitos, a bilha quebrada, o grande in-fólio.

Alguns julgavam ver as pegadas dos anjos que visitavam os ermitas. Outros queriam provar o pão, ou, cheios de respeito, tocavam com o dedo nas disciplinas.

Cristóvão era invejado por viver entre eles. Muitos queriam abandonar os casais, para vir servir os santos: – e havia sempre algum que, para ficar na montanha, se escondia entre as rochas, e que era necessário expulsar quando o Sol descia, e a hora chegava da solidão e da prece.

Mas nessas noites, depois dos arraiais, as orações não eram tão profundas, nem as penitências tão altas. Cansados, sentados à porta das suas cabanas, os ermitas saboreavam, no silêncio do seu coração, a sua imensa santidade. Cada um se sentia famoso, falado nas lareiras do vale. Decerto a fama da sua santidade chegaria aos castelos. Os bispos falariam deles nos concílios. E mais tarde talvez as suas imagens se ostentariam sobre os altares. E Cristóvão então via-os olhar complacentemente, acariciar as feridas da penitência, escolherem uma pedra maior para encostar à noite a cabeça. O prior vinha então congratular os seus irmãos. A sua face resplandecia. E era ele que relembrava os movimentos da multidão, e como as suas chagas tinham sido beijadas. E já certo do poder da sua voz, falava em descer à planície, pregar contra a relaxação dos

Beneditinos. A sua estatura cada vez se erguia mais. Um dia mesmo mostrou em triunfo uma carta do conde da Ocitânia, que o consultava sobre os dízimos. E Cristóvão entristecia. Era como uma saudade de outros homens mais humanos, e do riso das crianças. Era sobretudo como uma impaciência de toda aquela inutilidade dos ermitérios, os longos e ocos silêncios, as horas passadas com a fronte sobre uma pedra, aquela imobilidade contempladora de onde não saía nenhum bem, nada que aquecesse o coração. Povoada por toda aquela inércia, a montanha ainda lhe parecia mais inerte. E vinha-lhe como um desejo de sacudir aquela imobilidade dos homens e das coisas, e com as suas mãos arremessar conjuntamente os ermitas e os robles, as caveiras e as rochas, e empurrá-los para alguma acção útil, mandá-los de roldão, pela montanha abaixo, a ser úteis aos homens!

O seu coração pouco a pouco se destacava daqueles amores. Já não corria tão alegremente a encher as bilhas; tanta cruz envolta por tantos braços, não lhe causava doçura na alma; e aborrecia as caveiras, com o seu riso imóvel, oferecendo ao Sol a sua frialdade branca. Quando de noite as buzinas soavam, implorando o auxílio de orações irmãs, não se erguia em sobressalto, apiedado. Toda a flagelação o impacientava. E nos dias de festa embrenhava-se nos altos da serra, para não presenciar o orgulho dos ermitas, mostrando as feridas das disciplinas.

Um dia o prior mandou-lhe construir, com um madeiro, uma cruz da altura de um homem. Três dias Cristóvão trabalhou. E quando, enfim, cravou a cruz num ponto evidente da serra, onde não havia arvoredos, o prior chamou os seus irmãos de ermitério. Um por um, desceram, rezando baixo. O prior encostara-se à cruz, com o corpo colado ao madeiro, e abriu os braços ao longo dos braços da cruz – cruz humana, colada à cruz de lenha. Depois ordenou um cântico. Quando ele cessou:

– Agora – disse o prior – vou ficar aqui, sem comer, sem dormir, durante três dias, pelas três pessoas da Santíssima Trindade. Esta obra é gloriosa!

Todos ergueram as mãos ao Céu, edificados. Cristóvão, nessa tarde, desceu o córrego até ao vale, e sem sequer volver os olhos, abandonou para sempre a montanha.

XII

Cristóvão tomou o caminho do lado oposto aos povoados – e começou a caminhar, ao acaso, pela longa ravina que contornava a serra. Era como o leito de uma antiga torrente, que seguia funda entre rochas, seca e triste infinitamente. Toda a noite caminhou à luz de uma grande Lua cheia. De madrugada dormiu à boca de uma caverna. A solidão era como a de um mundo deserto, onde só ele habitasse. Cristóvão sonhou com prados e regatos muito frios, muito límpidos, que corriam entre aloendros em flor. Quando acordou teve sede, e em roda só havia um torrão tão estéril, que nem nele crescia o tojo.

Todo o dia, marchando sempre, Cristóvão padeceu sede. Ao pôr do Sol, julgou ver ao longe uma água que rebrilhava. Eram largas lajes de pedra como restos de um terraço, ou do lajedo de um solar. Deitado, esperou ali a manhã: e, através de um sono incerto, julgava ver como olhos luzidios de lobos, que passavam, se sumiam para além de um barranco. De manhã dirigiu os passos para esse barranco, e aí ao fundo havia como uma água lodosa e pútrida, que ele bebeu com delícia.

Durante dois dias mais, caminhou; e o deserto não cessava, com vales estéreis, penedias alcantiladas, e um solo pedregoso, negro, gretado, que escaldava sob o sol de

Agosto. Sentado por vezes contra uma rocha, Cristóvão cerrava os olhos sob a fadiga, o ardor da estiagem, e parecia-lhe ver grandes pedaços de pão, e frutos que caíam de maduros ao passar de um vento fresco. Estendia a mão, e só encontrava as pedras quentes. Retomava a marcha, e, marchando sempre, padecia fome.

Mas uma tarde que caminhava, já tão fraco que os seus pés tropeçavam a cada instante, encontrou-se de repente numa encosta, onde uma floresta sombria verdejava.

Cristóvão mergulhou na espessura. Bem cedo sentiu um murmúrio de água. Mais longe, uma carvalheira estava cai regada de bolota. Cristóvão ficou ali dois dias consolando com lentidão a fome e a sede. Depois quando emergiu da floresta, avistou diante de s uma região com árvores, um riacho que fugia muros, e uma tranquilidade habitada. Um fumo lento subia, a distância, para o claro céu. Cristóvão alongou para lá os passos. O fumo subia de um casebre queimado; ao lado havia barricas arrombadas; o cadáver de uma vaca, meio seco, desaparecia sob o zumbido das moscas; o pomar estava arrancado e devastado; e em redor todo o solo, a erva, estavam espezinhados, como por um tropel de cavaleiros em marcha.

Cristóvão seguiu, caminhando à beira do regato. Grandes prados verdejavam, cobertos de botões-de-ouro. As ramas dos salgueiros mergulhavam na água fugidia e clara. Os pássaros chalravam na frescura. E no meio desta paz, um moinho com a porta arrombada, e pendente dos gonzos, os grandes paus das velas partidos, as paredes chamuscadas do lume, jazia com a tristeza de um cadáver num prado de Primavera.

Cristóvão dirigiu-se para o moinho. De uma árvore meio partida, que se erguia por trás, junto às escadas, pendia um velho enforcado, com uma pedra amarrada aos pés. Ao lado negrejavam os tições apagados de uma fogueira, e junto dela uma lança esquecida.

Cristóvão foi seguindo. Por todo o caminho havia as confusas pegadas de cavaleiros em marcha; todas as sebes estavam rotas; uma ponte rústica fora partida a machadadas; outros casebres apareciam devastados, nus, com o colmo queimado: – e nem uma criatura se via, entre aquelas ruínas.

Ao fim de um longo dia, porém, tendo-se sentado junto de um casebre em ruínas, sentiu um ruído entre as árvores: – e um homem apareceu, em farrapos, lívido, escaveirado, e logo se sumiu entre a espessura das árvores. Para o deixar livre de medo,

Cristóvão ergueu-se e foi mais adiante, onde havia uma colina com rochas. Um grande roble crescia à boca de uma caverna. E ao ruído dos seus passos, uma cabeça de velha apareceu à boca da caverna, e logo se sumiu assustada. Cristóvão pensava com dor porque se esconderiam estes homens. Porque seria aquela terra povoada por gente que se escondia nos bosques, nas tocas dos bichos, debaixo das penedias?

Por quê? Uma grande piedade já o ia tomando. Se ouvia um rugir de ramagens afastadas, gritava: Paz! paz! para tranquilizar aqueles corações aterrados. Mas Jogo as ramagens se fechavam e tudo ficava mudo.

Ia caminhando. Bebia nos regatos, comia a bolota e as ervas dos prados. Um dia avistou uma aldeia de casebres de colmo juntos em torno de uma igreja, cuja torre estava em obras. Um caminho seguia entre filas de plátanos. Ao penetrar nele, uma mulher que, agachada com uma criança, procurava ervas, fugiu tão tontamente, que deixou a criança no chão. Cristóvão apanhou a criança, tão magrinha que se palpavam os seus pobres ossinhos, sob a pele cheia de feridas: e nem chorava, com a mãozinha sobre a testa, onde as chagas eram maiores. Todo o coração de Cristóvão se enchia de dor. Lançou um grande brado pela mulher. Ninguém respondeu. Então, tomando a criança ao colo, seguiu sob os plátanos. Mas sentia, através das folhagens, alguém que o seguia. Pousou no chão a criança, afastou os passos. E voltando-se bruscamente, viu a mulher que saltava de entre o tojo, arrebatava a criança e de novo se sumia no mato.

Ao fim do caminho era a aldeia. As primeiras casas, junto de uma paliçada de estacas, estavam desertas, nuas por dentro, como saqueadas. Nem uma rês de gado se via nos aidos. Nem uma foice pendia sobre a lareira. A uma porta, uma velha, mais magra que um esqueleto, olhava com os olhos fixos cavados no vago, e como deslumbrados de espanto. Um cadáver abandonado, que ninguém enterrara, tinha as mãos decepadas. Por vezes uma figura passava correndo, com os cabelos ao vento. Uma figura de mulher, de bruços, com os cabelos soltos, estava agarrada a um berço vazio.

Mas ao fim da aldeia, junto de um calvário, viu correr gente em magote. Um frade meio descalço, sem capuz, de olhos ardentes, erguia uma cruz, chamava a justiça de

Deus. Como podiam os homens sofrer mais sobre a terra? Os senhores andavam em guerra, e daí vinha o mal dos pobres. Os barões corriam as suas terras, e tudo saqueavam, tudo roubavam para adestrar soldados, ter hostes brilhantes. Se outros, mais fortes, os faziam prisioneiros, de novo voltavam nos seus grandes corcéis, a saquear, roubar, tirar ao pobre a última acha, a última mão-cheia de favas, para reunir o preço do resgate. Se ficavam vencedores, eis que voltavam a saquear os restos, a arrancar a seara ainda mal madura, para celebrar festas, e erguer solares ricos. Depois, atrás, passavam ainda as companhias de mercenários, que, nada encontrando, queimavam os muros, destruíam os arvoredos, e matavam as crianças nos berços. Quanto tempo mais consentiria o Senhor este mal que ia na terra? Por toda a parte que ele andara, só vira a fome. As mulheres comiam os cadáveres dos filhos. Os homens em breve seriam como feras. E ai dos que se encontrassem no caminho da turba esfaimada!

A sua mão tremia no ar cheia de ameaças. E em torno dele os moços lívidos apertavam os punhos, com olhares que procuram uma arma. Mas outros baixavam a cabeça. Que podia o pobre, só, na sua terra estéril? A justiça devia vir de Deus. Uma mulher gritou: «Ou antes do Demónio!...» Um murmúrio de terror passou entre a gente.

Cristóvão saiu da aldeia com o coração esmagado. Os seus olhos erguiam-se para o Céu. Ali, por trás do azul, estava o Senhor! Decerto ele via tantos sofrimentos, as guerras, as fomes, as pestes.

Por que não descia do seu trono de ouro? Uma carícia da sua mão direita daria aos pobres a abundância, os frutos, as tulhas cheias de pão; e os bandos negros dos senhores cruéis desapareceriam como nuvens que o Sol desfaz, ao mover da sua mão esquerda...

Por que não vinha o Senhor?

As terras que Cristóvão atravessava continuavam desoladas, até que, penetrando numa região mais amável e fértil, com pradarias, aldeias, viu ao longe longos fumos esguios que se elevavam para o céu. Um grupo de soldados derrubava árvores. E bem depressa viu as barracas de um acampamento. Era uma companhia de tufos. As tendas estavam alinhadas sem ordem, ao acaso, todos procurando a maior proximidade do rio.

E como era à hora do rancho, viam-se os soldados, de bruços, mergulharem na água as grossas panelas de ferro. Por toda a parte, sobre as fogueiras acesas, suspensos de varas de ferro ensarilhadas, ferviam os caldeirões: – e junto aos carros, onde vinham as barricas de vinho roubadas nos casais e nos mosteiros, os homens juntavam-se, com os seus pichéis na mão. Dois carniceiros esfolavam um boi estirado no chão: – e o trabalho era feito num rumor incessante de pragas e cantos.

Todos os homens, de barbas incultas, grandes cicatrizes nos rostos, imundos, tinham um curto saio de malha de ferro: e como estavam num país vencido, sem receio de surpresas, os morriões e os broquéis pendiam à entrada das tendas rotas, umas de lona, outras de peles de carneiro. Sobre um cômoro era a dos chefes, com bandeiras flutuando. Por todo o acampamento circulavam mulheres, que seguiam os soldados, umas roubadas nos assaltos das aldeias, outras que acompanhavam, por deboche, o bando dos homens; todas tinham o ar cansado dos grandes furores que suportavam.

Aqui e além, um monge descalço, com uma adaga na corda do hábito, o olhar ardente, ia de tenda em tenda. Alguns homens jogavam os dados. Outros limpavam as armas. Os falcões gritavam sobre os seus poleiros, feitos de lanças.

Serenamente, na sua simplicidade, Cristóvão atravessou o acampamento.

Como os bandos cada dia recrutavam novos tunos, ou aprisionavam servos, ninguém estranhava a sua presença. «A quem pertences?» perguntavam-lhe. Ele atirava um gesto vago para as tendas. E julgando-o idiota, como todos os gigantes, deixavam-no ir, ou aproveitavam a sua força para mover os pipos, rachar lenhas, descarregar dos machos os grandes fardos amarrados com cordas. Tendo trabalhado, Cristóvão comeu e bebeu. A noite caiu: as estrelas luziram. Por toda a parte se acenderam fogos. Em torno deles os homens bebiam, jogavam os dados, ou escutavam um monge contando histórias do Diabo. Por vezes um grito de mulher espancada cortava o ar. As canções imundas abafavam o grito das sentinelas. E da colina, onde acampavam os chefes, vinha uma música doce de pífaros e atabales.

Cristóvão, no entanto, ia através das tendas. Se via um tufo ferido que punha panos nas chagas, agachava-se para ajudar. Aos cavalos presos, que relinchavam voltando o focinho para a água, ia buscar uma doma cheia. E aliviava as mulheres dos fardos de lenha que os homens as obrigavam a acarretar. Mas aquela gente era ma, queimava as aldeias, arrombava os sacrários, espancava duramente os animais, deixava as crianças morrendo à míngua nos silvados dos caminhos – e Cristóvão, alta noite, saiu do acampamento, pensando, na sua simplicidade, que Jesus, seu amo, não o quereria entre aqueles corações duros.

Três dias e três noites caminhou, e penetrou por fim numa região de grande penúria. A terra seca, gretada, abandonada, nem produzia cardos. Toda a flor secara nas

árvores. A cada instante, ossos de animais branquejavam nos caminhos. As gentes dos campos, que ele encontrava, não tinham mais que ossos sob os trapos que os cobriam, e os seus olhos brilhavam como os das feras. Por vezes, à beira de um riacho, viam-se mulheres, crianças, maceradas, arrastando-se, devorando as raízes das árvores. Nas terras mais fluas, era a terra mesma que eles comiam às mãos cheias, entre lágrimas que lhes caíam nos dedos. Uma noite, passando junto de um cemitério, viu figuras sombrias, que, tendo desenterrado um morto, o talhavam em postas junto de uma fogueira. Depois foi um mendigo que lhe pediu para o proteger, porque a gente daqueles sítios atacava os pobres mais fracos, para ter carne humana. Todo um dia Cristóvão caminhou com o mendigo às costas. E, batendo os dentes de horror, o mendigo contava de pais que comiam os filhos pequenos, de outros que atraíam os viajantes para os matar. Ao fim do dia, tendo posto o pobre coxo no chão para descansar, viu-o suspirar e morrer. De noite, por todas as partes luziam os olhos dos lobos, esfaimados também, correndo a roer os cadáveres. Negros bandos de abutres torneavam no ar.

E a dor de Cristóvão era tão grande que erguia os braços ao Céu, e gritava pelo

Senhor. Ele decerto não escutava. À porta das ermidas, debalde o povo se apinhava, implorando misericórdia: os santos não desciam dos seus altares; as relíquias dos mártires pareciam ter perdido a força; e, desiludida do Céu, essa gente apedrejava os sacrários.

Quem salvaria os homens? E Cristóvão caminhava cheio de dor, por não os poder salvar. De que lhe servia a força dos seus grandes braços, toda a vontade do seu coração?! Alargando os passos, atirando os olhos ao longe, ele só procurava um meio de servir os homens: – e mesmo por vezes lhe vinha à ideia reunir alguns miseráveis, e dar-lhes a sua própria carne a comer.

Um dia que assim pensava, chegou a uma terra onde viu homens cavando o torrão, outros arando, outros semeando. Um troço de besteiros vigiava aqueles homens, que a fome emagrecera: – e um monge, com um tinteiro metido no cinto de corda, lia um rol de nomes. Eram os abades dos mosteiros, os bispos em concílio, que assim arregimentavam os mais fortes das aldeias, e por uma ração de pão os obrigavam a trabalhar, para que as terras não ficassem incultas e não fosse maior o tormento da fome. Eram homens de braços fortes, mas emagrecidos pela fome. As mulheres, os filhos, vinham com eles para partilhar da magra ração de pão. Cristóvão pediu uma enxada; e, tendo admirado a força dos seus braços, o monge indicou-lhe um campo a limpar do pedregulho e do tojo. Com que paixão ele se lançou ao trabalho! Era como se já estivesse saciando todas as fomes futuras. O tojo arrancado fazia montes junto aos seus grossos pés nus: – e ainda por vezes acudia a ajudar os mais fracos, que tropeçavam sob um carreto de pedras, ou, exaustos, deixavam fugir a enxada das mãos.

Em torno as mulheres, sentadas, imóveis, com os filhos em redor, esperavam que os homens trouxessem ao fim da tarde a ração de pão, junta num cesto que os besteiros guardavam: mas a sua fome era tanta, que se precipitavam sobre os semeadores, quando, mergulhando a mão na sacola, atiravam, com um gesto lento, um punhado de grão. Os besteiros tinham de correr, repelir as crianças que gritavam.

Os olhos de Cristóvão estavam cheios de lágrimas. Por vezes, cavando a terra, dizia baixo: «Oh terra, dá depressa o pão! Oh terra, tem piedade!»E então os seus golpes de enxada tornavam-se mais doces, quase tímidos, como se receasse magoar aquela que implorava. Quando se distribuía o pão, ele tomava apenas uma côdea, e fazia partes iguais que dava às escondidas às crianças. Todos os olhos das mães se voltavam para ele. Os homens murmuravam pensativamente: «Tu és o melhor...». De noite ele seguia o bando dos cavadores, que iam dormir em largos alpendres, à orla da floresta. Mas raros eram os que se atiravam para cima dos molhos de palha. Uma grande velha, descarnada e esguedelhada, cujos olhos rebrilhavam como brasas, vinha rondar em torno aos casebres apoiada a uma forte vassoura. Ao encarar a sua sombra negra passando no luar, os homens soltavam um suspiro, outros murmuravam: «É a sina!» As mulheres, à pressa, adormentavam as crianças, procuravam entre a palha vassouras, ou pequenas cabaças, ou um pedaço de véu branco. E todos, uns depois dos outros, em silêncio, desapareciam sob o arvoredo. Uma noite uma forte criatura, de olhos ardentes, disse a Cristóvão: «Vem». E ele, na sua simplicidade, tomou o bordão e partiu. Por toda a floresta, por baixo de toda a folha, se sentia o roçar de gente que caminhava em silêncio. Por vezes um grito prolongado cortava o grande silêncio. E, mais rápidas, as formas perpassavam sob a folhagem que rumorejava. Assim, Cristóvão chegou a uma clareira, cercada de velhos e altos carvalhos, onde a Lua mal penetrava. Uma multidão já a atulhava, trazendo candeias, ou alguma tocha fumarenta que bailava entre os ramos.

Uma vasta mesa de pedra alvejava no meio; e um raio de luar, caindo em cima, alumiava um alguidar de ferro, junto de uma tripeça, coberta por uma pele de chibo.

Uma impaciência parecia agitar toda aquela negra turba, onde por vezes um olhar relu-zia, como o de uma fera na espessura. Uma voz, ao longe, gania: «Voa, voa!» E, umas após outras, vozes lamentosas e dolentes murmuravam: «Voa!»

Então a grande velha descarnada avançou, escarranchada sobre a vassoura. Outra correu atrás dela, com os grossos cabelos ao vento; e outra ainda – até que uma longa cauda de mulheres, esguedelhadas, com o peito nu, grande cendal branco voando ao vento, começou a girar em torno da mesa, lamentável, com um mover de braços abertos semelhante a um bater de asas cansadas. Deram assim uma volta lenta – até que, parando diante da tripeça vazia, a grande velha estacou, e erguendo os braços lançou uma invocação:

S. Marcos te amarque,

S. Manços te amanse,

A Graça te fique,

A Hóstia te pique!

Sempre que me vires

Em mim te remires,

E quando me não vires

Contra mim suspires!

E soturnamente toda a turba gemeu, com a cadência de um martelo que cai na bigorna:

S. Marcos te amarque.

S. Manços te amanse!

Subitamente a grande fila de mulheres largou numa correria, onde os cabelos se misturavam, as saias meio rotas se espedaçavam, gritando, clamando, uivando, desesperadamente:

Sempre que me vires

Em mim te remires,

Quando me não vires

Contra mim suspires.

Cada vez mais rápida girava a grande ronda, com pulos enormes, que atiravam as fraldas brancas pela cabeça, misturavam as grenhas, faziam entrechocar no ar as vassouras e rocas. Já de entre a turba, que olhava em volta, partiam grandes brados.

Aqui e além um braço erguia-se, sacudindo furiosamente uma tocha. Pulos furiosos mostravam uma saia esvoaçando no ar. Havia uivos de lobisomens. E entre as pernas de

Cristóvão, aterrado, grandes figuras, como de cães, fugiam com as mãos galopando na terra. Mas mais alta que todos os clamores, uma buzina de corno ressoou. Então houve um silêncio tão grandes que se sentia as folhas mover-se ao vento lento da noite.

De novo a grande velha estava defronte da tripeça, agitando a sua grande vassoura. E lentamente, baixo. numa súplica humilde, começou:

Eu te encanto e recanto

E ainda te sobreencanto,

E por um sino-saimão

Metido num coração,

E por fel d’excomungado,

E pelo bode pintado,

E pela asa do morcego,

E pelo seixo do rego,

E pelo sangue do drago,

E por tudo o que te trago,

Vem!

Um imenso apelo ressoou: «Vem!» Todos os braços se erguiam desesperadamente para a tripeça vazia. E a velha, como possuída do delírio, bradava em apelos agudos que varavam o ar.

– Vem contra o Senhor! Vem contra o Bispo 1 Vem contra o Letrado! Vem contra o Rico!

E cada vez a turba clamava mais ansiosamente: «Vem! vem!»

Uma grande restolhada cortou a espessura – e sobre a mesa, escarranchado, apareceu um homem enorme, de longa barba preta, todo coberto de pêlo preto, que o assemelhava a um bode. Uma aclamação soou, um delírio arrebatou a todos. As mulheres pulavam, os homens sacudiam os barretes – enquanto a criatura negra, imóvel, dardejava em silêncio os seus olhos coruscantes. Depois, quando se fez de novo um silêncio, a criatura, estendendo o pé, gritou numa voz rouca:

–Adorai!

Todos lhe beijaram o pé, que desaparecia sob os felpos longos do pêlo.

Mas então um homem, envolto num grande lençol branco arranjado como uma dalmática de bispo, e com uma mitra negra na cabeça, veio caminhando a coxear para o altar, a ler um livro que segurava nas mãos. Cristóvão conhecia-o. Era o coxo que trabalhava ao lado dele, rosnando palavras ininteligíveis.

Tendo posto o livro sobre o altar, o homem abriu os braços, e começou a celebração de um rito, que, com horror, parecia a Cristóvão semelhante à missa da sua aldeia. Curvado sobre o livro, com as mãos postas, ele resmungava uma leitura; erguendo os braços, saudava a criatura felpuda; e quando, voltando-se para a turba, lan-çava uma bênção, todos se curvavam, e risos bestiais estalavam com amargura. Imóvel, a criatura, com as mãos pousadas nos joelhos, recebia o culto. Um acólito, lindo como um pajem, misturava um líquido negro num vaso. E dos grandes carvalhos em redor caía uma sombra negra, que a Lua, aqui e além, cortava de manchas lívidas.

Como na missa, uma campainha ressoou. O homem mitrado recebeu o vaso, fez uma invocação, derramou uma gota sobre os pés juntos da criatura negra, bebeu o resto

– e tendo limpado os beiços à ponta da sua dalmática, subiu a uma tripeça, e ficou recolhido, como um pregador que vai lançar o seu texto. Um silêncio caiu, tão fundo, que se sentia o menor rumor das folhas. Um raio de Lua batia a face barbuda do coxo, que começou a pregar.

Erguendo os braços, perguntou onde se encontraria felicidade para o pobre? A terra era para ele um lugar de desolação. E desde que nascia até que o levavam para a vala, ele não fazia mais que gemer na escravidão. Da alvorada à noite, trabalhava. E para quem ia todo o fruto do seu trabalho? Para o Senhor, para o Bispo, para o

Intendente que vinha com archeiros. Para que o Senhor tivesse armas, ele não tinha lume, e tremia de frio. Para que o Bispo tivesse banquetes, ele não tinha pão, e empalidecia de fome. Para que o Intendente vivesse em casas cobertas, ele vivia em tocas que as suas mãos cavavam na terra.

E era só necessidades que sofria? Não. Era espancado, arremessado para o fundo de prisões, morria entre tormentos... Se a sua mulher era bela, vinham homens de armas que a levavam. Se a sua cabra dava bom leite, vinha o senescal do convento que a confiscava. Tinha de pagar para nascer, tinha de pagar para morrer. Nos homens, para ele, não havia piedade. E havia-a porventura no Céu? O Céu mandava as fomes, mandava as pestes. Quem salvaria o pobre?... Amo forte, que o protegesse, só lhe restava Aquele que vive debaixo da terra e que tem todos os poderes. Ele reunia os seus filhos, ali, onde eram livres e onde não chegava a lança do Senhor, nem o báculo do

Abade. Ele ensinava os remédios que livram da peste. Ele fazia achar os tesouros. Ele fazia reflorir a terra. Ele dava do seu corpo o comer aos que têm fome, do seu sangue o beber aos que têm sede. Glória a ele nas trevas!

E a multidão gritava: «Glória a ele nas trevas!»

Então, saltando da tripeça, o coxo gritou:

– É a hora! Vinde comer e beber, amai a quem vos ame, e sede homens livres no fundo da noite livre!...

Subitamente, dois homens apareceram, trazendo um grande carneiro assado que, com facas, começaram a retalhar. Outros colocaram na mesa de pedra uma pipa de vinho. Com um clamor bestial, toda a turba se arremessou para o feiticeiro. A criatura negra bradava: «Comei do meu corpo, bebei do meu sangue!» Os pedaços sangrentos da rês desapareciam nas bocas vorazes. Em malgas de louça, em vasos de buxo, o vinho negro espumava. Alguns fugiam com a sua ração para a devorar em silêncio. Outros lutavam entre si, como cães disputando um osso. As mulheres empinavam as malgas do vinho, que lhes escorria nos peitos. Havia outros que, na alegria do comer, dançavam, brandindo um osso esburgado. Sob a mesa, havia braços descarnados lutando pelos restos. Já uma embriaguez aquecia as almas. Gritos roucos partiam das bocas das mulheres. E de pé, o grande bruxo, intimava a Lua a que se escondesse, para que os homens fossem mais livres, no fundo da noite livre. Cristóvão, imóvel, olhava, encostado a um tronco, a cabeça escondida na ramagem ligeira. Por vezes, um pastor, agarrando uma das mulheres, arrebatava-a para a escuridão. Gemidos de pecado con-tente soavam na negra espessura. As feiticeiras rasgavam os últimos trapos, e nuas, hediondas, galopavam escarranchadas sobre as vassouras. A grande mulher trigueira arrebatou e enlaçou Cristóvão, com olhos que o devoravam, murmurando: «Vem!»

Ele suavemente empurrou a criatura – e, só, triste, de uma tristeza infinita, começou a caminhar através do mato espesso. O seu coração sangrava. Aquela gente clamorosa não era amiga do Senhor. Perdidas estavam as suas almas. Mas por que sofriam eles tanto? O coxo dissera a verdade. Para o pobre só havia miséria. O Senhor vinha com a sua grande lança, depois o Bispo com o seu duro báculo. E quando nada restava ao pobre, uma mulher branca surgia, encostada a uma vara branca – que era a

Peste. Pobres homens! Pobres criancinhas! Por que não vinha o Senhor?

XIII

Assim pensando, caminhava Cristóvão. Todo o dia caminhou. Desde a véspera não tivera pão, nem água: – e ao fim do dia, sentado numa pedra à beira de um caminho, ele pensava onde encontraria o pão dessa ceia. O sítio em torno era deserto e triste.

Nenhum caminho conduzia a moradas humanas. Ao lado estendia-se uma grande lagoa.

Altos canaviais erguiam as suas maçarocas negras. E a água parecia dourada, tocada do sol que descia. Um bando de patos bravos voava no alto. E o silêncio era triste e profundo. Cristóvão ia seguir, marchar, quando o rumor de uma cavalgada ressoou ao longe, e uma Comitiva apareceu, caminhando com lentidão. Dois besteiros a pé marchavam na frente. Um servo trazia molhos de archotes, para a primeira escuridão da noite. E logo atrás caminhava uma vasta liteira, com cortinas de couro vermelho e topes de plumas aos cantos. Duas damas, ao lado, montavam mulas brancas. Em roda vinham cavaleiros com lanças. E as arcas das bagagens carregavam duas fortes mulas, emplumadas de vermelho.

Cristóvão, logo de pé, tirou humildemente o seu barrete. E vendo aquela forma enorme, esguedelhada, negra, na claridade dourada da tarde, os dois archeiros, estacando, retesavam o arco, uma das damas deu um grito. A liteira parara, e de entre as cortinas uma dama muito velha, envolta em peles, espreitou, pondo ante os olhos a mão, coberta com um guante de caça. Mas Cristóvão, humildemente, caíra de joelhos. Então a dama deu uma ordem: – e um escudeiro, rudemente, mandou aproximar o homem enorme. Ele veio por entre os cavaleiros, cujas altas lanças direitas, nas selas, não lhe chegavam aos ombros largos. E pelas cortinas da liteira, descerradas, a velha dama, outra mais nova e pálida, e uma criança loura como um anjo, olhavam com espanto.

Cristóvão caiu de joelhos junto da liteira. E como lhe perguntassem a que terra senhorial pertencia, e porque andava só nos caminhos, Cristóvão, na sua simplicidade, só pôde murmurar que vinha de além e tinha fome. A dama mais nova palpou a sua escarcela – e a criança gritou: «É o gigante que servia Roldão!» Em roda os cavaleiros riram com respeito. E subitamente o pequeno fidalgo, sentado sobre os joelhos da velha, pediu, com um lindo mimo, para ter ele também um gigante, que o seguisse, com uma dava. A velha sorria. E, sem hesitar, deu ordem aos cavaleiros para que trouxessem Cristóvão.

Com um gesto foi mandado marchar ao lado das bagagens. E de novo os guizos dos machos tilintaram, e a comitiva seguiu lentamente. O Sol descera. Os escudeiros acenderam os archotes. E a cada instante, de entre as cortinas da liteira, aparecia a cabeça loura da criança que espreitava, queria ver se vinha o seu gigante. E Cristóvão soube, pelos estribeiros, que aqueles eram os senhores do castelo de Riba Dona, que ficava para além das lagoas.

Bem depressa, no alto de uma colina, entre grandes bosques que desciam para o vale, surgiram as altas torres. Na mais alta ardia uma chama, que se torcia ao vento.

Longas buzinas soaram. E à entrada da ponte levadiça apareceram tochas inumeráveis, que os escudeiros erguiam alto.

O intendente, o senescal, dois frades com hábito, outros cavaleiros esperavam no pátio. Nas janelas ogivais brilhavam claridades. E o sino da capela repicava alegremente. Um escudeiro, cuja barba branca caía sobre um corpete de couro branco, recebeu nos braços a criança loura, que as damas cortejavam, mergulhando nas suas longas saias de cauda, orladas de peles. Um tapete fora desenrolado sobre a vasta escadaria. Os cães latiam alegremente. E sob a grande porta, que sustentava um escudo de armas, uma camareira esperava, com um jarro de prata na mão, enquanto outras ao lado tinham uma bacia que rebrilhava, e uma branca toalha fina. A cauda enorme da velha que levava a criança pela mão, desapareceu sob o alto portão. Os estribeiros levavam os cavalos à rédea, outros recolhiam as lanças. E os cavaleiros, cujas esporas retiniam sobre os lajedos do pátio, contavam ao intendente e ao padre como a jornada fora boa, com a ajuda do Senhor, sem encontro de touros, nem de lobisomens.

Mas, no entanto, todos os criados cercaram Cristóvão, com espanto. Ele torcia o seu barrete nas mãos, humildemente. Os pajens riam da sua grenha hirsuta, da imensidade dos seus pés cheios de terra. Os mesmos cozinheiros tinham corrido, para o admirar. Os cães, assustados, latiam.

Mas um pajem veio correndo chamar Cristóvão à sala de armas: – e através de um corredor abobadado, por onde ele tinha de caminhar todo vergado, e de portas de carvalho que mal podia passar, levou-o a uma sala que era grande como a nave de uma igreja. Pelas paredes estavam encostados molhos de lanças. Das traves do tecto pendiam bandeiras, e ao fundo, numa vasta chaminé, ardiam troncos de árvores, a que os cavaleiros, de pé, aqueciam as mãos. Uma cortina ergueu-se e as duas damas apareceram com a criança no meio delas, e seguidas dos pajens, que traziam tochas de cera.

O pequeno Senhor do castelo (porque seu pai morrera, havia dois anos, na guerra do rei da Ocitânia) tinha feito seis anos pelo Natal, e era tão delicado e louro que pareceu a Cristóvão o Menino Jesus que havia no altar da capela. Mas, desde criança, fora educado para ser um cavaleiro forte: todas as manhãs lhe esfregavam os lábios com um pedaço de ouro bento, para que as suas falas fossem honestas e brilhantes; a sua roupa era secada ao lume sobre o fio de uma grande espada, para que crescesse forte e amigo das armas; e trazia ao pescoço um pedaço do Santo Lenho, para que o seu coração se enchesse do amor do Céu. O seu encanto fora sempre ouvir as histórias dos

Paladinos. De noite sonhava com Roldão, e estendia o braço para empunhar a grande trompa que soara em Roncesvales. E desejava libertar damas presas em torres, domar dragões e ser servido por um gigante armado de uma dava.

E ali o tinha, o seu gigante, maior de que todos aqueles de que ouvira falar, nos serões de Inverno, aos trovadores que passavam esmolando, ou aos peregrinos que tinham visto as maravilhas da Terra Santa. Direito, a mãozinha assente na cinta, o olhar rebrilhante, estava diante de Cristóvão – que sorria, com a vasta face barbuda toda pendida e enternecida para ele. Então, erguendo o dedo para o alto, onde estava o ombro de Cristóvão, disse muito sério:

– Quero subir lá cima.

O seu aio ergueu-o nos braços, mas não chegava àquela altura. As damas riam; os cavaleiros também, metendo os dedos entre os fios das barbas. Então Cristóvão agarrou delicadamente na criança, e pousou-a no seu grande ombro. Lá no alto, a criança sorria, vendo todos em baixo, tão pequenos, junto dos joelhos do gigante. Espicaçou o ombro de Cristóvão, gritou: «Caminha!»E Cristóvão marchou, através da sala. Para passar, a criança afastava as bandeiras que pendiam. Os seus olhos, cheios de orgulho, reluziam como estrelas. Mas a mãe inquieta erguia as mãos, chamava: «Ruperto! Ruperto!» – E o aio, todo erguido nas pontas dos pés, estendia os braços para as alturas de Cristóvão, para receber Ruperto que se atirara de lá, rindo e sem medo.

Então a dama velha deu as suas ordens ao senescal. Cristóvão foi levado às cozinhas – onde os pajens, os criados, correram para ver Cristóvão, sentado no chão, com uma bacia de barro nos joelhos, cheia de vinho, esfarelar dentro grandes broas, que um criadito lhe trazia, ajoujado.

Deitado, nessa noite, numa velha cavalariça abandonada, Cristóvão sentiu uma grande paz, e como um calor que o envolvia, vindo menos da palha fresca em que jazia do que do sentimento vago de que alguém o estimava, o queria, necessitava dele. Era aquela criança tão linda, tão nobre, com os seus longos cabelos de ouro. E toda a noite sonhou que uma criança assim, cujos cabelos louros caindo sobre a camisa branca o envolviam num brilho de ouro, vinha desde a ponta dos seus pés, caminhava ao comprido do seu corpo, como por uma estrada desigual que galga montes e vales: os seus pezinhos mal pousavam; e chegada junto da sua face, a criança parava, e debruçada sobre os seus grandes olhos, parecia contemplar dois lagos tranquilos e claros como espelhos. Depois no mesmo silêncio, e caminhando sobre o seu corpo, recuava até à ponta dos seus pés, de onde se elevava para o ar, resvalando num raio oblíquo da Lua, que entrava por uma fenda.

Ao primeiro alvor da madrugada, antes que a buzina das sentinelas anunciasse o dia, Cristóvão, saindo por uma porta aberta, foi rondar em torno do castelo. Nunca ele vira construções tão magníficas. Uma longa muralha envolvia toda a colina. Os nenúfares cresciam na água dos fossos. E para além eram arvoredos, terras de cultura, por onde um rio, coberto àquela hora de névoa, serpeava por entre grandes choupos.

Desde tanto tempo havia paz naqueles feudos senhoriais, que a erva crescia nas fendas da ponte levadiça. A forca patibular, sob a demência das damas que governavam, tinha as vigas apodrecidas e verdes de musgo. E sobre o torreão erguia-se uma lança, com um morrião espetado, e uma cabaça, significando que ali se dava hospitalidade a cavaleiros e peregrinos. As torres, de telhados agudos, eram inumeráveis, tendo todas bandeiras ou flâmulas, vermelhas e verdes, que esvoaçavam na brisa. Dragões, debruçados das ameias, vomitavam a água das chuvas. E em cada janela ogival, com brasões nas vidraças, havia um vaso escarlate, onde crescia uma açucena.

Dentro das muralhas, tudo era magnífico. Os lajedos dos pátios, polidos como os de uma igreja, eram cercados de uma bordadura de terra onde cresciam roseiras. O poço era encimado por um pombal que terminava por uma imagem de S. Marcos, onde as pombas vinham pousar, beijando-se sobre o seu grande livro aberto. Por trás da negra torre isolada, que servia de tesouro e de arquivo, havia um jardim em flor: e aos lados um coberto para o jogo da bola, uma álea para o jogo da lança.

E na tranquilidade daquele solar de damas, alheias a coisas de guerra, respeitadas nas longas léguas dos arredores, as sentinelas, sobre as ameias, jogavam os dados, ou dormiam como frades repletos.

Cristóvão pasmava destas maravilhas, quando um pajem o chamou à presença de um intendente. Numa sala abobadada, sentado numa vasta cadeira de carvalho lavrado, diante de uma mesa coberta de rolos de pergaminho, de in-fólios com armas estampadas, o intendente marcou a Cristóvão as suas obrigações, que consistiriam em acompanhar o Senhor sempre que ele saísse, a pé, ao lado do seu ginete, e armado de uma dava. Depois um homem, um corcunda entrou, e trepando vivamente a uma cadeira mediu Cristóvão, com um côvado de madeira, desde a cabeça aos pés, e saiu, recuando e saudando, com um molho de tesouras e de agulheiros tinindo à cinta.

Quando o fato que ele assim medira ficou pronto, Cristóvão recebeu ordem para talhar uma maça num tronco de árvore, e, vestido, acompanhar o Senhor, que ia visitar as suas florestas: e enquanto o esperava, na clara manhã de Agosto, Cristóvão não cessava de se mirar na água clara da cisterna, pasmado das bragas de pano às listas azuis e vermelhas, que lhe cobriam as pernas, e do gibão vermelho e azul, que lhe cobria o peito, tendo bordadas as armas da senhoria.

Bem depressa o Senhor apareceu montado num potro branco, com plumas brancas na gorra, sob a qual caíam os seus cabelos louros. Um aio, ao seu lado, levava o falcão no punho. E dois cavaleiros seguiam, de lança alta. Vendo Cristóvão, o menino gritou de alegria: e três vezes fez correr o potro, que se espantava, em torno de Cristóvão imóvel, com a sua maça ao ombro. Depois, atravessando a ponte levadiça, correu pelo caminho largo, voltando-se na sela, airoso e vivo, para ver Cristóvão, que trotava com as suas vastas passadas, a longa guedelha ao vento. Pelas portas dos casebres, os vilões do castelo ajoelhavam à passagem do Senhor, que lhes atirava moedas de cobre, da sua escarcela: depois, em grupo, com os braços estendidos, ficavam a olhar o gigante que corria atrás.

Ao fim do passeio, tendo parado numa clareira onde se erguia uma torre, o menino não quis montar o potro, mas voltar ao castelo, cavalgando Cristóvão. Debalde o aio, com um joelho em terra, o potro pela rédea, lhe pediu para montar. Com o olhar vivo, ele disse só: «Mas quero 1 E, suspirando, o velho aio ajudou-o a trepar até ao pescoço de Cristóvão, onde ele montou, com as suas esporas fixadas no peito de couro.

Então a sua alegria foi extrema. Era como se estivesse no alto de uma torre que caminhasse. Ora o fazia parar para apanhar as mais altas flores dos medronheiros, que atirava ao chão; ora queria espreitar os ninhos; ora, espicaçando o peito de Cristóvão, corria agarrado aos seus cabelos, como às rédeas de um ginete. E assim voltou ao castelo, onde a mãe e a avó, na grande varanda de pedra, apertavam as mãos, entre inquietas e agradadas, ao ver assim o menino cavalgar o gigante, como nos contos dos menestréis.

E desde esse dia a melhor alegria do menino foi cavalgar Cristóvão. Eram então grandes correrias em torno às muralhas, ou em volta dos fossos, por vezes mais longe, até à floresta, Cristóvão sempre trotando, o menino sempre rindo. E assim pouco a pouco o menino se afeiçoara a Cristóvão, como a um cavalo que o compreendia, o fazia rir, com corcovos violentos, ou passos largos e ondulados, como os de um vasto dromedário. Cristóvão também, pouco a pouco, se dera de todo o coração à criança.

Quando o sentia sobre os ombros, toda a sua face se alumiava. Por mais fortemente que ele lhe puxasse os cabelos, só sentia a carícia das suas mãos. Para o fazer rir, relinchava como um corcel de guerra; ou fingia medo,, não queria avançar, e as esporas do menino rasgavam o couro do seu tabardo. Nos dias em que chovia e o menino não saía do cas-telo, todo o dia Cristóvão rondava tristemente pelos pátios, com a melancolia da sua ociosidade: e de noite não recolhia à sua estrebaria, com os olhos na janela onde luzia a luz que alumiava o menino.

Por vezes, porém, o menino queria que Cristóvão viesse assistir ao seu jantar: – e então dois pajens abriam mais largos os grandes reposteiros de tapeçaria para que

Cristóvão penetrasse na vasta sala, onde o tecto era pintado de azul, e salpicado de flores que brilhavam como recortadas em ouro. Imóvel a um canto, ele contemplava o menino, que se sentava ao lado da avó, numa cadeira de alto espaldar como a dela. Por trás, o seu aio tomava os pratos da mão do escudeiro. Sobre a mesa, coberta de linho fino, retiniam os copos de prata. Os bufetes vergavam ao peso das baixelas. Uma grande fogueira bailava na chaminé, onde estava representado o cerco de Antioquia: – e sobre os poleiros, de ferro polido, os falcões afiavam o bico.

Mas, por vezes, o menino queria Cristóvão mais perto. Então a mãe, resignada, fazia um gesto seco: – e Cristóvão, muito humilde, assustado dos esplendores senhoriais, vinha, vergando os ombros, com o seu barrete na mão. O menino queria-o de joelhos, com as mãos no chão, e batia-lhe nas costas, estendia-lhe pedaços de carne, que ele comia com ruído, para o divertir mais.

Outras vezes, à noite, um pajem vinha buscar Cristóvão às cozinhas, e entrava na grande sala, onde ardia uma fogueira na chaminé. Sentada na sua cadeira, a avó tinha um livro de horas aberto nos joelhos, com o menino ao lado. Defronte a mãe fazia tapeçaria. E um trovador, ao pé, sentado num escabelo, contava um longo romance de cavalaria e de amor. Era sempre um paladino de armas negras, uma dama encerrada nalguma alta torre, um gigante guardando a porta de um castelo encantado. O menino exclamava:

– Também eu tenho um gigante!

E fazia então erguer Cristóvão, que parecia monstruoso, com os grossos joelhos vivamente alumiados pela chama dos troncos ardendo, a cabeça quase perdida na sombra das altas vigas. O frade erguia as pálpebras dormentes; a dama ficava com a longa agulha suspensa sobre a tapeçaria; e todos, olhando Cristóvão, sentiam mais real e viva a longa história de fadas e cavaleiros. Depois os escudeiros serviam bolos secos, e as grandes canecas do hipocraz.

Assim os dias tranquilos passavam no castelo tranquilo. O vigia, invariavelmente, ao anunciar, com um toque de buzina, o nascer do Sol, içava no mastro da torre de menagem a grande bandeira de seda com as armas do Senhor. As janelas do castelo abriam-se; o sacristão varria a capela; o servo dos currais chegava, ajoujado com os seus cântaros de leite; e os pajens, cantando como pássaros que acordam, desciam correndo para o jogo da bola, ou para a liça coberta, onde o mestre de armas já experimentava as espadas, vergando as lâminas, ou examinava os ferros das lanças.

Se o tempo era claro, as damas e o menino davam um passeio pelos altos terraços.

O menino, por vezes, debruçando-se, gritava por Cristóvão, enquanto as damas respiravam o ar fresco, ou seguiam o voo dos falcões novos, que os falcoeiros adestravam.

Ao meio-dia dois trombeteiros anunciavam o jantar dos Senhores; ao portão do castelo iam-se juntando os pobres das terras senhoriais, para receberem depois nos salões estendidos o resto dos pães, ou a carcaça das aves.

Às vezes, pela tarde, um repique de pandeiretas, de guizos, anunciava a chegada de uma companhia de menestréis e jograis: um deles, com o barrete na mão, pedia permissão para dar uma representação no pátio. As damas vinham ao balcão; todos os pajens corriam, o arquivista deitava a cabeça fora da janela da torre, os cozinheiros espreitavam de entre as reixas de ferro: – e no pátio os jograis, atirando bolas, dançando na corda, erguendo pesos, ou representando farsas, levantavam grandes ah! ah! lentos e maravilhados. Quando saíam, sempre algum deles chamava Cristóvão com um gesto discreto – e fora da ponte levadiça persuadiam-no a vir com eles, na vida livre e alegre, percorrer os castelos, visitar as feiras, entrar nas cidades, ganhar dinheiro para a velhice.

Ele recusava, com um mover lento da cabeça. E eles seguiam voltando-se ainda para o ver, calculando os ganhos que teriam com a exibição daquele gigante.

Outras vezes era uma comitiva de fidalgos que chegava em visita. O pátio estava todo sonoro do relinchar dos corcéis. Os pajens corriam azafamados. Nas janelas batiam-se as alcatifas: – e nas cozinhas, o mestre, mais afogueado e vermelho que um pimentão, preparava grandes empadões, de onde sairiam pombas vivas. Nesses dias o menino tinha orgulho de mostrar o seu gigante: e, diante dos cavaleiros pasmados,

Cristóvão corria em torno com o menino a cavalo no ombro. E o capelão dos hóspedes tomava sempre as medidas de Cristóvão, para relatar nas histórias.

Outras vezes, já por noite escura, ressoava às portas do castelo uma trombeta de guerra. E um cavaleiro entrava, silencioso, coberto de ferro, seguido do seu escudeiro.

Uma camareira corria com o gomil de água perfumada para lhe derramar nas mãos; um pajem desembaraçava-o da sua lança; outro marchava adiante, com uma tocha de cera; – e o cavaleiro, com o seu elmo na mão, sacudindo os cabelos, lançava um nome sonoro de paladino, famoso já naquelas terras. Ou então era um peregrino, que os escudeiros levavam primeiro à cozinha, onde ele alargava o Y seu manto diante do lume, para o secar da humidade dos caminhos. Cristóvão segurava com respeito o seu bordão, de onde pendia uma cabaça. Em breve um capelão o conduzia às damas, a quem ele cortava as suas jornadas, as maravilhas do Santo Sepulcro: – e Cristóvão esperava, para lhe beijar a orla da sua esclavina, que tocara no túmulo do Senhor.

Assim os anos passavam. O menino crescia – e agora começava a ser ensinado em tudo o que respeita às coisas da caça e às coisas da guerra. Todos os dias o monteador trazia cães, para completar a matilha do Senhor: e chegavam, às costas das mulas, caixas contendo armas tauxiadas, para o menino lhes aprender o manejo. Mas, por desejo da avó, que era dada às coisas do alegre saber, o menino passava longas horas com o capelão, que lhe ensinava a conhecer as letras, os números, e a traçar o seu nome num pergaminho. Pouco a pouco, o menino perdera a sua curiosidade por Cristóvão. E já por vezes passava diante dele sem lhe sorrir, ou lhe acenar com a mão, já calçada com o guantezinho de caça.

Mas Cristóvão não vivia ocioso. Os pajens davam-lhe as armas para limpar. O sacristão, velho e trôpego, pedia-lhe para varrer a capela – e mesmo era ele quem acendia os fornos da cozinha, ou lavava a baixela suja. Depois, um dia, a avó, lendo uma história em que um gigante guardava um tesouro, quis que Cristóvão guardasse a torre onde estavam os arquivos e as arcas de dinheiro. A torre, então, foi o seu cuidado: constantemente a vigiava para a limpar dos musgos ou das ervas. Todas as manhas e todas as tardes batia as reixas das janelas esguias, para que nenhum ferro estivesse frouxo ou dessoldado. Era ele que levava o jantar, a ceia, ao arquivista, sempre debruçado sobre os seus pergaminhos. E agora dormia à porta da torre, com a grande chave de ferro toda fechada na mão. Todavia o menino, às vezes, ainda queria ser seguido por Cristóvão. Eram esses os seus dias alegres. Como um cão meio abandonado, os seus olhos simples e bons imploravam uma carícia. Mas em breve, o menino, com um gesto, o despedia: agora só se interessava por armas, por falcões, por ginetes de guerra. E Cristóvão, suspirando, com o coração pesado, ia estirar-se junto da torre, com a sua grossa chave sobre os joelhos.

Depois, um dia, um parente chegou ao castelo, trazendo de presente ao menino um anão disforme, pouco mais alto que uma seta, com uma cabeça enorme de olhos maus, e uma longa barbicha rala, que lhe fazia como o queixo de um bode. O menino teve então a paixão do seu anão. E nunca mais reparou em Cristóvão.

A dor de Cristóvão foi imensa. E o castelo tornou-se-lhe subitamente tão frio e deserto, como um cerro que as nortadas batem. Todo o dia os seus olhos espreitavam os terraços onde o menino passeava, a porta por onde saía, a liça onde ele vinha jogar a seta. E quando ele aparecia, Cristóvão escondia-se por entre os ângulos das torres – não se querendo mostrar por sentir que não era desejado, ou pelo receio de ver que não era chamado com o riso alegre de outrora. E na sua simplicidade pensava: «Que lhe fiz eu?

Por que me não quer?» Todas as noites sonhava com ele. Era sempre a mesma criança, com os cabelos louros sobre uma camisa muito branca, que caminhava sobre o seu corpo, mas, em lugar de vir espreitar a sua face, só vinha para lhe enterrar a ponta da sua seta, no sítio onde sentia bater o coração, com um jeito que era seco e cruel.

Sentado à porta da torre, pensando naquela ingratidão, soltava grandes suspiros: e o arquivista debruçava a cabeça calva pelo postigo, aos ruídos daquela dor. Para ao menos estar misturado às coisas do menino, era ele quem limpava o seu potro favorito: mesmo por vezes lhe beijava o focinho; e a sela em que o menino montava, as rédeas cobertas de veludo, os seus estribos de prata, eram como coisas sagradas, em que tocava com devoção.

Por esse tempo, uma manhã, houve um grande rumor no castelo. O menino estava doente. Bem depressa dois pajens partiram galopando – e não tardou a chegar, montado na sua mula, o Físico, com a sua caixa de drogas. Foram então dias de inquietação. A capela estava todo o dia acesa, e as aias rezando. De um convento vizinho vieram as relíquias de S. Teódulo. Os pajens, sem jogar, sem lutar, cochichavam com medo pelos cantos: – e outros iam procurar pelos caminhos peregrinos, ou mercadores ambulantes, que trouxessem de longe alguma receita nova e ignorada. Cristóvão não dormia. Toda a noite, os seus olhos estavam cravados na janela dos aposentos do menino. Interrogava, tremendo, as camareiras. Ia pelos casais de colmo, dos servos, perguntando por ervas.

Foi muito longe consultar um pastor feiticeiro. E para que nenhum rumor inquietasse o menino, ia de noite, com uma grande vara, bater a água dos fossos, para fazer calar as rãs.

Um dia, porém, o menino apareceu no terraço do castelo, apoiado às duas senhoras, pálido ainda, sorrindo ao sol de Inverno. Todos os criados, os servos, correram, saudando-o de longe com os barretes. A sineta da capela repicava ale-gremente.

E Cristóvão, com as mãos postas, esperava ansiosamente que os olhos do menino se pousassem nele. O menino acercou-se da beira do terraço – e os seus olhos, ainda vagos e tristes, pareceram nem reparar no seu gigante. Cristóvão foi recolher à sua torre, com duas grossas lágrimas rolando-lhe por entre as barbas

XIV

Todos o conheciam. Havia sempre para ele um pichel de vinho: – e Cristóvão

O castelo perdeu então para ele todo o seu encanto: – e, como que sufocado entre os seus altos muros, voltava os seus pensamentos para os campos e para as moradas dos servos, entre quem nascera. Como a paz era tão grande, nenhum dos serviços de guarda era feito com exactidão: as sentinelas dormiam nos torreões, como frades no locutório; os porteiros deixavam os molhos de chaves pendentes das argolas de ferro; e a torre dos arquivos não precisava ser guardada. Logo pois que a varria, Cristóvão, tomando o bordão, ia pelas terras do feudo, pelos casebres dos colonos e servos. brincava com as crianças ou ajudava a tosquiar os anhos. Pouco a pouco, tornou-se o serviçal de todos, e, como outrora na sua aldeia, era ele que acarretava os fardos, rachava a lenha, compunha os telhados, lavrava os chãos mais duros. Mesmo por vezes ia pastorear os rebanhos ou guardava os moinhos. À noite ficava entre aquela pobre gente, sem pena do bom calor das cozinhas do castelo, do pão fresco, e da sua larga porção de carne salgada. Reunidos à lareira, num dos casebres, eles passavam o fim da tarde já escuro, olhando o lume, onde as raparigas assavam castanhas na cinza. E

Cristóvão, no meio deles, escutava o seu falar lento e grave. Os mais velhos contavam histórias do velho conde, homem cruel, que nos campos impelia o seu corcel contra os lavradores, ou talava os vergéis. Dizia-se que tinha pacto com o Demónio: – e muitos o tinham visto caçar de noite, à luz de tochas, guiado por um caçador todo escarlate, que tocava uma trompa de onde saíam chispas de lume. Outros tempos mais doces tinham vindo com o outro conde, o que morrera nas guerras, e com as damas, tão dementes, que as forcas patibulares estavam apodrecendo. Mas quanto lhes pesava ainda aquele alto castelo, de brasões e de flâmulas! Que dura era ainda a vida, sempre sujeita, toda de duro trabalho! E cada um contava a sua miséria, o labutar incessante, o pão escasso, os filhos rotos pelos grandes frios, a fome por vezes vindo com os seus dentes de loba... As vozes iam-se tornando mais tristes. O vento entrava pelas fendas dos casais. As mães, com um suspiro, embalavam os berços, onde dormiam inocentes, votados à mesma servidão e à mesma miséria. Cristóvão sentiu o seu coração doer, com uma compaixão infinita.

Às vezes um frade mendicante batia ao portão, e entrando, deitando as bênçãos, arrumando a um canto o seu alforge, ia aquecer às lareiras os pés doridos dos caminhos, lacerados pelas urzes, e o hábito de burel que fumegava. Filho de vilões, tendo nascido nas lavouras, conhecia as misérias da servidão: e, frade pobre, sofria da opressão, do orgulho dos prelados ricos, com castelos e terços armados. Então sentado na melhor tripeça, com o seu rosário caído entre os joelhos, ele falava também da miséria dos tempos. Certamente Nosso Senhor, cansado de tanta maldade dos grandes, não tardaria a voltar à Terra, distribuir melhor o pão, reformar as ordens, abater o orgulho dos ricos-homens.

E quem sabe? Incompreensíveis são os caminhos da Providência! Talvez, para castigar os castelos, Deus revoltasse as cabanas. Um chuço fura a melhor armadura, quando é a mão de S. Miguel Arcanjo que o impele. Talvez na Terra se repetisse em breve a batalha do Arcanjo e do Demónio. Já um fogo andara no céu, para o lado do oriente. E sobre o mar tinham-se visto, erguidas e entrechocando-se, uma foice e uma lança. E então, baixando a voz, contava como nos condados, que atravessara, os homens se juntavam de noite numa floresta e tramavam o fim da servidão.

Cristóvão recolhia ao castelo pensativo. E todas aquelas torres, aquelas muralhas lhe pareciam de um aspecto cruel e hostil ao pobre. Por que não haveria para todos a mesma lareira, o mesmo pão? Aqueles tesouros, que ele guardava na torre, seriam a abundância para criancinhas sobre toda a terra. Para que eram tantas armas? Os homens não se deviam combater, mas somente abraçar, em concórdia.

Um dia que ele assim pensava, sentado à beira dos fossos, um velho veio a passar, um dos servos do castelo, picando o seu burro carregado de erva. Parecia ter pressa, e no seu olhar havia como uma inquietação. Ao ver Cristóvão, parou dizendo: «Novas más, novas más!» E como Cristóvão arregalava os olhos simples, o servo contou que no mercado, de onde viera, corria entre a gente que um bando de servos se levantara, num domínio, além, para trás das colinas, tendo por brado: «Morte aos castelos!» Outros servos se tinham juntado, com chuços. Toda a terra parecia em revolta. E já dois castelos tinham sido atacados, as damas mortas, as crianças mortas, e agora as duas torres ardiam sobre a colina. E, sem outra palavra, picou o seu burro carregado de erva.

Mas imediatamente Cristóvão se ergueu e o começou a seguir. Quando chegou, atrás dele, à aldeia, já havia grupos no adro, já se falava baixo à porta dos casais. A nova viera no vento, e a todos espantava. Nas faces dos homens moços havia como uma emoção, uma dúvida, se não seria o dever de todos tomar as foices, as enxadas, fazer armas com o ferro dos arados, ir juntar-se aos irmãos de servidão, vingar os pobres. Os velhos abanavam a cabeça, numa grande prudência. De que serviria? Sempre os barões venceriam, descendo nos seus grandes corcéis. E as mulheres, inquietas, lembravam a bondade das damas do castelo, as suas esmolas, os pedaços de anho que pelo Natal mandavam a todos os casais. Que seria se o bando viesse atacar o castelo? Não havia soldados para o defender, nem armas. Pobres senhoras, tão sós e fracas! Pobre condezinho, tão fraco e só!

Cristóvão escutara em silêncio. E em silêncio, também, recolheu ao castelo. Toda essa tarde rondou as muralhas, como para lhes estudar a solidez e a resistência. Depois, com os seus punhos fortes, palpou as portas. E como nesse momento o intendente passava, seguido do seu grande cão, perguntou:

– Que fazes, Cristóvão?

Ele respondeu:

– Anda gente má pelos campos: é necessário levantar a ponte.

O intendente sorriu, encolheu os ombros – e nessa noite fez rir as damas, contando os terrores do gigante. Cristóvão, porém, não dormia. No alto da torre da almenara, toda a noite espreitou as terras em redor. Ao longe, sobre uma colina, havia como fogos de um acampamento. Mas nenhum rumor se ouvia, senão o cantar dos sapos na planície.

Quando a alvorada veio, Cristóvão desceu: – e indo às abegoarias, escolheu duas trancas enormes de ferro, que serviam para trancar as portas, agora desusadas. Depois a sineta tocou à missa no ar fino. O arquivista veio sentar-se entre os seus in-fólios, e as damas distribuíam o trabalho às fiandeiras e às servas. E todo o castelo repousava na santa paz do domingo – quando um pajem, que nas ameias fazia uma armadilha aos pássaros, soltou um grito, que acordou os archeiros, adormecidos na sua guarita de pedra. Logo um som de buzina, um grande apelo de alarme ressoou. Todos os pajens correram às ameias. As damas apareceram por trás das vidraças do balcão. E os cozinheiros saíam aos pátios, com as suas caçarolas na mão.

Bem depressa correu o grito que um bando armado avançava sobre o castelo. Os pajens correram, em confusão, à sala de armas, a tomar espadas, lanças. Os guardas trancavam as portas, desesperadamente. E o intendente, com os cabelos ao vento, gritava que se aquecesse o pez, o alcatrão, para despejar sobre o bando, se ele quisesse escalar as muralhas. Mas ninguém escutava, na desordem. A longa paz desabituara os habitantes do castelo da disciplina, da prontidão. Não havia um cavaleiro para comandar. E as mulheres, correndo para a capela, e chorando, amoleciam os corações.

Subitamente um grande alarido ressoou sob os muros. Cristóvão subiu às ameias:

– viu um bando imenso de homens, servos em farrapos, furiosos, brandindo foices, chuços, tochas, amontoando-se na ponte levadiça, que ninguém se lembrara de erguer, enquanto outros em redor, a grandes machadadas, abatiam as forcas patibulares e o banco de pedra da justiça, que o musgo cobria, sob o olmo senhorial. Já golpes de machado ressoavam contra a porta, fazendo saltar faíscas. Um tronco enorme, que mãos inumeráveis sustentavam, foi trazido, arremessado, como um aríete, contra a porta, em que ele marrava como um carneiro. De cima, os archeiros despediam frechas com mão mal segura. Cada grito de ferido mais excitava a turba, as machadadas redobravam – e a velha porta bem depressa foi aberta em lascas. Então os archeiros, os pajens, desceram para se refugiar na torre – e Cristóvão, tomando nas mãos as trancas de ferro, correu para a torre senhorial. Dentro, na grande sala abobadada, estavam as damas pálidas, uma junto da outra, com o condezinho entre elas, quase escondido nos seus vestidos. O velho senescal rezava de joelhos. E, em torno, amontoavam-se os in-fólios, os arquivos da casa, as grandes árvores genealógicas, tudo o que fazia o orgulho daquela família.

Era como a cidadela do feudalismo, onde tudo se achava resumido, a esperança de uma casa, os seus títulos, os seus tesouros, todo o seu orgulho. E tudo aquilo era ameaçado por uma plebe revolta!

Cristóvão fora humildemente postar-se ao fundo da sala abobadada. E tão grande era o terror, tão arreigado o desdém pelos servos, que não era nele que os Senhores pensavam, nem no poderoso socorro da sua força indomável, mas nas espadas dos pagens, a quem elas gritavam que defendessem a porta.

Através dos pátios, no entanto, já os gritos dos feridos ressoavam por entre o clamor da turba de Jacques, que vinha como uma onda que arrebentou os diques. E mal a porta da torre fora fechada, que sobre ela caíram enormes machadadas, entre uivos de furor, o ruído dos vidros que se partiam, os gritos dos servos assassinados. Dentro ninguém falava, todos com os olhos cravados naquela porta atacada – velhas pranchas de carvalho e ferrugentas chapas de ferro, que eram a única defesa contra a morte. Os pajens, mais pálidos que a cera, amolecidos pelos anos de paz, sem educação guerreira, faziam diante das mulheres uma sebe de espadas – espadas cujas pontas tremiam. O capelão rezava de bruços. E o arquivista estendia os braços por cima dos seus in-fólios, como para os proteger, com os olhos cravados na porta, e estremecendo a cada machadada. Só a avó parecia serena, sustentada pelo seu orgulho, com o peito direito, como preparado para a morte, enquanto a nora sucumbia agarrada ao filho, banhando-o de lágrimas. E pela escada de caracol, que subia ao pavimento superior, apinhava-se a criadagem, as aias – algumas ainda com a sua roca na mão.

Sob os golpes desesperados a porta cedia! Pelas fendas da muralha entrava o fumo das fogueiras, que os Jacques acendiam no pátio para pegar o fogo ao castelo, com os móveis que arrastavam das salas, cadeiras brasonadas, arcas cheias de estofos. Já ninguém contava com a vida. Duas aias velhas, de rosários na mão, pediam a absolvição ao padre, que as não escutava, de joelhos, batendo os queixos, entre gritos de misereres.

De repente a porta cedeu, tombou sob os seus grandes gonzos estalados – e pontas de chuços, de foices, faces lívidas, braços descarnados, irromperam numa fúria de matança. As damas tinham fugido. Já um grande velho, em farrapos, pulava por sobre a porta, com uma foice em cada mão – quando, do fundo da abóbada, Cristóvão surgiu, enorme, com a face ardente, uma barra de ferro em cada mão.

Foi como uma aparição – e a turba furiosa recuou com terror. Era como se surgisse ante ela, visível, real, esse gigante monstruoso, guardador de torres, de que eles tinham ouvido falar, pálidos de espanto, nas histórias contadas à lareira. E nesse momento de espanto, Cristóvão, com um grande brado, carregou sobre a turba, que recuou em tropel, recolhendo os chuços e as foices. Baixando a cabeça, Cristóvão rompeu da porta como uma grande torre, e no grande ar do pátio a sua figura escura, coberta de uma pele de lobo, com duas chamas brilhando sob a hirsuta sebe das sobrancelhas, pareceu saída do Inferno, e como cheia de força invencível. Os seus brados faziam tremer os muros: – e as duas barras de ferro furiosamente cortavam o ar, silvando. A cada um dos seus largos passos, a turba recuava, com um rouco murmúrio de terror. Alguns tinham fugido por entre as fogueiras, onde ardiam os grandes móveis de carvalho lavrado. As mulheres do bando gritavam que era o Demónio: – e um ou outro chuço que se erguia, voava em lascas sob o golpe da barra de ferro.

Para trás, para trás, sempre para trás, ia a turba, reatravessando os pátios, tropeçando nos servos que matara, caindo por sobre os lumes que acendera. Já estavam contra a muralha. Já as costas se voltavam para fugir. Então, com um último urro, que atroou toda a colina, carregou sobre a turba – que, num súbito pavor, varou a porta aberta, galgou a ponte levadiça, desceu de roldão a colina, até parar no vale, onde os carros esperavam. E Cristóvão, passando também a ponte, ficou no meio da colina, imóvel, grande como uma torre, apoiado à sua barra de ferro e limpando o suor. Mas então, de entre a multidão que em baixo se agitava, um velho avançou, sem armas, com um ramo de oliveira na mão – e caminhou para Cristóvão. A meio da colina parou, e erguendo os braços perguntou a Cristóvão porque os atacava ele, servo, que decerto sofria da servidão, a eles, servos também, que no fim de tantos tempos de sofrimento, só queriam partilhar de alguma das doçuras da terra? Não era só pelo mal de destruir que eles atacavam os castelos. E que ali, entre as suas muralhas, estava a gente orgulhosa que os escravizava, causava a fome dos seus filhos, o frio das suas moradas, as fadigas sem nome – e eles vinham simplesmente matar o mal da terra. Ele, velho, que lhe falava, trabalhara cinquenta anos a gleba, tivera o corpo vincado pelos azorragues, vira a sua choupana queimada pelo Senhor: em torno dele, longos tempos seus filhos tinham gritado de fome, tremendo de frio – e, escorraçado, esmagado, pisado, espremido pela força como um trapo vil, tomara uma faca, e partira a fazer justiça no mundo. De todos os seus, só lhe restava um neto, um neto pequenino, de seis anos, inocente e simples como um anho. E porque ele tirara uma maçã às macieiras do pomar do castelo, onde era servo, o Senhor fizera-o dependurar pelas mãos de uma árvore, acirrara contra ele os cães, e toda uma noite de Inverno o deixara nuzinho sob a neve. Quando o despregaram da árvore, estava moribundo. E a voz do velho tremia. Cristóvão deixara cair a barra de ferro, e com as mãos vazias e vagas, e abertas no ar, a cabeça caída, parecia pensar, no fundo da sua simplicidade. E o velho, avançando, perguntava-lhe porque não viria com eles abater os monstros que matam crianças nos seus negros castelos, acabar com os amos cruéis, para que sob o céu, um momento, os humildes respirem e limpem as lágrimas. E o velho limpava as suas lágrimas, com as suas pobres mãos que tremiam.

Então, lentamente, Cristóvão apanhou a sua barra. Pouco a pouco desceu a colina. E o velho adiante gritava agitando o ramo, tropeçando nos pedregulhos:

– Este é o grande gigante que nos vem libertar!

Os Jacques mal compreendiam. Alguns, vendo descer Cristóvão, fugiam saltando os valados. Outros, furiosos, enristavam os chuços. Mas Cristóvão, brandindo a barra, gritou:

–Vinde!

E num impulso irresistível, todo o bando o seguiu numa aclamação – enquanto das muralhas do castelo o intendente, entre os homens de armas, de pé nas ameias, estendia o braço, mostrando Cristóvão, que se bandeava com os Jacques, e partia através das campinas.

XV

Pelo começo da tarde, guiados pelo velho, acharam-se subitamente, depois de terem costeado um pinheiral, diante de um castelo que duas torres flanqueavam: e nesse momento, vinha saindo da ponte levadiça, a cavalo, um Senhor de longas barbas brancas, sem armas; ao seu lado, montada numa hacaneia branca, uma aia sustentava no colo uma menina, e atrás seguiam quatro escudeiros armados de lanças. Ao ver subitamente aquela turba que avançava, o Senhor estacou, um dos escudeiros tocou desesperadamente a buzina, enquanto outros toques respondiam sobre as ameias. E, voltando a égua, a aia galopou para dentro do castelo. Já as muralhas se cobriam de soldados. Mas o Senhor, desarmado, fixara, sem se mover, os seus olhos de águia sobre a turba imensa de maltrapilhos, que numa fila, sobre o caminho tortuoso, soltava grandes gritos de ataque, brandindo os ferros. Então Cristóvão, com um grande gesto da sua barra de ferro, deteve a turba, que parou. E, arrojando a barra, avançou só com os braços abertos para o Senhor, imóvel no seu grande corcel. Toda a muralha em cima estava coberta de archeiros, de homens de armas. Todo o caminho em baixo estava negro da multidão dos maltrapilhos. E na ponte levadiça, o cavaleiro e o gigante ficaram sós, face a face.

Então, arrancando uma grande voz do peito, Cristóvão gritou:

– Vimos em paz. Trazemos as mulheres e as crianças. Nada temos contra ti... Mas todos os que me seguem têm fome. Detrás das tuas muralhas, há tesouros, arcas cheias de pão, grandes peças de carne diante da lareira... Estes, que vêm comigo, não têm uma moeda de cobre, trabalham toda a vida, sofrem da fome, vêem as criancinhas devorar as raízes, morrem pelos cantos dos bosques como um lobo, e a vida toda para eles é um tormento... Dá uma esmola da tua abundância a toda esta pobreza que passa. Se queres, vem, não receies, passa através dessa multidão, olha para esses corpos magros, vê as criancinhas chorando com fome, as velhas tropeçando sob os fardos, toda uma miséria que já não pode sofrer mais... Tem piedade!

E tendo assim falado, Cristóvão recaiu na sua simplicidade, ficou mudo, estúpido, com os seus grandes olhos de boi de trabalho pregados no castelo. Devagar, o Senhor voltou rédeas, e a passo, com a cabeça baixa e pensativa, sumiu-se sob a porta do castelo. Mas as portas não se fecharam – e de dentro, em pouco, um servo saiu arras-tando uma vaca; outros trouxeram carneiros; outros fortes gigos com pão, sacos de favas; outros uma arca, que vinha cheia de dinheiro; e tendo juntado tudo num monte diante da ponte levadiça, um dos servos gritou, retirando:

– Este é o dom do meu Senhor aos pobres que passam!

E a ponte levadiça subiu com um forte ranger de correntes de ferro.

Comandados pelo velho, sem desordem, os Jacques carregaram às costas, nos carros, o dom do Senhor, e de novo se meteram ao caminho, levando na frente

Cristóvão, que parecia mudo e como espantado, com a sua grande barra de ferro.

Todas as manhãs marchavam através de terras, duramente. Era o velho que os guiava – e Cristóvão, em silêncio, caminhava ao seu lado, com a sua barra de ferro ao ombro. Atrás era a longa fila dos maltrapilhos em farrapos, com velhas cotas de armas, cuja malha se desfazia, morriões amolgados, onde alguns tinham espetado plumas, as pernas nuas, as mãos erguendo foices, chuços, fueiros. As mulheres vinham depois, umas com filhos magros pendurados das saias, outras trazendo os mais pequeninos ao colo, e as mais velhas vergando sob fardos, onde se tinha reunido o que restava nas arcas, algum escasso alqueire de pão, uma almotolia de azeite, um pedaço de carne salgada; e atrás ainda era outra fila de homens, velhos, pastores com o seu cajado e o seu molosso, ceifeiros erguendo ao alto a foice, servos fugidos, mendigos, longas filas de miseráveis que de esfomeados não podiam marchar depressa, e deixavam uma longa nuvem de poeira, que ficava suspensa no ar.

Um regato corria, na falda da colina. E aí ficaram os Jacques, para passar a noite.

Em breve se acenderam fogos. O velho pôs sentinelas a todos os cantos. E nessa noite as crianças não choraram com fome, e houve uma gratidão no coração dos homens.

Cristóvão não quis mais que um pedaço de pão. Bebeu da água pura do regato – e toda a noite, sentado numa pedra; enquanto estirados no chão, sob as árvores, os Jacques dormiam, ele olhou as estrelas e pensou em Jesus, que estava por trás, e àquela claridade das suas lâmpadas, o via talvez entre esses desgraçados, como um pai entre os seus filhos.

De madrugada, os Jacques levantaram o campo, e guiados sempre pelo velho e pelo frade, partiram ao longo do regato, até que, chegando aos primeiros carvalhos de um grande bosque, sentiram um cheiro nauseabundo, e viram um homem, um servo, enforcado num ramo de árvore, e já meio roído pelos corvos. Uma indignação correu entre os Jacques, quando alguns que se tinham adiantado descobriram outros corpos pendentes das árvores. Ao rumor da turba, os corvos fugiam de entre a ramagem: e sob os pés dos mortos, suspensos no alto, o chão estava todo espezinhado das patas dos lobos. Lá em cima, numa colina, negras na luz clara, apareciam as torres de um castelo.

E aquilo era decerto a justiça do Senhor!

Então um clamor de cólera correu entre os Jacques. Uns queriam logo lançar fogo

à floresta, para envolver o castelo. Outros falavam em abater árvores, para fazer aríetes com que bater as muralhas. E Cristóvão, impelido pela multidão, que atrás dele brandia as foices e os chuços, começou a subir um caminho que levava ao castelo, entre rochas que o musgo cobria.

Avistaram, por fim, ladeando uma torre de menagem, altas muralhas negras e sombrias, com grandes manchas brancas de pedra nova, que eram como cicatrizes de assédios. A ponte levadiça estava fechada, o gradil de ferro descido. E uma estacada de vigas cercava o fosso, de água esverdeada. Nem um rumor saía das altas muralhas.

Tudo parecia abandonado. De um dos lados, grandes rochas rolavam em desordem, para um precipício. Uma águia voava nas alturas.

Uma Inquietação deteve os Jacques ante aquele silêncio sinistro. Alguns, pensando o castelo abandonado, gritavam que se seguisse. Outros falavam de o escalar.

E Cristóvão, ao acaso, caminhou para a ponte levadiça. Mas, subitamente, as correntes rangeram, a ponte abateu, e das portas que se escancararam, um troço de cavaleiros saiu, de viseira baixa, a lança em riste, num grande galope e estridor de armaduras. Os

Jacques recuaram em massa. Cristóvão estava só no planalto.

À frente dos cavaleiros, um, de grandes plumas brancas no elmo, a lança enristada, correu sobre ele. Cristóvão já não tinha a sua barra de ferro.

Mas correu a um pinheiro, agarrou-o às mãos ambas, arrancou-o da terra, e tomando-o como uma monstruosa vassoura, atirou-o, num gesto de servo que varre, contra o cavaleiro e o cavalo, que rolaram, com um estampido de armas, embrulhados na rama densa. Num pulo Cristóvão empolgou o cavaleiro, e segurando-o entre os joe-lhos como uma criança débil, partiu-lhe as fivelas do elmo, descobriu uma cabeça lívida, uma espessa barba ruiva. Depois, erguendo-o ao ar como um broquei contra os outros cavaleiros, que tinham estacado num espanto mudo, gritou desesperadamente:

«Resgate, resgate!» Os Jacques cercavam Cristóvão, querendo despedaçar o Senhor prisioneiro. E ele erguia mais alto o miserável, que nem se movia, seguro nas mãos de ferro, e gritava: «Resgate, resgate!

Os outros cavaleiros, num furor súbito, correram sobre ele. Mas Cristóvão, saltando para a beira do precipício, debruçou sobre ele o prisioneiro, como se o fosse despenhar na corrente e nas penedias, gritando sempre: «Resgate!» Então os cavaleiros pararam, e rapidamente consultaram-se, com grandes gestos dos seus guantes de ferro até que um, avançando, bradou: «Está resgatado».

O velho então avançou também, e expôs o resgate. Queria dinheiro, vinte sacos de pão, vacas, vinho, para sustentar a sua gente, um juramento sobre a cruz de que não seriam perseguidos, e dois carros para levar os mantimentos. O cavaleiro estendeu a mão sobre a cruz do frade, e jurou.

Então os Jacques, abaixando as armas, esperaram – enquanto Cristóvão, sentado na rocha, tinha o cavaleiro atravessado sobre os joelhos, com a mão direita agarrando-lhe as pernas, com a esquerda a garganta. Pouco a pouco os servos saíram do castelo trazendo o resgate – e os Jacques desceram o caminho, rodeando os animais e os dois carros com os sacos, o ouro e os odres de vinho. Cristóvão ficara só com o cavaleiro.

Quando o último homem desapareceu para além da colina, ele pousou o cavaleiro no chão com cuidado, e murmurou simplesmente: «Vai».

E, sem se voltar, passo a passo, foi-se juntar aos Jacques.

Então começou, de castelo em castelo, através das províncias, a marcha dos

Jacques. Das aldeias por onde eles passavam corriam a juntar-se-lhes miseráveis, servos revoltados, mendigos. Agora era uma multidão imensa que enchia os caminhos. Mas não havia neles nem violência, nem cólera. Iam mostrando, através das baronias ricas, a sua miséria de servos, e sem violência pediam esmola. Cristóvão era como um grande pai, que mendigava com os seus filhos, pelos caminhos. Ao chegar diante dos castelos, mostravam os seus andrajos, as faces maceradas, as cicatrizes da servidão, e gritavam por pão. As portas abriam-se com fragor, e uns por piedade, outros por temor, davam dos seus cofres e dos seus celeiros. Dia e noite, Cristóvão mantinha a ordem na turba imensa. Não permitia que despojassem as árvores dos frutos, que se tomasse o gado nas pastagens. Só era aceite o que a caridade dava. Se encontrava mendigos, histriões famintos, gritava com um grande gesto: «Vinde também». O seu coração queria abrigar toda a miséria humana, levá-la a esmolar pelas estradas do mundo. Do dinheiro recebido, repartia com as aldeias pobres. As crianças corriam estendendo os saios, que ele às mãos-cheias enchia de grão, de fava. Uma doçura ia tomando aqueles corações da turba miserável. Alguns tinham arrojado a foice. Outros, ao passar pelas ermidas ou pelos cruzeiros, caíam de joelhos, chorando.

E sempre adiante, Cristóvão ia como uma torre que marchava. Uma adoração subia para ele. «Santo é o nosso gigante» – diziam. E, na sua confiança, julgavam que a vida seria assim, eternamente, uma marcha pelos caminhos, recolhendo os bens que os nobres repartiam com os pobres. Decerto Jesus voltara à Terra. Em breve todos os castelos se abririam, e partilhadas as riquezas, quebradas as armas, não haveria fomes nem guerras, e apenas, na paz dos campos doces, irmãos abastados. O acampamento, quando paravam, era como aldeia em festa, onde a carne abunda no espeto, e todas as mãos têm uma fatia de pão. Já a marcha se abrandava, e por vezes ficavam num vale, ou

à beira de um ribeiro, num repouso feliz, esquecidos de todas as misérias. Dos filhos, das mulheres que tinham ficado nas aldeias, ninguém se inquietava – porque, cada dia, partiam mensageiros a levar aos casebres dinheiro e provisões. Mas alguns, tendo feito o seu pecúlio, recolhiam às suas moradas distantes, sem receio, tanta era a confiança em

Jesus.

E Cristóvão sentia uma alegria imensa. De dia e de noite vigiava a turba enorme, para que nela nada houvesse de violento ou de brutal. As questões que surgissem, aplacava-as estendendo os braços. Se alguém roubava as frutas dos caminhos, expulsava-o da turba. A todos distribuía a sua justiça. A todos dava a sua caridade. E era ele, não outro, que tirava os espinhos dos pés feridos, ou amparava os velhos fatigados das marchas.

Assim vagueavam, quando uma tarde, chegando a uma grande lagoa, que, orlada de canaviais, brilhava ao sol do Outono, viram do outro lado um longo troço de cavaleiros, cujos pendões tremulavam no ar. Costeando a lagoa, decerto se encontrariam: e os Jacques e os cavaleiros pararam, um momento surpresos.

Uma grande planície estendia-se entre eles, toda cheia e coberta da erva amarelada do Outono, desenrolando-se até a uma fileira de colinas, que grandes pinheirais vestiam.

O sol brilhava sobre as águas da lagoa – e havia um vasto silêncio.

À frente dos Jacques inquietos, Cristóvão ficara pensativo, um instante: – e ia marchar para os cavaleiros, pedir a caridade para os seus pobres, quando por trás a turba gritou: «Pára! pára!» Os homens de armas, desenrolando uma longa linha de batalha, galopavam com as lanças enristadas contra a turba miserável. Com um brado, o velho mandou-os erguer os chuços, as foices, as lanças, fazendo uma sebe de ferro contra aquela pesada cavalaria, toda negra e de ferro, que fazia tremer o chão. Já chegavam, já

Cristóvão sentia o arquejar dos cavalos – quando um grande, imenso clamor soou, e a confusa massa de ferro abateu sobre os Jacques, com um grande ruído de armas, furio-sos golpes de montantes, cavando, com o peitoral em esporão dos cavalos, grandes sulcos entre os Jacques, que tombavam varados pelas lanças, decepados pelos espadões vibrados às duas mãos. A legião dos Jacques ficou separada em dois pedaços – com uma grande fenda no meio, toda cheia de cadáveres, espezinhados pelas patas dos grandes corcéis. E já esses dois pedaços corriam sobre o troço dos cavaleiros, quando este se separou em dois, fazendo face às duas alas dos Jacques, e enchendo a planície com o clamor de duas batalhas. Peões, cavaleiros, misturados, faziam duas massas clamorosas, onde os chuços dos Jacques se quebravam contra as armaduras, e as longas clavas com puas dos cavaleiros esmagavam crânios, que apenas algum velho morrião de ferro protegia. Os clarins dos cavaleiros tocavam furiosamente. Um relampejar de ferro enchia o ar, por entre o esvoaçar dos grandes penachos.

Os Jacques, tendo bem depressa quebrado o seu pobre armamento, arremessavam-se sobre os pescoços e garupas dos cavalos e derrubavam a braço o cavaleiro que, tombando com um grande ruído de armas, desaparecia, sob os braços armados de facas.

Outros, com foices, abriam o ventre aos cavalos. Alguns cavaleiros combatiam a pé, fazendo largos círculos com as espadas: – e as pedras, que os Jacques lhes arremessavam, soavam furiosamente sobre o metal das couraças. Quatro grandes ceifeiros, caminhando a passo como num milharal maduro, iam, com um movimento regular, lançando as suas foices, que apanhavam os jarretes dos cavalos, levavam braços de onde se tinham desprendido as braceiras de ferro, apanhavam pelas gorjas guerreiros sem capacete. E no meio do combate, sem armas, como não querendo derramar sangue,

Cristóvão, esguedelhado, enorme, ia com os seus enormes braços arrancando cavaleiros das selas e atirando-os para o chão como fardos de ferragens. O sangue já lhe escorria, da face, do peito, através do seu saião de couro, retalhado em longas fendas. Os seus imensos brados faziam empinar os cavalos. Lançando mão aos montantes, quebrava-os como palha. As puas e os broquéis que arrancava iam pelos ares, como folhas que uma rajada leva. Por vezes, correndo, com os dois braços e os punhos fechados, mais grossos que cabeças de carneiros, atirava por terra, com um baque seco, os cavalos e os seus cavaleiros. Tendo dado com o pé num montão de cordas, apanhou-o, e quando agarrava algum passava-lhe um nó nas pernas e assim o deixava deitado no chão, como uma rês num mercado. Pouco a pouco, todos os guerreiros se tinham voltado contra ele. E sem armas, tendo apanhado pelos pés um cadáver coberto de armadura, que usava como uma maça, ele ia recuando, até à alta colina coberta de pinheiros. Sobre ele caíam as flechas, sobre ele ressoavam as pedras dos fundeiros. O gigante recuava mais – e subitamente, correndo contra os assaltantes, derribava um, prostrava outro, com grandes pancadas do cadáver, que já perdera o capacete. O círculo dos cavaleiros crescia todavia sobre ele, gritando-lhe injúrias, arremessando-lhe de longe as maças. E cada vez esse círculo era mais estreito, e todo eriçado de ferros que rebrilhavam. Ele, sereno, fazia girar em torno o cadáver, cuja armadura se quebrara pouco a pouco, não tendo mais que os coxotes das pernas por onde o segurava Cristóvão, e mostrando já a carne branca, os cabelos duros do peito. Mas de tanto bater, por fim, foi pouco a pouco perdendo a força da ossatura, tinha o crânio quebrado, os braços moles como trapos, a arca do peito esmigalhada – e aquela arma terrível não era já nas mãos de Cristóvão, mais que uma tira de carne mole.

Mas chegara à colina. Aí, em cada pinheiro, tinha uma arma. E já se voltava, atirava as mãos a um tronco enorme para o desarraigar, quando uma flecha, varando-lhe o joelho, o abateu um momento, fazendo-o escorregar no declive húmido da colina. Então, num instante, um grande corcel negro veio sobre ele, uma lança faiscou – e Cristóvão ficou prostrado, imóvel, com uma espuma de sangue na boca.

Todos se tinham precipitado sobre ele, quando um clamor surgiu por trás. Eram os

Jacques que se tinham reunido, e, guiados pelo frade, vinham contra aquele grupo de cavaleiros, entalados contra a colina, nas terras moles onde os pés dos cavalos se enterravam. Então os homens de lança voltaram rédea, e fugiram entre a colina e os

Jacques, de novo direitos à planície, juncada de mortos. Os Jacques bradaram vendo fugir os cavaleiros, e começaram a correr atrás deles, atirando as últimas flechas – arremessando mesmo por escárnio grossos torrões da terra lamacenta. Mas, vendo os peões assim expostos na planície, os cavaleiros deram uma volta brusca, e abateram-se contra os miseráveis. Foi uma grande matança, o frade caíra logo com o crânio aberto, a sua cruz apertada na mão. E os que fugiam eram perseguidos por toda a parte, até que, atirando-se para a lagoa, as grandes lanças por trás os faziam arremessar à água.

Agora, na vasta planície, só havia homens de armas. Os Jacques juncavam a terra em negras poças de sangue. Lentamente, trotando, os cavaleiros acabavam os feridos, que gritavam de sede. Outros, parados, tirando os morriões, limpavam as grossas gotas de suor. Os físicos amarravam os braços feridos. E os pajens passavam com grandes pichéis de vinho. O sol desaparecia, e toda a lagoa era como de ouro, por trás dos seus grandes canaviais negros. Uma revoada de patos passou no céu, já pálido. E ao toque do clarim os Senhores, ainda esparsos, vieram-se juntando, retomando a fila. Os feridos foram postos sobre as carretas. E, a passo, o troço de cavaleiros retomou o caminho em torno à lagoa, onde o brilho de ouro se apagara, deixando-a agora toda negra e triste.

Na vasta planície, jazem os Jacques mortos. Findou a grande marcha, que levava aos castelos e abadias a visão estranha das grandes misérias da terra. Nenhum mais voltará às cabanas da aldeia, onde os filhos esperam até tarde na lareira apagada. Os Jacques estão mortos, a terra limpa dos seus andrajos.

Cristóvão jaz estendido na colina, entre os pinheiros. Um vento passa, frio e triste.

Ele abre os olhos, e a custo, erguendo-se sobre a mão, olha a planície. E em toda a sua extensão vê montões de corpos mortos, entre os quais reluzem já os olhos dos lobos. A grande lagoa está imóvel. Por cima passa a Lua cheia. Uma dor imensa arrefece o seu coração. De novo os seus olhos se fecharam – e caiu inanimado.

Toda a noite, no entanto, ele reviu a batalha. Dos montões de Jacques mortos outros Jacques se levantavam, com outros trajes, outras armas, impelidos à revolta pela mesma miséria que os oprimia. E sempre do fundo do horizonte, dos altos dos montes, dos cimos, desciam cavaleiros, que tinham armas diversas, gritos de guerra diversos, que carregavam, esmagavam os Jacques, os deixavam mortos, sob a grande Lua cheia.

Mas desses, pouco a pouco, mais pálidos, outros se erguiam, brandindo picaretas de mineiros, ferramentas de oficina, mostrando os seus andrajos, os filhos esfaimados, clamando justiça. E logo, a um brado do alto, fortes esquadrões desciam, trazendo à frente magistrados togados, homens carregados de sacos de ouro, e essa massa, caindo sobre os Jacques, de novo os prostrava, os deixava num montão, que a Lua, mais pálida e mais desmaiada, cobria de alvura e silêncio. E assim, indefinidamente, os Jacques renasciam dos ossos dos Jacques mortos, cada vez mais numerosos, até que a planície toda era uma sarça de braços magros, clamando, pedindo igualdade. E imediatamente outros esquadrões desciam, mais diminuídos, com um arranque menos vivo, hesitando, lançando golpes mais frouxos. Até que, por fim, os Jacques eram tão inumeráveis, que da planície se estendiam aos montes, e a Lua, que já desmaiara de todo, alumiava multidões disciplinadas, armadas, conscientes, que avançavam com ordem e ritmo. Os esquadrões, mandados contra estas coortes, fundiam-se como cera numa chama. Os

Jacques ocupavam a terra. Um último cavaleiro veio ainda, e, derrubado, largou as armas, desapareceu. E sobre a terra só ficavam Jacques, que cantavam em triunfo na frescura da manhã clara.

Então, sentindo na face esta frescura, Cristóvão entreabriu os olhos, ainda vago, meio dormente, como num sonho. A luz fria e pura da manhã penetrava sob as ramagens que o cobriam. As aves cantavam finamente nos ninhos, com frufrus de asas, de ramo em ramo. Um doce cheiro de rosmaninho e verduras novas perfumava o ar. E na relva toda húmida, lustrosa de orvalho, havia em redor flores silvestres, botões-de-ouro, papoilas frescas. Um fio de água cantava friamente de pedra em pedra.

E então pareceu a Cristóvão que via um moço, de longos cabelos louros, com uma túnica branca, onde se cruzavam as pregas de um manto branco, surgir entre as ramas dos pinheiros, ao longe, vir para ele encostado a uma vara branca. Os seus passos eram tão leves, tão leve decerto o linho do seu vestido, que as papoilas não se dobravam, quando ele sobre elas passava, ligeiro e branco. E na penumbra dos arvoredos, um sulco branco ficava, por onde ele passava, com um aroma tão doce como se desabrochassem naquela terra flores que não são da terra. Pouco a pouco se aproximou: – e Cristóvão podia ver os seus olhos pousados sobre ele, como duas estrelas da tarde. Docemente ajoelhou ao lado de Cristóvão, pousando o seu bastão tão levemente que nem vergou as pontas finas das ervas. Com os dedos mais macios que veludo, percorreu as feridas de

Cristóvão, que sentia as dores desaparecerem e como uma força nova que lhe voltava.

Depois rasgou uma tira do seu manto, pousou-a sobre as feridas, a da perna, a do peito; e aquela tira de linho parecia a Cristóvão leve como o ar e perfumada como um jasmim.

Depois, apanhando o seu bastão branco, em silêncio, partiu, penetrou no bosque, e pouco a pouco se perdeu entre os troncos negros, que um momento conservaram como a claridade daquela passagem branca. Os pássaros recomeçaram a cantar. De novo as ramagens se moveram brandamente. Então Cristóvão moveu os braços – depois ergueu o seu imenso corpo. Todas as suas feridas estavam fechadas. E sentindo uma força nova, aquele bom gigante cortou através do pinheiral, e recomeçou a correr mundo.

XVI

Nos caminhos, sentava-se nas encruzilhadas para guiar os peregrinos ou histriões.

Se havia algum grande lamaçal, ficava à beira dele para passar aos ombros os homens e os animais. Era ele que partia as rochas, para se construírem caminhos. E nas florestas onde sabia que deviam passar caravanas de mercadores, acendia grandes fogueiras para afugentar os javalis.

Por vezes aceitava servir só um amo. Foi assim o servo de um curandeiro e puxava, como um macho, a grande carriola, onde tilintavam os boiões das ervas simples e dos unguentos, e que parava nos adros das igrejas à tarde, depois das missas. Mas sentindo que o físico era interesseiro e duro – deixou o serviço. Foi depois o escudeiro de um cavaleiro errante, que encontrou banhando a ferida de uma perna à beira de uma fonte. Cristóvão sarou-lhe a ferida, e começou a segui-lo nas suas aventuras, caminhando, atrás do seu corcel, com uma maça feita de um pinheiro. Com o cavaleiro fez grandes proezas. Libertou servos que um Senhor duro levava a enforcar por eles não lhe terem tirado o barrete na estrada; desbaratou salteadores que infestavam o bosque; restituiu a um órfão o condado que lhe haviam roubado parentes avaros; – mas, como o cavaleiro tivesse ajudado a salvar unia dama, veio a casar com ela, teve um solar, aban-donou os caminhos, e Cristóvão, não querendo ficar naquela ociosidade, deixou o bom cavaleiro, levando, como paga, uma bolsa farta de ouro, bons vestidos quentes, que ele logo distribuiu aos pobres.

Então, seguindo o exemplo do cavaleiro, passou a socorrer os oprimidos. De noite, ao passar pelos castelos, derrubava as forcas patibulares. Se sabia de um campo que fora roubado, forçava o ladrão à restituição. Salvou os bandos de mercadores que os

Senhores, com grandes lanças, assaltavam nos caminhos para os roubar. Onde soubesse que o Senhor tinha imposto um trabalho excessivo aos servos, ia ele, não outro, fazer o trabalho. Nunca diante dele deixava castigar uma criança. Se, passando num casal, ouvia uma mulher chorar, e rumor de pancadas, quebrava a porta, tirava o pau das mãos do marido. Quando soldados deviam passar numa aldeia, ele ficava de guarda, para impedir as crueldades da tropa. E ninguém ousava afrontá-lo. Já ia, então, envelhecendo. Os seus cabelos tinham-se tornado mais crespos, hirsutos: trazia sobre o corpo farrapos, e a barba era rude e forte como um mato. Sob a barba, e sob as sobrancelhas, ficava invisível a doçura incomparável do seu olhar, do seu sorrir – e para os que o viam, na verdade o seu aspecto era horrendo e temeroso.

Quando entrava nas cidades, as crianças fugiam, todas as portas se fechavam – e os homens de guarda acudiam a saber de onde viera, a que baronia pertencia, e se tinha licença de vaguear nos caminhos. Ele respondia que só queria trabalhar: e tão humilde e quieto ficava, junto de uma fonte ou ao canto de uma praça, que bem depressa as portas se abriam, e, já sorrindo, as crianças voltavam. Todas faziam lembrar a Cristóvão a

Joana da sua aldeia. A essa hora ela devia ser mulher, e talvez, por seu turno, trouxesse

Percorreu então longas terras. E por cidades e campos só buscou, na simplicidade do seu coração, ser útil e bom. Batia à porta das cabanas, perguntava se eram necessários ali dois braços fortes, para todos os trabalhos. Não pedia salário. A côdea menor de pão era a que lhe bastava. E a água tinha-a nos regatos mais frescos. Nenhum serviço por mais, forte, ou vil, lhe custava. Limpava todas as imundícies, com um cuidado piedoso: e pedia sempre para si o maior fardo. Tirava a machada das mãos dos lenhadores, para abater as florestas. Puxava os barcos à sirga. Atrelava-se aos varais dos carros. E se um camponês queria mandar o seu burro à igreja, para ser benzido e libertado de todo o mal, ele carregava o burro às costas, com tanto cuidado como se fosse uma donzela. Se o injuriavam, baixava a face humildemente. Se o espancavam, ficava imóvel e quieto sob os golpes. Se o despediam, apanhava o seu bordão e partia suspirando. pendurada das saias uma criança loura e graciosa como ela fora. Chamava algumas das crianças espantadas, fazia-as saltar sobre os joelhos. Das gelosias as mães sorriam. Já ninguém receava o gigante – e ele, sentindo-se aceite, começava logo a ajudar os trolhas que erguiam uma casa, ou a empurrar um carro atolado nas lamas. Bem depressa todos queriam os serviços daquela força imensa. E era ele que limpava os mercados, caiava as torres de fresco, transportava os fardos, apanhava a neve dos rios no Inverno, regava o pó das ruas no Verão, consertava os telhados, apagava os incêndios – e, sentado à porta dos hospitais, ia enterrar os mortos pobres. Colando a face às altas grades das prisões, consolava os presos, ajudava nos seus trabalhos os forçados, e tendo reunido o seu salário em pão ou em dinheiro, sentava-se num adro, e distribuía-o pelos mendigos.

Ora um dia, saindo de uma cidade, encontrou no caminho um pobre histrião, com uma perna de pau, e acompanhado pela mulher doente, que amamentava o filhinho.

Eram tão miseráveis e tristes, ele com uma espada debaixo do braço, ela suspendendo aos ombros um saco de bolas e peloticas, que Cristóvão começou a caminhar ao seu lado. Assim soube que outrora percorriam os caminhos e as feiras, ganhando amplamente a sua vida, e (desde que ele, numa queda, perdera a perna) mostrando cães sábios e um macaco, que faziam sortes maravilhosas. Havia dias, porém, estando numa taberna, numa estrada, a repousar, tinham chegado os escudeiros e homens de armas de um Senhor, que, embriagados, e numa rixa, lhe tinham, a grandes cutiladas, morto o macaco e os pobres cães. Com eles se fora a sua fortuna. Trabalhar não podia, assim manco. E agora só lhes restava mendigarem, até que o frio, a fome, os prostrassem uma noite, a eles e à criança, mortos à beira de um caminho. E o saltimbanco acrescentava:

«Bem feliz és tu, que te fez Deus tão grande, e te podes mostrar nas feiras ganhando mais que um letrado a escrever!» – Decerto, o saltimbanco o tomava a ele, Cristóvão, por um desses gigantes que se mostram nas feiras. E apenas assim pensara, Cristóvão, com simplicidade, propôs ao saltimbanco que a troco do pão, e da metade do ganho, o levasse a uma feira, para o mostrar numa barraca. O pobre saltimbanco quase chorou de alegria – e logo dali partiram para uma grande feira, que todos os anos, pelo S. Miguel, se fazia junto de uma grande cidade murada.

Chegaram lá de noite, e tendo obtido licença dos guardas para entrar, o saltimbanco foi logo a um desses judeus que trocam dinheiro, pediu emprestado o que era necessário para construir uma barraca, erguer os estrados, suspender lonas vermelhas, e possuir um tambor que anunciasse o gigante. O judeu, tendo examinado

Cristóvão e certo que era monstro de boa mostra e de boa renda, contou, uma a uma, dez peças de prata na palma do saltimbanco: – e, tendo assinado o papel diante do corregedor da feira, o saltimbanco partiu com Cristóvão, a construir a barraca. Toda a noite trabalharam, pregando, martelando, enquanto a mulher do palhaço cosia à pressa uma túnica escarlate para Cristóvão.

Ao outro dia tudo estava pronto, e posta sobre dois postes a grande peça de paninho branco, em que se anunciava o maior gigante e o maior atleta de Navarra e dos

Mundos. Cristóvão, sentado numa vasta caixa que um tapete recobria, esperava, enquanto fora o saltimbanco, tocando tambor, anunciava a maravilha, e a mulher, com cequins de metal nas tranças caídas, como uma moura, esperava diante de um prato de cobre, onde deviam cair as entradas.

A feira era enorme, num vasto prado que defrontava com os muros da cidade. As barracas de lona, de madeira, de tapetes, de ramagens, alinhavam-se em grandes ruas.

No topo dos mastros flutuavam bandeirolas. E homens enfardelados como orientais, mulheres com plumas na cabeça, outras com trajes de nações estranhas, conservavam-se por trás dos balcões, onde, segundo a rua, e os mesteres, se desdobravam panos, reluziam jóias em caixas gradeadas, se perfilavam os frascos de essência, se amontoa- vam as peles, se confundiam as armas tauxiadas. Noutras ruas, sob tendas de lona, havia cozinhas, grandes barricas de cerveja ou de vinho. E os saltimbancos ocupavam um lugar perto do rio, que longos olmeiros assombreavam. Em volta, por toda a vasta planície, era uma confusão de carros descarregados, de pilhas de madeira, de cavalgaduras presas pelas patas, de grandes gigos onde se debatiam aves.

Apenas as portas da cidade se abriram, a multidão começou a encher as ruas da feira, onde a erva desaparecera sob os pés. E bem depressa começou o vozear dos pregões, os brados dos que chamavam fregueses, os atabales tocando à porta das tabernas, as sinetas repicando.

Mas ninguém fazia maior barulho que o saltimbanco coxo, rufando desesperadamente o tambor, diante da tenda onde aquele bom gigante esperava, pensativo. Bem depressa, homens do burgo, mulheres com crianças pela mão, os feirrantes, começaram a entrar, deixando cair uma moeda de prata no vasto prato de cobre. E apenas se levantava a cortina, era em todos os lábios um longo, ah! lento e maravilhado. A barraca era alta, em forma de torre: – e, vestido com uma longa túnica escarlate, bordada a lantejoulas e ouropéis, com um turbante onde ondeavam enormes plumas verdes, um colossal alfange de pau passado na cinta amarela, Cristóvão era, na verdade, um assombro e como um ogro disforme dos contos de fadas. Cheio de timidez, não movia os braços: e um grande rubor invadia-o todo diante daquelas faces atónitas, onde havia terror da sua força, e como uma piedade da sua deformidade. As crianças escondiam-se nas saias das mães: – e os homens, espantados, queriam apalpar a rijeza dos seus músculos. Cada grupo que saía ia contar nas tabernas, espalhar por toda a feira a maravilha daquele gigante. Já uma lenda circulava – e era ele, não outro, que derrotara o imperador da Ocitânia, matara um grande dragão que infestava os Algarves, e, só com a empurrar, derrubara a torre construída pelo Diabo para Roberto de Normandia. Todo o dia uma grande fila esperou à porta da barraca – e à noite sobre o prato de cobre havia um monte de dinheiro esboroado.

Pouco a pouco, Cristóvão habituara-se à multidão – e mesmo, para fazer rir as crianças, fazia esgares, ou agarrava um homem pelas pernas e erguia-o como uma palha ligeira. Depois levantou com dois dedos uma barrica cheia de pedras, torceu com os dentes grossas barras de ferro, e de uma só pancada, com o punho fechado, fendeu uma mó de moinho.

À noite estava coberto de suor: – e enquanto o saltimbanco e a mulher, com a face radiante, faziam as pilhas do dinheiro, ele tomava ao colo e embalava a criancinha, que nos seus braços tinha um sono mais doce.

A sua fama correra no burgo – e o próprio príncipe que ali reinava, e o bispo, vieram em grande comitiva, com cavaleiros e pajens, ver o gigante. Foi grande neles a maravilha. E o príncipe, homem de grandes músculos, queria medir as forças com

Cristóvão, jogando a qual deles vergaria a mão do outro. E diante daqueles cavaleiros, por humildade, Cristóvão cedeu, e deixou que a mão cabeluda do príncipe vergasse a sua. Os cavaleiros aclamavam o Senhor. E o príncipe, radiante, despejou a sua bolsa cheia de ouro nas mãos de Cristóvão, isentou a barraca do saltimbanco de todos os impostos ao corregedor, e mandou, de noite, moços da cozinha com tochas, trazer uma perna de veado e empadões da sua mesa.

Todas as noites, o saltimbanco, partindo o dinheiro, dava a sua metade a Cristóvão

– que ele guardava numa cova, a um canto da barraca, coberto com tinia mó de moinho.

Depois ia pela feira solitária, e todo o serviço era ele que o fazia. Carregava as barricas de vinho, descarregava os fardos, limpava o chão das barracas, e, à porta das cozinhas, fazia a lavagem dos pratos de estanho.

Mas o fim da feira chegara, e uma noite, em que sentia o barulho das barracas que se desmanchavam, o saltimbanco contou os seus ganhos – e as lágrimas bailaram-lhe na face, porque para sempre estava ao abrigo da miséria. Então Cristóvão desenterrou o seu tesouro, e em silêncio veio juntá-lo ao dinheiro do saltimbanco, murmurando: «É para a criança». Duas moedas de cobre tinham rolado no chão. Cristóvão apanhou-as, beijou-as como uma esmola que lhe atirassem, beijou a criança, saiu da barraca. E, tendo comprado uma broa e um pichel de vinho, deixou a feira que se desmanchava.

XVII

Pouco a pouco, a sua bondade ocupou-se dos animais. Também eles sofriam e tinham sobre a Terra o seu quinhão de miséria e de dor. Quando via então um animal carregado, tomava sobre os seus ombros o fardo. Recolhia ossos, pelas esquinas dos mercados, para distribuir aos cães famintos. Era o enfermeiro dos animais feridos, a quem lavava as chagas, onde as moscas se prendiam. Um passarinho, voando, enchia-lhe o peito de ternura. E penetrava nas florestas, na esperança de cuidar dos velhos lobos doentes, ou dos veados que morrem de fome pelos tempos de neve.

Depois, pouco a pouco, na sua alma densa e simples veio a nascer lentamente a ideia de que as árvores também sofriam, bem como as florinhas dos campos. E desde então nunca mais cortou um tronco, para dele fazer um cajado. Todo o ramo, partido e seco no chão, o compadecia. Arredava-se para não pisar a erva. E pelos tempos de seca fazia longas caminhadas ao rio para trazer água, e dar de beber às plantas sufocadas pelo pó dos caminhos. Nas pedras mesmo, veio por fim a suspeitar que podia haver um sofrimento. A picareta que as cortava, as duras rodas que as vincavam, o sol que as escaldava, a neve que as cobria, não lhes fariam uma dor, que elas guardavam na profundidade da sua mudez? E muitas vezes, com o seu vasto corpo, fez sombra às rochas; com as suas mãos, à maneira de longas pás, livrava as pedras das frialdades do gelo.

A sua ternura abrangia o Universo. Por vezes, de noite, olhando o céu, vinha-lhe como um grande amor pelas estrelas. Elas eram claras e puras. Um momento brilhavam,

De novo Cristóvão correu o mundo, servindo os homens. Pelos descampados e pelos povoados, por longos Invernos, por longas Primaveras, correu o mundo, oferecendo os seus braços. Os anos tinham passado, e Cristóvão era mais velho que os mais velhos carvalhos. Os seus longos cabelos tinham embranquecido, e a sua força já não era tão forte. Mas cada dia o seu coração se enchia de uma ternura maior e mais vaga. Por vezes, sentado numa pedra, à beira de um caminho, olhava as árvores, os campos, os montes, e as simples flores silvestres, e sentia então como o desejo de apertar toda a Terra contra o seu peito. Depois pensava que sobre ela viviam tantos miseráveis, tantos humildes, tantos enfermos – e era um desejo de sondar até aos

últimos recantos aquele mundo, e de curar cada dor, matar cada fome, tomar o mundo alegre, são, perfeito. Partia então – e através das estradas mendigava para dar aos mendigos. Colocava-se à entrada das pontes, como um socorro sempre pronto – a ajudar um velho ou a carregar um fardo. O seu desejo seria sofrer ele só todas as opressões, carregar ele só todos os fardos humanos. E por vezes parava, olhava em redor, como procurando, nos vastos horizontes, serviços a prestar, fraquezas a socorrer. Depois pensava que eles, inumeráveis, decerto se apresentariam cedo aos seus olhos. E partia, ficando triste, quando durante o dia os seus braços tinham permanecido ociosos. Para que lhos dera então Jesus tão grossos e fortes? Ia então sentar-se à entrada das pontes, onde a passagem era maior, como uma força pronta a trabalhar, pronta a socorrer. Se era um cavaleiro que passava, corria a buscar água para dar ao cavalo. Se era um carreteiro, ajudava as mulas a empurrar o carro. Se era um mendigo, mendigava para ele. depois partiam. E a Lua que chegava então era tão triste, que um suspiro, sem som, levantava o coração de Cristóvão. Para onde iam assim todos aqueles astros, correndo, correndo? E viera a pensar que seriam almas subindo, subindo nos espaços, mais altas à medida que eram mais puras, ganhando uma légua por cada bondade que realizavam e tendendo assim à perfeição, até se tornarem dignas de se abismar no seio sublime de

Jesus.

XVIII

Cristóvão desceu, apareceu diante dos homens. Todos se juntaram, tirando facalhões do cinto, no terror daquela força e daquela deformidade. Depois, como ele de longe lhes falou com humildade, todos, pouco a pouco, o cercaram, perguntando o que acontecera à ponte que ali havia. Cristóvão não sabia. E então disseram-lhe que aquele era um caminho curto e fácil que havia naquelas terras. Mas tinha aquela passagem ma, o rio tumultuoso. Outrora houvera ali uma ponte de barcas amarradas com correntes.

Mas o rio quebrara as correntes, levara as barcas, como palhas secas. Depois tinham lançado uma ponte de madeira e o rio outra vez levara a ponte. No entanto o Senhor daquelas terras morrera, e tendo elas passado a um outro que vivia nas cidades, ninguém mais se ocupara de fazer uma ponte aos viandantes. E agora ali estavam eles, sem poderem passar, e as mulheres e os filhos esperavam-nos, debalde, nas suas moradas para além dos montes.

Cristóvão, no entanto, olhava a água. E em silêncio mergulhou no rio, e começou a atravessá-lo. A água cobriu os seus joelhos, subiu até à cintura, por fim bateu furiosamente sobre o seu peito, como sobre o pilar de uma ponte. E Cristóvão caminhava. Depois a cinta de Cristóvão saiu da água, depois apareceram os seus joelhos, e a escorrer, ele pôs pé, enfim, nas rochas duras da outra margem, onde um caminho íngreme subia entre fragas. Cristóvão passara o rio.

Voltou, e abrindo os braços para os mercadores espantados, gritou:

– Quem quer passar?

Um mais novo logo se ofereceu. Cristóvão tomou-o sobre os seus largos ombros, em cada braço carregou um fardo, enquanto os outros, ansiosos, rezavam à Virgem.

Cristóvão passou – e do outro lado, o mercador, radiante, fazia grandes gestos aos companheiros, gritava que o gigante era seguro. Então Cristóvão passou os homens, depois os fardos. E por fim agarrando as mulas, que zurravam espantadas, conduziu para o lado de lá toda a caravana, sem que um pêlo dos animais, ou uma corda dos fardos, ou um sapato dos homens se tivesse molhado. Tendo combinado baixo, os homens puseram-lhe na mão um punhado de dinheiro, deram-lhe um rolo de cordas, e deixaram-lhe pão para uma semana.

Logo nessa tarde Cristóvão, examinando aquele lugar agreste, recolheu troncos quebrados, ramarias secas, e calando a madeira na fenda das rochas, arranjou com a corda um longo, estreito telheiro, onde o seu corpo se abrigasse das chuvas e das neves.

Depois, tendo desembaraçado dos pedregulhos o caminho, esperou, sentado na grande solidão, que aparecessem viandantes. Não tardaram a aparecer na outra margem um grupo de frades, que viajavam com o abade, montado numa mula. Apenas os viu,

Assim envelhecia aquele bom gigante. Ora, um dia que caminhava por uma colina entre rochedos, ouviu um rumor de vozes que parecia vir do fundo do despenhadeiro.

Desceu, agarrando-se à ponta das rochas. E viu um largo rio, negro e tumultuoso, que corria espumando sobre as rochas que o cortavam, com um mugido sombrio. À beira dele, estava um grupo de mercadores com os seus machos carregados. E do outro lado, eram rochas, a pique, um monte que se elevava, coroado de negros pinheiros.

Cristóvão atravessou – enquanto os frades, aterrados, lhe faziam grandes acenos, para que se não arriscasse naquelas águas da torrente. Mas quando o viram chegar, enorme, a escorrer água, e com os braços abertos para os receber, hesitaram, pensando ser uma cilada do Demónio. A cruz que o abade traçou no ar, e que Cristóvão repetiu sobre o peito, logo os tranquilizou–murmurando entre si que então, certamente, era um auxílio do Senhor. Um por um, arregaçando o hábito, cavalgaram Cristóvão, e no meio do rio, sentindo a água furiosa bater a cinta do gigante, gritavam o nome da Virgem, Estrela dos Náufragos. Depois, quando Cristóvão os pousava na outra margem, enxutos, era um espanto, e baixando os hábitos, reapertando as sandálias, riam daquela ponte viva que trabalhava nas águas. O abade passou, passou a sua mula. E os frades deixaram a sua bênção ao gigante e um ramo de buxo benzido.

Começou então para Cristóvão uma vida estável, quieta, junto daquele rio. Nas horas em que não havia gente, esperava sentado numa pedra, olhando correr a água, ou então alargava o caminho e construía à beira de água, com pedras, como um cais onde a gente lhe subia para as costas. A cada instante, porém, havia alguém a passar – e como

Cristóvão era já conhecido, os viandantes, do alto da colina, vinham logo gritando: «Eh gigante!» Alguns, mais brutais, se ele se demorava, rompiam em injúrias. Outros, que o vinho bebido nas tabernas da estrada excitava, arrepelavam-lhe os cabelos. Ele, quieto e humilde, fendia as águas. Por vezes era um cavaleiro que, com a sua pesada armadura, lhe esmagava os ombros, e rindo o espicaçava com os acicates. Outras vezes era uma dama que se horrorizava com a fealdade de Cristóvão, tapava a face, e apenas passada para a outra margem lhe fugia das mãos, mostrando o seu nojo. O maior trabalho era com os animais. Havia rebanhos que levavam todo um dia a passar. Os ginetes de guerra, furiosos, mordiam-lhe os braços. E os galgos, latindo, queriam saltar para o rio, entre a indignação dos fidalgos, que atiravam pedras a Cristóvão. Nenhum esforço custava ao bom gigante. Passava os fardos mais duros, grossas barricas de vinho, pedras enormes para a construção das abadias. Passou touros, que iam para um curro de fidalgos. E passou um bando de leprosos, que fugiam de uma cidade, e lhe deixavam sobre a pele o pus das suas fístulas.

Se lhe não pagavam, baixava a cabeça, saudando com humildade. Se lhe pagavam, beijava a escassa moeda de cobre: – e guardava debaixo de uma pedra esse dinheiro, para o repartir com os mendigos.

Assim vivia desde longos anos. A sua cabeça já se vergava, os seus braços já não eram tão fortes. Por vezes, sob os grandes fardos, gemia lamentavelmente. Todos os seus membros estavam como troncos nodosos, inchados pela humidade constante. De todo ele saía um cheiro a vasa e a limo. E as suas pernas, sempre na água, tinham um tom verde, como as estacas de uma levada.

O seu leito de folhas secas era-lhe doce, e quando sentia vozes que o chamavam, era com um gemido que se erguia. Já lhe levava o dobro do tempo a cortar a corrente – e por isso eram constantes as injúrias que recebia. Para se apoiar na água, sentindo que as suas forças diminuíam, teve de fazer um grande bastão aguçado, com um tronco. E cada

Inverno pensava, com inquietação, se a força lhe sobraria para fender a corrente furiosa do rio mais cheio.

Agora, apenas passava os viajantes, logo se vinha deitar. E chegou mesmo a pedir, por caridade, que lhe deixassem um pouco de vinho, para tomar nas noites muito duras, como um cordial que o amparasse. Oh! muito pouco, um pichel somente... Ele, cautelosamente, o pouparia.

Ora uma noite de grande Inverno, em que ventava, nevava, e o rio muito cheio mugia furiosamente, Cristóvão, já muito velho, trôpego, com feridas nas pernas, dormia no seu chão molhado – quando fora, na noite agreste, uma voz pequenina e dolorida gritou: «Cristóvão! Cristóvão!»

Com um gemido, logo se ergueu aquele bom gigante. Abriu o loquete da sua choça. E viu diante de si uma criancinha, pisando descalça a relva, com os cabelos a esvoaçar no vento e na chuva, e apertando sobre o peito, com as mãozinhas, a camisa muito branca que o cobria. Espantado, com lágrimas, Cristóvão abriu os braços.

– Oh meu menino, quem te trouxe?

E tremendo toda, no frio e na neve, a criancinha murmurou:

– Cristóvão, Cristóvão, estou sozinho e perdido, e por quem és te peço que me leves a casa de meu pai!

Já Cristóvão arrancara dos ombros a pele em que se agasalhava, e envolvia nela o corpinho tenro que tremia.

– Oh meu menino, onde é a casa de teu pai?

A criancinha estendeu o braço para o outro lado, onde os montes negros se erguiam. E murmurou muito baixo:

– Além, para além, muito longe...

Mas um espanto tomava Cristóvão. Porque debaixo da pele negra de cabra, de novo a camisinha da criança aparecia rebrilhando na noite negra, toda branca de linho.

Muito humilde, baixando para ele a face, o bom gigante disse, muito humilde:

– Oh meu menino, vem, que eu te levo ao colo.

A criança estendeu os braços pequeninos. Cristóvão com cuidado e docemente a foi pondo ao ombro. Mas, bruscamente, os seus joelhos vergaram, tocaram a rocha, sob o imenso peso que o esmagava. Ah! quanto pesava o menino! Com custo, se firmou nas suas velhas pernas doridas. Desceu, arrimado ao seu bastão, o caminho escorregadio, mergulhou na água os pés – e logo a corrente mugiu furiosamente em redor, atirando a espuma até aos pés da criança. Arquejando, Cristóvão rompeu a água. O vento imenso silvava, e atirava-lhe sobre os olhos, que a humidade embaciava, os seus longos cabelos grisalhos. Ele disse: «Ah! meu menino, meu menino!» A cada passo sentia que o leito limoso do rio lhe fugia sob os pés. Todo ele tremia, firmado no bordão. E a água, toda branca de espuma, empurrava-o furiosamente, com um marulho medonho. Na densa escuridão nada distinguia, nem sabia onde estava a outra margem. Grossas pedras de granizo de repente caíram, e o menino, arrepiado, todo se aconchegava à sua face. Já a

água temerosa lhe chegava ao peito. Tropeçou numa rocha, e, quando se susteve, sentiu a água, furiosa, gelada, correndo a roçar-lhe as barbas. Arrojou o bordão, e com as mãos ambas ergueu o menino ao ar. Mas mal o podia sustentar, grandes vagas já lhe batiam a face. Arquejando, parava para respirar fora da água, e bebia a espuma turva e amarga.

Grossas traves, que a corrente acarretava, batiam-lhe o corpo. Os seus pés rasgavam-se em pedras agudas. E ele, num esforço enorme, os braços esticados ao alto e todos a tremer, sustentando o menino, arrojava o peito para a frente, com gemidos que eram mais fortes que o vento. Duas vezes os seus joelhos fraquejaram, ia cair sob a força da torrente; duas vezes, com um esforço sobre-humano, se manteve firme, erguendo ao alto o menino. A água já lhe chegava pela barba, e a espuma das vagas humedecia-lhe os olhos. E, sempre arquejando, rompia, com as mãos a tremer todas do peso imenso do menino. Mas os seus pés encontraram uma rocha firme, e a água desceu outra vez até ao peito. Na rocha resvaladiça, porém, os seus passos mal se podiam sustentar. E era por um esforço da alma, que se empinava, arquejando. Mas ia saindo do rio. A água já lhe descera à cintura. E o fragor da torrente parecia abrandado e como remoto. Grandes pedras emergiam da água. Já apenas tinha mergulhados os pés, que ele sentia dilacerados. Um esforço mais, e estava na margem, salvo, apertando contra o peito o menino.

Mas, naquele esforço supremo, toda a sua vida se fora. Não podia mais. E já se sentava, exausto, numa rocha, quando o menino lhe murmurou que não parasse, que marchasse ainda, o conduzisse à casa de seu pai. E Cristóvão, arquejando, começou a trepar o íngreme caminho da serra. Uma vaga claridade errava nos altos. E as rochas, os abetos, emergiam da treva densa, que os afogara. Uma frialdade traspassava o ar – e

Cristóvão tiritava, com o seu pobre saião de estamenha encharcado, que ia pingando na terra mole. E mais baixo murmurava: «Ah! meu menino! meu menino!...

Cada vez mais escarpado, entre rochas, se empinava o caminho da serra. E

Cristóvão todo curvado, com os seus cabelos caídos sobre a face e pingando, arquejava a cada passo. Subiria ele jamais até à morada do menino? E uma grande dor batia-lhe o coração, no terror de cair sem força, e a criancinha ficar ali, naquele ermo rude, entre as feras, sob a tormenta. A cada instante tinha de arrimar a mão a uma rocha, desfalecido, de se prender à ramagem de um abeto. E a claridade crescia; já, no alto dos montes, ele via palidamente alvejar a neve.

– Oh meu menino, onde é a casa de teu pai?

– Mais longe, Cristóvão, mais longe...

E aquele bom gigante, agasalhando os pés do menino na dobra da pele de cabra, que o vento desmanchava, seguia com longos gemidos no caminho infindável, que mais se apertava entre rochas, eriçadas de silvas enormes. Por fim, mal podia passar; as pontas das rochas rasgavam-lhe os braços, os longos espinhos, atravessados, levavam-lhe a pele rude da face. E seguia! Já das feridas lhe pingava o sangue, e os olhos emba-ciados mal distinguiam o caminho, que parecia oscilar todo como abalado num tremor de terra. Uma luz, no entanto, mais viva, cor-de-rosa, já subia por trás das linhas dos cerros.

Mas Cristóvão parou, sem poder mais. Com o menino agarrado nos braços, ficou encostado a uma pedra, arquejando.

– Onde é a casa de teu pai?

– Mais longe, Cristóvão, mais longe...

Então o bom gigante fez um prodigioso esforço, e a cada passo, meio desfalecido, os olhos turvos, a cada instante lançando a mão para se arrimar, tropeçando, com grossas gotas de suor que se misturavam a grossas gotas de sangue, rompeu a caminhar, sempre para cima, sempre para cima. Os seus pés iam ao acaso, no desfalecimento que o tomava. Uma grande frialdade invadia todos os seus membros. Já se sentia tão fraco como a criança que levava aos ombros. E parou, sem poder, no topo do monte. Era o fim: um grande Sol nascia, banhava toda a Terra em luz. Cristóvão pousou o menino no chão, e caiu ao lado, estendendo as mãos. Ia morrer. Mas sentiu as suas grossas mãos presas nas do menino – e a terra faltou-lhe debaixo dos pés. Então entreabriu os olhos, e no esplendor incomparável reconheceu Jesus, Nosso Senhor, pequenino como quando nasceu no curral, que docemente, através da manhã clara, o ia levando para o Céu.

SANTO ONOFRE

I

Onofre, desde os vinte anos, vivia no deserto da Tebaida.

A sua caverna de Solitário era no alto de um monte, todo de rocha avermelhada e nua, sem um tojo ou musgo que lhe amaciasse a aspereza: – e decerto outrora abrigara salteadores sarracenos, porque a vasta laje que diante dela se estendia, em eirado, estava cerrada e defendida por um muro de pedras soltas, enegrecidas pelo fumo de labaredas, e com seteiras, como as de uma cidadela. Rudes degraus, escavados na penedia, desciam tumultuosamente a um vale, onde um fio de água, caindo de fraga em fraga, criara um horto de ervas silvestres, tamargueiras, terebintos, três altas palmeiras, e mesmo uma mimosa, que em cada Primavera floria e perfumava o ermo. Para além, depois de grossos penhascos de pórfiro, eram as areias, as imensas areias arábicas, ondulando até ao mar Vermelho, lisas, fulvas, como a pele de um leão.

Cada vez que a mimosa se cobria de cachos amarelos, Onofre, com um ferro de lança encontrado no fundo da sua caverna, entalhava na rocha um risco, como os que seu pai, na sua taberna, em Afrodite, sobre o Nilo, traçava no muro para apontar os anos do vinho mareótico.

Todos os três meses, um monge aparecia, montado no seu dromedário, trazendo em seirões de esparto esses pães de aveia, duros e mais largos que rodas, que os abades dos mosteiros distribuíam pelos Solitários. Sem descer do dromedário, o monge dava a

Onofre o seu pão, bebia uma malga de água fresca, contava a nova considerável de algum édito imperial sobre os Cristãos, de um outro César aclamado pelas legiões, ou de uma heresia inesperada que afligia a Igreja – e partia, desaparecia entre as dunas, curvado sob o seu longo capuz, ao lento badalar dos guizos do seu dromedário. Por muitas luas, Onofre não avistava outra face humana. E a sua vida recomeçava, sempre igual, como a água do seu horto, que, com o mesmo rumor, escorria nas mesmas pedras.

Cada noite, ainda com as estrelas empalidecendo no céu, deixava o montão de folhas secas que lhe servia de leito, atava uma corda em torno da sua túnica de pele de cabra, e ajoelhado, com os braços abertos diante de uma cruz de pau cravada entre duas lajes, no eirado, começava a sua oração, até que ao fundo dos areais já rosados o Sol surgia no céu sem nuvens, já ardente, todo de brasa e de ouro. Direito, então, Onofre entoava um cântico, agradecendo ao Senhor o dia novo. Depois, em obediência ao preceito de Santo Antão, que atribuía ao trabalho tanta virtude como à prece, tomava a sua enxada, o seu podão, o seu balde de couro, e descia, ainda cantando, a trabalhar em baixo naquele horto que a água criara, e que ele alargava, pacientemente, por sobre as areias, para que a Palavra se cumprisse, e o Deserto se cobrisse de flores. Quando o céu pesado flamejava na sua imobilidade, e as ramarias enegreciam como bronze na refulgência ambiente, e a terra lhe escaldava os pés nus, Onofre, esfalfado, sedento, fumegando como um boi na lavragem, subia à sua caverna, desenrolava os rolos de papiro, que continham os Quatro Evangelhos, e encolhido numa tira de sombra, depois de beijar as linhas divinas, mergulhava numa meditação, em que toda a vida do Senhor revivia lentamente na sua alma, e a inundava de doçura, ou a traspassava de dor.

Prostrado, com a face nas lajes abrasadas, orava: – e de novo descia ao seu duro labor, cantando salmos, enquanto a enxada batia o torrão, ou os ombros lhe vergavam sob o carreto de pedregulhos, para que, sem descontinuar, subisse do ermo para o Céu, como um fumo de ara que nunca se apaga, o preito do seu coração.

Lentamente, monte e rochas se tingiam de uma cor rosada, semelhante a um rubor humano: as alturas eram de âmbar fino: nas folhagens, mais leves, e como aliviadas, passava um frémito de asa, um pio fugidio das aves que vinham beber à fonte: – e quando Onofre recolhia ao alto eirado, com a sua enxada ao ombro, todo o deserto, em baixo, até ao mar, rebrilhava como uma lâmina de cobre. O Sol descia por trás de nuvens, que ensanguentava – e era então que o Solitário, aliviando a fadiga num longo suspiro, se sentava, com uma côdea de pão duro e umas poucas de tâmaras no regaço, e a sua cabaça de água fresca pousada junto da cruz. Com os olhos derramados pelas areias imensas que empalideciam, Onofre comia lentamente.

Cada sorvo de água espalhava no seu ser, com a frescura, o contentamento de um dia todo consumido a trabalhar na obra de Deus. E a sua Oração de Graças era tão enternecida, que as lágrimas, uma a uma, lhe rolavam nas barbas poeirentas.

A Lua, curva como uma barca do Nilo, ou redonda e faiscante como a roda de um carro sagrado, roçava o cimo negro da Cordilheira Arábica. Na ravina os chacais uivavam descendo à fonte. Depois, tudo emudecia – e Onofre encostado ao parapeito, embebido na frescura e na paz do luar, sentia, naquele silêncio universal, o bater cansado do seu coração. Mas mesmo esses instantes de repouso os dava ao Senhor – atribuindo somente à sua misericórdia o impulso que o arrancara de entre os homens, e do lodo em que eles se debatem, e o trouxera à pureza desta solidão, onde a eterna verdade se avista tão claramente, como aquela grande Lua, lustrosa e consoladora. No seu reconhecimento, de novo se abatia ante a cruz, e era de joelhos, cantando um derradeiro salmo, que, depois de se arrastar três vezes em torno do seu eirado, Onofre penetrava na sua negra caverna, e se estendia, contente, no seu leito de folhas secas.

Assim, naquela vastidão de areias, que ondulava do Egipto até à Arábia, sob essa imensa curva do céu onde se cansava a asa das águias e dos ventos, se movia aquela forma solitária, única entre tanta imensidade, sempre diligente como uma abelha que faz o seu mel – orando de braços abertos, cavando a terra, folheando o livro santo, trepando os degraus da caverna com o seu odre de água, de rojo nas lajes ante a cruz, entoando da borda do seu eirado um cântico de grande esperança, mergulhando na treva da sua caverna, emergindo ansiosamente dela para voltar à oração, ao labor, ao êxtase, à penitência incansável. Deus olhava – e esperava.

II

Mas como o Solitário ia entrando na perfeição – o Demónio, inquieto com o Santo novo que surgia, correu ao ermo: – e desde então começaram na alma de Onofre os sustos, as surpresas, os ruídos, os combates de uma cidadela cercada. O cenobita com quem ele ao princípio habitara no deserto de Cétis, o velho Apolónio, que transpusera um cento de anos, e só conseguia caminhar com as mãos no chão, muito Longamente o instruíra sobre as artes múltiplas e ondeantes de Satanás, que invade os corações, menos pela força e despedaçando, que por uma penetração de horrenda, abominável doçura. E, todavia, tão serenos e seguros foram os seus primeiros tempos no Deserto, que Onofre, como uma sentinela que vê em torno a planície só coberta de espigas e luz, e se encosta

à lança e adormece, deixara o Inimigo penetrar no seu ser, com a facilidade de uma cobra que escorrega entre as tábuas mal juntas de uma cabana. Ainda ele, cada dia, ao escurecer, repousando à borda do seu eirado, com os olhos afogados nas estrelas, agradecia ao Senhor aquela doce misericórdia que caía na sua alma como uma fonte de leite – e já a Serpente bebia desse leite. O arbusto dá o perfume da sua flor, e não sente o verme: – Onofre não sentia o Demónio deteriorando a raiz da sua perfeição. Era então apenas nele, a essa hora de silêncio, de estrelas, uma recordação tão doce da cidade de

Afrodite e da taberna de seu pai, que a cabeça lhe pendia contra a rocha e cerrava as pálpebras para reter, mais perto da alma, essas imagens, inesperadamente belas, de arvoredos, e casas alvejando entre os arvoredos, e alegres rumores humanos.

A taberna de seu pai era no bairro grego de Afrodite, junto à Porta das Areias, à orla de um bosque de mimosas e sicômoros que, por sobre uma colina mais alta que as muralhas, se estendia até um pequeno santuário de Esculápio.

Por aquele lindo bosque acompanhava ele sua mãe – que era grega, das ilhas

Egeias – quando ela, já pálida, consumida pelos ardores do Egipto, ia suplicar a saúde ao deus helénico, o claro ídolo de barbas douradas, e derramar sobre a sua ara o puro azeite da Ática, que ele levava na mão numa infusa pintada. Era sempre de madrugada, quando, nos vergéis do Santuário, cantavam os galos votados a Esculápio.

Do lado das muralhas, onde se aquartelava a Legião Germânica, vinha o som

áspero e grave das tubas, que o faziam pensar em marchas triunfantes por países bárbaros e altas cidades cercadas. E sua pobre mãe parava cansada, com a mão transparente contra um tronco de árvore, respirando o aroma esparso de violetas entre a relva, que lhe lembravam a doçura da sua pátria.

Por aquele bosque também todas as tardes, com a sua infusa de greda sob o manto de linho, descia, a buscar à taberna cerveja da Cilícia, ou vinho mareótico, o velho

Amónio, o arquivista do Santuário, que lhe ensinava as letras, os números, certos ditames da música, as divisões do Império Romano, e mesmo, sobre uma esfera feita de verga fina, o caminhar das estrelas. Bom Amónio, que sempre o amara, lhe admirava tanto a inteligência, e mesmo aconselhava a seu pai que o mandasse estudar, às escolas de Alexandria, a Gramática e a Retórica!

Nem todos os pagãos, decerto, pertencem ao Inferno. Aquele era simples, doce, humano – e esfarelava sempre, na taberna, sobre o chão areado, um pouco do seu pão para as andorinhas e os íbis...

Assim Onofre cismava e recordava, à porta da sua caverna, entre as rochas, envolto pelo Deserto. E como hóspedes bem acolhidos em casa aberta e farta, que voltam contentes, trazendo outros camaradas – estes pensamentos invadiam cada noite a alma do Solitário, arrastando outros, mais ligeiros, mais cheios de rumor e da alegria do mundo que ele abandonara. Todos vinham sempre daquela taberna do Galo, tão clara e fresca entre os sicômoros. Como ela era asseada e bem regulada! Junto da porta estava pendurado o longo azorrague para os servos que não estendessem, bem finamente, pelos pátios, a areia vermelha entre as sebes de rosas – ou que não esponjassem cada madrugada, sobre os muros caiados de amarelo, o sulco fumarento das lâmpadas; mas, na verdade, só sobre o açoite se amontoava o pó, tanta era a diligência e a ordem.

Nenhum pão se amassava em Afrodite mais ligeiro, e branco, e doce, que o do Galo! E para comer as ostras de Canópia, que todos os dias chegavam pelos barcos do Nilo, em grossas caixas forradas de limo, vinham lá mercadores ricos, e até sacerdotes – porque os que servem os Ídolos são sempre vorazes. Também os gregos, naquele bairro novo, escolhiam sempre o Galo para rematar, à noite, com danças, as horrendas festas dionisíacas. Quantas vezes, antes que a Verdade o penetrasse, ele ajudara culpadamente a pendurar lanternas no largo, espalhando sicômoro, que assombreava o pátio, do lado das muralhas. Ao escurecer, os místicos apareciam, em bando, moços e raparigas, de volta do templo, coroados de hera e choupo, disfarçados com máscaras, embrulhados em peles de bode, cantando os hinos de Iacos. Os servos subiam logo da adega, segurando pelas asas um vasto cântaro de vinho novo. Caraças e peles eram arremessa-das para junto das mesas, armadas sob o velário de esparto, cobertas de azeitonas, de bolos de mel, de frutas em cestas, e de gelo que rebrilhava. Todos corriam a refrescar as faces, esbraseadas e cheias de pó, na larga piscina ao lado do alpendre dos dromedários.

Dois moços dos mais ágeis, então, dançavam a pírrica, erguendo vasos à maneira de escudos, e brandindo, como lanças num combate, os tirsos de mirto e rosas. Depois o cântaro enorme de vinho era arrastado para o meio do terreiro, coroado de flores – e todos, de mãos dadas, rapazes alternando com as moças, a força entremeada à graça, bailavam, ao som triunfal das flautas e dos crótalos, a coreia sagrada, gritando: «Iacos! sê connosco!» Delírios abomináveis! Mas, no dançar daquelas pagãs, votadas aos fogos do Inferno, mais brancas que mármores, e com formas impuras de deusas, quanta arte perversa, e quanta beleza!

Uma sobretudo, Glicéria, que era filha de um gravador de pedras finas, e morava tão perto do Galo que ele a sentia cantar, fiando, sentada à beira do seu eirado, ou pendurando nos ramos do limoeiro as roupas do irmão pequenino! Muitas vezes, passando pela sua porta, de madrugada, vira sobre ela, traçados com gesso, louvores à sua formosura, e à graça do seu andar: – Glicéria, por ser a mais bela, inquieta Vénus!

Os teus pés, oh Glicéria! correriam sobre lírios sem lhes macular a pureza! – E ele corava indignado, como se surpreendesse um ultraje. Tinha então quinze anos – ela vinte: e quando a avistava à beira do terraço, ligeira e branca, com o irmãozinho no colo, uma melancolia sem razão, doce como o crepúsculo, descia sobre o seu coração. A

última vez que a encontrara fora nessa manhã, em que ele subira ao templo de

Esculápio, para se despedir do velho arquivista, seu mestre.

Era à hora da sesta – e em torno do Santuário, branco e lustroso, o bosque sagrado repousava no esplendor do sol de Agosto, sem um murmúrio de ramagem, abrigando aqui e além, na sombra fresca, alguma nudez de estátua, que rebrilhava.

E no silêncio, o gotejar dormente das águas lustrais sobre as bacias de pórfiro, o arrulhar fugitivo de uma rola, eram ainda como rumores religiosos, cheios de gravidade e doçura.

O vasto Esculápio, sobre o seu altar, no alto das escadarias de mármore cor-de-rosa, sorria beneficamente na sua barba dourada, encostado ao seu bastão onde se enroscava uma cobra de bronze. Numa gaiola de cedro as duas serpentes rituais, gordas, mosqueadas de amarelo, dormiam com beatitude, enroscadas sobre fofas lãs de Mileto.

A um canto, na sua cadeira de marfim, o sacerdote de serviço dormia também, com as mãos, resplandecentes de anéis, pousadas sobre o ventre, e uma ponta do manto de linho estendida sobre a face, suada e nédia. E na ara de bronze, coberta de brasa, um fumo leve, e lento, e direito, e perfumado, subia como uma prece contínua e serena. À espera do seu mestre, ele passeava na frescura dos pórticos, entre as colunas de mármore, cobertas de estelas votivas, e de cachos de mimosas, abafando, sobre as lajes bem lavadas, o ruído das suas sandálias–quando ela apareceu na longa avenida de palmeiras.

Lenta, pensativa, com as mãos embrulhadas no véu leve cor de açafrão, que lhe pendia dos cabelos, ela veio caminhando, pela tira de sombra, até à escadaria de mármore, que os seus joelhos tocaram, levemente. E os seus olhos, que ergueu vagarosamente para o

Deus, e onde uma lágrima bailava, eram como duas pedras preciosas refulgindo sob

água. Depois, com a mão que desembrulhara do véu, deixou cair na ara um punhado de incenso. Contemplou um instante o fumo aromático que envolveu a face do ídolo – e desceu a avenida, com passos lentos, e pesados de cuidado, sob a sombra estreita das palmeiras. Ela resplandecia de saúde e viço. Para que ser bem-amado viera pois implorar o seu Deus? Longe, sob as árvores, o seu véu, colhido num raio de Sol, reluziu como ouro. E ele não a vira, nunca mais...

Ora uma noite que assim cismava, com a cabeça encostada às rochas, sentiu perto como um rumor de sandálias, e um aroma lento de incensos. Abriu os olhos, num espanto – e no sítio da sua negra caverna alvejavam os mármores do templo, Esculápio sorria nas suas barbas douradas, a ara fumegava docemente, e Glicéria, sem véus, estendia os braços! Mas era para ele, não para o Deus, que estendia os braços supli- cantes e nus. Sob a túnica, mal franzida, o seu seio arfava, como num desejo que anseia e se retém. Toda ela sorria, com as pálpebras pesadas. E o calor do seu corpo radiava através dos tecidos leves.

Tão viva e real era aquela presença que Onofre, a tremer, murmurou: «Que queres?» E já se erguia, as suas mãos mergulhavam naquelas brancuras de carne e mármore – quando tudo subitamente desapareceu, como sorvido pela boca negra da caverna. Onofre, então, com imensa tristeza, reconheceu que o Demónio penetrara enfim na sua solidão. Aquelas recordações dos antigos dias, que julgara mandadas por

Deus, para que ele agora, vivendo nas delícias da verdade, as contemplasse com o salutar horror com que o homem, um momento transviado, considera as nódoas de vinho na túnica que de si arrojou – eram trazidas pelo Demónio, que as embelezava, para que o que nele restava ainda de humano e carnal se prendesse à sua doçura.

E com efeito ele estremecera, suspirara... A sua alma, pois, que fechara toda dentro de Deus, não estava ainda bem segura!

Rojado nas lajes, com os braços lançados em torno da cruz, Onofre toda a longa noite implorou, ao Senhor, fortaleza.

III

O mais doce desses, era o do bom Amés, um escravo núbio, que seu pai comprara a um bando de sarracenos nómadas, e que, tendo percorrido a Arábia, e a Mauritânia, e a África até ao país dos Garamantes, lhe contava, na sua infância, maravilhosas histórias de guerras, de leões, de povos temerosos, e de tesouros escondidos em cavernas. Seu pai, desde que findara a perseguição de Diocleciano, costumava alugar dromedários aos cristãos de Alexandria e do Delta, que subiam o Nilo até Afrodite, em peregrinação aos mosteiros da Baixa Tebaida. Amés que conduzia, como cameleiro, essas caravanas piedosas, adorara muitos deuses, porque servira muitos amos. Mas, desde essas primeiras jornadas à Tebaida, reconheceu, e compreendeu o Deus verdadeiro, através da bondade e da caridade, tão novas para ele, desses doces cristãos, pacientes e piedosos, que lhe ajudavam a arrear os dromedários, lhe tiravam dos pés os espinhos ou as lascas de conchas, partilhavam com ele das suas porções de lentilha e de azeite, e, sob a tenda, diante das fogueiras, ou pelas sestas, à beira dos poços, o chamavam, lhe abriam lugar, como a um semelhante e a um irmão. As águas inestimáveis do Baptismo tinham, enfim, banhado resgatadoramente o seu miserável corpo de escravo, mais lustroso que o

ébano e todo coberto das cicatrizes do açoite e dos ferros.

O bom Amés, desde então, resplandecia de contentamento e paz. E fora esse pobre servo, resgatado na alma, que lhe contou desse Deus novo que nascera humildemente num curral, errava pelos caminhos da terra com os pés nus, e cercado de pobres, ensinava a Caridade, e a Bondade, e a Humildade, parava à porta dos casais a beijar as criancinhas, e quisera morrer, por amor dos escravos, numa cruz, como um escravo.

Era sempre de noite no cubículo em que ele dormia, sob o alpendre dos dromedários, que o bom Amés, agachado numa esteira, com os olhos a reluzir como estrelas, lhe desenrolava esta história maravilhosa – a daquele grande Reino celeste, além das nuvens, para onde todos aqueles que amassem Jesus e cumprissem a sua doce lei, iriam, logo depois da morte, sem demora, começar uma vida incomparável, toda feita de delícias, entre vergéis de cristal e ouro.

Como uma sentinela desconfiada, à porta de um castelo, ele vigiou então severamente os pensamentos que se lhe apresentavam vindos do seu passado, e só recebeu aqueles que traziam a marca luminosa da Graça.

E ele, a estas revelações de Amés, sentia na sua alma um rumor, um brilho de claridades, e a frescura de um ar mais puro, como se ela fosse uma casa muito tempo fechada e abafada, onde alguém, bruscamente, e uma a uma, abrisse as janelas à brisa e ao sol da manhã.

Que alvoroço, então, quando aparecia na taberna, conduzida pelo gordo Basílio, diácono da igreja de Afrodite, alguma pequena companhia de cristãos, que desembarcava e vinha apreçar dromedários! Até esse dia sempre se afastara deles, num vago susto, uma desconfiança que lhe ficara do tempo em que sua mãe lhe contava que os Cristãos «comiam criancinhas embrulhadas em farinha» e para lhe abafar os choros e as perrices, murmurava apontando para a porta: «Cala, filho, cala, senão vêm os

Cristãos que te comem!»

Mas depois! Mal eles apareciam, corria, mais reverente que nenhum servo, para os aliviar das trouxas e das bagagens, e acarretava alegremente a água para as abluções, e estendia tapetes sob os pés dos mais velhos, atento aos seus menores movimentos como a actos consideráveis de santidade. Quando seu pai, tomando as lâminas de chumbo, e o estilete, começava a somar as despesas, ele corava, tremendo da sua cupidez. À Porta das Areias, esperava longas horas, entre os publicanos, o regresso das caravanas. E se ao chegarem, algum dos peregrinos cristãos, poeirento e tisnado dos sóis, o reconhecia, lhe acenava logo, sorrindo do alto do seu dromedário – o seu coração batia de alegria e de orgulho.

Depois, nessas noites, no seu cubículo, não se fartava de escutar o bom Amés, contando as marchas e os repousos, e os mosteiros florindo no Deserto, e as novas façanhas dos grandes Solitários – Múcio, para que os seus discípulos se abrigassem, fazendo reverdecer uma acácia seca, ou Pacómio, para atravessar o Nilo, acenando a um crocodilo e montando sobre o seu dorso! O desejo de acompanhar também as caravanas, e testemunhar tão doces maravilhas, foi então, na sua alma, mais imperioso e ardente que uma longa sede num areal deserto. Mas essa sede, de que sofria, com quanta pressa e misericórdia lhe contentaria o Senhor?!

Dois monges da Síria, Germano e Cassiano, tinham então, depois de uma longa peregrinação pela Nítria e Deserto Líbico, chegado a Afroditopólis para tomarem dromedários, e visitar os mosteiros da Baixa Tebaida, até Colzim e o mar Vermelho. E seu pai que desejava então contratar com os abades desses mosteiros o fornecimento de trigo, e óleos, e lãs, determinou, de repente, que ele partisse nessa caravana dos dois monges sírios, levando cartas de Arquébio, bispo de Pafenísia. Que surpresa, que alvoroço! João Cassiano e o seu companheiro eram do país dos Citas, mas polidos por uma longa residência na Ásia Menor, e ambos homens de grande saber e doçura. E quando naquela primeira noite, em que acamparam junto às grandes serras de onde se tira o mármore vermelho, ele, tremendo, suplicou a João Cassiano que tomasse a sua alma para a conduzir à Verdade, foi como se, pela primeira vez, soubesse o que era a ternura de um pai. O incomparável jornada, em que cada passo, mais gostoso que o de um triunfo, o avizinhava do Céu!

Então conheceu inteira, e mais verdadeira do que lha soubera ensinar o bom Amés na sua simplicidade, a Lei de Jesus: – e a fé penetrou no seu coração, com a certeza e o fulgor de uma espada. O céu não era mais luminoso do que a sua esperança, naquela madrugada em que avistaram o mosteiro de Cétis – e as três palmeiras que estão à entrada, tendo cada uma, pendente dos ramos baixos, disciplinas de corda, de couro e de ferro, porque a sua regra é austera. A buzina do velador, que observa as estrelas na torre da igreja, acorda de noite, de hora em hora, os monges para que eles rezem, de pé, nas suas cabanas, estreitas como esquifes, sem porta, apenas guarnecidas de uma grade baixa contra os escorpiões. De dia cada um permanece isolado na sua cabana, encruzado sobre um montão de folhas de papiro, que lhes serve de leito, a rezar sem repouso, a trabalhar sem repouso – tecendo esteiras, copiando evangelhos, cosendo odres, polindo

ágatas. Ao declinar do Sol, o despenseiro vem colocar silenciosamente, a cada porta, um pão duro. Então, no ar mais fresco, passa o lento, longo suspiro daqueles penitentes, que enfim descansam. No curto crepúsculo, com os braços ociosos, eles contemplam, da abertura avara das celas, os altos montes que cercam o mosteiro, e o Céu que é o cuidado das suas almas. À noite, os chacais uivam nas quebradas. Na escuridão de cada cela há gemidos, e o silvar dos azorragues. Depois tudo emudece: – e dois monges dos mais velhos, sumidos nos seus capuzes, rondam através do mosteiro adormecido, com lâmpadas e grandes cruzes, para afugentar os Demónios, que sob formas horrendas ou formosas, àquela hora invadem o ermo. Oh! a regra é dura – mas como ela dá contentamento e paz infinita a todas aquelas almas, por sentirem tão certo e vizinho o

Paraíso!

Por isso ele, depois de receber o Baptismo, em dia de Páscoa, e ter comido o bolo de mel, e revestido a túnica de inocência, suplicara, em lágrimas, ao velho abade

Serapião, que lhe concedesse uma cela para viver entre os seus monges, no trabalho perpétuo, na perpétua oração... Mas o bom abade não consentira – porque a sua fé era recente, o que um sopro levanta um sopro o abate, e só almas experimentadas em maior aspereza e solidão podiam recolher, nas doçuras espirituais daquele mosteiro ilustre, o preço da sua fortaleza.

Então, por conselho de Serapião, ele penetrara mais longe, no Deserto, para além da Planura dos Carros, nas agrestes serranias que se alongam até Colzim. E aí fora servir um velhíssimo Solitário, a quem o derradeiro discípulo fugira, com um bando de sarracenos, para remergulhar no Pecado. Nilo era o nome desse Solitário espantoso, que tinha cento e vinte e três anos, e já não podia caminhar senão de rastos com as mãos sobre as pedras.

Tão longa e alta fora a sua penitência, naquela solidão, durante um século, que não temia Deus, nem orava – e, como um obreiro que findou a obra, apenas se contentava em olhar o céu, silenciosamente, à espera do seu salário. Durante três anos que servira aquele Santo terrível, nunca dele recebera um sorriso, uma consolação, um amparo – porque de tanto viver na solidão arenosa e pedregosa, aquela alma ganhara a secura das areias e a rigidez das serranias. Mas se ele, entre duas longas orações, estendia mais o seu repouso, ou se retardava à beira do poço salobre que lhe dava a água

– logo os olhos do Solitário, aqueles seus olhos pequeninos e rebrilhantes entre densas pestanas brancas, o traspassavam numa repreensão muda e dura. Ah! ele nunca decerto compreendera aquela virtude medonha!... A fama da sua velhice, da sua santidade, invadira todo o Egipto. Dos montes e das cidades acudiam monges, acudiam mesmo pagãos, para o visitar, uns na admiração de tão espantosa penitência, outros na esperança de serem por ele curados de feridas e males. O terrível velho, porém, nem sequer consentia que eles se aproximassem da sua caverna: – e um dia mesmo tentou arremessar contra um mais ousado, que lhe queria tocar o corpo ou a túnica de pele, uma pedra que o seu braço já não pôde erguer. Era de longe que os peregrinos o contemplavam – enquanto, sentado no chão, com os olhos baixos ou perdidos no céu, e tão alheio àqueles homens como se fossem as pedras do seu Deserto, bocejava com lentidão, ou metia a mão por entre a túnica para coçar sobre o peito, e sobre os rins, as feridas incuráveis que lhe deixara o cilício. Enfim uma madrugada, indo ele junto do monte de folhas secas que lhe servia de leito para o ajudar a erguer, encontrou o

Solitário morto! Morto, como adormecido, na postura de uma criancinha, com a mão sob a face, os joelhos junto do peito, tão pequenino, que as ervas secas do leito eram mais longas: – e a sua face, tornada cor-de-rosa, sorria com serenidade.

Por suas mãos o enterrara na areia, junto da grande cisterna: – e quando a cova ficou bem coberta com pedras por causa das feras, ele sentiu penetrar na sua alma o heroísmo penitente do velho Solitário. Era como se tivesse herdado aquela alma formidável, que se reunira à sua e lhe comunicava a sua fortaleza invencível. Trans-portado numa imensa esperança, apeteceu ansiosamente, também, uns cem anos de

Deserto, e de oração, e de mortificação, e o seu nome espalhado por todo o Egipto cristão, e uma morte igual, com a mão sob a face, sorrindo, e tão pequenino que coubesse nos braços de um anjo! Recolheu então a túnica de pele que usava Nilo, e o seu rolo da Escritura, e o seu bordão, e a sua cabaça, e avançara pelo Deserto, para o lado do oriente e do mar. O seu sustento todo fora um pão trazido da caverna do velho: para evitar que um bando de nómadas o levasse como escravo, estivera uma noite inteira agachado, enterrado nos lodos fétidos de uma lagoa: lutara, às pedradas, contra as hienas; uma planície de sais, grossos e cortantes, retalhara-lhe os pés; marchando sob o sol, chorava de sede, contente de chorar porque bebia as lágrimas... E sob estas angústias e terrores da carne, a sua alma resplandecia, certa de que cada sofrimento era um degrau subido na longa escadaria do Céu. Por fim, uma madrugada, avistara aquelas palmeiras ramalhando ao vento, e a mimosa em flor, e no alto, aberta, como se o esperasse, a caverna.

Com que felicidade a visitara, e toda a serra de rocha em rocha, e a fonte clara e fria que cantava no vale, e os arbustos que a ensombravam! Oh maravilhosa granja, em que era escravo, para viver sozinho com o seu Senhor! Todo esse dia cantara cânticos de

Graça. E desde que ali habitava – já três vezes a mimosa se cobrira de flores!

Assim rememorava Onofre agora, cada dia, o seu passado piedoso. E sempre emergia desta meditação com um contentamento maior, mais vivo, pela sublime obra que empreendera.

Ela era magnífica e rara entre os homens. Os monges de Tebane, de Cétis, da

Nítria, do lago Maria, viviam nas doçuras da comunidade, e viam girar, no alto das colinas, os moinhos que lhe moíam a farinha, e se as febres os assaltavam, o irmão sabedor das artes médicas corria com o seu frasco de óleo e o molho de plantas salutares. Os Solitários não se afastavam das cercanias do mosteiro, ou do Nilo, que é a rica, populosa estrada do Egipto. Antão mesmo! O velho túmulo em que se enterrara vinte anos, estava a dois dias de Afrodite, no caminho das caravanas. Mas ele! mais solitário que todos os Solitários, habitava os confins do mundo. A ocidente eram léguas sem fim de areias e rochas; a oriente, o mar estéril: e só ele, naquelas solidões pavorosas, lançando o seu cântico perene para o Céu. Por isso também o olhar de Deus o distinguiria mais claramente, assim destacado e único, naquela imensa extensão de terra.

E depois com que facilidade ele abandonara o mundo, e os homens, e todas as alegrias da humanidade! Um pobre escravo, simples, inculto, conta-lhe um dia desse

Deus novo que nascera em Galileia – e eis que ele sacode de si, como uma velha sandália, crenças, e afeições, e as riquezas de seu pai, e as promessas surpreendidas nos olhares das mulheres, e logo se dá inteiramente e para sempre, e parte, e penetra nas solidões, para servir e amar em silêncio esse Deus, ainda mal conhecido e indistinto, como uma estrela entre nuvens! Onde houvera aí fé mais pronta e mais confiada?!

Por isso também Deus, reconhecido, lhe dera aquela serenidade em que ele vivia, já havia três anos, sem saudades que o pungissem, nem terrores que o arrepiassem, seguro naquelas bravias serras, como um rei no seu palácio.

Oh! sem dúvida, o olhar de Deus estava sobre ele, e todo o envolvia no seu esplendor sublime; e o Demónio e o seu sopro mundanal não podiam transpor, nem sequer roçar aquela Graça que o defendia.

Ora uma noite que ele assim pensava, sentiu como o deslumbramento de uma claridade – e erguendo os olhos, viu, entre a treva rasgada como um pano, uma vaga nuvem refulgente, de onde Jesus, debruçado, com a sua cruz entre os braços, espreitava para baixo, para a terra do Egipto.

E, oh dor! não era para ele, único e tão visível, naquela grande solidão, que se voltava e sorria a face do Crucificado – mas para além, para o lado das cidades, para uma multidão que se agitava, miúda, e escura, e ínfima, como um formigueiro, entre searas e muros!

Atirou os braços ao céu, gritou desesperadamente:

– Oh meu Senhor, estou aqui, teu servo no teu Deserto!

Mas, entre as sombrias cortinas que se cerravam, a face do Senhor desapareceu, desatenta, como se para ele não houvesse nem servo, nem deserto! E tudo recaiu em mudez e treva.

Então, com os cabelos eriçados de horror, Onofre compreendeu que aqueles pensamentos em que se comprazia, como se fossem flores da sua Piedade, eram subtis rebentões do seu Orgulho. Numa lacrimosa oração, prometeu ao Senhor repelir da sua alma todos os pensamentos do passado, pois que todos eles, mesmo os da sua doce ascensão para as Verdades, traziam consigo a mácula do mundo, como raízes que, ou sejam de planta salutar ou de flor venenosa, vêm sujas do lodo negro em que mergulharam.

E para maior humildade, selou a sua promessa com o sangue que as disciplinas toda a noite lhe arrancaram do corpo.

IV

Então, lentamente, foi nele nascendo o espanto, depois o terror da sua solidão.

Arrepiado, ele recordava as histórias outrora ouvidas no Galo a Amés, a velhos cameleiros das caravanas entre Berenice e a Líbia, sobre as gentes medonhas, as feras que povoam aquela região, a mais bravia de toda a terra. Pelas bordas do mar, erram as horrendas tribos troglodíticas, que não têm deuses, nem leis, se nutrem de peixe cru e das cobras dos rochedos, bebem sangue, possuem em comum as fêmeas felpudas, e saem de rastos dos seus covis de lama, para uivar à Lua. Ali, naqueles descampados, vive a mais pavorosa das feras, o touro-sarcófago, que come a carne humana, é cor de fogo, expele um bafo que resseca as plantas, e, alternadamente, deixa pender os cornos como membranas moles, ou os enrista para o ataque, tão agudos, e longos, e duros como dardos de ferro! Mas, terríveis entre todas as feras. eram essas serpentes do Deserto

Arábico, tão compridas e grossas, que em repouso, e quando fartas, fazem na planície como uma colina de roscas e escamas, onde luzem no cimo, e se avistam de longe, as

Então, para que esses pensamentos da sua vida entre os homens não lhe turbassem a alma, Onofre, na curta hora de repouso, ao escurecer, forçava os olhos a contemplar, uma a uma, as aparências do seu Deserto. Imóvel, à beira do seu eirado, considerava longamente as formas e as semelhanças das rochas – umas escarpadas, lisas, como muros de cidadelas, outras agudas, avançando na sombra crepuscular como proas de galeras encalhadas, outras redondas, em montão, de um alvor fúnebre, como crânios que restassem de uma antiga, esquecida matança. Meditava as serras que se estendem para o sul, a sua aspereza e nudez, os antros que decerto as escavavam, e os fundos barrancos, mudos, abafados em treva. Mais longe seguia a infindável lividez do areal, ondeando à maneira de um sudário onde o vento fez pregas, até às orlas de um mar bravio, que não se avistava... E para além das areias, e das rochas, e dos montes, havia ainda outros montes, e penedias, e dunas, e pântanos, e solidões, que o separavam dos homens. duas brasas dos seus olhos... E era no meio de serranias, povoadas por estes monstros, que ele vivia, desamparado.

Então, desvairado pelo medo, começou a fortificar, como na véspera de um assalto, o largo eirado, onde se abria a sua caverna. Em longos dias de suado trabalho, conseguiu rolar um penedo para defronte dos rudes degraus, que desciam para o vale e para o horto. E apenas reconheceu a inanidade da sua obra! Selvagens e feras podiam descer sobre ele dos cumes do monte, que do lado do sul se ligava, por um dorso fácil, a outras serras, aos areais. Recomeçou: arquejando e gemendo, acarretou grossas pedras para a boca da sua cova, onde todas as noites erguia laboriosamente um muro que, cada madrugada, desfazia. Mas, assim emurado, ainda não sossegava. Constantemente, silvos, mugidos, o rojar de pedras sob patas moles, sacudiam, sobressaltavam o seu dormir ansiado. Certo bater de asas, sobretudo, semelhante a grossos tapetes que se sacodem, tornava agora a cada instante sonoro aquele ar tão mudo e limpo do seu

Deserto: – e ele não duvidava que fossem essas horrendas aves, de face humana, que assaltam os viajantes solitários, os embrulham nas asas felpudas, lhes chupam o sangue.

Quantas vezes ele ouvira contar a Amés como dois soldados da Coorte, estacionada em

Fulacon, para escoltar as caravanas da Líbia, tinham sido devorados por estes vampiros!

Uma noite sentiu desabar, com estrondo, o muro que fechava a sua caverna. Até que a madrugada clareasse, não cessou de tremer, agachado num recanto, com os cabelos eriçados, e o rolo do Evangelho aberto diante do peito, como um escudo. Que valiam, com efeito, pedras, mal postas sobre pedras? Só do Senhor devia esperar a defesa que nenhuma força derruba.

E não tornou a erguer aquela vã e frágil parede. Diante da caverna, plantou a cruz de madeira. Mas o deserto parecia agora cheio de rumores e de formas. Cada hora de escuridão se tornou um imenso pavor.

Com que inquietação ele via descer, ao longe, sobre os desertos da Líbia, o Sol, que era a sua protecção! Não se sente mais desamparada uma criancinha que a mãe abandona numa estrada escura. Apenas a sombra se estabelecia nas quebradas, e toda a cor se apagava sobre as rochas, começava, em torno do Solitário, o mover e rumorejar de uma vida tenebrosa e disforme. Bafos mornos e fétidos passavam logo sobre a sua face: tropéis de patas, o duro entrechocar de cornos, roncos ásperos, estalidos de galhos que se partem, não cessavam na treva densa: longe, no areal, corriam, volteavam, clarões de fachos, guedelhas sacudidas no ar, e panos lívidos como sudários; – e até lhe parecia que os montes se mexiam, como dorsos cansados que se estiram. Debruçado da sua esplanada, ele distinguia então o lento ondular de alguma serpente, cujas escamas raspavam as rochas: mais grossa que um tronco de cedro, ela avançava, silvando, colava a cabeça à alta escarpa do seu monte, e lentamente, viscosamente, subia, crescia tão perto, que as duas brasas dos seus olhos lançavam sulcos escarlates no rochedo. Com um grito, Onofre recuava, para se esconder na sua caverna –e surpreendia então alguma anca negra, uma cauda felpuda, desaparecendo pela abertura baixa. Cercado de monstros, caía no chão, a arquejar, esperando a morte, numa derradeira oração ao

Senhor: – e quando erguia a face, tudo reentrara em imobilidade e mudez, e uma estrela luzia no céu, com serenidade. Mas o seu repouso não durava; outras visões surdiam logo da sombra inesgotável.

À beira da escarpada rocha onde se abria a caverna, no alto, começou, durante longas noites, um silencioso e confuso mover de larvas que se recortavam, nas suas formas diferentes, com uma cor lívida, sobre a negrura do céu. Eram gordas massas rastejantes, esguias figuras semelhantes a obeliscos, pescoços que se torciam no ar como fitas ao vento, tendo na extremidade uma cabeça guedelhuda... Em baixo, no meio do eirado, Onofre tremia, esperando a cada instante que elas se precipitassem, se abatessem sobre o seu corpo misérrimo. Mas nenhuma se descolava da borda da rocha, no seu perpassar incessante e mudo: apenas por vezes um longo braço mole escorregava, pendia, raspando a pedra com garras ásperas; ou uma longa asa se espreguiçava por sobre a cabeça do Solitário, muito no alto; ou uma face horrenda se debruçava, a espreitar, com a língua pendente e cor de fogo. Se ele se refugiava na caverna, sentia por cima, como se a densa massa de rocha fosse apenas um soalho ténue, o pesado tropel de patas moles – e pelas rachas da abóbada, de repente, caía uma ponta de rabo que se torcia, ou descia um dedo com uma longa unha de ferro. Todo o monte parecia fervilhar de vidas monstruosas. Debaixo dos seus pés nus, a pedra tinha o calor, a moleza viscosa de um ventre. A própria abertura da sua cova, ora se alargava, ora se cerrava, como uma boca que espera a presa.

De madrugada, o seu cansaço era tão grande, que mal podia segurar a enxada para cavar o seu horto: – e, muitas vezes, adormecia exausto sobre as folhas abertas do

Evangelho. Para espantar os monstros, imaginou acumular galhos e ervas secas, na sua esplanada, e acender de noite uma fogueira.

Imediatamente, nas contorções da chama, apareceu um medonho basilisco, serpente cor de brasa, que tem dois cornos – e o fumo formava longos fantasmas cinzentos, que se enrodilhavam no pescoço do Solitário, e o esganavam.

Certo então da sua destruição próxima, pois que toda a Natureza arrojava contra ele os seus monstros, desde os mais pesados aos mais subtis, Onofre aceitou com submissão o destino que lhe marcava o Senhor: – e, uma noite, ajoelhou diante da caverna, cruzou firmemente os braços, e não se moveu, esperando, quase apetecendo, o remate dos longos tormentos. Imediatamente, uma avantesma monstruosa e estranha apareceu, e, sem um rumor, sem que um dos vastos membros se movesse, ficou diante dele na rigidez e a inércia pesada de um monte. Todo o seu vasto corpo se perdia na sombra, para além da esplanada – e Onofre apenas lhe avistava o gordo e enorme focinho, alongado em tromba, e dois olhinhos, meio cerrados, perdidos na gordura, de uma imensa, intolerável estupidez e tristeza. Era essa certamente a alimária suprema que o vinha devorar: – e tapou a face, com as mãos trémulas e frias, murmurando a oração derradeira.

Quando de novo olhou, o monstro lá permanecia, imóvel e mudo. Um pêlo ralo, e nojento, cobria todo o imenso focinho, onde reluzia, como supurado da sua gordura, um

óleo grosso, e em bolhas. A abertura das ventas desaparecia sob o monco que nelas coalhara. E os seus dois olhos pequeninos, baços, não se desviavam de Onofre, tão medonhamente estúpidos, e de uma tristeza tão crassa e densa, que ele fugiu, para os não suportar, rolou para o fundo da caverna, soluçando de desespero. Longas, intermináveis horas passaram: voltou de rastos, a espreitar; a avantesma lá jazia, imóvel, luzidia de gordura, mais estúpida e triste. Furioso, o Solitário agarrou uma pedra, que lhe arremessou contra a tromba. A pedra não deu som: – o monstro, impassível, olhava estupidamente, tristemente o Solitário.

Gritou, com um grande gesto de excomunhão, o nome de Jesus Cristo: – e apenas o som da invocação santa morreu no ar mudo, a avantesma lá estava, maciça, crassa, gordurosa, soturna, olhando o Solitário com a sua tristeza estúpida. E assim foi durante intermináveis, angustiosas noites. Ou Onofre orasse, ou corresse aflito pela esplanada, ou se encolhesse a um canto da caverna com a face nas mãos – o monstro lá estava, na sua pavorosa imobilidade, tão lúgubre, tão estúpido, tão gorduroso, que parecia comu-nicar

às rochas em redor, aos montes, aos céus, às nuvens, a sua gordura, a sua estupidez, a sua imensa tristeza. Onofre passava as noites chorando, gritando, de fastio e de horror.

Um momento chegou, mais desesperado, em que Onofre decidiu abandonar aquele Deserto. Tomou o seu rolo da Escritura, a cruz que fora de S. Nilo, e um dia, antes do declinar do Sol, começou a caminhar para ocidente, para as serras do mosteiro de Cétis.

Estava à orla da grande planície arenosa, quando a escuridão o colheu. Para comer o punhado de tâmaras que trouxera, e beber da sua cabaça, descansou numa rocha – e imediatamente viu diante a alimária disforme, que, sentada, sem que as patas se distinguissem do corpo, jazia como um monte sobre a areia, com a vasta tromba pendente, e cravados nele os olhos, de estúpida e horrenda tristeza. O desgraçado

Onofre fugiu para trás, para o seu rochedo, onde ao menos a sua caverna o escondia. E quando de novo, alta noite, alagado em suor, arquejando, pisou as lajes costumadas – o monstro lá estava, com a sua tromba, a sua tristeza, a sua estupidez.

Então o Solitário sentiu um intolerável horror à vida – e os seus olhos devoravam ansiosamente a borda daquele alto rochedo, de onde podia cair para sempre na paz e na insensibilidade. Não se matara Saul? Não procurara e se dera a si mesma a morte

Pulquéria de Antioquia, que toda a Igreja louvava? O que era a confissão da Verdade, perante os pretores romanos, senão a voluntária entrada na morte?

E quando assim pensava–eis que, de repente, a tromba do monstro se abre com lentidão, e aparece, sangrenta e profunda, a sua imensa goela. Decerto Deus determinara que aquele fosse o seu fim sobre a Terra. E ele, com arrebatada gratidão, o aceitava, pois que seria assim mais portentoso que o de todos os confessores nos martírios! Ah! não estarem ali multidões para testemunhar a heroicidade da sua fé, e a sua confiança no

Senhor!

Encarou, erguendo bem a cabeça (pois que decerto os anjos o contemplavam) aquela goela, horrenda mais que todos os horrores, e que esperava escancarada para o tragar. Mais vasta que um antro, com dois renques de presas, de onde gotejava um sangue espesso, a sua profundidade desaparecia sob uma névoa e um vapor cor de sangue. E não se movia, com a indiferença de um abismo natural, certa de o devorar.

Então Onofre alargou os braços, entoou furiosamente um cântico alegre, e marchou para o monstro, e para a morte. Subitamente tudo desapareceu, como uma sombra numa parede.

Imóvel, à beira do eirado, Onofre esfregava os olhos, espantado, como quem emerge de um sonho sinistro. E sentia um cansaço tão pesado, que ali mesmo se deitou sobre as lajes, e todo o seu ser se dissolveu num sono benéfico e calmo. A madrugada que o despertou era a mais fresca, e rósea, e doce, que ele experimentara no Ermo.

Quando desceu ao seu horto, a encher a bilha, encontrou a mimosa toda em flor e aroma.

Chegara pois a estação, doce entre todas no Egipto, Shá, a Estação dos Renovos.

Já, a essa hora, na negra Etiópia, o divino Nilo estremecia, e recolhendo a boa terra negra, como um esmoler que enche os sacos, começava a sua marcha magnífica para o norte, e para os vales... E nessa noite a Lua, a que perpetuamente morre e perpetuamente renasce, surgiu sobre o Deserto, redonda e cheia como um seio, derramando a sua luz como um leite carinhoso.

Toda a noite, sentado à porta da sua caverna, Onofre embebeu os olhos na Lua, e recordava, a seu pesar, vagamente, uma cantiga da sua ama, uma escrava de raça cananeia, em que se celebrava a Lua, e a sua influência que faz fermentar os vinhos e governa o amor das mulheres.

A Lua parara sobre o mar; Onofre sentia a carícia da sua luz macia: – e todo o

Deserto, com os seus rochedos e dunas, parecia voltado para ela, para se mirar no seu brilho, como num espelho suspenso.

Doces noites, então, assim passou, num imenso repouso, estirado nas lajes, e bebendo a espaços a água fresca da sua cabaça – porque a Estação dos Renovos é quente e sem orvalhos. Todo o deserto jazia em redor, alumiado, limpo inteira’. mente de fantasmas e monstros, numa larga inocência, e mais seguro que um templo. O

Senhor, na sua misericórdia, varrera para longe, com mão forte, o tropel disforme e roncante dos fantasmas e dos monstros. A névoa, onde se formavam os terrores, fora dissipada – e a Natureza reaparecia na sua inocência real e magnífica. E tão limpo e purificado estava todo o ar, que o canto fino da fonte subia até ele, misturado ao perfume das flores das acácias.

Como era doce, assim, a solidão!

Até as rochas perdiam, naquela suavidade da Primavera, a sua rigidez – e nem eram proas de galeras naufragadas, nem montões de crânios alvejando. Na sua brancura havia agora um calor de vida: redondas, emergindo da encosta negra, lembravam a curva macia de um ombro nu, se a túnica, cor de jacinto, escorregou; altas e lisas eram como os claros muros de uma cidade bem acolhedora, onde o viajante, que atravessou desertos, encontrou a frescura das Termas, e o alegre bulício das ruas, que cheiram a sândalo e mirra...

Um cansaço doce e lânguido oprimia o Solitário; e do seu peito, que se levantava como uma onda, saía, por vezes, sem razão, um suspiro soluçado.

Na sua caverna, não encontrava, como outrora, um sono fácil e sereno: a abóbada negra, o duro chão da rocha, exalavam um calor macio, tocado de aroma, como se um frasco de essência se tivesse entornado, e em torno pendessem estofos e peles; e sobre o seu montão de papiros secos, ele torcia os braços, sufocado, num espreguiçamento que lhe fazia estalar os ossos fortes.

Saía ao eirado, para respirar, ocupar a vigília com a oração: – mas o nome mesmo do Senhor lhe morria nos lábios, distraído por sons estranhos, certos cheiros estranhos, que vinham de longe, da sombra. Era por vezes um riso esquivo, fino, de mulher, que se perdia entre as ramagens do horto; um bafo de forno, com um bom aroma de pão quente, trazido por uma aragem; um véu amarelo que se abria devagar, arrastava sobre as rochas. Debruçado da muralha, com o coração batendo fortemente, Onofre espreitava, escutava: – e por vezes toda a noite ali ficava, sem se mover, com os olhos cravados na escuridão, à espera, como se alguma coisa devesse chegar, deliciosa, e que ele ansiosamente apetecia, e de que não suspeitava nem o nome, nem a forma.

O dia, o radiante Sol, não lhe afugentavam estas imaginações. E cavando a terra, empedrando os canais de rega no seu vergel, ele parava, colhido vivamente pela lembrança do riso esquivo e lânguido, ou pelo cheiro do pão ao sair do forno. Ao chegar de manhã à fonte, lavava os braços nus, as pernas, acamava o cabelo que lhe caía revoltamente sobre a túnica de pele de cabra: esmagava sobre as mãos certas plantas que tinham um bom aroma: – e tinha gosto, considerando os seus músculos, em pensar que era forte e airoso. A chegada da noite já o não assustava – antes a apetecia, pelo seu mistério e por aquela sua vasta sombra, que é como uma cor. tina que tudo esconde.

Mas como ela era solitária e vazia! Se, ao menos, tivesse, como alguns cenobitas, um companheiro moço, com quem pudesse passear, naquelas veredas do monte, passando o braço sobre o seu ombro!

Juntos cantariam os hinos santos – e murmurariam, um ao outro, para se fortalecerem, as tristezas dos seus corações. Oh! se algum desses monges, que erram de mosteiro em mosteiro, ou dos que percorrem, para se instruir, os retiros dos Solitários, ali passasse, naquelas serranias!

As palmeiras do seu horto bastariam para sustentar dois ou três irmãos – e na sua caverna havia espaço para abrigar outros sonos...

Com uma esperança, sem razão, ficava então espreitando longas horas, debruçado do seu eirado; e ante os seus olhos, cravados na penumbra, fatigados de esperar, surgiam, então, imagens estranhas: – um canto de rua, com flores pendentes de um terraço; um pátio, com uma mesa cheia de taças, de pedaços de gelo, abrigadas por um velário; uma cortina que se descerrava, deixava entrever uma mulher, derramando um perfume sobre os braços nus... Onofre estremecia, como despertando, e reentrava na caverna, atribuindo aquelas visões à debilidade, aos longos jejuns. Ah! se ele pudesse um dia comer uma carne forte, beber um longo trago de vinho – mais longas podiam ser as suas orações, e na sua doçura salutar se desfaria toda a inquietação da sua alma.

E sempre que assim pensava, logo um prato de argila, cheio de ostras de Canópia, alvejava no chão, ao lado de uma vasilha de vinho, que espumava, ou um cheiro de anho assado e fumegando, se espalhava na treva. Era uma realidade, uma ilusão? Bem podia ser um dom milagroso do Senhor! Não alimentara Ele Elias no Deserto? Não fizera Ele brotar, aos pés de Pacómio, que a sede torturava, um ramo carregado de damascos? E uma noite, que ele viu, ao lado do seu leito de folhas, um pão muito fresco e muito branco, e uma taça larga de vinho onde flutuava gelo –não duvidou da

Misericórdia do Senhor, e, rindo de gozo, estendeu a mão trémula. Deu um grito: sentira o ardor de uma brasa! Era pois uma horrenda oferta do Demónio, e no Inferno se amas-sara aquele pão, no Inferno se vindimara aquele vinho! Se ele tivesse morrido nesse momento era a perdição irreparável! Agarrou o açoite – e, despindo a túnica furiosamente, açoitou a carne infectada de gula.

Mas logo os primeiros golpes, em lugar de o ferirem, lhe deram o incompreensível, estranho gosto de uma carícia. Era como se braços nus se colassem ao seu corpo nu. Arrojou de si o azorrague, num imenso terror: –e as negras tiras de couro tomaram, caídas sobre a rocha, a forma redonda e branca de braços cansados, que se estiram. Caiu de joelhos – e de joelhos, diante dele, estava uma figura, uma mulher, cujos olhos muito negros, cujos lábios muito escarlates, transpareciam através do véu que ela apertava contra o seio com os braços redondos, cheios de frescura e de aroma...

Então, longos dias, não comeu, não bebeu – e nunca foi mais dolorosa e furiosa a sua luta com o grande Inimigo. Torturado pela fome, torturado pela sede, a cada instante

Onofre encontrava diante de si uma larga mesa, com uma resplandecente toalha de linho, coberta de todas as delícias da cozinha, do pomar e da adega, carnes que fumegavam com um aroma rico, legumes que, de tenros e bem cozidos, se desfaziam dentro do seu molho transparente, montes de frutas cuja polpa suculenta estalava de madura, frascos com vinho cor de ametista e cor de ouro, esfriando entre blocos de gelo que reluziam.

E a tentação era tão deliciosa e forte – que Onofre, diante, tremia todo, com uma espuma na boca ressequida, e grossas lágrimas rolando pelas barbas. Fugia: a mesa reaparecia tão rente do seu peito, que ele sentia a frescura da neve, o fumo da carne, e um aroma de pomar regado, e de flor de romãzeira, e de flor de laranjeira. Dava um brusco empurrão àquelas delícias do Inferno: – as frutas esboroavam-se sobre os seus pés, rachando de maduras, os vinhos entornados faziam regatos cheirosos na areia.

Desesperado, torcia os braços, gritava pelo Senhor! «Socorro, meu Deus, socorro!»

Tudo desaparecia: – mas logo sobre ele pendiam grossos ramos, carregados de laranjas, de romãs, de cachos de moscatel, de damascos dourados – e do chão rebentava uma chama clara onde um anho, gordo e branco, alourava no espeto... Onofre espedaçava os ramos, Onofre espezinhava o lume. «Socorro, meu Deus, socorro!» E ia cair, quase desmaiado, à porta da sua caverna, escondendo a face na areia quente, que bebia as suas lágrimas.

Um ano inteiro assim combateu – e todos os seus cabelos embranqueceram. Um dia, que ele recolhia exausto do seu trabalho, e se sentara numa rocha, à beira de água, encontrou de repente, no regaço, um pão pequenino, louro e tostado, quente ainda como saído do forno. Então o Solitário começou a rir serenamente. O quê? Tanto se esvaziara o Demónio que, depois de mesas mais ricamente cheias que as do Imperador, só lhe restava agora para o seduzir um pão miserável, de legionário! E com aquele riso, uma paz imensa entrou no seu coração. O Demónio, assim humilhado, abandonou o Deserto.

V

Mas poucas luas tinham passado, quando, uma tarde, ao escurecer, voltando do mosteiro longínquo de Tebane onde fora buscar semente para semear, encontrou, sentado pensativamente numa pedra, um homem, um velho, com uma túnica severa de filósofo, e um bastão na mão, que se ergueu, o saudou, e começou a caminhar a seu lado, com respeito e calado.

Estranhando o seu silêncio, Onofre murmurou:

– Bem-vindo sejas, meu irmão em Jesus, filho de Deus Padre, que por nós padeceu!

O velho, sem levantar os olhos do chão, onde as suas sombras se estendiam longamente, disse com lentidão:

– Deus é um, e imaterial, e não podia ter filhos.

E como Onofre recuava, escandalizado, o outro, retendo-o pela manga, rompeu em palavras estranhas e magníficas. Se Jesus era filho de Deus, porque se chamara a si mesmo filho do Homem? Tudo nega, em cada uma das suas acções, e das suas palavras, a sua essência divina. Se ele era Deus, para que necessitava o Baptismo? Como poderia o Demónio tentar, pela oferta de um reino na Terra, aquele que ele sabia possuir, como

Deus, os remos da Terra e do Céu? Quando a Madalena lhe tocou a túnica, ele exclamou: «Quem me tocou?» Logo não sabia: onde estava então a sua omnisciência de

Deus? Em Emaús, depois da ressurreição, Ele pede aos discípulos que lhe apalpem as chagas. Logo, mesmo depois de ressurrecto, era um corpo material, susceptível de verter ainda sangue

Onofre dilatava os olhos, estupidamente. E então o homem, apontando com o báculo para o lado do Deserto, onde o Sol desaparecia, tornou:

– O meu caminho é para além... Mas a tua alma é digna de receber a Verdade.

Outros virão que ta ensinarão.

E outros vieram – uns solitariamente e em silêncio, surgindo de entre as rochas, que ressoavam sob os seus bastões ferrados, outros, em bando, através dos areais, como mestres marchando entre os seus discípulos. Era de noite e sob a Lua cheia. E por vezes o eirado, diante da cova de Onofre, ficava atulhado de uma multidão de homens, de longas barbas, soltas e entrançadas, envoltos em mantos negros, ou ostentando simarras de cores estridentes, todos mais pálidos que marfim, com olhos encovados que refulgiam, e agitando nas mãos inquietas grossos rolos de papiros, ou tabulários escritos. Ora um só, de pé, falava com abundância e cadência: ora todos, tumultuosamente, disputavam, mas sem se encararem, com os raios negros das pupilas ardentes cravados no Solitário. Encruzado à porta da sua caverna, com os longos dedos descarnados pousados sobre os ossos salientes dos joelhos, Onofre pasmava para aquelas facúndias sonoras.

Através delas, uns após outros, sem respirar, enchendo o deserto de ruído, aqueles homens (que eram decerto doutores) afirmavam princípios, cheios de irrisão ou mentira.

– O Deus de Israel era um anjo subalterno! Jesus não passava de uma simples continuação de Adão! O Mundo fora criado por um delírio do Senhor! Para vencer a carne era necessário contentá-la – e só pelo vício se atingia a perfeição! Há só uma alma, que está tanto nos homens como nas rochas! Só a matéria é eterna, e os deuses morrem. O Mundo foi concebido pelo Diabo! Jesus é filho de Achmaroth e a sua residência é o Sol! O Espírito Santo é uma mulher! Só Caim é verdadeiro!

E a cada uma destas revelações, lançadas com estridor, Onofre ora entreabria uma boca néscia, ora rompia num riso largo e límpido, que lhe sacudia as costelas sob o seu surrão de peles. Então, arremessados sobre ele, todos lhe brandiam junto da face os seus papiros, os seus tabulários. Eram as Provas! Eram as Escrituras! Eis a Profecia de

Maxila! Eis o Tratado de Apolónio! Eis o Tratado da Alma Adventa!...

– Compreendeste?

E o mais novo dos doutores, que tinha unia mitra oriental, suplicava Onofre, curvado sobre ele, com sofreguidão:

– Faz um esforço! Faz um esforço! Diz que percebes!

Silenciosamente, com um resto de riso que lhe faiscava nos olhinhos miúdos,

Onofre encolhia os ombros, murmurava:

– Só creio no Padre, no Filho, no Espírito Santo!

Então um murmúrio de tédio, de indignação contra tanta simplicidade, corria entre os doutores subtis. Os mais violentos arremessavam-lhe injúrias. Outros, majestosamente, voltavam as costas largas, cobertas de largos mantos que roçagavam. E todos se sumiam por entre as rochas, em tumulto.

Mas, com o crepúsculo, voltavam – e Onofre lá estava sentado à entrada da sua cova, já risonho, como quem numa feira se prepara a gozar as artes divertidas dos mágicos.

E a grande lição recomeçava, ressoante e facunda. Cada dia surgia algum doutor novo, com um dogma novo. E sempre o riso do Solitário lhes respondia! Sempre a confissão da sua fé, cândida e simples, no Padre, no Filho e no Espírito Santo. Até que uma noite, em que a douta contenda se alongara, e a Lua já desmaiava – como Onofre, fatigado, apesar de terem sido mais profundas e sublimes as concepções dos doutores, começasse a bocejar, cerrando as pálpebras – um que tinha uma mitra bicórnea, onde lampejavam pedrarias, ergueu o braço, clamou subitamente:

– Deixai esse bruto!... Vinde!

E num grande silêncio, o bando dos doutores, todos hirtos e juntos, elevaram-se no ar, e fundiram-se, docemente, na claridade última da Lua. Já Onofre dormia.

Não voltaram: – mas foi então, no Solitário, como uma saudade daqueles homens, e daquelas vozes, que cada noite povoavam a sua solidão. E mais deserto lhe pareceu o

Deserto. E às horas em que eles costumavam aparecer, como sombras que se desprendiam da sombra, e ele, depois do labor do longo dia, se encruzava no chão, preparado a gozar, como em recreio, as suas arengas sonoras como músicas de batalha – subia às penedias, aguçando os olhos, a espreitar se algum, ou todos, não voltariam, pelo caminho estreito, apanhando os mantos por causa dos tojos ásperos.

O caminho permanecia ermo, e não havia nem estrelas nem Lua: e vazio e largo lhe parecia o deserto, em redor – e dentro do seu coração.

Mas uma noite, que ele assim espreitava do cimo das rochas, pensou ouvir de repente o tinir lento e triste dos guizos de um dromedário. E tochas fumarentas bailaram na sombra.

Alvoroçado, ele gritou, agitando os braços:

– Por aqui! Por aqui!

E imediatamente, com um rumor de armas em marcha surdiram em fila, do caminho estreito, soldados barbudos, com os escudos metidos em sacos; uma liteira emplumada, de panos de púrpura, que se balançava sobre os ombros de escravos; as insígnias de Roma; e dromedários com fardos e odres. Vozes bradavam entre o fagulhar das tochas:

– É aqui que vive o Santo Ermita?

O Solitário, espantado, balbuciou:

– Onofre, servo de Deus, aqui vive!

Então, de entre os panos franzidos da liteira, que estacara, um homem, togado de branco, e todo ele mais branco que um mármore, escorregou, pousou no chão os seus borzeguins de escarlate e ouro. Os contos das lanças ressoaram no chão, duas buzinas

ásperas estrugiram, o dromedário ajoelhou. E o homem, arrepanhando as pregas da sua vasta toga, caminhou para o Solitário, com lentidão e majestade. Depois, na grande mudez do deserto e da noite, começou, direito, grave, como se arengasse num Senado:

– Onofre, a nomeada da tua pureza e das tuas penitências transpôs o Deserto, chegou a Roma. E eu venho em nome de Honório, César, três vezes Augusto,

Invencível e Senhor do Mundo, e que te saúda!

E saudou. Um brado correu entre soldados e escravos:

– Glória a César, três vezes Augusto!

E, bruscamente, o homem togado abeirou-se do Solitário que recuava, intimidado, apertando contra o peito as mãos magras por sobre as longas barbas – e num murmúrio familiar e risonho continuou:

– Onofre, aqui está a coisa imperial e formidável de que se trata. Honório, atraído pela Verdade, quer conhecer a Lei Nova. Mas quem seria bastante puro, e inspirado do

Céu, para lha ensinar? Só tu, amigo! Os doutores de Alexandria e da Palestina têm almas cheias de ambição e mentira. A tua é cândida! E, pela pureza perfeita, tu atingiste a vontade perfeita. Em Roma viverás no palácio de César. E, quando César conhecer a

Lei Cristã, convocará o Senado, e todo o Império será proclamado Cristão. Hem? Tu mesmo, por tua mão, fecharás as portas dos templos. E, sem mesmo despires esse surrão, em toda a tua simplicidade, oferecerás ao teu Deus Roma, as Legiões, as

Províncias, e todo o Género Humano. Hem?

Debruçado, com os braços abertos, de onde pendiam os panos rubros do manto, ele parecia uma ave de rapina, coberta de sangue, e de asas já cerradas sob a presa fácil.

E, num bafo ardente, murmurava:

– Que ocasião, Onofre, que ocasião! O que não fez Paulo, nem Gregório, nem o grande Atanásio, nem o imenso Orígenes, tu o farás só com falar de manso e finamente junto à orelha de César! Bem sei! Não é o orgulho do esplêndido feito que te impele...

Decerto. Mas pensa! Todos os martírios findos, os ídolos cobertos de bolor, a terra cheia de cantares, e o Cordeiro no seu Redil. Hem?

Onofre tremia todo, deslumbrado. Balbuciou:

– E o Imperador?

– Quer! Pois se já, nos Idos de Março, uma noite, ele vos viu em sonhos, a ti e ao

Outro – ao Outro com a sua coroa de espinhos, e as mãos ainda com os pregos, que te empurrava, para diante de César, e gritava, em grego: – Este te ensinará o que convém saber! E eras tu, tu com essa pele de cabra, essas barbas, e essa beleza clara e majestosa, que te comunica a virtude. Oh Onofre, a terra cansada é por ti que suspira! Vem.

E Onofre passou longamente as mãos pela face, sorrindo. E deu um passo, depois outro, com o pulso já preso na garra do homem de púrpura. E ia, como no esplendor de um sonho, todo feito de certeza!... César esperava por ele para confessar a fé! Por que não? O imperador Constâncio escrevera duas cartas a Antão, e as patrícias de

Alexandria faziam a travessia do Deserto, para beijar os joelhos chagados de Pacómio.

E a sua vida não fora menos terrível que a desses Solitários magníficos! Não havia forma de dor que ele não tivesse atravessado: – e as suas lágrimas de penitência, juntas, podiam fazer um rio no Deserto! Mas, enfim, Deus elegia-o para o feito melhor dos tempos! E ele marchava, firme, sob o olhar contente do Céu! Todo o erro ia desaparecer da Terra; e desde o primeiro dia, ele persuadiria o imperador a exilar os heréticos para os confins das nações, onde começam as neves e os mares tenebrosos. Todos os templos seriam destruídos, e queimados os livros dos filósofos que perpetuam o erro. Depois, reformaria as igrejas da Ásia. E, num grande concílio, a doutrina pura seria estabelecida, para sempre imutável. Então, começaria uma grande paz divina. Que obra! Que obra!

Ao lado do imperador, ele percorreria as províncias. Mas para si não queria honras, nem poder sobre as almas... Talvez, apenas, o governo dos mosteiros do Egipto. E, junto da púrpura de César, os povos prostrados pasmariam do seu surrão de pele cheio ainda dos espinhos do tojo! Que obra! Que obra! Todo ele crescia – e parecia ver as estrelas de mais perto, como se fossem já a sua coroa imortal.

– Chegai a liteira! – clamava o homem purpurado. – E vós saudai o Mestre de

César, o possuidor da Verdade!

Todos os ferros das lanças retiniram, as insígnias de Roma ondearam no ar, os escravos estavam rojados no pó. E o homem então, junto das barbas do ermita, murmurou, na abundância da sua vitória:

– Em Roma verás multidões mais prostradas! Todas as igrejas da Ásia porão o teu nome nas Escrituras! E bem o mereces! Porque o Outro, em Galileia, só converteu pecadores – e tu, persuadindo César e com ele o mundo, és maior, és maior! Vem!

Maior que o Senhor! Então, foi na alma de Onofre como um clarão que alumia um precipício! Sacudiu com um grito a mão do homem que o escaldava. E no seu olhar, reconheceu o lume do Inferno. Na sua angústia só pôde suspirar: «Oh Jesus! Oh Jesus!»

Subitamente, o grande manto de púrpura, mole e como vazio, abateu no chão e, ao longe, a liteira emplumada, o dorso do dromedário, as lanças em confusão, fugiam em debandada, e num rolo de fumo.

Onofre caiu de joelhos. Diante dele o manto enrodilhado fazia uma mancha vermelha. Palpou muito de leve com os dedos: – era sangue! Arrepiado, num terror infinito, recuou – e o sangue começou a rebrilhar, tão liso e vidrado, que ele avistou nele, como num espelho, a sua face. Não a vira desde que entrara no deserto – e recuou, espavorido, ante a fealdade com que ela lhe reaparecia, dura, esbraseada de orgulho, toda entumecida de Pecado.

Muito tempo, então, chorou amargamente! Oh miséria, oh dor! Em tantos anos de penitência e ermo, o seu coração não obtivera purificação – e permanecia coberto de uma crosta de maldade. Decerto mil noites de dura peleja ele rechaçara o Pai da

Mentira! Mas esses eram os triunfos fáceis que os mesmos pagãos, sem o socorro de

Jesus, alcançam sobre a Carne. Quando, porém, o grande Mentidor vem, e do cimo de uma rocha, como ao Senhor, lhe promete uma grande glória entre os homens, logo ele se deixa levar pela mão, consentindo, com uma facilidade de prostituta. Oh alma miserável, há tanto fora do mundo, e ensopada ainda no orgulho do mundo, como uma esponja que saiu da água podre! Que penitência, e que exercício heróico de humildade havia aí, que pudesse espremer, até à última gota impura, aquela soberba que trasbordava, empestava todo o seu ser! Trinta anos se flagelara! Trinta anos se esfomeara! A sua oração subia para o Céu tão constantemente como o seu hálito. E arrastara correntes de ferro; velara meses, com os joelhos em pedras agudas, e os olhos risonhos postos nas claras estrelas, ou dormira embrulhado em cardos; dera a beber do seu sangue às vespas; esmagara os ossos debaixo de grossas pedras... E em vão!... Que podia então ainda fazer naquele ermo? Onde havia martírios mais dolorosos? Onde se aprendiam preces mais extáticas?... Onde?

Sentado, abatidamente, sobre os calcanhares, com a barba descendo em flocos entre os braços caídos, Onofre erguia os olhos arrasados de lágrimas, suplicando ao Céu um ditame.

Porventura aquela vida solitária seria estéril para o Bem?... Na verdade – entre aqueles areais e aquelas penedias, como exercer suficientemente a humildade, a caridade? Ele não tinha sequer ao seu lado um cão, para quem pudesse ser paternal. E se a humildade passava dentro da sua alma, sem que o mundo a testemunhasse, ou com ela aproveitasse – era fácil, e era vã. Que fazer? Deixar o ermo? Voltar para entre os homens?

Lentamente murmurou, no silêncio:

– Voltar para entre os homens!

E, ante os seus olhos, que se embebiam nas estrelas, julgou vagamente entrever a forma de um homem: – estava sentado junto de um muro, quase nu, e gemia coberto de chagas! Depois o muro prolongou-se, e era um alpendre, onde outro homem, um escravo, muito velho, com o dorso vincado dos açoites, arquejava, fazendo mover a pesada mó de um lagar! Depois a mó do lagar separou-se em lajes, e era uma estrada onde seguiam, ligados por cangas, arrastando grossas algemas, bandos de cativos, que soldados impeliam com picadas das lanças. Depois as lanças ficavam cravadas no chão, e eram cruzes, onde agonizavam, listrados de sangue, corpos que os abutres, voando em redor, batiam com as asas negras. E dos olhos de Onofre, que seguiam estas dores, as lágrimas caíam em fio, silenciosas e quentes.

A cada lágrima que assim caia, Onofre sentia no seu coração um alívio inesperado e novo.

– Muitas lágrimas chorara no ermo – mas nunca tão consoladoras! E todavia eram as memórias das Dores do Senhor, do seu doce corpo cheio de chagas, do seu suor de aflição, e da sua queda, na áspera serra, sob o ultraje dos soldados e da cruz, que lhas fizeram derramar, em noites de piedoso cismar. Porque eram mais doces e pacificadoras estas, que lhe arrancavam as chagas, e os trabalhos, e os cativeiros, e os suplícios dos homens mortais? As lágrimas vertidas pelas dores humanas eram, pois, mais gratas ao

Céu, que as lágrimas derramadas pelas dores divinas! Decerto, então, servir os homens no mundo, seria mais apreciável no Céu, do que servir a Jesus na solidão...

De pé, atirou os braços para as estrelas, e murmurou:

– Oh meu Senhor, ensina o teu servo, que sofre o tormento da incerteza!

Um desejo, bruscamente, entrou na sua alma – de ir ser bom e humilde no mundo.

Então, com a mão ainda toda trémula, limpou as lágrimas. Alegremente, entrou na sua cova, apanhou o seu bordão, meteu no seio, sob o surrão de pele, a cruz preciosa, que fizera Antão, na cidadela do Alto Egipto.

Depois subiu às rochas – envolveu num longo olhar o deserto, a horta, nunca acabada, que cultivara, as palmeiras benéficas que o tinham alimentado, o arbusto, que flor a flor lhe marcara os anos de penitência, o regato que fora a frescura do seu

Deserto. E com um longo suspiro, tomando pelo rumo das estrelas o caminho do sul e do Grande Mar, Onofre voltou para entre os homens.

VI

O primeiro que encontrou junto a uma aldeia que aparecia num alto, toda escura, e de adobe, foi um velho, muito alquebrado, vergado sob um feixe de lenha, e conduzindo um jumento ruço, muito velho também, já manco, que carregava um saco de grão. E, um atrás do outro, o velho em farrapos, o jumento com chagas no lombo magro, iam arquejando, e mancando, por uma calçada íngreme, sob o sol e as moscas, entre piteiras poeirentas.

Humildemente, Onofre abeirou-se do velho e lembrou que, sendo mais forte, melhor conduziria pela subida a lenha e o grão. E, sem esperar o consentimento do velho, que mal compreendera, vago e senil – tomou sobre o ombro o molho de lenha, sobre o outro o saco de grão, e atrás do seu homem, e do seu jumento, assim aliviado de todo o fardo, foi marchando contente e cantando os louvores do Senhor.

O velho era o servo de uma viúva, pobre, entrevada – que só o tinha a ele, e

àquele jumento, e uma horta mal tratada de poucas ervas. Onofre nessa tarde amassou a farinha, rachou a lenha, acarretou água do poço, cavou o talhão de cebola, tirou os espinhos dos pés do servo, lavou as velhas chagas do burro, e junto do catre da viúva, que era cristã, para a consolar, contou a paixão do Senhor. E assim começou Onofre a sua obra entre os homens.

Mas bem depressa deixou a aldeia, que, rodeada de terras férteis, com poços abundantes, sob um ar muito doce, não abrigava, nos seus casebres, nem indigência, nem males. A simplicidade dessa vida não oferecia acção a um coração sedento de humildade.

A dois estádios, porém, da aldeia, havia a velha cidade de Bubastes, entre as águas

Pelusíacás e o canal de Nécio, onde cada ano vinha de todo o Egipto a festiva peregrinação ao velho templo de Ftás, então dedicado a Artemis Grega.

Bubastes era rica em obeliscos e termas. As suas muralhas formidáveis estavam cobertas de estátuas. E nas longas avenidas, ao comprido das águas, sob os sicômoros e as palmeiras, todo o dia as tabernas e as casas esguias das cortesãs ressoavam dos cantos e dos folgares pagãos.

O pretor romano era aí doce aos Cristãos; – mas a heresia dilacerava a Igreja já considerável e activa, de que era bispo Alexandre, homem austero e rude, que guardara cabras na Galácia. Onofre foi habitar Bubastes. Como as suas longas barbas inspiravam respeito, e alguns fiéis o saudavam nas ruas, cortou as barbas – e trocou o seu surrão de

Solitário por um saião de escravo. Ele logo, na verdade, se tornara o escravo dos pobres.

Junto ao muro, ricamente ornado de esculturas, que cercava o templo e os bosques sagrados, costumavam, desde o romper da alva, juntar-se doentes e mendigos. E aí, desde alva também, depois da noite velada em orações, Onofre trabalhava no serviço dos miseráveis, arranjando leitos de folhas para os velhos, lavando os trapos à beira do canal, cobrindo de fios as chagas, catando a vérmina nos cabelos intonsos. Depois ia mendigar para os seus pobres, por toda a cidade, desde as casas mais ricas, onde os cães lhe ladravam, até às tabernas dos canais, ou às cubatas das prostitutas, de onde trazia sempre no saco algumas côdeas de pão, restos de peixe, ou uma maquia de lentilha: – e não duvidava mesmo entrar no templo de Artemis, ou, ao fim da larga avenida, no templo de Hermes, e esmolar dos deuses pagãos, pela mão dos seus sacerdotes, um pouco de óleo, para amaciar os membros doridos dos seus enfermos. Outras vezes alugava o seu pobre corpo descarnado aos mais duros serviços – e puxava à sirga os barcos nos canais, acarretava pedras para a reparação das muralhas, rachava na caserna romana a lenha da coorte: – e as moedas de cobre, que lhe atiravam à palma da mão, vinha trazê-las, correndo, a algum casebre onde conhecia crianças sem pão. De noite, com uma tocha, alumiava os tresnoitados – ou impedia que os ébrios, saindo das tabernas dos canais, rolassem à água escura. Como recompensa, recebia ultrajes. Ele replicava com bênçãos.

E nunca como então gozara uma paz tão perfeita. No deserto, os seus rudes labores de enxada e rega, para combater a esterilidade das areias e concorrer para a realização da divina promessa, não lhe davam alegria: – e a fadiga com que deles saía, era inquieta e melancólica. Na oração, que aí perenemente enviava para o Céu, a sua alma não se desafogava, nem por ela obtinha do Céu o dom da apetecida misericórdia: – e havia apenas uma alma mais turva diante de um céu mais mudo. Agora, ao contrário, o cansaço naqueles longos dias de caridade era cheio, era feliz e repassado de doçura: – e a mais curta oração, balbuciada à pressa, fazia descer das alturas sobre o seu coração, como uma longa e vaga carícia que o refrescava deliciosamente. Mas o melhor bem logrado era a libertação do Demónio. Não voltara mais, o Pai das Imposturas, nas suas formas variáveis de sedução e terror: – e a terra toda estava para ele como limpa e vazia de Satanás, como um altar lavado de fresco.

Nas ruínas de um templo muito antigo, junto das muralhas, e onde escolhera, para se abrigar, o túmulo de um faraó, sob a terra, havia, pintadas e entalhadas sobre o resto dos muros, figuras execrandas: – e era um lugar temido dos cristãos, porque de noite todas essas imagens se despegavam da pedra, reviviam, e celebravam, sob a lividez da

Lua, ritos abomináveis. Mas, para ele, só houvera naquelas ruínas solidão e sossego: – e até mesmo, desde que as habitava, na estação das chuvas, tinham nascido nas fendas das pedras flores silvestres, que se alargavam, trepavam, e punham em redor dele, e das suas longas orações, um perfume casto e grave de capela em festa.

Mas, ao fim de um ano que ali vivia, aquele terreno foi escolhido pelo pretor para a edificação de uma larga cisterna; Onofre, desalojado, dormia então nos currais: – e se os servos o repeliam, ia estender-se contente entre o lixo das ruas. Tão descarnado se lhe tornara o corpo, que as crianças, brincando na rua, nos bairros pobres, lhe chamavam o Pai da Morte. Muitas vezes lhe atiravam pedras ou lama. Ele parava, sorrindo, a receber aqueles ultrajes como carícias.

Uma noite que Onofre orava, sob as árvores do canal, passou sobre a cidade, no céu, de oriente para ocidente, uma grande tocha fumarenta. As sentinelas, sobre as muralhas, soltavam sons de buzina, como num alarme: e nos terraços das casas surgiam figuras espantadas, que batiam desesperadamente na face, para conjurar o presságio.

Logo no outro dia, rompeu um incêndio no bairro remoto e miserável, onde viviam os embalsamadores de cadáveres – e em breve foi por todo o casario, até ao templo de

Hermes, uma imensa labareda. Onofre correu para as chamas com a multidão que acudia, no terror de que fossem consumidos os corpos de parentes, de amigos, confiados aos embalsamadores.

Já uma fila de escravos, de cidadãos, misturados, se formara pela rua até aos canais, para o carreto da água. Onofre, repelindo o balde de couro, que soldados distribuíam, penetrou nas chamas, onde os gritos eram mais dolorosos. Em breve reapareceu logo, com fagulhas no pêlo da túnica, trazendo um velho às costas: – e remergulhou seis vezes no braseiro tumultuoso, trazendo através das traves abrasadas, dos tectos que abatiam, crianças, uma mulher aleijada, outro velho, até mesmo um anho, que lhe balava entre os braços. Todo o cabelo lhe ficara crestado das queimaduras; das pernas ficou para sempre coxeando.

Depois do seu espanto, o povo acusou do incêndio os judeus e os cristãos. Os mais pobres, que não pagavam ao templo de Artemis um tributo secreto, para evitar as perseguições, foram carregados de algemas, arremessados aos ergástulos; Onofre, que por miserável não fora perseguido, percorreu as prisões consolando os irmãos, ajoelhando através das grades: – e na manhã em que eles foram açoitados defronte dos pórticos da Basílica, ele, meio nu, em face aos flageladores, não cessou de cantar hinos, vergastando o seu corpo miserável, e ainda cheio de queimaduras, com disciplinas de ferro.

Impelidos pelo velho gramático Flaco, alguns mais furiosos assaltavam com pedras Onofre, que injuriava a majestade da Lei. E decerto ia ser lapidado e martirizado, junto a uma casa em obras, onde se refugiara – quando uma grande chuva, tempestuosa e brusca, dispersou a turba praguejadora. Foi a água do céu que lavou as feridas de

Onofre.

A Assembleia dos Fiéis era junto ao Mercado do Peixe, num terceiro andar de uma casa velha, ao fundo de um terraço de onde não passavam os catecúmenos, ainda não iniciados no Mistério dos Sacramentos, ou que estavam cumprindo penitência por culpas confessadas em segredo ao bispo. Para além da porta santa, guardada pelo porteiro, encruzado no chão, com os tabulários que continham o rol dos fiéis, só havia uma sala vasta, nua, mal caiada, onde ardiam doze lâmpadas. Na sexta-feira que se seguiu à flagelação dos Irmãos, quando Onofre, como sempre descalço, com o rolo da

Escritura metido no seio da túnica, aí penetrou e se colocou, humildemente, num canto

– todos o saudaram, com o cântico que se deve aos mártires. Um diácono correu, murmurando: Sanctum! Sanctum! para o conduzir junto da mesa coberta de linho branco, que servia de ara: – e até o bispo Alexandre se ergueu, apoiado ao báculo, para o beijar nas duas faces. Onofre permanecia mudo, assustado com a veneração e os louvores. E apenas, findas as preces, os Irmãos trocaram o ósculo ritual, ele correu, cosido com os muros, como um culpado, até ao templo de Artemis, para junto dos seus mendigos e dos seus estropiados – e deliciosamente reentrou na sua humildade.

Mas a fama da caridade de Onofre era já grande entre os Irmãos: – e uma diácona, senhora de muitas terras e de muitos gados, a quem a velhice, a doença, impedia os exercícios santos, chamou Onofre a sua casa, e apontando para um cofre de cedro, disse:

«Aqueles bens eram para os pobres, e para os pobres tos entrego... Leva, tira, até que eu depressa fique pobre também». Onofre, com a voracidade de um avaro, mergulhou as mãos no cofre – e abalou, rindo, deslumbrado, com as pregas do saião pesadas de ouro.

Foi então, por Bubastes, o grande bodo dos miseráveis. Logo à alvorada estava no

Mercado, atulhando de provisões, de legumes uma carriola, a que ele se atrelava como um animal, e que arrastava pelos bairros mais pobres, deixando em cada morada o bendito pão de cada dia. Às viúvas dava dinheiro, beijando-lhes a orla da túnica. Vestia todas as crianças. E comprara mesmo um campo, onde andava erguendo um barracão para abrigar todas as velhices e todas as enfermidades.

Não cuidava só dos corpos, mas também das almas – a ponto de empregar três copistas, pobres e que inclinavam para a fé, em preparar cópias das Santas Escrituras, que ele distribuía aos mesteirais à hora da sesta, aos que descansavam sob os plátanos no pátio das Termas, e mesmo aos viandantes que chegavam, com fardos, pela porta

Pelúsica. Àqueles a quem saciava a fome, contava sempre, docemente, do Reino de

Deus, onde todas as fomes são saciadas: – e aos que nessa cidade de César eram, por condição, os mais ínfimos, afiançava no céu, naquele céu azul e tão sereno que os cobria, uma outra cidade, verdadeira e eterna, a cidade de Deus, onde eles seriam os supremos, e teriam mais alegria que nunca tiveram ricos senadores, abundantes em escravos e terras.

Mas aos gentílicos, oferecia a Verdade, de leve, e sem intransigência – porque o homem, por mais sedento, repele com cólera a água que mãos brutais e autoritárias lhe queiram introduzir por entre os lábios ressequidos. Não injuriava os deuses, nem os ritos. E o seu ensino era todo para o coração, contando a Vida do Senhor, e a sua humildade, e as suas visitas aos casais e aos lugares, e a sua morte, tão triste como a de um pobre escravo. Jesus só queria que os homens se amassem uns aos outros! Para ele tanto vale um oleiro como um procônsul, e no seu Reino não haverá nem escravos, nem tormentos. Para que ele se alegrasse, o rico devia partilhar com o pobre. Que era a vida, aqui, senão uma caminhada breve e trabalhosa que vai de rua a rua? Mas a vida além, no Céu, ao seu lado, era a verdadeira, e nela os que trabalharam repousarão, os que padeceram folgarão, e os que obedeceram mandarão. E se fordes bons – dizia – vós que de alvorada à noite trabalhais, tereis glória, e sereis imortais, e bebereis o vinho do

Senhor: – e talvez o mesmo não suceda a César!

Assim ele ensinava nas ruas pobres, à hora em que os escravos despegam do trabalho, sentado a uma porta amiga, com crianças sobre os joelhos. E quando Onofre, beijando os homens na face, ou na mão, humildemente, tomava o seu cajado e se afastava – sempre algum dos que escutavam, obreiro, escravo, ou mesmo homem livre e senhor de bens, o seguia, e lhe ia puxar, a uma esquina, pela ponta da túnica rota, e muito baixo perguntava: «Onofre, como se faz para pertencer a esse Deus, que é tão bom?» Mesmo um dia, Simeão, um avarento, correra atrás dele, apertando uma bolsa, e balbuciara, com a inquietação de uma alma tentada fortemente: «Onofre, quanto se paga, para se ser acolhido por esse teu Deus?» Onofre rira, com um sincero e grande riso. Mas Simeão, desde então, deu largas esmolas.

Esta santa popularidade, que o trazia por vezes seguido de gente, pelas ruas – suscitou, todavia, desconfiança entre os diáconos, zelosos da autoridade espiritual. E os judeus mais velhos da Assembleia viam com cólera que ele distribuíra as esmolas de

Petronila fora dos bairros dos judeus, e mesmo entre obreiros pagãos. Então, na

Assembleia, surdiram murmúrios – e Onofre foi acusado de receber esmolas das cortesãs, de aceitar óleos medicinais dos arúspices, de frequentar os pagãos e mesmo de tender para as doutrinas de Marcos, o Herético.

O bispo Alexandre chamou o velho à casa pobre em que vivia, e onde fabricava esteiras para viver do seu trabalho, e asperamente censurou a sua humanidade indiscreta. Onofre beijou, chorando, a orla da túnica de Alexandre; – e desde esse dia, não transpôs mais a porta da Assembleia, ficando fora, no terraço, entre os penitentes, com a cabeça sobre as lajes, que ele regava de lágrimas, como na expiação de um sombrio pecado. Por esse tempo, a velha Petronila morreu, e os seus herdeiros, avidamente, invadiram a casa, com escribas do Pretório, que selavam as arcas, arrolavam os bens. Secara a larga fonte de caridade, que através dele refrescara tanta miséria! E os seus Irmãos em Jesus não o amavam! Onofre tinha então setenta anos.

Começou então pela cidade a mendigar para os seus pobres. Pensou mesmo em se vender como escravo – e ser apregoado, no bazar, com a cabeça rapada, um rótulo no peito, e os pés pintados de branco. Mas que valia aquele seu pobre corpo, descarnado e vergado, com as mãos todas trémulas? Cinquenta dracmas? E amarrado a uma servidão, não poderia velar pelos velhos, pelos enfermos, que dependiam da sua caridade. Ele conhecia agora todas as misérias da cidade – e o seu amor crescia cada instante por aqueles miseráveis, que já não podia socorrer, e de quem, um por um, sabia as fomes, as chagas, as dores e a solidão. De noite, aflito, nos terrenos vagos, nas ruínas, para onde ia orar, erguia os braços para o Céu mudo, gritava: «Socorro, meu Senhor, socorro!»

Mas como o socorro não descia do Céu, cada manhã ele recomeçava desesperadamente, pela cidade, as suas súplicas lamentáveis, com uma velha panela atada ao pescoço por duas cordas, as mãos sempre estendidas. Assim estacionava nas praças, ou onde os canais se cruzavam, gritando: «Pão para os pobres! Pão para os pobres!»

Era então a estação das grandes chuvas: –e aquele velho, imóvel sob as grossas cordas de água, com os cabelos brancos empastados nas covas da face, e puxando a pobre túnica colada aos ossos que lhe tremiam, causava piedade: as esmolas caíam ressoando na panela de barro. Por isso Onofre temia os céus alegres e o ar doce, que aligeirando as almas, as desviam da compaixão...

Por vezes, passavam longos dias sem que tivesse alcançado esmola, ou um trabalho, por mais vil, que lhe desse um salário. E então ia pelos caminhos, chorando no silêncio da noite. Chorava pelas fomes que não podia fartar, por todos os males que não podia sarar. A sua miséria própria, a sua nudez, a sua fome, eram as únicas consolações

– porque ao menos o tornavam igual, pela miséria, àqueles que amava. Esse amor infinito e insondável, era tudo o que podia dar aos pobres, seus irmãos. Mas ele saía do seu coração tão intenso e ardente, que Onofre, por vezes, pensava que poderia, mesmo de longe, e invisível, consolar e dar esperanças, como o Sol, centro de calor, aquece e faz reviver. Quantas vezes ele alargava os braços na solidão, com um desejo desesperado de poder apertar neles, contra o seu seio, todos os que sofrem – e com eles morrer, deixar este mundo impiedoso. Atormentava então o Céu com orações ansiosas.

Com os olhos postos nas alturas, a mão estendida como se visse Deus de perto, e lhe falasse, revelava, lembrava a Deus, como a um pai distraído, certas misérias em certas moradas: – e murmurava: «Meu Senhor, Senhor do meu coração, há na Rua das Lojas uma pobre viúva com três filhinhos, sem amparo, sem pão; volta para lá os teus olhos piedosos!» E esperava com os braços estendidos a esmola de Deus – até que os braços lhe caíam cansados, e cansadas lhe caíam as lágrimas.

VII

Onofre, através das lágrimas que o turvavam, recordava aquele casebre pintado às listas pretas, aquelas crianças quase fluas, de grandes olhos famintos. Já ali decerto trouxera consolação e pão... E ajoelhando, arredou devagar os panos da face do homem, que jazia inanimado. Então reconheceu um pobre chamado Ozias, escravo de um homem cruel, um empreiteiro de obras. Oh pobre Ozias! Desde longos meses tinha aquela mulher, doente e definhando, e mal podia, com o salário da servidão, ter pão bastante para os seus três filhinhos, arrolados já como escravos. Quem o ganharia agora, aos três desgraçadinhos, o pão incerto? Oh dor! oh dor! E então, nesse instante, o pobre homem abriu lentamente os olhos, de onde duas lágrimas correram, pesadas, e lentamente murmurou num sopro débil, de infinda dor:

– Ai! os meus filhos.., os meus pobres filhinhos!

Então Onofre, desesperadamente, todo a tremer, atirou para o Céu:

– Oh Deus misericordioso! Oh Jesus, meu Senhor! pelas tuas chagas, e por todas as minhas orações, dá-me a vida deste homem!

Os seus joelhos bateram o chão. E tremendo, tremendo todo, com os ralos cabelos eriçados de terror divino, Onofre arrebatou contra si o corpo inanimado, ergueu-o, e recuou!

Um brado ressoou de pavor e prodígio. O homem estava de pé, com um sangue novo na face, retesando fortemente os braços brancos, reverdecidos – e sãos! Milagre! milagre! Todas as mulheres se arremessaram para dentro do casebre, gritando, numa

ânsia de palpar, sentir a pele refeita e quente daqueles braços de milagre. O soldado barbudo da Legião Germânica fugira, espavorido.

Ora uma tarde, ao anoitecer, depois de um dia estéril em que nada recolhera para os pobres, nem achara trabalho, por mais vil, que lhe desse salário, errando assim junto das muralhas, perdido nestas dores, e a chamar por Deus – ouviu de repente, ao fundo de uma viela, um pranto dolorido e agudo, como é o dos funerais. Correu, numa grande compaixão. À porta de um casebre de adobe, onde ainda ardia o lume pobre da ceia, estava estirado um homem, com a face escondida num pano, e os dois braços nus e moles, cobertos de sangue negro. De joelhos, diante dele, uma mulher, esguedelhada, gritava, com longos ais magoados e lentos. Três criancinhas juntas abriam grandes olhos aterrados. Outras mulheres, dos casebres vizinhos, apinhadas em roda, batiam na face, soltando também longos ais! E os camaradas, que o tinham trazido, contavam ainda a um soldado barbudo e louro, da Legião Germânica, que acordara aos gritos – como uma grande pedra, caindo de um guindaste, nas obras das muralhas, esmigalhara os dois braços ao miserável, e o abatera como morto.

E Ozias, como tonto, com lágrimas que lhe corriam sobre o riso da face, abandonava os braços, repelia as mulheres, experimentava a força recuperada agarrando os filhos, considerava com espanto os músculos refeitos, balbuciava e gritava:

– Estou são! Estou são!

Com o grande rumor, já vizinhos abriam os loquetes das portas, erguiam ao alto lâmpadas de barro. E o clamor erguido pelos dois camaradas de Ozias, engrossava, rolava:

– Milagre! Prodígio! Foi Onofre! Vinde ver!...

Mas Onofre desaparecera! Como levado por um vento largo, sem sentir os passos trôpegos, atravessara a Praça dos Obeliscos, transpusera a muralha derrocada, e caminhava junto ao rio, sob o silêncio das estrelas.

E ia num deslumbramento! Por vezes estacava, alargava os braços, murmurava:

«Fiz um milagre! Fiz um milagre!» Onofre, o mais humilde e rude servo do Senhor na

Igreja de Bubastes, fizera um milagre! E não desses tão fáceis, e nascidos da ilusão, como os sabem fazer os discípulos de Simão, o Mágico! Mas um milagre profundo, que tornara a Morte em Vida, como só os tinham feito os homens apostólicos, depois do

Senhor. Por quê? Por que lhe era concedido um tão divino poder?

Decerto ele fora abundante em obras! Longos anos gemera no Deserto, longos anos servira com humildade os homens. Mas Alexandre vivera no ermo, confessara a fé nos tormentos, ganhara almas inumeráveis para o Senhor, era Bispo e era Santo – e todavia nunca fizera um milagre! E Palemo, abade de Tebane, e Panúcio, abade de

Antínoo, que governavam comunidades na Tebaida, e recebiam de noite, de Jesus, a suma da Regra Monástica, não faziam milagres! Porque o escolhera o Senhor a ele – escravo que mendigava entre os escravos? Sem dúvida porque a sua vida, as suas longas penitências, a sua oração, tinham, mais que as de nenhum outro, em cidade ou ermo, satisfeito o Senhor!

Ele, pois, realizara a obra sublime de contentar Deus – e tão bem limpara a sua vontade de toda a culpa, e tão transparente e brilhante de pureza a tornara, que Deus, desde já, lhe confiava, na Terra, um poder transcendente... Mas então – era um Santo!

Presa ainda com a cinta vil da carne, a sua alma já recebera do Senhor a sua santificação. Brevemente libertado da carne, e da sua miséria, ascenderia fácil e naturalmente àquele céu, salpicado de estrelas. Entre esses divinos lumes habitaria, enterrando os pés nus no azul macio, vendo a face do Senhor sorrir, no resplendor inefável. Da terra subiriam para ele, Onofre, longos rolos de orações: – e os restos da sua argila mortal, os seus ossos, receberiam também a veneração dos homens, guardados em sacrários – entre lâmpadas e flores. Oh maravilha!

Mas aquele poder do Milagre seria perdurável, constante, enquanto vivesse?

Poderia ele agora, com segurança, curar todas as feridas, e sanar todas as misérias?

E uma inquietação apertava o coração de Onofre. Se aquele milagre tivesse sido isolado e único! Se amanhã, ante uma verdadeira e profunda dor, semelhante à de

Maria, irmã de Lázaro, ele se encontrasse de novo impotente para a desfazer, como antes da sua penitência no Deserto? Fora ele, pela sua vontade, que curara os braços esmagados de Ozias – ou fora a vontade de Deus que operara, passando apenas através da sua alma, como o sol através de um vidro? Se experimentasse?... Se experimentasse ali mesmo, sob o testemunho das estrelas? Além, o rio alagara hortas humildes, empobrecera colonos. Se ele marchasse para o rio, lhe gritasse: «Volta ao teu leito, abandona esses campos que assolas!?»

E já caminhava para a água, espalhada em largas poças, que reluziam, como discos de aço. Mais longe, a inundação invadira casais – de que se viam os colmos, ou os terraços de adobe, quase esboroados, e as pontas dos tamarindos, que outrora delimitavam os campos. Um grande sulco de Lua tremia na água imóvel: – e havia uma longa mudez de abandono e ruína.

Onofre olhou em silêncio, apoiado ao seu bordão. Longe, uma fila branca de cegonhas dormia, rente da água, coberta de nenúfares. Se, à sua intimação, aquelas

águas recolhessem ao seu leito, deixando enxutos os casais, e mais adubadas as leiras – certo estava então estabelecido o seu poder sobre as coisas. E na ansiedade de uma certeza, ergueu devagar o braço, bradou, arrepiado de emoção e temor:

– Rio, recolhe ao teu leito!

A água toda tremeu. As poças que rebrilhavam, bruscamente se sumiram, deixando um limo grosso e rico: – e além os casebres, os tamarindos, os papiros, emergiam lentamente da água, pingando, e reluzindo à Lua. O rio obedecera a Onofre – e um frémito corria sobre a terra e o ar, como o de um terror submisso ante uma pre-sença divina.

Então uma alegria sobre-humana trasbordou no coração de Onofre! Era dele, era dele, e permanente, o Dom do Milagre! Oh! quanto bem faria aos homens! E, no seu deslumbramento, corria através dos campos, com os braços abertos, como para acolher, estreitar, o Universo sofredor. Onde havia aí agora chaga que ele não sarasse? Onde havia mãe debulhada em lágrimas, sobre um esquife, a quem ele não restituísse o filho?

Escravo que ele não remisse? Terra estéril de onde não fizesse brotar a lentilha e o vinho? – «Oh meus irmãos, meus irmãos, não receeis mais, Onofre pode, e está convosco!»

Ah! como Deus o amava! Mas também que obras! Cinquenta anos ele padecera pelos homens. Por cada dia de fome que ele arrostara no Deserto, o Senhor dava-lhe agora o poder de saciar a fome de um lar. E porque ele se abaixara a tanta humildade, ascendia agora a tanto poder! Um poder insondável e magnífico, que descia até aos remos escuros da Morte! César não tinha mais poder. Com os seus prefeitos, os seus lictores, e legiões mais bastas que as aves do ar, e máquinas de guerra rolando através da terra, César seria impotente para deter uma gota de água, caindo de uma nuvem. E ele, Onofre, escravo de escravos, só com estender o braço, recuava as correntes do Nilo, o grande rio que desce do Paraíso... Se ele era mais poderoso que César – deveria, pela manifestação desse poder transcendente, forçar César a reconhecer a Verdade!

Nem Paulo, nem Marcos, nem Barnabé, tinham suficientemente deslumbrado os gentílicos! Intimações, orações nos Forum, epístolas arguciosas – que importavam? Os pagãos tinham uru saber sólido, e retóricos mais facundos. Só pelo Milagre se poderia triunfalmente provar Jesus! Pois bem: ele, Onofre, iria a Roma! Se as ondas cruéis assaltassem a proa da sua galera, amansaria as ondas: – e espalharia os prodígios, ao comprido da estrada que o levasse à cidade! Nos átrios de César, ante aquela face que assusta e enche de sombra o mundo, ele diria com simplicidade: «Adora o Senhor!» E quebraria, como galhos secos, as espadas que se erguessem contra o seu peito! Com um sopro derrubaria os ídolos do bronze mais eterno! E se contra ele se erguessem, no

Pretório, filósofos ou gramáticos – ele imediatamente lhes secaria as línguas impuras nas bocas impuras, ou os faria ladrar como cães contra a Lua. Roma tremeria toda sob os seus prodígios, como uma cabana ao vento. E quando César, vencido, rojando a púrpura no pó do seu átrio, lhe perguntasse: «Que queres?» – ele diria então com simplicidade: «O mundo, para o restituir a Deus!» E a Deus daria, com efeito, as cidades, os homens. Por que não? Em verdade, ele seria César!

E com a face erguida, no seu imenso sonho de orgulho, Onofre riu largamente.

Era César!

Então, larga e áspera, uma outra risada soou por trás dele na solidão. Num terror,

Onofre olhou em redor, ansiosamente. «Quem ri?» exclamou. Aqui, além, através do ar tão sereno e repassado de luz, a risada áspera e lenta, saltava, estalava. E já os joelhos de Onofre, tremendo, desciam para a terra – quando longos dedos moles o repuxaram, e uma voz acudiu, mais dura e seca que o rolar de calhaus:

– Oh Onofre! Oh César que tudo podes! Olha o rio! Olha o rio! Do alto do teu orgulho, oh meu irmão, olha o rio!...

Diante de Onofre, até às colinas, até aos muros derrocados de Bubastes, o Nilo subira, mais largo, mais devastador. A Lua brilhava sobre as águas. As cegonhas fugiam, no silêncio. E uma onda fria, que marulhava encrespada, batia já aos pés do velho. Tentou recuar, mas todo se sentiu enlaçado naqueles dedos moles, que se alongavam, se enroscavam, como serpentes frias em ramos de árvore. Então compreendeu: – o seu milagre fora uma ilusão do Demónio! Um longo grito rompeu da sua alma: «Jesus!» E caiu por terra, coberto de um suor tão frio, que ele pensou ser a

água que o devorava.

Quando se ergueu – com tantas, tão densas lágrimas, que mal podia, através da sua névoa, achar o bordão a que se arrimava – foi para considerar o pecado insondável em que se despenhara. Como outrora, na sua cova do Ermo, caíra pelo Orgulho! Na sua alma tão bem defendida, o orgulho abrira à traição uma fenda – e por ela entrara todo o

Inferno. Oh miséria incomparável! Tão longos e ardentes anos trabalhara para limpar a sua alma, que a julgava toda transparente, e branca, e rebrilhante, como uma água muito pura num cristal muito polido. Não suspeitava, que, escondido no fundo, ainda restava um pouco de lodo primitivo – e eis que o Demónio a invade, e nela se debate furiosamente, e agita o lodo fundamental, e a torna tão turva e fétida como um charco espezinhado e fossado por um bando de porcos. Oh miséria, oh dor! Como ele toda essa noite, sob o testemunho dos lumes divinos, ofendera audazmente o Senhor! E de que modos afrontosos e diversos ele o ofendera – tomando como uma força da sua virtude o que era apenas uma graça caída da misericórdia de Deus! Longe de se regozijar com o pobre pedreiro, e com ele ficar, em humildade, louvando o Senhor – correra para longe, a saciar-se voluptuosamente, na solidão, de sonhos ardentes de soberba e glória. E em vez de aproveitar aquele prodígio, tão doce e tão humano, para o derramamento da

Verdade entre os gentílicos, só sofregamente o considerara como proveito da sua ambição transcendente. Oh quanto ofendera o Senhor! Num momento estragara uma longa vida de penitência – e todo se tornara de novo, da cabeça à sola dos pés, uma crosta fétida de pecado. Onde havia na terra monstro bastante imundo, para ser congénere do seu corpo, e da alma imunda que dentro dele apodrecia? E agora, tão velho, como poderia ainda, através da penitência, alcançar a purificação! A morte já se avizinhava, e a alma que tinha para restituir a Deus, estava coberta toda da lepra do mal.

E sem tempo para a limpar, pela oração e pela humildade – era o Inferno, o Inferno iniludível! Oh miséria!

Seguro com aquela infinita paz, em que deliciosamente se movia, como no inefável ar do Paraíso – ele esquecera o Demónio. Mas, pacientemente, o Inimigo do homem rondava em torno dele, subtil e mudo, como um vento de pestilência. E ele respirava tão profundamente esse vento pestilento, que cada um dos seus pensamentos fora então como uma chaga que supura. Com os pés enterrados na lama, ele considerava o Céu como já seu, ousando pensar que era um Santo! E entre aquelas estrelas marcara o seu lugar de beatitude! Horrendamente desvanecido, calculava, como um conquistador que conta as suas coroas triunfais, as lâmpadas e as flores, e as oferendas, que cercariam o altar onde pousassem os seus ossos! E, certo da divinização, ante-gostara as orações, que por ele se elevariam da terra! E como se lhe não bastasse no Céu a beatitude, apetecera desde já, na Terra, o Império. Sonhara com Roma – e queria César, vencido e humilde, oferecendo-lhe o mundo como um fruto maduro. Sete vezes insensato! Que, enquanto assim medrava horrendamente em soberba, e se divinizava em Terra e Céu, o

Demónio estava em torno dele, e dentro dele, ocupando, saturando cada recanto do seu ser, como a água faz a uma esponja.

Que lhe restava? Só a penitência – só a penitência, feita na solidão, longe, muito longe de todas as suspeitas dos homens, para que nunca ela pudesse ser estragada pelos louvores humanos. Longe, muito longe dos homens – porque toda a virtude que entre eles se manifesta, logo que lhes arranca uma admiração, é mais cheia de perigos que um aroma muito sensual, ou um canto muito amoroso. A mais humilde esmola, a chaga de um mendigo que se lava, uma simples consolação, desde que se mencionem, são perigos terríveis para a alma, porque a persuadem da sua caridade e excelência. Pelo bem que semeamos nos outros, só colhemos dentro em nós orgulho – e cada obra da nossa caridade desmancha a obra da nossa humildade.

Só lhe restava procurar uma cova bem funda – e, aí, tão profundamente humilhar a sua alma, que ela, só pelos olhos de Deus, pudesse ser diferençada do lodo ou das imundícies.

VIII

Toda a verdura findara e só havia agora terra seca – a planície arenosa, coberta de um rubor matutino, estendendo-se às montanhas líbicas, que pareciam de um mármore fino e cor-de-rosa. Onofre avançava, orando, gemendo, com a longa barba a arrastar. A espaços, parava, não para repousar, mas para descobrir na areia os sulcos que os seus joelhos pesadamente cavavam – e sentir bem, nesse rasto de fera, a imensidade da sua abjecção. E se avistava seixos aguçados ou uma pedra áspera, por sobre elas se empurrava, para abater, pela dor da carne débil, a rebelião da alma soberba. Já a sede o devorava, e bebia, com avidez e gosto, as lágrimas grossas que lhe arrancavam as saudades dos seus anos de paz e pureza.

O dia ia em meio: todo o deserto refulgia, lívido, de uma horrível secura. As montanhas, ao longe, na tremura do ar quente, eram amarelas – e só havia, em toda a extensão, silêncio, solidão e sol.

Onofre avançava, arquejando, com a língua seca e pendente. Um poço de caravana, marcado ao longe por um círculo de pedras e dois tamarindos negros, surgia como uma tentação: – mas o penitente afastou a face, mais ansiosamente rastejou, fugindo daquela água, decerto turva e lodosa como de uma voluptuosidade mortal. E não cessava de orar. Quando encontrava ossadas de animais, esparsas no pó, erguia os olhos embaciados às alturas, murmurava: «Meu Deus, faz que os meus ossos vis, assim

Assim Onofre gemia sob o esplendor das estrelas. Quando a madrugada já clareava, apanhou o seu bordão, e marchou para os lados do deserto líbico. Quando já as palmeiras apareciam mais raras e espaçadas, e nas areias, rosadas pelo sol, apenas aqui e além rebrilhava alguma derradeira poça da água do Nilo, ele avistou um chacal, que rastejava entre pedras procurando o covil – e considerou quanto se assemelhava àquele animal imundo, que fugia da luz e dos homens. Só na verdade os diferençava, não a alma porque a dele se bestializara pelo Pecado – mas o corpo, que nele caminhava erguido, com a face para o céu, à maneira do homem mais justo, e na fera pousava sobre as quatro patas, com o focinho baixo, como mal despegado ainda da argila original de onde nascera. Então, para mais completamente se humilhar, e nada reter da humanidade superior, que não merecia, decidiu igualizar o seu corpo ao do bruto – e penetrar de rastos na Penitência e no Deserto. Arrojou o bordão, despiu o saio de lã, atirou as mãos sobre a areia, e começou a caminhar de rojo, lentamente, entre a erva já rara e amarelada, como uma alimária ferida. também branquejem perdidos!»

As angústias da fome, que o assaltavam, foram para ele como bem-vindas – e ofertou essas dores ao Senhor como lhe ofertara a da sede. O destroço do seu corpo era tão grande, que cada pousar da mão esfolada na areia ardente lhe arrancava um gemido:

– e já por momentos se abatia, estirado, inerte, como morto, sob a dardejação crua do

Sol. E era então nele um terror angustioso da morte, que lhe abreviaria os tormentos, e lhe impediria o resgate.

A refulgência do deserto esmorecia, e um lento véu anilado revestia a cordilheira líbica. Era o descer da tarde – e com ela descia sobre Onofre uma sonolência, fria e funda, como um desmaio.

Para a sacudir tentava cantar hinos santos: – mas a sua pobre boca, ressequida e rígida, como de greda, só lançava sons roucos, que se perdiam entre gemidos. E marchar, já não podia, porque os seus joelhos eram duas chagas, onde se empastavam areia e sangue. Rasgou um pedaço da túnica, para os embrulhar: – e como o Sol se escondera e ao longe, um monte de pedra, uma magra palmeira, indicavam outro poço, para lá se arrastou, receando tombar num estado de inanição, que lhe encurtasse a penitência. A água do charco era negra e lodosa: – mas sobre essa pedra havia uns restos de farinha e de fava crua, desses que as caravanas deixam para as divindades do deserto. Comeu enfim, bebeu enfim! Lavou as feridas – e mesmo deixou que os olhos se lhe cerrassem, mas, de pé, apoiado ao gume de um penedo, para que o sono fosse doloroso e breve. Despertou aos uivos tristes dos chacais. Todo o céu se enchera de estrelas: – e Onofre pousando na terra dura as mãos em chagas, recomeçou a avançar no deserto. Tão radiantes e largos eram os astros, que a ilimitada areia alvejava sob a muda palpitação, com a lividez de um sudário: – e então grossas formas, terríveis pela sua bestialidade, vieram aterrar o coração cansado do penitente. Ora era um vasto macaco, de dorso arqueado, que sobre as quatro mãos caminhava ao lado dele, como ele, e quando ele gemia, gemia e quando ele orava, guinchava. Ora era um licorne, que vinha do fundo do ermo a galope, e estava diante de Onofre, com o seu corno enristado entre os olhos, refulgindo intoleràvelmente. Depois eram disformes morcegos quase tapando o céu, que se abatiam com um voo mudo e mole, e o cobriam com as suas asas, que tinham o calor de uma carne nua. E Onofre ia caminhando no ermo, rodeado de monstros.

Para os espantar, o desgraçado gritava o nome de Jesus – e eles recrudesciam, inumeráveis e silenciosos. Não eram, pois, demónios?

E Onofre deixou cair o corpo, como esmagado sob tanta cólera do Céu.

Imediatamente, todas as formas medonhas, os dorsos, os focinhos, as asas frementes, se abateram, se estenderam como um pano fúnebre sobre o areal. E só houve um silêncio sob o grande céu estrelado.

Onofre cerrara os olhos, inanimado. E através de um descanso que o envolvia, doce como o da noite, entrevia a distância, batido por um sol de madrugada, um bosquezinho de palmeiras e sicômoros, que era o da morada em que nascera. Um fio de

água descia de um tanque de pedra, cantando entre os linhos verdes. Os íbis pousavam na borda do terraço. Para além alvejavam os propileus, cobertos de relevos, do templo de Serápis. O velho escravo, que lhe ensinara as letras, lá estava no seu costumado assento de pedra, envolto nos panos brancos, todo rapado, cheio das rugas do saber, e imóvel, com as mãos longas, de cera, pousadas sobre os joelhos magros, meditando a eternidade.

Homens graves, com a túnica branca dos cristãos, que se preparavam para atravessar o Deserto, em peregrinação às ermidas da Tebaida, esperavam sob a ramada de vinha, com os seus embrulhos no chão, e por cima o cajado. O velho escravo núbio

Amés, carregava com lentidão os odres de água sobre os dromedários – e cantava um antigo canto da Núbia. Mais doce e triste era o canto, nos seus ais prolongados, que as ramas das palmeiras na sua cadência!... E ele, Onofre, lá estava também, curioso, pasmando para os homens que iam assim tão longe visitar Antão, e Pacómio, e Paulo, e os Santos magníficos que habitavam sepulcros...

Um enternecimento infinito penetrou Onofre – e estendeu ansiosamente os braços para aquelas imagens, tão antigas e doces. Oh! se ele recuperasse a simplicidade desses tempos, naquele bosquezinho de mimosas... As lágrimas brotaram quentes e densas dos seus olhos cerrados – e através da névoa deles, arvoredos e casas, e o dromedário, e o velho núbio, com a sua tanga, branca, tudo se confundiu e desvaneceu.

Então naquele imenso deserto, que o cercava, sentiu mais profundamente o seu abandono, e a sua miséria. Deus, seu socorro e força no ermo da sua antiga penitência, para sempre agora se retirara da sua alma. E era solitário, desamparado do Céu, tão velho, cheio de chagas, e deixando o seu sangue em rastos pelas areias, que ele tinha de afrontar as solidões, os transes, as necessidades, e os demónios. Que importa? Devia caminhar, e padecer.

E de novo recomeçou a rastejar, balbuciando louvores ao Senhor. Todas as estrelas se tinham apagado. Das formas monstruosas que há pouco o cercavam, nenhuma se destacava, ou movia na escuridão ilimitada. Apenas restava a mudez, a treva, e a solidão infinita. E sob aquele vasto céu negro, por sobre aquele imenso deserto negro – Onofre lá seguia, única forma viva, negra também, de rastos como um bicho, todo ferido, todo sangrento, gemendo com longos gemidos, que se perdiam na treva. E não cessava de avançar, nem de gemer. Sempre para diante, pousando na areia as mãos roídas e gastas, arrastando na areia os ossos descarnados dos joelhos – e chorando, e gritando: «Senhor, tem piedade! Senhor! tem piedade!»

Mas já a alma ia perdendo o domínio sobre o corpo: – e era só o seu desejo que caminhava para além, para as montanhas, porque a cada instante os braços se lhe estiravam pelo chão, moles e inertes, e entre eles a cabeça, coberta de suor regelado, ficava rolando na areia, na tontura de uma agonia. Tentava então, desesperado, arque-jando, solevar aquela carne miserável que o traía. E não podia, não podia! Só lhe restava acabar ali, naquela areia, sem alcançar o resgate encetado do seu pecado. E com a face voltada para o céu, para o céu negro, sem uma luz, que lhe fosse como uma esperança, esperou a Morte. Mas a Morte não vinha. Ante os seus olhos, embaciados e lívidos, como que surgia uma claridade. Era como uma névoa, vaga e rosada – e através, vinha de longe, tristemente, o tanger lento de uma sineta em marcha.

Subitamente sentiu rumores, vozes. E entreabrindo as pálpebras, distinguiu faces escuras e ardentes, que se debruçavam sobre ele, um cavaleiro com uma lança, e longos pescoços de dromedários, carregados de fardos. Uma cabaça foi posta contra os seus lábios, e bebeu dela, avidamente. Já havia mãos fortes que o erguiam – e sobre os seus joelhos feridos caía deliciosamente um fio de óleo muito fresco. E já de pé, entre os braços que o amparavam, Onofre desmaiou, docemente.

Mas, através do seu desmaio, ele sentiu que o içavam para cima de um dromedário, onde ficara como um fardo, estendido entre fardos. Houve brados. E a sineta recomeçou tilintando lentamente, em cadência – enquanto ele, embalado pelos passos do dromedário, que já por vezes chapinara água, recaíra naquele desmaio tão doce, em que todas as misérias da sua vida adormeciam, como dores que se calmam num banho.

IX

Era uma caravana, que trazia gomas da Cirenaica, que assim o recolhera por compaixão da sua velhice, e do sangue que lhe corria das feridas. E quando Onofre reabriu lentamente os olhos, a manhã clara enchia o céu, um cheiro de verdura tenra errava no ar macio, e os íbis esvoaçavam pelos ramos das mimosas. O seu dromedário ajoelhara – e os mesmos homens de faces queimadas e ardentes o ergueram, e levaram para um pobre casebre, com um vergel, onde mulheres, sob uma palmeira, pisavam, cantando, o grão de centeio. Turbas correram, um velho acudiu, com o seu balde de rega

– e estirado sobre um montão de folhas secas de papiros, dentro do casebre, Onofre sentiu ainda, através de um rumor de piedade, que lhe limpavam as faces, lhe deitavam sobre as feridas um óleo salutar. Depois readormeceu.

Ao declinar da tarde, quando acordou, o velho estava diante dele numa contemplação grave, sentado com as mãos pousadas sobre os joelhos, como uma estátua de escriba. E as duas filhas esperavam, agachadas sobre esteiras de cores, com lentilhas numa malga, e um púcaro de água do Nilo. Onofre comeu e depois ergueu a custo o corpo do leito de folhas, para retomar o caminho do Deserto. Mas, por humildade e exemplo, contou a sua história, a sua penitência, os seus pecados, e como caíra exausto no grande areal, sob a cólera do Senhor.

Então de repente o velho, erguendo as mãos espalmadas, gritou:

– Oh homem cheio de anos e de virtude, tu és daqueles que sabem as palavras novas que consolam! Fica entre nós, come do nosso pão, e ensina as nossas almas.

E Onofre, espantado, soube que, havia tempos, ali tinham vivido dois monges, que todos amavam pela sua caridade, pela sua ciência das ervas que curam, a sua arte em expulsar os demónios, e ainda pelas doces festas com que celebravam o rejuvenescer da Primavera.

Mas um dia tinham partido para um mosteiro, no Alto Egipto – e desde então toda a aldeia os lamentava, e lamentava as doces histórias que contavam do Menino nascido no curral, e de um reino no Céu em que todos comeriam de frutas divinas, e da cruz de escravo, em que a Vítima tomara sobre si todos os pecados humanos.

Assim, oh! alegria! Onofre, fora trazido para entre almas quase irmãs! Nos olhos negros das duas raparigas, que se erguiam para ele, brilhava um calor de fé. E o velho, alargando os braços, murmurava ainda com ardor:

– Oh homem justo, que sabes a natureza dos deuses, e as coisas que estão para além da vida, fica na nossa morada, come do nosso pão!

No coração de Onofre ia um grande alvoroço. Fora por acaso, por determinação do Senhor que ele viera, trazido do fundo do ermo, para que sob o seu ensino a Verdade, já em botão, de todo florescesse naquelas almas simples? Então o Senhor convertia, a privação da sua penitência, na glória de um apostolado! Por quê? A noite de agonia, de onde vinha, fora bastante resgatadora, para que sobre ele descesse já a misericórdia do

Céu?... Não lhe competia a ele, servo do Senhor, penetrar os motivos de seu Amo. Para entre aquelas almas, onde já se enterrara a boa semente, fora ele trazido – e só lhe cumpria trabalhar como bom lavrador, no campo precioso que Deus lhe confiava. E humildemente murmurou:

– Pois que de mim necessitais, entre vós ficarei.

E ficou – escolhendo logo para morar um alpendre, aberto a todos os ventos, em que o velho recolhia os seus búfalos. Em breve, por todas as choupanas, se espalhou que outro monge chegara à aldeia – que sabia também as histórias divinas do Menino que nascera na Síria, e de seu Pai que acolhia os servos mais humildes, num Céu todo cheio de cantos e de abundância. De todos os casais logo as mulheres acudiam, trazendo a

Onofre presentes de frutas, e bolos de mel, e linho tecido. De joelhos, diante do seu alpendre, Onofre orava, com os braços abertos, a face voltada para o Céu: – e todos pasmados para aquela velhice tão macerada, para as longas barbas brancas que no chão rojavam, erguiam também como ele, mudamente, para o Céu, os olhos cheios de uma esperança nova. O que contemplava ele assim, no Céu radiante? Quais eram essas orações que ele sabia, e como se falava a esse Deus tão bom, e tão amigo dos pobres? E quando Onofre recomeçava a contar do Senhor, e dos seus grandes ensinos de caridade, e de bondade, e de amor, um doce murmúrio de contentamento corria entre os simples, como de famintos que são saciados. Uma lenta adoração inconsciente e ainda gentílica, começava a envolver Onofre, saída ardentemente daqueles corações simples – que não diferençavam bem o Deus Novo do velho Solitário que o revelava. Quando ele atravessava os bosques, ou os atalhos entre os campos – a gente prostrava-se ante ele, com uma reverência misturada de medo: as mães traziam os filhos, nus e coroados de flores, como quando os votavam aos antigos altares, para que

Onofre lhes desse a Boa Sorte: – e os casaleiros vinham puxar pela ponta da sua túnica, mostrando, com o olhar suplicante, os campos que desejavam que ele fecundasse.

Um surdo temor, então, invadiu Onofre – porque, naquela reverência pela sua virtude, ele só via perigos para a sua humildade. Quando lhe traziam doentes para que ele os sarasse, ou mulheres possuídas de um demónio para que ele as purificasse – já

Onofre recuava aterrado, batia no peito, gritava: «Mas eu não sei! não posso! Quem sou eu? O mais vil dos pecadores. Pedi a Deus, orai a Deus». Mas a dor daquelas almas crédulas ante as suas súplicas desatendidas, dilacerava o coração de Onofre. E não era menor o tormento da sua dúvida. Se ele possuía na verdade, por graça do Senhor, o dom de sarar a carne doente, calmar as almas, quanta era a sua crueldade em não suprimir essas aflições? Mas também no exercício do milagre, quantas pavorosas tentações do orgulho! E cada dia este tormento se alargava. Aquelas mães desgrenhadas, que lhe gritavam entre soluços: «Tem piedade do meu pobre filho!» Aqueles velhos aleijados, que do chão onde os retinha o mal, estendiam os braços para ele, com ansiedade, murmurando: «Ah se tu quisesses!» E ele, forçado pelo terror de Deus, e dos riscos que corria a sua alma – forçado a não ter piedade, e forçado a não querer!

Mas não comprometia ele também, com aquela dura inércia, o derramamento da

Fé, e da Lei do Senhor? Não findariam, aquelas gentes simples, por se desprender de um Deus que eles viam tão desatento e alheio às suas misérias? Já quando ele ensinava o Deus Novo, nas faces, em redor, havia desconfiança e desdém. Nas suas longas orações, então, pedia ao Céu uma inspiração. Mas do Céu emudecido, e fechado para ele, nenhuma inspiração descia sobre o seu espírito angustiado. Redobrava as penitências, torturava com o cilício o seu pobre esqueleto, alongava os duros jejuns, clamava por Deus do fundo da sua incerteza. E Deus permanecia impenetrável. Com esta dor da sua alma, ele ia ficando mais macerado, mais abatido, mais velho, do que com trinta anos de trabalhos no Deserto. Já quase não se sustentava direito: e caminhava tão trémulo, apoiado ao seu bordão, que um pouco de vento o poderia derrubar. A sua consolação seria que aquele povo o ultrajasse pela sua crueldade, a sua resistência a fazer o bem supremo. Oh! se o amaldiçoassem! Se o apedrejassem! Cada pedra, que o ferisse, a ofertaria ele ao Senhor, como uma evidência da sua humildade. Mas, doce e tímida, aquela gente só se lamentava, como os que são abandonados. E sem sacudir a esperança, voltavam, insistiam em suplicar a sua intervenção omnipotente.

X

Um dia uma filha do velho que o recolhera, não acordou – e ficou branca e imóvel no seu catre, como se a alma, durante o sono, a tivesse para sempre deixado. Diante dele, de joelhos, o velho suplicava e chorava:

– Tu podes tudo. Sabes as artes. És amado de Deus! Os outros monges curavam, dispunham da vida. Salva, salva a minha filha do meu coração!

E, cheio de lágrimas também, Onofre sentiu a certeza de que se tocasse com as mãos na face da pobre rapariga, ela se ergueria curada, e sorrindo. E já estendia as mãos

– quando, bruscamente, no seu espírito, passou, como o clarão do Inferno, o orgulho do seu poder.

Então recuou, aterrado, a tremer.

O velho, de rojos, beijava os pés de Onofre.

–Sê bom! sê bom!

Mas Onofre via o Inferno – e fugiu, fugiu, soluçando, arrepelando as barbas, num desespero infinito... Fugiu do casebre, fugiu da aldeia. Duas vezes caiu, tão trôpego e débil. E ia atirando sempre os passos trémulos para longe dos homens e do seu perigo, para a solidão inviolável, onde não estivessem os homens, e estivesse a Morte. Todo o dia assim se arrastou. E o Sol descia num céu de ouro, quando os seus olhos, cansados, e mal seguros através das lágrimas, avistaram arvoredos, e casais, outra aldeia, na orla dos areais. Onofre tinha fome e tinha sede: – e querendo só forças para continuar o sofrimento, arrastou os passos para uma cabana mais isolada, feita de adobe e canas, apoiada contra um longo muro, um antigo resto de muralha. Uma rapariga, que voltava da fonte, pousara à porta da cabana, sobre uma pedra, o seu cântaro de barro; e vendo aquele velho, de imensas barbas, em farrapos, que avançava tropegamente na poeira do caminho arrimado ao seu bordão, ficou como à espera dele, com uma piedade nos seus largos olhos negros. Onofre estendeu a mão para uma esmola. Ela entrou na cabana onde uma criança chorava lentamente, num choro cansado, doente.

Quando voltou com um pedaço de pão duro e velho, já Onofre se abatera, de fadiga, sobre o chão, com a cabeça encostada ao muro, os olhos tristemente perdidos no céu, naquele céu, para onde em vão a sua alma aspirava. Os íbis esvoaçavam, recolhendo aos ninhos. Longos raios de ouro pálido passavam através das palmeiras, e longe, do lado do rio, vinha o mugir lento dos búfalos. Onofre comeu o pão da esmola;

– e a boa rapariga inclinou, para a sua pobre boca ressequida e poeirenta, a borda do cântaro, murmurando: «Que esta água alegre o teu coração!»

Ele bebeu, louvando o Senhor, que manda a água aos que têm sede: – depois apanhou o seu bordão, e, ajudado pela boa rapariga, de novo se ergueu, com um suspiro tão doloroso, que os dois belos olhos negros se humedeceram.

E seguia – quando à porta da cabana uma mulher, pálida e magra, apareceu, trazendo ao colo uma criancinha que um farrapo embrulhava. E Onofre parou, tomado de uma infinita piedade por aquele pobre pequenino, todo encolhido nos braços da mãe, com a facezinha caída contra o seu ombro, como uma flor tenra, quebrada pela haste, e já morta. Grossas crostas, de feridas arroxeadas, cobriam a sua miserável cabeça, onde todo o cabelo se despegava; a orelha era uma chaga; um trapo manchado de sangue seco cobria um dos seus olhos, recaía ainda sobre o outro, amortecido, toldado de lágrimas; uma pele lívida e mole recobria os seus ombros; e o seu gemer não cessava, lento e cansado.

Com tanta dor e ternura o considerava Onofre, que a pobre mãe contou como aquele mal lhe viera, quando ele chegara aos dois anos, e ela ficara viúva, e a miséria se abatera sobre o seu casebre. Com o filho nos braços, mendigando o seu pão, ela percorrera os templos, onde os males se curam, escutara os conselhos dos que vêm de longe e conhecem as ervas salutares. Mas o mal de seu filho, nem homens nem deuses lho tinham curado. Tão pobre era que nem um pouco de leite alcançava para o consolar:

– e sempre com ele nos braços, adormentando o seu sofrer, e sobre ele chorando, como podia trabalhar? A caridade dos vizinhos, pobres também, já se cansava. E em ninguém tinha esperança. Em ninguém tinha esperança:

Onofre murmurou:

– Jesus foi pequenino, e sofreu!

E então uma Voz, lenta e triste, mas em que havia a certeza e o orgulho de uma

Força, murmurou dentro dele: «Ah! se tu quisesses, Onofre!...»

Todo ele tremeu. Se quisesse! Era outra vez o Inimigo incansável que lhe soprava na alma o calor do Pecado. Sim! se ele quisesse – aquelas feridas secariam, e aquele gemer findaria, e o pobre corpinho, como um galho seco, reverdeceria, cheio de seiva nova. E logo nele, para sua perdição, se desencadearia o orgulho do seu Poder! Não, não! Ele bem sentia o Inimigo, tentando penetrar nele pela porta da sua piedade entreaberta. E sempre a sua perdição estava onde estivesse a humanidade! Só no ermo havia segurança. Murmurou uma bênção à mãe desgraçada, e ia partir, desesperado.

Mas a criancinha gemeu – ele parou ainda com um longo suspiro. Oh doce inocentinho, que toda a longa noite ia assim gemer tão dolorido, talvez com fome!... E ninguém o curava. E não tinha ninguém! Os lábios de Onofre tremiam.

– Oh meu pobre menino, meu pobre menino! – exclamou.

Então a criancinha ergueu a cabeça devagar, e com um gemido maior, um ai tão triste, levou a tremer a mãozinha magra ao seu pobre olho coberto de trapos.

Uma violenta, desesperada piedade invadiu o coração de Onofre. Arrojou o cajado, gritou:

– Pois bem, que importa! Que a minha alma se abisme no orgulho e no mal!

E com a face que flamejava, os cabelos eriçados de terror divino, arrebatou a criança, levantou-a toda para o Céu. E diante da mãe espavorida, Onofre bradava:

– Meu Deus, dá-me o meu salário. Setenta anos te servi. Por ti sofri todos os tormentos do Deserto! E, sem descanso, sem um queixume, sem um pedido, trabalhei na tua obra. Dá-me o salário que me deves! Que esta criancinha me sare aqui entre as mãos

– e estou pago. Depois, se quiseres, abandona a minha alma!

Os seus braços trémulos, sem força, deixaram cair a criança – que a mãe agarrou, apertou sofregamente. Mas, oh prodígio! estava sã! Secas todas as feridas da face!

Redivivos e límpidos os olhos, que num momento se alargavam e sorriam! Fresca, e cheia, e rosada por um sangue novo, a criancinha, que o mal chupara, colhida agora nos braços da mãe, já adormecera num longo, doce, infinito e profundo repouso.

Com ele assim no colo tão quieto, tão são, ela, na grande alegria do prodígio, nem se movia, sufocada: – e dos seus lábios trémulos, só fugira por fim um grito abafado de inquietação:

– E para sempre? E para sempre?!

Mas Onofre já desaparecera.

Deslumbrado, espavorido, corria tropeçando, ao longo da velha muralha, com os cabelos ao vento, as mãos ao céu.

Furiosamente, na sua alma, se erguera logo a certeza da sua santidade. E debalde ele queria recalcar, sufocar aquela afirmação do orgulho, que nele se desenroscava como uma serpente acordada e faminta. «Não! Não era tanto. Fora Deus, só Deus que fizera o prodígio. Só ele devia ser louvado, na sua Misericórdia sublime!

Mas vozes confusas, violentas, silvavam, cantavam nas profundidades do seu ser:

«Foste tu! Deus só escuta aqueles que ama. Tu és o amado de Deus. A manifestação do seu amor é a concessão da Bem-aventurança. O Céu é teu. Em ti reside a virtude celeste! Toca com as tuas mãos um galho seco e ele reverdecerá!»

Estava, pois, plenamente invadido pelo irremediável Orgulho. Só aniquilando o seu espírito, ele poderia destruir o Mal que nele habitava. Toda a mortificação da carne era inútil – porque sempre aquela luz de Inteligência, que dentro dele tremia, seria feita de fogo do Inferno. Estava perdido! Estava perdido!

Caiu com a face no chão, junto às muralhas que o Sol poente cobria de cor-de-rosa, e ali ficou, para sempre, e para morrer. Aquela alma perversa, que ele trazia em si como uma fera indomável, estava destinada aos tormentos sempiternos. Pois bem! que neles se afundasse depressa – porque, quanto mais errasse sobre a Terra, mais afrontaria o Senhor. Adeus, pois, oh Vida! Quão estéril, e inútil lhe fora, pois que lhe não servira para vencer a Morte!

E com a face no pó, os braços estendidos no pó, colando-se a todo aquele pó, em que queria abismar o seu ser, soluçava:

– Vida inútil, vida estéril!...

Mas, então, pensou naquela criancinha que, agora, dormia, sã, livre de toda a dor, e tão docemente nos braços de sua mãe. Inútil a sua vida? Não. Ele descia aos abismos arrastado pelo orgulho – mas, ao menos, no mundo ficava, por obra dele, esse pobre pequenino, que já não sofria, nem levava, gemendo, a mãozinha à sua pobre face cheia de chagas!

Então, uma Voz muito doce, murmurou sobre ele:

– Onofre!

O velho ergueu a face lentamente, depois o corpo trémulo, e começou a caminhar.

Mas os seus passos tremiam tanto, que se encostou ao velho muro que ele mal via já, sob a névoa de lágrimas, e no desmaio, que lho velava.

Assim se arrastou um momento, tremendo, gemendo.

Mas, doce e cheia de carinho, a Voz ao seu lado murmurou:

– Onofre!

Então Onofre voltou a face – e avistou uma forma que resplandecia toda, de brancura, na solidão do crepúsculo. Mudo, já todo frio, deu para ela um lento passo – e desfaleceu, caiu sobre o seio de Jesus Cristo, Nosso Senhor, que o apertou docemente nos braços, e o levou consigo para o Céu, no esplendor de ouro da tarde.

S. FREI GIL

PLANO DA OBRA 1

Nascimento de Gil, num solar ao pé de Vouzela. – O pai e a mãe de Gil. – Infância de Gil. – Sua beleza. – Sua curiosidade insaciável. – Amor dos manuscritos. – Um velho Físico dá-lhe a paixão dos simples, e das plantas que curam. –Cresce. – Toma gosto pelas armas, pelos cavalos. – Tem amores vagos pelas raparigas. – Mas não descura os livros. –Vem-lhe a paixão do desconhecido, das viagens. – Para tudo conhecer, quer ir estudar medicina a Paris.

Parte com grandes lágrimas da mãe, e de uma moça que seduzira. – Toma o caminho de Paris com o seu fiel Pêro, escudeiro. – Numa estalagem, no caminho, encontram um cavaleiro que trava conversa com ele, e sabendo que Gil vai a Paris estudar medicina, lhe diz que vá antes com ele a Toledo, aonde ele vai também para se formar nas Artes Negras. – Essas artes, que ele descreve, dão, a quem as possui, o ouro, o poder, a eterna mocidade e tudo o que dá a felicidade. – Gil cede.

Partem para Toledo, conversam pelo caminho.– São assaltados. – O cavaleiro desconhecido desbarata os salteadores. – Em Toledo, Gil é levado à Universidade das Artes Negras. – Aí encontra os professores, que lhe dão um festim e que lhe dizem que a arte melhor é assinar um pacto com o Demónio.

– Gil assina.

Desde esse dia, tornado omnipotente, abandona a ideia de Paris, e passa a ter todos os gozos. –

Começa pela vida de moço, tendo palácios, mulheres, cavalos, ouro às pilhas. – Mas depressa se cansa disto.

Ambiciona então o poder, e o Demónio fá-lo rei. – Mas depressa se cansa da realeza.

Apetece então as grandes aventuras, e é pirata nos mares, viaja até aos últimos sertões, vê povos estranhos. – Mas depressa se cansa destas emoções.

Então apetece tudo saber, e vai estudar para Paris, como simples estudante. – Mas depressa se cansa desta ciência dos livros.

Quer saber os mistérios. – O Diabo leva-o aos astros, penetram nas entranhas da Terra. – Quer ver o Inferno e o Céu. – Mas o Diabo não lhos pode mostrar.

Então apetece uma afeição profunda, um amor profundo. – Vê uma mulher que adora de repente, sem lhe ver o rosto. – Segue-a até que um dia ela se lhe revela, e é o esqueleto da Morte.

Renega a sua vida e volta para Portugal, para se meter num convento. – Desespero do Diabo, que de amigo se volve em inimigo, e o começa a tentar. – Tentações medonhas, que ele combate pela paciência e pela bondade.

Vai-se sentindo feliz, e o seu desejo é obter a quebra do pacto que fez com o Diabo. – Mas a penitência ainda não é bastante; é necessário que ele pratique um acto que o torne merecedor de que a

Virgem quebre o pacto. – Esse acto fá-lo, dedicando-se por uma criancinha ou por um velho doente.

Então a Virgem entrega-lhe o pacto.

O Diabo ainda o tenta, mas ele agora sorri e despreza-o. – Entra na paz, na felicidade, e conhece enfim a vida perfeita, que é uma doce vida de convento, no sossego de um vale.

Morre em santidade.

S. FREI GIL

I

O solar de D. Rui de Valadares, Senhor de Mortágua e Gonfalim, era a duas léguas duras de Vouzela, numa colina, por onde descia, espalhada até ao rio, entre olivais e vinhedos, a aldeia de Gonfalim. Um fosso, uma muralha delgada e simples como um muro de herdade, uma torre construída em tempos da Senhora Rainha D.

Tareja, defendiam a casa térrea, a capela, os celeiros, o forno, o pátio bem lajeado, onde dois chorões davam frescura e sombra a uma fonte de bronze. Para além um alto silvado, coberto de amoras pelo S. João, envolvia a abegoaria, a eira clara, o redil, um pomar bem regado, e o campo de tavolagem: – e depois, por todo o outro pendor do

1 Encontrado juntamente com o manuscrito incompleto. outeiro, lento e suave, verdejavam os pastios de gado.

No fundo do vale, o ribeiro, frio e límpido, toldado de arvoredo, saltava e espumava entre grossas pedras claras: um mosteiro rico de Domínicos ocupava toda a colina fronteira a Gonfalim, com a sua vasta, frondosa cerca: – e as duas margens eram ligadas por uma velha ponte romana de um só arco, onde o bom Senhor, para purificar a obra e a pedra pagã, mandara erguer um cruzeiro.

Desde muito, naquelas terras, os anos tinham sido de paz; as correntes da ponte levadiça, que se não levantava, estavam perras e cobertas de ferrugem; as ervas bravas cresciam nos fossos secos; na velha torre de onde se retirara, até o besteiro, que lá costumava dormitar, havia agora um pombal: – e o bom Senhor D. Rui engordara tanto, que nem saía à serra com os seus falcões, nem mesmo cavalgava o seu bom ginete, por nome Almançor, muito gordo também, e para sempre ocioso diante da manjedoura cheia.

D. Rui desposara a neta de mestre Ariberto, cancelário do Senhor Rei D. Sancho; e não havia, em toda a Beira, dona de melhor diligência e ordem no governo de sua casa. Trigueira, de olhos pestanudos e meigos, com um buço, e um peito de rola farta,

D. Tareja, logo desde a alvorada, fazendo tilintar o seu grosso molho de chaves, distribuía a tarefa às aias, visitava a despensa e a capoeira, vigiava a fornada do pão, escolhia a fruta no pomar – e mesmo, arrastando o seu longo vestido sobre a terra ainda húmida, ia procurar as ervas salutares, para compor os unguentos domésticos. Todo o solar, por isso, resplandecia de gravidade e asseio. Nas lajes do pátio não crescia uma erva. No rebordo de cada janela havia um manjericão bem regado e fresco. Bem esfregados a carqueja, os soalhos pareciam sempre de madeira nova. Das arcas, cheias de roupa de linho, saía um bom cheiro de alfazema. Os pratos e os pichéis de estanho, sobre os bufetes, reflectiam, como espelhos, os lavores das altas cadeiras de espaldar, as listas vistosas das cortinas, ou os ramalhetes de açucenas e rosas, trasbordando dos vasos de barro vidrado.

Ocioso e risonho, com uma larga simarra de pano orlada de peles de raposa, que lhe descia até aos sapatos de couro vermelho, o bom Senhor D. Rui cofiava a sua barba, através do seu solar, gozando esta paz e esta ordem. Os seus dias corriam retirados e doces, como num mosteiro rico – e raramente tomava o seu bastão de cabo de prata, para transpor a velha ponte levadiça. Pelos tempos chuvosos, o bom Senhor, de janela em janela, contemplava o vale, o arvoredo molhado, as duas torres do mosteiro; ou aquecia pacientemente as mãos ao braseiro; ou abria o cofre de ferro, pregado no chão aos pés do seu leito, e contava o seu dinheiro; ou ia observar no bocal de vidro se as sanguessugas, subindo à flor da água, anunciavam o norte e o bom tempo. Nos dias de sol percorria devagar a sua horta, pelas ruas orladas de alfazema; visitava os seus galgos, que, ociosos e gordos também, dormitavam pesadamente; descia ao lagar, depois à eira, sorrindo paternalmente aos servos, que dobravam o joelho; e terminava por descansar, num caramanchão de rosas, escutando o murmúrio lento das águas de rega.

O toque de Trindades anunciava a ceia. Na sala, separada da cozinha por um arco de cantaria, as grossas malgas de caldo fumegavam sobre o carvalho nu da távola, entre pães de sêmea, e fortes pichéis de vinho. O bom Senhor, tendo lavado as mãos na água perfumada de vinagre, que o servo entornava de um grande jarro de cobre, ocupava a sua cadeira senhorial. O capelão defronte dizia o benedicite: – e D. Tareja tirava todos os seus anéis, para deitar dentro da sua malga a côdea escura do pão. O bom Senhor comia com lentidão e silêncio. O vinho do seu pichel era renovado pelo intendente que, a cada instante, se erguia com a boca cheia e ia encher o pichel senhorial ao pipo pousado a um canto, sobre barrotes de madeira. Depois do porco assado, vinha uma ave, galinha ou pato, que D. Rui partia com os dedos, limpando-os aos pêlos do lebréu, sentado a seu lado, à espera dos ossos. Nas tardes de Verão, o maioral dos gados vinha junto da janela da sala, tocar na flauta de barro. E quando o servo retirava as frutas, apinhadas em seiras de esparto, e outro punha sobre a mesa vazia dois candis, o capelão ia buscar um grosso in-fólio, que abria, e lentamente, emperrando nas letras, lia a vida de um santo, ou uma batalha do Tesouro das Batalhas, que conta todas as grandes guerras, desde a que os anjos maus travaram com os anjos bons. D. Tareja tomava a sua roca e fiava, ou dava alguns pontos no frontal, que havia dez anos andava bordando para a igreja do convento. O bom Senhor, com as mãos sobre o estômago, dormitava. E quando o capelão parava, a beber um golo de água, ouvia-se ranger o cata-vento de ferro – ou, nas noites de Verão, o canto triste dos sapos nas relvas.

Mas, com um gesto, D. Tareja detinha o santo homem, que fazia uma dobra na página do seu fólio. O intendente, à porta da cozinha, batia as palmas, todos os servos entravam, mesmo o pastor com o seu surrão. E era o bom Senhor que de pé, e ainda sonolento, rezava a primeira ave-maria do Terço. Depois D. Tareja fechava os bufetes, tomava um candil, um pichel de vinho preparado com mel e canela, e subia com o seu

Senhor para o quarto, a repousar no vasto leito de carvalho, que tinha três varas de largo.

Assim a existência corria, igual e serena, no solar de Gonfalim. Às vezes algum rico-homem dos arredores, parente de D. Rui, vinha, com os seus cães e escudeiros, desmontar no pátio tranquilo. D. Tareja corria ao portal, trazendo uma toalha bordada, um jarro de água, que derramava sobre as mãos do hóspede. Atirava-se à pressa lenha na lareira, para assar, nos espetos de azinheiro, um cabrito, ou um leitão: das arcas saía um tapete do Oriente, que se estendia sobre as lajes do quarto de honra, onde as maçãs, apilhadas sobre os armários, davam um cheiro doce e acre: as tochas de cera ardiam na sala até tarde – e os Senhores conversavam de parentes, de colheitas, de algum novo milagre, das honras devassadas pelos corregedores de el-rei, e dos maus tempos que corriam para os homens fidalgos. Outras vezes eram menestréis errantes que passavam, pediam agasalho – e depois da ceia, tangendo o violino ou a frauta, cantavam as cantigas novas, diziam histórias maravilhosas de paladinos de França – ou repetiam as histórias que tinham ouvido, nas estalagens, ou nas lareiras de outros solares, sobre as guerras que o Senhor Rei fazia aos mouros, para além do Tejo. Mas o que mais agradava a D. Tareja era a passagem dos monges mendicantes: esses sabiam os milagres novos, os casamentos fidalgos de Viseu e de Lamego, receitas de doces ou de unguentos, e histórias de peregrinos que tinham afrontado os mares, e visto o vero túmulo do Senhor Jesus Cristo, ainda tinto do seu sangue fresco.

Estas eram as distracções destes Senhores excelentes. Pelo Natal havia um presépio na capela, com missa cantada pelos frades do convento e uma ceia em que se comia o porco novo. Nos anos de D. Rui, arrombava-se uma pipa de vinho, no campo da tavolagem, e os moços de Gonfalim faziam grandes jogos de bola, e lutas. E não havia naqueles arredores mais alegre fogueira, do que a que se acendia, entre danças e cantos, no terreiro, em frente da ponte levadiça, por noite de S. João.

Assim os anos tinham corrido, no solar de Gonfalim, quietos e iguais, quando D.

Tareja sentiu, alvoroçada, em si, um começo de maternidade.

Foi um pasmo, uma magnífica alegria. Longos anos eles tinham desejado, esperado com ardor, um filho; – e para o obter D. Tareja fizera promessas, invocara todos os padroeiros da fecundidade, acendera durante trinta dias trinta velas a Santa

Margarida, bebera água de sagna-canina, trouxera muito tempo sobre a cinta uma pele de coelha. Mas a doce esperança não se encarnava; e o bom Senhor D. Rui, resignado, decidira deixar o seu senhorio, e o dinheiro das suas arcas, a um afilhado de sua mulher, moço lido em livros, e que era provedor de el-rei em Lamego. Muitas vezes, porém, suspirava, vendo, diante de um casebre, um vilão que, com o filho sobre os joelhos, construía uma armadilha para os pássaros – ou um velho que sorria, amparado nos seus passos trôpegos por um moço forte, e cheio de respeito. Agora, porém, chegava o bem de que desesperara. O bom Senhor, repentinamente remoçado, com a face toda risonha e dilatada no orgulho da sua paternidade, começou, por todos os arredores, a anunciar a nova esplêndida – até a um sórdido ermitão que vivia numa cova no fundo do vale, até ao tosquiador que viera à tosquia dos gados. Um recoveiro partiu logo para Lamego, a encomendar ao mestre entalhador um berço de grande riqueza. Todas as aias, tirando das arcas os linhos mais finos, trabalhavam no enxoval: – e D. Tareja, ao fim do primeiro mês, fora comungar ao mosteiro, para que a Hóstia divina fosse o primeiro ali-mento do menino bem-desejado.

De que cuidados cercava o bom Senhor aquela dona excelente, cujo ventre lhe parecia precioso como um sacrário!

Inquieto, constantemente lhe tirava das mãos com brandura as chaves da despensa, para que ela se não fatigasse nos governos do solar. Ele, só ele, preparava o vinho reconfortante, com canela, mel, ervas aromáticas, que lhe devia dar forças e valor:

– e sem cessar, quando ela caminhava, estendia os braços, receando todos os degraus, qualquer pedra, uma prega do vestido em que ela tropeçasse.

Era então Inverno, um Inverno muito duro, que todas as manhãs branqueava de neve os prados, e os tectos dos casebres: e D. Rui e D. Tareja, sentados ao braseiro, infindavelmente conversavam sobre o «seu menino». Ele tinha já o seu destino tão claro e marcado, como se um letrado o tivesse escrito num códice. O seu nome seria Gil

Mendo: os melhores ledores do mosteiro vizinho e amigo lhe ensinariam as letras, a escrita, e a arte de contar: escudeiros hábeis viriam adestrá-lo na arte de cavalgar, no manejo das armas, e tudo o que pertence à caça: depois ele, D. Rui, o levaria aos bispados de Lamego, do Porto, de Coimbra, para conhecer as cidades, e tratar com os ricos-homens. Depois casaria com uma dama virtuosa, de rica linhagem, e governaria, em tranquilidade, o seu senhorio – porque nenhum deles desejava que o seu filho afrontasse os perigos das guerras, ou se partisse para terras estranhas.

E quando assim conversavam, a ambos vinha uma inquietação que não diziam – porque certas palavras, quando soltas, são apanhadas pelos espíritos maus, que as condensam e delas fazem coisas reais e vivas. Se Gil nascesse torto ou mudo?... Então

D. Tareja ia escondidamente à capela fazer promessas à Senhora da Boa Saúde – e D.

Rui reclamava do capelão que mais uma vez percorresse o Tombo do seu solar, para ver se jamais, varão da sua raça, nascera com algum defeito. Mas a certeza que todos os seus avoengos, desde os godos, eram robustos, e de belo porte, não calmava a sua inquietação: – e tendo uma manhã avistado uma gralha que pousara no rebordo do seu aposento, o que poderia tornar o menino gago – de tanta angústia se tomou, que os maus humores se lhe extravasaram, e amarelo como uma cidra, jazeu uma semana no seu vasto leito, entregue às drogas do Mestre Álvaro Porcalho, ó bom físico que viera à pressa de Viseu, montado na sua mula. Por conselho dele, D. Tareja nunca mais tocou

água fria, e só bebeu caldos de cobra. Mas uma ansiedade maior entrou na alma do bom

Senhor – porque Mestre Porcalho, depois de bem examinar o interior das pálpebras de

D. Tareja, e certas sardas que tinha na testa, abanava a cabeça, gravemente, e não podia afirmar que a criança fosse um varão! Decerto o bom Senhor amaria uma menina que viesse, com as suas frágeis graças, e a sua doçura, alegrar a severidade fria da sua vivenda. Mas com quanto mais amor, e orgulho, e tranquilidade juntamente, ele receberia um varão, para continuar a sua casa, reger os seus bens! Mandou então chamar um astrólogo famoso, Mestre Leonardo, que vivia numa velha ruína do tempo do Conde

Ordonho, junto aos muros de Lamego.

Bem provido, com um cântaro de vinho e um empadão, o douto homem passou a noite, uma clara noite de Março, com astros bem claros e fáceis de ler, na torre de menagem, de onde espantara as pombas, a preparar o seu horóscopo: – e D. Rui teve a dita de ouvir que seu filho seria varão, venceria os infiéis, entraria nos conselhos de el-rei, e desposaria a filha de um rico-homem poderoso, que tinha três castelos, e vassalagem de três vilas. Senhorialmente pago, Mestre Leonardo recavalgou a sua mula, e deixava o solar, quando, junto da ponte levadiça, indo o Sol já alto, encontrou Mestre

Porcalho que, com a sua caixa de simples a tiracolo, a seringa de estanho dentro de um saco, recolhia de visitar o armeiro de Gonfalim. Imediatamente os dois sábios, do alto das suas muares, trocaram duros sarcasmos, depois injúrias: – e ambos saltando abaixo das cavalgaduras, com as suas longas garnachas, se arremessaram corpo a corpo, tão ferinamente, que ambos rolaram no fundo dos fossos.

II

Mas Mestre Leonardo acertara – e foi um varão! E mesmo a comadre e as aias afirmavam que, pela força com que chorara, e sacudira os pezinhos roxos, ao penetrar na vida, o Senhor D. Gil seria homem de grande valentia e acção. O que a todos, porém, espantava, debruçados sobre o seu berço, era a sua perfeita beleza e inteligência. Gordo, todo redondo, branco como os linhos finos do seu lençol, com uma boquinha que parecia uma folhinha de rosa, e dois grandes olhos negros resplandecendo sob a testa muito clara – ele parecia ter já uma alma e compreender. Duas aias constantemente o velavam, sentadas em esteiras, baloiçando um leque de penas, para preservar das moscas a frescura do seu sono, ou cantando, para o embalar, Dormi, dormi, senhor meu:

– e um mês passara, já os arcos de buxo erguidos nas alegres festas do Nascimento estavam murchos, já D. Tareja, purificada e de novo corada e ágil, fazia tilintar as suas chaves pelo corredor do solar – e ainda Gil não chorara. Uma gota de leite do peito cheio da ama, bastava para o adormecer docemente: – e acordado, os seus olhos negros, largos, rutilantes, constantemente procuravam, seguiam, ou as réstias de sol, ou o brilho de um jarro de estanho, ou as cores mais vivas de um véu. Vindo a cada instante em pontas de pés entreabrir as cortinas do berço, o bom Senhor não esquecia nenhuma das práticas que concorrem a tornar a criança perfeita. Para que ele tivesse uma voz forte e bela, esfregava-lhe a boquinha com uma velha moeda de ouro. Ele mesmo desfizera sal virgem em água tirada da fonte ao nascer do Sol, que faz com que o cabelo das crianças nasça encaracolado e basto. Para que ele tivesse força, trouxe uma antiga espada do seu avô D. Fruias, e pousou-a entre as mãozinhas de Gil: – e para que, à força do corpo, se juntasse a força da alma, três domingos a seguir o capelão veio ler sobre o berço o

Evangelho dos três Reis.

Pelo baptizado foram celebradas grandes festas. O padrinho foi D. Mendo, um parente de Mortágua – a madrinha Nossa Senhora da Saúde: e no caminho para a igreja, juncado de rosas e erva-doce, ao lado de D. Mendo, magnífico, com as suas barbas de neve sobre o saio de escarlate, caminhava, no seu andor, aos ombros de quatro cavaleiros peões de Gonfalim, a Senhora Madrinha, coroada de ouro, com um manto novo, onde as estrelas de ouro, sobre o azul do veludo, faziam como um céu de Verão.

Para maior honra (e para que o menino não fosse surdo), foi D. Mendo, o padrinho, que puxou a corda do sino, deu os primeiros repiques festivos. Toda a pedra da igreja desaparecia sob as colgaduras de veludo branco. E quando a ponta de uma faixa de seda que se prendia, pela outra ponta, às mãos da Senhora, veio tocar a penugem fina e loura da cabeça de Gil, nuzinho e quieto, nos braços do padre, sobre a pia – todos observaram, com espanto, que o menino sorria às luzes das tochas, e as pontas dos palmitos se agitaram, e alguma coisa de branco, como o sulco de uma asa, passou na penumbra do

Baptistério.

Depois um enorme festim, tumultuoso e voraz, reuniu a rude aldeia. No terreiro três vitelas inteiras assavam, em fogueiras claras. O vinho, correndo sem cessar das pipas enfeitadas de louro, fazia poças roxas, onde as crianças se rolavam. A cada instante os alaúdes e violas dos menestréis chamavam os moços e as raparigas, afogueados, com a boca cheia, e toucados de rosas, a longas danças estonteadas sobre a relva pisada. Um empadão imenso trazido numa padiola, e precedido por dois anões que cabriolavam, apareceu ao fim da tarde, entre aclamações: tirando a espada, um cavaleiro-peão fendeu-lhe a tampa, maior que um tecto de cabana: – e de dentro fugiu um bando de pombas, que batiam no ar, com esforço, as asas pesadas de gordura, perseguidas pelos moços, que as apedrejavam com pedaços de terra, com grossos pães de sêmea e com os pratos de estanho.

Mas de repente, junto da ponte levadiça, surgiu uma bandeira: – e ao lado de D.

Mendo, e seguido do capelão, do intendente, e das aias, com altas toucas de renda, apareceu o bom Senhor D. Rui, pálido de alegria, de orgulho, que trazia nos braços, todo coberto de rendas, para o mostrar ao povo, o seu filho, o seu herdeiro. Raparigas correram com cestos cheios de folhas de rosa que lhe atiravam: – e, da mesa de honra onde estava o meirinho de el-rei, dois velhos vieram, um com um prato cheio de sal, que simboliza a Agudeza de Espírito, outro trazendo um ovo que significa a Duração da

Vida, para oferecerem ao menino, como votos tangíveis. E foi um espanto, um longo murmúrio maravilhado, quando Gil, debatendo-se entre as rendas, estendeu um bracinho para o sal, e outro para o ovo. Os velhos, muito graves, reconheceram que o menino era um eleito de Deus – e ninguém duvidou que ele chegaria à extrema velhice, através da extrema sapiência.

Ele, com efeito, cada hora crescia em força e beleza. A sua cabecinha redonda bem depressa se cobriu de anéis finos como seda, e cor de ouro: – e todos os dentes lhe vieram, sãos e fáceis, sem lhe custar uma lágrima. Quando não dormia, do seu dormir tão sereno que parecia uma rosa sobre uma almofada, passava horas nos braços das aias ou da mãe deslumbrada, quieto, imóvel, já direito, com os olhos resplandecendo, ,e parecendo pensar em coisas profundas. Um tão raro encanto se exalava daquele corpinho, todo em rugas gordas, brancas e duras como mármore, que as aias se não podiam apartar do seu berço, esquecendo as horas de comer: – e os que um dia passavam no solar, e o viam um momento, ainda depois nas suas moradas, e entre outros cuidados, ficavam pensando, com ternura, naqueles cabelos de ouro puro, e nas duas estrelas dos seus olhos.

No aposento, onde estava o seu berço, não era necessário no Inverno aquecer o braseiro, nem, nas canículas, entreabrir as janelas à aragem – porque havia ali sempre um ar igual, doce, tépido, fresco, e que cheirava bem: – mesmo este aroma ia crescendo, e tanto, sobretudo em volta do seu berço, que Mestre Porcalho, que reprovava as essências derramadas junto dos berços, batia o pé impaciente cada manhã que lá entrava, e dizia, franzindo a venta: <(Mas aqui cheira a jasmim! Mas aqui cheira a rosa!» Mais de uma vez também sucedera que, apagando-se a lâmpada, o quarto continuara alumiado, de uma luz translúcida, vaga, láctea, que era mais ténue junto dos altos muros, mais viva, e como irradiada, em torno do berço: a ama, sentada, erguia o cortinado e encontrava o menino a sorrir no seu sono: – e se então visitava os seus cueirozinhos, mais se assombrava não os reconhecendo como os do rico enxoval, mas diferentes, de um linho mais fino que todos os linhos, alvos como outra alvura não havia, e tão doces e macios à mão, que o seu contacto tinha a doçura de um beijo. O bom Senhor D. Rui ouvia estas maravilhas – e grossas lágrimas de gosto rolavam na sua barba ruiva.

As pombas, que tinham o seu pombal na velha torre de atalaia, começaram então a vir todas as manhãs, em bando, pousar sobre o rebordo da janela do menino: – e mesmo, se encontravam as portas abertas, algumas mais ousadas, por serem mais brancas, voavam em torno do seu berço, de um voo subtil e sem rumor. Gil seguia-as com os seus grandes olhos, ou atirava a mão para as apanhar: – e se tocava em alguma que pousasse nas grades do berço, essa tomava logo o voo, triunfantemente, mergulhava muito alto no azul, e não recolhia ao pombal.

Mas não eram só as pombas que amavam o menino. Borboletas raras, de cores radiantes, vinham bater contra os vidros, aos bandos, como folhas vivas e soltas de flores que não há na Terra. Uma amendoeira que havia em baixo, no pátio, rompeu a crescer, a subir, como se, com as pontas das suas ramagens, tentasse espreitar para dentro do aposento: – e depois cobriu-se de flores em Janeiro; e um rouxinol veio, durante todo o Inverno, cantar sobre ela maravilhosamente. Mas a surpresa maior foi que no canto do pátio lajeado, onde se despejara a água em que D. Gil tomara banho, começaram a crescer por entre as lajes umas florinhas azuis, brancas e cor de ouro, que nenhum jardineiro jamais vira, e que perfumavam todo o ar.

No dia em que o menino fez um ano, estando no colo da mãe, com o seu saiotezinho de brocado branco todo bordado de pérolas, escorregou-lhe subitamente dos braços para o soalho, e deu o seu primeiro passo na Vida. Todos os braços em redor se estenderam, ansiosos, para o amparar: – mas ele ia firmando os pezinhos, redondos e lentos, sem tropeçar, atento e direito a uma réstia de sol que entrava pela janela – com a mãozinha aberta e erguida, como amparada por outra mão que se não via, e que docemente o levava. E assim mergulhou na réstia de sol, onde ficou quieto, com um riso que resplandecia, todo aureolado de ouro. Frei Múnio murmurou: «Neste menino há maravilha!»

III

Já mais crescido, brincando pela quinta, mergulhava em todas as espessuras de folhagens, de rastos, como um bicho, emaranhando o cabelo nas silvas, para conhecer o que se ocultava nas sombras húmidas: escavava em torno das plantas para conhecer a forma das raízes: e espreitando o voar dos pássaros, trepava às árvores, para saber o

O seu crescer foi então igual e são, como o de uma flor, que, em terra bem regada e sob a fiel carícia do sol, desabrocha com esplendor. Nenhum dos males que Mestre

Porcalho receava, carregando o sobrolho agoirento, veio interromper a sua florescência

– e todos os dentes lhe nasceram, sem uma dor ou uma lágrima. A sua fala era tão doce, e graciosa, que a todos fazia sorrir de ternura, como o cantar de um pássaro, nas ramarias. A brancura ebúrnea da sua pele nem parecia pertencer a um corpo mortal: e, em todo ele, a inteligência resplandecia mais visivelmente do que uma luz por trás de um vidro. Uma curiosidade inquieta, insaciável, constantemente o levava, correndo, e espalhando o brilho dos seus olhos negros, através da velha morada senhorial. Não havia já na torre de Ermigues, nos pátios, nos escuros sótãos, recanto que ele não tivesse rebuscado, no impulso irresistível de tudo saber. As aias constantemente o encontravam, procurando, com os seus pequeninos braços, frágeis como hastes de flor, erguer as pesadas tampas das arcas: e se encontrava uma aberta, eram gritos impacientes até que lhe deixassem desdobrar as peças de linho, desenrolar os rolos de fitas, destapar os cofres, remexer as rendas, amontoar em torno de si, sobre o soalho, um vasto bragal devastado. segredo dos ninhos. Nada o assustava. Quando o pai, para o adestrar na grande arte de cavalgar, o montou uma manhã num potro, ele, empurrando o cavalariço que segurava o freio, largou a galopar, em torno do silvado da quinta, bem colado à sela, com os cabelos ao vento, gritando de pura glória. Se sentia ao fim da tarde os chocalhos, e a fila da boiada recolhendo, nada o detinha, e corria a bater as palmas, provocando os novilhos, ou os bois de mais largas pontas: – e constantemente o aio, aterrado, tinha de o agarrar, para que ele não descesse dentro do balde à cisterna, ou não percorresse o topo da velha muralha, saltando de ameia em ameia. Depois, à noite, à ceia, ouvindo, absorto, com a face entre os punhos, o olhar deslumbrado, as histórias de batalhas, que lia Frei Múnio no seu grande in-fólio – soltava brados de alegria, quando vinha um desses golpes de espada que partem o elmo, racham o cavaleiro e matam ainda o cavalo; ou quando, nos assaltos das vilas, a força de um só braço quebrava uma porta de bronze.

De noite, no seu catre, gritava, sonhando com recontros de lanças. E a mãe que corria, pondo a mão diante da lâmpada, quase se aterrava, vendo na linda testa do seu anjo adormecido uma ruga de cólera heróica.

Mas D. Rui sorria, deslumbrado, certo que seu filho seria um dia um grande conquistador. Era todavia admiravelmente sensível e bom: – e Frei Múnio antes via nele os prenúncios de uma caridade que ilustraria a Igreja. Amava todos os animais, sobretudo os pequeninos: e o seu cuidado era que as pombas não sofressem sede, e não faltasse a ração farta aos galgos, no seu canil. Protegia os sapos por os saber despre-zados; e se encontrava um, na erva húmida, rente da nora, com as suas mãos, e sem nojo, o levava para longe, para que a vaca atrelada à roda dos alcatruzes o não pisasse, no seu giro dormente. Aos domingos, descendo, com os pais, a avenida de castanheiros para a igreja, a cada passo se detinha, a procurar na escarcela uma moedinha para os pobres: – e na igreja, de joelhos sobre a almofada, no altar-mor, com as mãos postas, e o seu gorro de plumas pousado no chão, tanto se penetrava da pobreza e dor por que Jesus passara, vendo o seu corpo nu e pequenino nas palhas do curral, a sua túnica rasgada pelos açoites, as suas mãos, tão doces aos tristes, varadas pelos pregos, que os olhos se lhe enchiam de lágrimas. À porta da igreja todo o povo de Gonfalim se juntava para o ver passar, com os seus cabelos louros, em anéis sobre os ombros, coberto com os veludos de um príncipe, fino e direito como uma espada toledana – mas tão simples e familiar que reconhecia os criados, gritava rindo os seus nomes – ou atirava às crianças, no colo das mães, beijos que cantavam no ar.

Aos oito anos, tendo Frei Múnio preparado num quarto da torre de Ermigues, por ser mais silenciosa, livros, folhas de velino, e grossas penas, Gil começou a aprender as letras, a escrita, a História Santa, e os cálculos dos Árabes. Por mais lenta e longa que fosse a lição, ele permanecia atento e grave. A sua alegria foi ruidosa quando soube escrever o seu nome e os seus apelidos, com letras ornadas e floridas. Mas quanto mais viva e funda a dos pais, quando o ouviram ler, sem gaguejar, no grande livro de Frei

Múnio, as batalhas de Alexandre, e de Roldão, par de França!

Tão orgulhoso andava o bom Senhor do saber do seu filho, que o quis mostrar aos santos padres beneditinos, seus vizinhos e aliados. Montado na sua mula branca, com

Gil ao lado sobre o seu alazão, passaram a velha ponte romana, uma tarde, subiram a calçada nova, que por entre álamos levava à grossa porta chapeada de ferro, como a de uma cidadela. E logo no pátio, bem plantado de ciprestes, encontraram, entre dois fortes carros de bois, o D. Abade, dirigindo o carregamento de seis pipas de vinho branco, dos vinhedos do convento, que ia mandar de presente ao Papa.

Com grande contentamento, acariciando os lindos cabelos de D. Gil, o prelado muito sapiente conduziu os seus vizinhos para os lados do claustro, mandando a um leigo que trouxesse um açafate de fruta, e um pichel daquele vinho branco que era a glória da sua herdade. Mas, no claustro, como era sábado, toda a sábia comunidade, numa longa fila, só com a túnica, e sem capa, estava sendo barbeada: – e o D. Abade caminhou para a entrada da cerca, onde se sentou, entre os seus hóspedes, num banco de pedra, junto de uma fonte, que de entre rochas cantava num tanque de mármore.

Aí o bom Senhor contou ao prelado o grande amor do seu Gil aos estudos, e como já traçava a letra grande e miúda, e quanto lhe eram familiares todas as sagradas histórias: – e andava ele pensando se seu filho, bem ensinado por outro mais lido em livros que Frei Múnio, não se tornaria um bom escolar em leis, ou fino sabedor das

Artes de Curar. Então o bom prelado, tomando a mão de Gil, e indicando a pedra polida e branca que encimava a fonte, convidou risonhamente Gil a ler a inscrição que lá gravara, havia anos, um douto monge daquele mosteiro. Sem esforço, o moço gentil decifrou as rudes letras entalhadas, que diziam: – «Clara e perene, como sai esta água desta rocha, brota a bondade dos nossos corações...». E o bom abade admirou este precoce saber. Mas quanto mais o seu grande conhecimento das Histórias Sagradas!

Direito, com um brilho nos lindos olhos, e como se conversasse de coisas familiares e

íntimas, o moço gentil, interrogado pelo D. Abade, contava a grande cólera de Jeová,

Caim fugindo através dos montes, a chuva durante quarenta dias, José governando o

Egipto, o Povo errando no deserto, Jericó caindo ao estridor das trompas...

Todos os pássaros se tinham calado, em redor, na ramaria da cerca. A água caía da rocha, com um murmúrio abafado. Uma doçura maior amaciara o ar: – e os raios do Sol que descia ficaram parados, dourando com tons de ara o banco de pedra, onde Gil dizia as divinas histórias. Então o bom abade, pousando a sua gorda mão sobre a cabeça de

Gil, afirmou que havia ali um agudo entendimento, e que bem devia D. Rui, pois tinha cabedal, mandar aquele moço estudar a França, terra de grande sapiência... O pai murmurou: «Tão longe!

Não. Não havia longes terras para ir buscar o Saber. Mais longe se ia a Jerusalém, para alcançar a Graça! E a sapiência, tanto como a Graça, conservava a alma limpa do mal... – Desejou então que D. Rui provasse o seu vinho branco. E tendo dado a ambos a bênção de Deus, e ordenado a um hortelão, que ali regava as plantas, que metesse num açafate cerejas e rosas para a Senhora D. Tareja, tomou o braço do noviço, porque tocara a vésperas – e ele devia dispor uma remessa de relíquias destinadas a uma herdade do convento, visitada, recentemente pelos repetidos flagelos do fogo, lobos e sezões. Os dois senhores beijaram a sua mão reverenda – e recolheram contentes ao solar, pelo caminho da Ermida.

Gil começou então a estudar com tanto fervor – pensando sempre nos louvores do

D. Abade – que bem depressa soube tudo quanto sabia o doce Frei Múnio. Mesmo muitas vezes perturbava este discreto Mestre, com a sua curiosidade temerária, que tudo queria compreender, até a Ordem da Natureza. Era sobretudo à tarde, quando para repousar das práticas estudiosas, ambos subiam ao eirado da torre de Ermigues, e lentamente passeavam em volta das ameias todas verdes de hera. O céu arqueava por cima a sua abóbada de azul-claro, imutável e sempiterna. O Sol, como uma roda de metal candente, roçava a espinha dos montes, dardejando longos raios. E a terra, escura e maciça, estendia a sua ondulação de vales e serras, até onde o olhar se perdia.

Então D. Gil queria saber qual era, na verdade, a forma da Terra: para onde ia o

Sol, quando se sumia tão serenamente por trás dos montes: e quem sustentava assim, tão firme, a abóbada do céu. Para satisfazer o seu discípulo, Frei Múnio folheava os in-fólios, que pedia emprestados à livraria do convento, sobre os Ensinamentos da

Prudência, obra mirífica que, nas suas laudas fortes, encerrava a suma do saber beneditino. E pondo o dedo na lauda, explicava a Gil que a Terra é quadrada, tendo por centro, na face voltada para o Céu, a santa cidade de Jerusalém: que o Sol, de noite, vai alumiar o mar, e por vezes, em dias de festa, alumiar o Purgatório: e que, quem ampara esta abóbada, cheia de luz, de estrelas, de nuvens, de ventos, são os quatro evangelistas, aos quatro cantos do mundo, com as suas mãos que tudo podem, por terem tocado as mãos do Senhor.

Mas nem sempre D. Gil parecia persuadido. E puxando para si o in-fólio, relia a boa doutrina, mais detidamente, como quem, para um recanto mal alumiado, chega uma luz mais forte. Tanto amor ganhou então a estes livros, e ao saber que deles tirava, que não houve mais para ele outro interesse ou cuidado. Logo desde a alvorada se encerrava na torre de estudo, diante da vasta mesa que os fólios majestosos cobriam: – e muitas vezes às horas de comer, tendo já o varlete da mesa tocado três vezes a buzina, tinha D.

Rui de subir a escadaria da torre, e sacudir-lhe o braço, para o arrancar ao estudo, onde a alma se lhe afundava, como num mar de deleite. Passeando na quinta, a cada passo tirava da escarcela um pedaço de velino, e, encostado a um tronco de árvore, com o olhar ora esparso pelo chão, ora alçado lentamente ao céu, traçava linhas vagarosas. Tão alheado vivia no seu pensar, que D. Tareja tinha de lhe pentear os cabelos que ele deixava emaranhados, e de lhe laçar os atilhos dos seus borzeguins de couro mole. De noite, com o candil pendurado junto do leito, e um fólio no travesseiro, lia ainda, lia tanto, que já as andorinhas cantavam no beiral da sua janela quando ele, com um suspiro, e a custo, cerrava os fechos do fólio.

Começou a emagrecer, a sua pele tomou a palidez de uma cera de altar – e Mestre

Porcalho declarou, sinistramente, que já nos olhos do senhor D. Gil se sentiam os prenúncios do tresler.

Então, para o afastar dos livros, D. Rui organizou para ele uma matilha de caça. O canil foi alargado, coberto de colmo novo: e o latir dos mastins, dos perdigueiros, dos lebréus barbarescos, atroava o solar. Ao lado havia um alpendre para os falcões: – e um homem hábil, que viera de Viseu, estava instalado na abegoaria, fazendo redes, armadilhas laçarotes, e capuzes de couro para os açores.

D. Tareja, abraçada no filho, conseguiu dele a promessa que todas as manhãs sairia a montear, para que, nos fortes ares da serra, lhe voltassem as cores da saúde. Mas ele quis primeiro aprender a Arte de Caçar – e foi ainda um motivo de se enterrar entre velhos cadernos, de letra miúda, em que se ensina a adestrar os lebréus, a afoitar os falcões, a conhecer as pegadas do lobo, o cheiro dos veados, e ainda os ventos mais propícios à caça, as orações que se devem a Santo Huberto e o modo de impedir que os espíritos malignos transviem na serra a caçada. Depois desejou ainda aprender nos livros os hábitos dos animais – a que horas bebe o veado, onde faz ninho a perdiz, que manha tem o javardo, e o rumo do voar das águias.

Em tantas leituras, mais se definhou – e, perante as lágrimas da mãe, decidiu enfim começar as grandes manhãs de caça.

Com que alegria D. Rui e D. Tareja, do alto das escadas do solar, o viram, montado no seu alazão, airoso na sua cota de couro branco, com o falcão emplumado sobre o guante – e em volta os lebréus, puxando as trelas e latindo. O monteiro soou a trompa – e, bom caçador, voltando-se ainda na sela para atirar um beijo à mãe, passou a ponte levadiça, num grande brilho de sol, que então saía de entre as nuvens.

Voltou por noite cerrada, com uma cor forte nas faces, um cheiro de mato nas roupas, tendo morto um veado, lebres, todo um bando de codornizes – mas descontente das suas proezas. Não iam ao seu coração doce as violências da caça; e os lebréus partindo a espinha dos coelhos, entre as urzes; o falcão, despedaçando nos ares uma pobre ave, e voltando a pousar-se no guante, todo enrufado; as setas espetadas no pescoço dos veados, que ficavam bramando, com grandes olhos agoniados; todas estas ferocidades, findo o impulso que as inspirara, entre os gritos dos monteiros, e o ressoar das buzinas, lhe davam como a tristeza de um arrependimento. E, de noite, no seu catre, só, chorou pelos animais mortos.

Voltou ainda uma manhã à serra com falcões e lebréus. Mas nenhuma seta saiu da sua aljava de couro suspensa do arção da sela; todo o caminho os monteiros, retesando as trelas, contiveram os cães, que latiam desesperadamente: e debalde os falcões, retidos pelos laços de couro, batiam as asas impacientes sobre o braço dos falcoeiros. Nem animal nos cerrados, nem ave no ar foi molestada. Gil galopava contente, respirando os ares ásperos e fortes da serra. Pela tarde, cansado, dormiu à sombra de um roble. E quando recolheu, na doçura da tarde, de todos os lados do caminho, dos cerrados e das tocas saíam animais, que o espreitavam, e seguiam mesmo algum tempo, confiados e alegres: dois pavões, de repente, quando ele passava, desdobraram as suas caudas como para o festejar; uma cobra enorme, que atrancava o caminho, desenroscou-se para ele passar; muito tempo, um bando de rolas brancas, voou a seu lado serenamente. E, quando ele entrou no pátio do solar, todos os galos cantaram.

Desde esse dia não voltou a sair com falcões e lebréus. Mas ganhara o amor das longas galopadas nas serras – e, todas as manhãs, no seu ginete aragonês, levando apenas uma espada, transpunha a ponte levadiça, penetrava nas terras. Sob o sol, sob a chuva, todo o dia caminhava, ora galopando nas planícies, ora a passo, gozando a frescura das ramagens, bebendo no fio dos regatos, comendo amoras silvestres; ou por vezes, no alto de um cerro, desmontado, com o seu ginete à rédea, contemplava pensativamente os vales, os caminhos coleando nas encostas remotas, os horizontes remotos, pensando no mundo tão vário, que ficava para além. À noite recolhia, enlameado, com silvas no fato, um grande cheiro de mato e de serra, o olhar todo brilhante – e era ele quem entretinha o serão, conversando, e com tanta verdade e saber, e tão belas histórias, e uma tão perfeita graça no dizer, que o pai, a mãe, embevecidos, ora lhes parecia ouvir a sapiência de um missal, ora a doçura de um canto.

IV

Mas em pouco o Senhor D. Gil começou a andar pensativo. Já não gastava então o dia todo nos campos: – mas só a certa hora, a mais quente, quando todos repousam, ele mesmo arreava o seu ginete, e partia, sem ruído, como se receasse ser apercebido, mesmo dos cavalariços. Depois, quando voltava, um brilho de singular felicidade aureolava o seu rosto, tão lindo: – mas, todo o serão permanecia calado, como num doce e ditoso cansaço, que por vezes cerrava as suas longas pestanas negras, enquanto D.

Rui, grave na sua cadeira de espaldar, afagava a barba grisalha, e D. Tareja, já mais pesada, retardava os fios lentos da sua tapeçaria.

Às vezes mesmo, como se a sala, alumiada por duas tochas, o abafasse, abria as portadas da janela, e, sentado no peitoril de pedra, olhava as estrelas, pensativamente, ou a Lua.

Certas noites, mesmo, saía para o pátio, onde a lentidão pensativa dos seus passos traia algum cuidado muito fundo da sua alma: – e a mãe, que, deixando escorregar a tapeçaria, o ia espreitar, entre os vidros, sentia-o por vezes suspirar e com suspiros que não eram tristes. Os seus livros jaziam na torre fechados e cobertos de pó. E a sua ocupação, era antes percorrer o jardim, onde por vezes apanhava um botão de rosa que guardava no seio do gibão.

Quis então aprender a viola e o canto, como se as coisas vagas e sem nome, que lhe tumultuavam na alma, só pudessem ser traduzidas pela doçura do tanger, e do trovar. E agora, muitas noites, quando todo o solar dormia, e dormia o rio e o vale, e na terra se não via luz, além da lâmpada que ardia no cruzeiro da velha ponte romana, Gil,

à janela do seu quarto, soltava, no silêncio e na escuridão suave, uma doce vibração de cordas, e um murmúrio de endecha, em que vagamente cantava de uma selva, de uma fonte clara, e da alma que lá lhe ficara.

Era com eleito para uma selva frondosa, a uma nascente de água viva, que todos os dias, à hora da sesta, ele voltava o galope do seu alazão aragonês. Ficava esse doce sítio no fundo de um vale, de onde nada se via, de entre o arvoredo que o cercava, senão o grande azul do céu benéfico. Uma água fria saía de entre rochas, e, caindo de pedra em pedra, formava um riacho claro, que ia cantando e fugindo, sob a ramagem de grande arvoredo. Mas, num sítio onde as árvores clareavam, a água mais lisa e larga fazia um remanso, como um lago pequenino – e, daí, subia desde a margem húmida e florida de margaridas, até ao cimo de um doce outeiro, uma relva igual e tenra, onde os gados podiam pastar.

Ali desmontava D. Gil, prendia o seu cavalo a um tronco de árvore: – e se tudo estava deserto, tocava na sua buzina. Bem depressa um rafeiro ladrava: – e pelo alto do outeiro, redondo e verde, aparecia uma pastora, com a roca à cinta, e com ela, um rebanhozinho de ovelhas. Ambos sorriam, corando, a pastora, e o Senhor D. Gil. E enquanto o gado bebia na água clara, ambos se sentavam na relva, à sombra da mesma faia que os tinha abrigado, na tarde em que D. Gil, vindo ali descansar de uma longa correria nas serras, lá encontrara a pastora, no momento em que uma nuvem grossa passava, e dela caía um grosso chuveiro.

Desde então, todas as sestas ali se encontravam, na mesma relva se sentavam, e mesmo sem que falassem, só por se sentirem junto um do outro, naquela solidão, sob as sombras que na véspera os tinham coberto, os seus olhos, brilhando e rindo, se humedeciam de felicidade.

Um pobre surrão de estamenha, cingido à cinta por uma corda, era todo o vestuário da pastora: através dos rasgões que nele tinham feito os silvados, a pele do seu peito, do seu joelho, brilhava, como a brancura macia de um mármore fino: e sob os cabelos despenteados, na face linda que o sol e o ar da serra crestara, o largo azul dos seus olhos grandes, que pareciam sempre maravilhados, tinham o brilho divino do azul do céu, e a graça tímida do azul dos miosótis. Gil só sabia que ela se chamava Solena, e que servia de pastora, desde pequena, a um velho que tinha a sua granja para além das colinas. Sentados na relva fresca, tinham grandes silêncios: ele tomava a mão da sua amiga, e fazia girar, sorrindo, um pobre anel de chumbo, que lhe enfeitava o dedo: ela erguia da relva o gorro de Gil, e acariciava as plumas brancas que o ornavam.

Brincando, ela lavava, no riacho claro, os seus pobres pés que a serra endurecera: e ele apanhava flores silvestres, que lhe metia, rindo, no cabelo. O cuidado de ambos era saber se tinham pensado um no outro: e baixo, com os dedos enlaçados, contavam os sonhos que lhes tinham encantado a noite.

Nunca Gil falava do rico e nobre solar que habitava, mas ela decerto o considerava como filho de um rei, igual ao de uma história de fadas que sabia, porque às vezes lhe dizia: «Um dia vais, e não voltas mais». Ele jurava, muito grave, que passariam a vida juntos, sentados naquela relva, vendo correr a água clara.

As ovelhas brancas pastavam pela encosta. O rafeiro dormia ao lado de Solena, E ela então, prendendo um joelho entre as mãos, os seus claros olhos erguidos para as ramagens quietas, começava a cantar. E era tão doce o cantar, e tão linda a cantiga, que

Gil se punha a pensar em cantos que ouvira às aias, quando era pequeno, e em que fadas adoráveis tomam a forma de pastoras, e cantando como Solena cantava, atraem para o alto das serras os cavaleiros que passam. Como ele iria contente, mesmo para a morte, levado por ela! De tão perto, então, mergulhava os seus olhos nos dela, respirava o seu respirar, que o seio pequenino de Solena arfava, sob a dura estamenha. Um enleio, que era cheio de doçura e tristeza, invadia os seus dois corações. Ambos sentiam como vontade de chorar. E por vezes, ambos bruscamente se afastavam, como envergonhados

– ele indo bater no pescoço do seu ginete, que escarvava a relva impaciente, ela dando alguns passos, ao longo do riacho, com a sua roca, e fiando, com os dedos tão trémulos, que o fuso lhe caía na relva. Mas bem depressa ele gritava: «Solena!», corria atrás dela, passava o braço em torno da sua cinta, que ele sentia quente e como nua, através do surrão: e assim, iam calados, ao comprido da água murmurosa, para se sentarem mais longe, noutra relva, à sombra de outro arvoredo.

Mas pouco a pouco a tarde caía. Ela de novo apanhava a sua roca, chamava o rafeiro. Gil murmurava: «Ainda não!» E quando por fim, tendo infinitamente repetido

«Adeus, Deus te leve», Solena subia o outeiro, com as suas ovelhas atrás, ele ficava ainda revendo os lugares onde tinham pisado a relva, a água em que ela mergulhara os pés, todo aquele arvoredo, por onde se evolara o seu canto. Depois, montando com um grande suspiro, recolhia sob a doçura da tarde, sentindo também na sua alma a tristeza de um escurecer.

Um dia, chegando junto do ribeiro, e tendo tocado a sua buzina, não ouviu ladrar o rafeiro nem Solena apareceu, com as suas ovelhas atrás. Impaciente, correu ao cimo do outeiro – e, até onde os seus olhos inquietos podiam abranger, não avistou rebanho, nem pastora. Ainda esperou, errando, tristemente, junto à água, e sob as árvores. E só quando escureceu, tornou a cavalgar, recolhendo a passo, as rédeas caídas, tão triste, que um bando de ceifeiras, que passavam cantando, cessaram o seu canto, e o ficaram a olhar, compadecidas. À ceia, os seus lábios nada tocaram – e apenas Frei Múnio dera as graças, ele, beijando a mãe com uma ternura mais viva, correu para o seu aposento, caiu sobre um escabelo, diante de um retábulo da Virgem, e ali ficou toda a noite, perdido numa saudade, que não tinha nome nem fim.

Com que ansiedade, logo de madrugada, correu de novo à fresca fonte, onde «a alma lhe ficara!» Mas o Sol ia alto, três vezes ele tocara a sua buzina – e nem o rafeiro latiu, nem apareceu a pastora! Então, desesperado, largou a galopar por vales e outeiros, sondando todas as espessuras de bosques, parando a olhar o fundo dos barrancos, subindo aos cimos, gritando, pelas quebradas, o nome de Solena. Mas, em torno dele, só havia solidão e mudez.

Pela tarde, avistou uma velha, que subia uma encosta, apoiada ao seu bordão, carregando um molho de lenha.

Correu, interrogou a velha – mas ela, tonta e vaga, não compreendia, e Gil outra vez abalou, sem esperança, não vendo os caminhos por onde corria, com as lágrimas que lhe bailavam nos olhos. Já o Sol descia, quando junto de uma cruz que se erguia entre três carreiros, encontrou dois homens, que descansavam, um segurando pela mão um burro carregado de vasilhas, outro com duas lebres mortas às costas, penduradas numa lança: ao ver Gil que colhera as rédeas, o caçador tirou a gorra de pele de raposa e dobrou o joelho como um servo: – mas quando Gil lhe perguntou pela pastora e pelo rebanho, nem ele, nem o homem do burro, o souberam informar. Gil, com um grande suspiro, meteu pelo caminho de Gonfalim.

Toda a noite velou numa ansiedade mortal. Ora a supunha inconstante, esquecida dele, tendo levado para outro sítio, para a beira de algum pastor como ela, o seu rebanho, e o seu lindo cantar; ora a imaginava na granja do amo, doente, ou morta talvez, devorada pelos lobos, levada pelas águas de uma torrente.

E o seu desespero era não saber qual o amo, a granja, que ela servia, onde ele pudesse correr, e saber a verdade. A tocha de cera, que ardia a um canto, estava derretida. Já a manhã clareava. Abriu a porta, desceu ao pátio, à quinta, a espalhar a sua dor na frescura das ramagens. Um homem, que apagava uma lanterna no muro da cavalariça, correu para ele, tirando o seu gorro de pele de raposa. Gil reconheceu um

Pêro Malho, falcoeiro, que desde o Natal tomara serviço no solar.

– Meu senhor! – disse o homem – a pastora porque ontem perguntáveis, no

Cruzeiro, quando eu lá estava, com duas lebres às costas, guardava umas dez ovelhas e tinha um podengo amarelo?...

Gil agarrou o braço do homem:

– Diz!

Então Pêro contou que o podengo fora encontrado morto; um almocreve achara adiante as ovelhas perdidas; de madrugada passara nesse sítio um bando de homens de armas, que vinha das bandas de Aguiar. A pastora fora decerto roubada.

Gil ficou mais branco que a cal do muro que lhe ficava por trás. E com um tom de comando e de força, como se aquela dor por que vinha penando do Donzel houvesse feito surgir o Homem, ordenou a Pêro que desse o alarme aos moços de armas, se armasse ele de ascuma e loriga, e estivessem todos, com cavalos, ao pé do Portelo da

Faia. Depois, subiu as escadarias de pedra, e na velha sala de armas, onde há tanto tempo só entrava o serviçal para sacudir a poeira, vestiu a cota de malha, e o capelo, que seu pai lhe dera, escolheu uma lança de monte, e armado, tendo feito o sinal-da-cruz, desceu devagar para que nem as aias se apercebessem, e foi ter ao Portelo, onde, um a um, espantados, ainda com os olhos inchados do sono, vinham chegando os homens de armas.

Eram os sete que havia no solar – e já velhos, tendo perdido nas tarefas da lavoura os hábitos do capelo e da cota, que se tinham enferrujado, e com as lorigas de couro mal juntas, os coxotes mal afivelados, montando velhos ginetes, a que quietos anos de sono e ração farta tinham tirado a ligeireza e o garbo, formavam um troço de homens toscos e moles, de que se riria qualquer bom cavaleiro, voltando da Fronteira e dos Mouros.

Mas, quando o senhor D. Gil, no seu grande fouveiro, sacudiu a lança e partiu, lá galoparam, mal acostumados à sela, enrolando por vezes na cima as mãos calejadas do arado e do malho.

Bem depressa, porém, a carreira parou, no encontro de dois caminhos, porque D.

Gil mal sabia o que o levava, assim armado, com a sua ronceira mesnada de sete homens de lavoura, através dos campos quietos. E os seus belos olhos de novo se enevoaram de lágrimas de donzel, sentindo que a sua grande cólera era vã, e sem alvo, como uma lança arremessada contra o vento! Para onde ir? Contra quem correr? Se a pobre Solena fora roubada, para onde a tinham levado os seus roubadores? A que solar pertenciam? Como tomar a desforra com esses sete homens mal armados?

– Que fazer, Pêro?

Ao seu lado Pêro Malho, montando um ginete pequeno de longas clinas, com uma loriga de tiras de couro negro, tomara o lugar de escudeiro. E com a sua ascuma atravessada na sela, coçando o queixo rapado, pensativamente, terminou por aconselhar que se fossem pelos caminhos, e pelas herdades, indagando da passagem desses homens armados, que tinham vindo de Aguiar.

– Assim seja, Pêro.

E todo o dia, por vales e outeiros daquela terra pouco habitada, a cavalgada trotou, sob o sol de Agosto.

Mas nem um almocreve, que conduzia, cantando, os seus machos, nem um bando de jograis que iam para a feira de Vouzela, nem duas moças que cavavam à beira de uma herdade solitária, lhes souberam dizer dos homens que procuravam. Pela tarde, quando o Sol descia, indo por um carreiro entre cerros, avistaram no alto a torre negra, as ameias de um paço acastelado. A levadiça estava erguida, e tudo parecia deserto, na tristeza do poente. D. Gil fez soar a sua buzina: – nenhuma atalaia apareceu entre as ameias. Mas, tendo costeado o cerro, e entrado num campo, que um valado cercava, dois homens correram, com chuços, gritando:

– Cá por aqui é honra! A que vindes?

Pêro, alçado nos estribos, gritou:

– De quem a torre?

– De Lanhoso, e não há cá ninguém.

A cavalgada seguiu – enquanto outros homens, besteiros e moços do monte, se acercavam também do silvado, gritando também, com tom de ofensa e de briga:

– Cá por aqui é honra!

D. Gil, cujos olhos faiscavam, colhera as rédeas, apertava a lança – mas já Pêro

Malho o retinha, com bom conselho. De que servia brigar? Com sete homens não se assaltava um castelo.

Os beiços de D. Gil tremiam. Talvez, dentro daqueles muros, estivesse agora a pobre Solena, perdida sem remissão. De que servia andar na vã empresa? Os homens violentos que a tinham levado estavam decerto metidos com ela dentro de muralhas e torres. Só o poder de el-rei a poderia libertar. Não ele, com os seus sete criados... E mesmo que corresse sobre aqueles, ou homens de outro castelo, como saber se eram esses na verdade os culpados, e se não estaria inocente o sangue que então corresse? Só lhe restava chorar aquela flor, que ele descobrira, e que outros tinham colhido.

Nesses pensamentos o colheu a noite, e foram pernoitar a uma herdade, onde o pobre fazendeiro, um velho, ficou aterrado ao ver aquele Senhor, com os seus homens de armas, que decerto esvaziariam a sua capoeira, e levariam a palha do seu palheiro, sem lhe dar um maravedi. Mas quando Gil declarou que tudo pagaria pelo preço de

Vouzela, foi uma festa na herdade, ate desoras, em torno de uma grande fogueira, e os homens de armas esvaziavam os pichéis de vinho, rindo das histórias que contava o facundo Pêro Malho.

D. Gil, embrulhado no seu mantel, pensava em Solena, nas tardes junto à ribeira, e naquela fraqueza dos seus braços, que a não podiam salvar. Mas, mesmo que a arrancasse de entre os homens brutais que a tinham levado, seria ela a mesma Solena, que embalava nos braços o anho branco? Não, Virgem Santa! A lama sujara a água clara. A pata do boi pisara a flor silvestre. Ai dele! Da Solena, que conhecera, nada restava, e era como se ela morresse, e o seu lindo corpo, que alvejava entre os rasgões do surrão, estivesse apodrecendo na vala escura. As lágrimas, ao pensar assim, caíam nas suas faces: – mas a violenta angústia cessara, como um temporal, e agora uma saudade se estabelecia na sua alma, calma e doce como o luar triste que se espalha pelos campos, depois que passou a tormenta.

De manhã, tendo os seus homens já montado, não quis recolher ao solar. Era como uma esperança de poder ainda talvez socorrer a mísera pastora, e uma vergonha de voltar a depor na sala de armas, entre a poeira, a sua lança que não servira.

Todo o dia ao acaso trilhou os caminhos. Ao passar pelas granjas, fazia ressoar a sua buzina. Se avistava algum cavaleiro, montado na mula de jornada, estacava, com a lança a prumo sobre o coxote; o cavaleiro passava tirando o gorro; e D. Gil retomava a marcha. Por vezes, enervado, impaciente, despedia numa longa carreira – até que homens e cavalos estacavam arquejando.

E no despeito fundo que sentia, com aquelas correrias sem destino, e sem glória, desejava ao menos encontrar um lobo, um touro bravo a derrubar. Os homens, cobertos de poeira e suor, praguejavam já surdamente.

Ao descer do Sol, à vista de um pinheiral que cobria um outeiro, sentiram de repente um grito, depois outro. «Louvado seja S. Tiago!» exclamou logo Pêro. D. Gil, largando a rédea, correu para o bosque escuro – e num barranco, avistaram, entre fardos e caixas caídos da mula que os carregava, três homens de armas que amarravam a um tronco um velho, enquanto atavam com uma corda os pés de um rapazito, cheio de sangue na boca. Os três cavalos dos homens esperavam à orla do pinheiral: e antes que

D. Gil pudesse usar a lança, já os três homens, saltando sobre os ginetes, fugiam furiosamente.

O bom cavaleiro largou sobre eles com dois dos seus solarengos – mas, conhecendo decerto os caminhos que se cruzavam entre o arvoredo, os três homens tinham desaparecido na espessura. Então, voltou para o velho, que Pêro desamarrara, e que, tremendo todo, e gaguejando, contou que ia com o neto levar duas jardas de pano de almafega ao paço dos Senhores de Solores, quando fora assaltado e espancado. O rapazito tinha dois dentes partidos, um ombro com a carne rasgada de uma lasca de pedra, e D. Gil lamentou não saber, como todo o cavaleiro deve, a arte de curar as feridas. Fez montar a criança, que desmaiava, à garupa de Gundes, o seu homem de armas que trazia o cavalo mais forte; a carga foi arrumada sobre a mula; e três dos seus solarengos, com Gundes, acompanharam o recoveiro ao solar de Sobres. Depois, quando viu o velho partir, assim bem escoltado, largou a galope para Gonfalim, tão alegre agora, e satisfeito com a vida, que rompeu a cantar.

A noite cerrara, quando a cavalgada chegou à levadiça do solar.

Serviçais esperavam com tochas – e Gil, desmontado, caiu nos braços de D. Rui e de D. Tareja, que, sem saber para onde partira o filho do seu coração, com cavalos e armas, tinham passado dois dias no alto da torre de atalaia, olhando sofregamente os caminhos, tremendo a cada rolo de poeira que ao longe se enovelava, e fazendo ricas promessas a todos os santos do Céu. Mas, quando o viram tão airoso e forte, na sua armadura, nem o repreenderam do terror que lhes dera, embevecidos com o seu belo cavaleiro, que lhes parecia tão belo como S. Miguel armado. D. Tareia passava as mãos com amor na cota brunida. Foi D. Rui que o desembaraçou da rodela e da lança. E quando à ceia o bom Senhor soube de como ele libertara o recoveiro, e o neto, e os três bandidos tinham fugido – não se conteve, no seu entusiasmo, e gritou com uma punhada na mesa que fez tremer os pichéis de estanho:

– Vida de Cristo! Que nunca ouvi, nem sei que se conte nos livros, de mais justa façanha!

V

Depois, a torre e Solena tinham-se sumido –e ele vira Jesus Nosso Senhor, de repente, que, sorrindo, lhe oferecia uma grande espada, mais clara que um diamante.

Então, começou a pensar em correr mundo, como paladino errante, para socorrer todos os fracos: – e agora, que aprofundava aquela ideia, nenhuma existência lhe parecia mais nobre e mais bela.

O mundo vira já muitos desses cavaleiros famosos. Mudos, cobertos de ferro, seguidos de um só escudeiro com a Lança, eles percorriam os remos da Terra, protegendo os pobres e os mesteirais, libertando damas encerradas em torres, derrotando os gigantes daninhos, derrubando os príncipes dos tronos usurpados, remindo povos

Então começou este moço gentil a amar grandemente as armas. Mas, por elas, não esquecia a linda Solena roubada: – e até, se agora se empenhava em ser um forte e destro cavaleiro, é que, sonhando uma noite com ela, a vira, no fundo de uma torre, com os cabelos soltos e grilhões nas mãos, que lhe dizia através de lágrimas: «Se não pudeste socorrer-me, a mim, pobre pastora, que só te tinha a ti no mundo, dedica-te, por amor e lembrança de mim, a socorrer todas as fraquezas, amparar todos os desamparos». cativos, destruindo as feras que assolam as searas, e, a caminho de conquistar um reino, parando a consolar uma criança que chorava num horto. Um anjo voava por trás deles com as asas abertas: – e as suas façanhas não provinham da irresistibilidade da sua força, mas da evidência da sua justiça. Uma tal vida deslumbrava D. Gil – e a sua possibilidade era clara, pois que, sem procurar aventuras, só porque sete lanças o seguiam, ele, libertando O recoveiro no pinhal, fizera obra de paladino.

Então todos os seus pensamentos foram dados a esta empresa. Todos os dias se adestrava em jogar a espada com qualquer mão, em disparar bestas, em vibrar o montante – e o velho D. Rui, do balcão da sala de armas, aplaudia estes exercícios, que tanto convêm a um fidalgo que preza Deus, a honra e a linhagem. Por sua ordem, o intendente comprou o melhor alazão de guerra, que nesses tempos apareceu na grande feira de S. João, em Viseu: todos os homens de armas foram providos com lorigas novas, ascumas de largo cutelo, cascos que reluziam como espelhos: – e a armadura de

Gil, que a mãe com o dinheiro das suas arras lhe quis dar, era tão bela, que esteve, durante todo um domingo, exposta na capela do solar.

Pêro Malho constantemente acompanhava D. Gil nestas ocupações de cavaleiro.

Era ele quem polia as armas, dava a ração ao ginete, cuidava dos galgos favoritos de D.

Gil, tudo dispunha para os exercícios de armas: – e mesmo, como a idade e os achaques iam tornando mais trôpego o aio de D. Gil, era Pêro quem dormia, atravessado à porta do seu aposento, e lhe batia as roupas com um junco, e, à mesa, lhe enchia o pichel de vinho. D. Gil começava a ganhar grande afeição a este escudeiro.

Era Pêro um mocetão, mais moreno que um mouro, esperto, destro e destemido, de uma alegria que Lhe trazia sempre descobertos os dentes magníficos, grande sabedor de histórias e rifões, lindo bailador em festas de adro, e tão rijo, que podia passar dois dias de jornada, sem sono, sem ração, bebendo apenas nas fontes um golo de água, pela borda do sombreiro. Sabia tudo quanto compete à caça e à guerra – e D. Gil tanto se ia afeiçoando a este moço, que já decidira levá-lo por escudeiro, se jamais partisse a correr mundo, como cavaleiro andante.

O seu desejo, agora que era destro em todos os exercícios das armas, era ser armado cavaleiro. E como D. Rui lhe prometera essa honra para quando tivesse vinte anos, e apenas faltavam duas semanas de Agosto, logo se começou a preparar a grande festa – e se armaram arcos de buxo desde o solar até à igreja do mosteiro, onde D. Gil devia velar as armas. Nessa noite por toda a aldeia, junto do velho solar e no terreno do convento, se acenderam pipas de alcatrão e fogueiras, onde o povo dançou, em grande ruído, ao som de violas e doçainas.

Um velho parente, D. Soeiro, Senhor de Tondela, que comandava trinta lanças, e tinha voz em três castelos, veio, com linda comitiva, dar a pranchada em D. Gil.

No terreiro do solar, duas vacas inteiras assavam em espetos maiores que lanças.

Das pipas, juntas em cima dos carros e toldadas de louros, o vinho corria como de fontes públicas. O clangor das longas festivas misturava-se aos cantos dos jograis. E quando pela tarde se baixou a levadiça, e D. Gil, todo armado, seguido de homens de armas, de escudeiros, de moços de monte, saiu ao terreiro, e empinando o ginete, brandiu três vezes a lança – todos os sinos repicaram, bandos de pombas soltas branquearam o espaço, punhados de rosas voltearam no ar, e uma chuva de moedas de prata e de cobre caiu sobre o povo, como no advento de um rei.

Depois, de novo o solar caiu em quietação e em silêncio. E D. Gil, que abandonara os livros, e não tinha já quem encontrar na solidão do bosque, e se saciara do exercício das armas, começou a achar os dias pesados e longos. As correrias pelos campos, com os seus homens de armas, agora bem armados e bem montados, não tinham motivo, nem destino: – e depois de galoparem nalguma planície, atravessarem alguma herdade, fazendo latir os cães e fugir as galinhas, descansarem à sombra de um arvoredo, e atroarem os vales com toques de buzina à mourisca, nada mais lhes restava que recolherem, pelo fim da tarde, cobertos de poeira, cansados, e sem aventura para contar à ceia.

Para seguir então, mais fielmente, a vida dos paladinos, como a aprendera nos livros, saía só com o seu escudeiro Pêro, que vestia um saio azul e branco (que eram as cores dos Valadares), trazia duas longas plumas brancas e azuis no gorro, e levava o montante e o broquei do seu amo. Ia então, para esperar aventuras, postar-se, como

Roldão, no encontro de dois caminhos, ou, como D. Clarimundo, à entrada das pontes.

Mas só encontrava algum almocreve, que o saudava humildemente, ou um frade mendicante que lhe dava uma relíquia a beijar, algum pobre menestrel, que, a troco de um maravedi, lhe cantava um vilancete, ou a gente dos arredores, lavradores e mesteirais, que todos o conheciam e lhe diziam, com agrado: «Deus salve o Senhor D.

Gil». E bem depressa abandonou estas cavalgadas solitárias – passando os dias no solar, pela quinta, com um látego inútil na mão, a visitar as cavalariças, o telheiro, onde os falcões engordavam entorpecidos, o lagar ou a eira. Na grande sala, D. Rui, que ia embranquecendo, dormitava, já muito gordo e pesado, na sua alta cadeira de carvalho, com os pés numa grande almofada, as mãos cruzadas e escondidas, como as de um padre, nas mangas da sua simarra. D. Tareja, com o cabelo todo branco, sentada numa esteira rio chão, trabalhava entre as aias; – e todas as noites Frei Múnio recomeçava a batalha de Dano, ou os milagres de Santa Úrsula.

Às vezes, seguido só do seu alão, D. Gil descia através da aldeia a uma pequena casa, junto do rio, onde Mestre Porcalho, muito velho também, enriquecido pelos dons de D. Rui, se retirara a repousar, cultivando o seu horto.

Encontrava sempre o douto velho, com os seus longos cabelos brancos, muito compridos, soltos sobre a garnacha negra, cuidando do cebolinho, do feijoal – ou à mesa da cozinha, coberta de plantas secas, dispondo folhas entre as páginas de um in-fólio.

D. Gil amava este douto prático – e gostava de o interrogar sobre os segredos do corpo humano, a sua estrutura, os seus humores, e as influências que o regem. Mas agora, que já não exercia a sua ciência, o bom Porcalho, franzindo as grossas sobrancelhas brancas sobre os olhos cavos e muito luzidios, declarava nada saber, menos que um porco – porque só havia três ciências de curar. Uma, a dos monges, por meio de peregrinações, milagres, e contactos de relíquias, e era esta falsa, porque o ilustre físico árabe Rhazei provara que Deus não se intromete com a saúde das criaturas.

A outra, a do Povo, feita toda de feitiços, esconjuros e sortilégios, era ilusória porque vem do Diabo, e o Espírito do Mal não pode promover o bem humano. E a terceira, a verdadeira, a eficaz, essa ainda não chegara a estes remos de Portugal, e estava toda em

França, terra de grandes escolas.

No entanto ele, Porcalho, fizera importantes achados! Era incontestável que a pedra de ágata facilitava as dores da maternidade, como ele provara com a Senhora D.

Tareja; que a sangria de Março devia ser feita nas veias do peito; e que a hipocondria era produzida por um vento funesto, que vinha da Lua e que inchava o fígado! De resto, descobrira alguns simples maravilhosos –e a ele, não a outro, se devia que em toda a terra do Douro ou das Beiras se reconhecia hoje a excelência da mandrágora! Dizia estas coisas profundas com um grande ar inspirado e sinistro. Em redor, toda a cozinha estava cheia de almofarizes, grossas garrafas com líquidos de cores radiantes, aves empalhadas, molhos de ervas secas pendurados das traves defumadas do tecto: um cheiro doce e triste perturbava a alma: e nos vastos in-fólios, com fechos de metal, parecia dormir uma ciência imensa e profunda.

D. Gil voltava para o solar, devorado pela curiosidade daquele saber. Nenhum poder humano lhe parecia mais alto do que aquele que suprime as dores, luta com a influência do invisível, e vence a Morte. Quanto bem a derramar pelo mundo, quando se possua aquele divino saber! Se era já belo e grande tomar armas e ir pelo mundo livrar os homens dos males que os homens lhes fazem, quanto maior e mais belo libertar o pobre corpo dos males infinitos que lhe faz a Natureza! E bem compreendia agora aquela regra, tão fundamental, dos livros de boa cavalaria, que todo o bom cavaleiro devia saber a arte de curar as feridas que a lança faz. Não era pois indigno, antes nobremente próprio de um fidalgo, conhecer os simples, as influências, a arte do bem-sarar.

Por aquela ciência, como por uma escada sem fim que mergulha nos céus, o homem ascende aos altos segredos! Aquele a quem um mal aflige pode então recorrer a esse alto saber, tão eficazmente como a Deus por meio da prece: – e, na verdade, o bom sabedor da Grande Arte é como um Deus que percorre o mundo distribuindo a vida.

E destes pensamentos, que o conservavam de noite desperto, resultou que o gentil cavaleiro, deixando as armas cobrirem-se outra vez de poeira, se quis preparar, antes de novamente as tomar, com a grande ciência dos simples e das drogas. Começou então a estudar, assiduamente, com Mestre Porcalho, que se orgulhava deste discípulo, tão gentil e tão nobre. O seu dia todo se passava no horto, ao pé do rio. Sentados ambos sob a latada, D. Gil, com um pergaminho no joelho, escrevia todos os preceitos que lhe revelava o velho Mestre, para depois os decorar, passeando até desoras no seu quarto. Já sabia os princípios de Galiano e dos Gregos, as receitas de Rhazei e dos Árabes. E por um caderno mirífico, que Mestre Porcalho obtivera de um judeu, e que continha extractos do Cânon de Avicena, já conhecia vinte doenças, e as suas vinte causas, e os seus vinte remédios. Mas a experiência original e própria do Mestre não era menos valiosa; – e por ela aprendeu D. Gil todas as medicações que se devem aplicar segundo os meses – em Janeiro tomar poção de gengibre, em Fevereiro sangrar na veia do peito, em Março pôr ventosa no fígado...

Por meio de ossos humanos, que o Mestre outrora, com grande risco, roubara num cemitério, e que guardava numa arca sob o leito, conheceu os segredos da estrutura humana: e ao ver uma caveira que nunca vira, e que o fez persignar-se para afastar o mau olhado, pensou, sem saber porquê, em Solena, no brilho do seu olhar, na sua pele tão macia e doce. Depois, diante dele, Mestre Porcalho uma noite matou um bácoro, e

Gil conheceu as veias, os tendões, e o saco do estômago, onde «o ar penetrando decompõe os alimentos».

VI

Era no tempo dos figos – e tendo demasiadamente comido desta fruta, o bom abade fora atacado de um duro mal. Na sua cela, onde recebeu afavelmente o seu vizinho, as relíquias do convento estavam expostas, sobre um pequeno altar, para dar saúde ao bom abade.

Um frade rezava junto ao vasto leito de carvalho. Outro pisava uma massa dentro de um almofariz – e dois noviços, com ramos de louro, sacudiam as moscas da face venerável, que o mal empalidecera.

No solar o velho D. Rui estranhava a nova existência de Gil – que, agora, das suas caminhadas solitárias, sem galgo, sem escudeiro, voltava carregado de ervas, como um aprendiz de ervanário. Mas quando soube que ele andava aprendendo a arte de curar, a sua admiração por aquele filho excelente cresceu, e não duvidou que ele viesse um dia a ter fama, em todo o reino, pelo seu saber maravilhoso: – e uma tarde, montando com custo na sua mula, foi ao mosteiro levar ao D. Abade a notícia desta empresa nova, a que se lançara o grande espírito do seu doce Gil.

D. Rui lamentou o bom abade – e, sentado num escano aos pés do leito, contou logo como, justamente o seu Gil, começara agora com o grande desejo de saber a arte de curar aquele e outros males.

– Pois mandai-o estudar a França!... – acudiu logo o D. Abade, estendendo a mão fora da roupa, com um gemido. Não sei que haja mais útil saber. Mas nós, aqui neste reino, nem uma dor sabemos calmar... Não o digo pelos doutos padres desta casa!... Mas já desde domingo, que foi a merenda, estou aqui em trabalhos... Estamos em grande atraso. Mandai-o estudar a França.

E, pregando os olhos nas santas relíquias, ficou mudo.

Só quando D. Rui lhe beijou o anel da mão, caída sobre a colcha de seda, tomou a voltar o rosto, a murmurar:

– Mandai-o estudar a França.

D. Rui recolheu ao solar melancolicamente. Deus, decerto, pela voz do D. Abade, que sofria cercado de relíquias, lhe indicava aquele dever de mandar o seu filho a

França, para se ilustrar no saber. Mas a ideia de o ver partir e ele já tão velho, cortava o seu coração.

Quase desejava que seu filho fosse um moço de espírito simples, contente em caçar, e justar as armas no pátio do seu solar. E nem contou a D. Tareja esta visita ao mosteiro, o conselho penoso que lá fora escutar.

E era então com mágoa que via agora o seu filho cada dia mais devotado aos livros. Tendo começado por estudar a arte dos Simples e das Drogas, como complemento da sua educação de cavaleiro, ele começava agora a amar esse saber, como o fim supremo da vida.

Como um peregrino que percorre um templo, e a quem a beleza ou raridade de uma capela inspira o desejo devoto de percorrer as que além, na sombra, fazem cintilar os seus ouros, este gentil cavaleiro, de cada estreita região do saber em que penetrava, recebia a nobre tentação de invadir outras, que ao longe faziam cintilar a maravilha dos seus segredos.

As secas plantas, com que Mestre Porcalho lhe ensinara a fazer emplastros para curar humores, lhe tinham dado o desejo de conhecer toda a vasta natureza que cobre a terra, e a estrutura dessa terra, onde se escondem os metais e o fogo: a terra, ela mesma, lhe fizera sentir o desejo de conhecer tudo o que a cerca, os ventos que a sacodem, as nuvens que sobre ela formam um todo de multicor beleza, os astros pequem-nos e grandes que sobre ela derramam o seu brilho fulgurante ou meigo. Do Homem, de quem o velho físico lhe explicara os ossos, ele bem depressa quis conhecer a alma, e as leis múltiplas e maravilhosas que a regem... Por que aspirava ele ao bem? Por que sentia uma resistência ao mal? De onde nascia o amor? Por que pensava, e em que parte íntima do homem brotava a fonte imperecível do pensar? Depois era ainda a curiosidade de saber o que o Homem, desde tão longas idades criado, tinha feito na terra, e as cidades que fundara, e as grandes guerras que travara, e as Leis que criara para se conservar manso e sociável... E, do Homem, a sua curiosidade ascendia ao Deus que o criara. Qual era a sua essência, onde habitava, que cuidado tinha ele pela humanidade que criara? –

E assim, este moço gentil, a quem a barba mal nascera, aspirava a percorrer todas as ciências, a compreender todo o ser. Mas entre as velhas muralhas daquele solar, naquela quieta aldeia, adormecida sob o olivedo e a vinha, como poderia adquirir todo esse saber, que ocupa, para ser codificado e aclarado, monges de tantos mosteiros, escolares de tantas escolas! Todos os trinta e três livros, que formavam a rica livraria do convento

Beneditino, lhe tinham sido emprestados, por supremo favor, e em todos, confusamente e tumultuosamente, aprendera milagres de santos, leis visigóticas, batalhas da antiguidade, receitas de drogas e notícias dos países que estão para o Oriente: –mas eram como curtas fendas, num tecto de maciças traves, por onde entrevia pontos vivos de luz, aqui e além, e tudo o resto era escuro, e a luz completa estava por trás, sem a alcançar.

Mesmo por vezes lera um grande tomo, de Aristóteles ou de Séneca – mas sentia que o seu espírito solitário, sem um guia, ia através daquele saber, como um homem perdido de noite numa montanha desconhecida.

A sua alma então, nessa grande sede que não podia ser saciada, porque estava tão longe de toda a fonte, caiu numa melancolia. Abandonou os grossos in-fólios onde já nada novo podia aprender – e não o atraía a companhia de homens que nada lhe podiam ensinar. Só, com um galgo, partia de manhã, penetrava nos campos, procurava a solidão das quebradas e dos vales: e aí, caminhando devagar, ao comprido de um ribeiro, ou deitado à sombra de uma árvore, ele pensava na inutilidade da vida...

Aquilo, pois, era viver–esta monótona sequência dos actos instintivos: acordar, comer, caminhar entre as árvores, voltar à mesa onde as malgas fumegam, e, quando a luz finda, adormecer? Assim vivia qualquer bicho no mato! Mas de todas as ocupações humanas qual era verdadeiramente digna de que o homem nela pusesse a sua alma inteira, e a tomasse o fim do seu esforço na Terra? Não decerto vestir as armas, seguir um pendão, rasgar as carnes de outros homens, gritar no estridor das batalhas, para que o Senhor Rei possua mais um castelo, ou alargue, para além de um rio, as fronteiras do seu reino! Não decerto juntar maravedis, com eles comprar mais terras e mais servos, engrossar rendas, atulhar as arcas de sacos de ouro! Não decerto andar de solar em solar, com plumas no gorro, e um falcão em punho, galanteando as damas, conversando de Linhagens, justando nos pátios, e escutando os jograis que cantam ao serão!...

O quê então? E o seu espírito recaía naquela ambição vaga que o torturava, a ambição de tudo saber, de se elevar, pela posse dessa ciência, acima dos homens, e exercer essa supremacia toda em favor e bem dos homens. Quereria ter um saber que lhe permitisse fazer as leis mais justas, curar todos os males do corpo, enriquecer as multidões, estabelecer a paz entre os Estados, e guiar todos os seres vivos pela larga estrada do Céu. Para tal fim, só para ele valeria a pena viver. E, para o conseguir, não haveria trabalho a que se não sujeitasse, fadiga que não afrontasse. Veria, sem dor, o seu corpo penar, comeria as ervas dos campos, vestiria os trapos mais sujos, serviria nos misteres mais rudes – contanto que a alma se fosse enchendo desse grande saber, cada vez mais alto, mais belo, dominando todas as almas pela abundância de verdade que possuísse, e pela eficácia do bem que espalhasse. Mas esta ambição, como a realizar?

Onde, como, adquirir esse saber benéfico? E quando o tivesse adquirido, de que modo fazer que ele aproveitasse aos homens, para se tornarem melhores, e serem aliviados dos males da vida?

Seria um grande físico, que fosse pelo mundo curar os males da carne? Seria um grande Teólogo derramando a paz nas almas? E mesmo que melhorasse algumas almas, ou sarasse alguns corpos, quantos ainda por todo o vasto mundo ficariam sem remissão e bem-estar? Qual era o meio de fazer o bem, simultaneamente, a grandes multidões?

Assim pensava D. Gil na solidão dos vales. Este moço tão gentil tinha então vinte e dois anos – e era tão belo e airoso, que a gente se voltava nos caminhos, e o ficava a olhar, com doçura.

Os seus longos cabelos, de um louro escuro, caíam em anéis como os de um arcanjo. Nada havia mais doce e luminoso que o olhar dos seus olhos escuros. Um buço, apenas nascente, dava uma sombra de virilidade à sua pele ebúrnea, como a de uma virgem: – e no seu andar havia uma graça altiva, como a de um príncipe em plena felicidade. Os seus modos eram tão doces e corteses, que logo prendiam as almas.

Nenhuma pessoa, por mais humilde, o saudava, sem que ele gravemente erguesse o seu gorro de fidalgo: e nos caminhos estreitos encostava-se às sebes, para deixar passar os velhos, ainda que fossem mendigos. Ainda que naquela farta e quieta aldeia não havia pobreza, a sua escarcela saía cheia, e voltava sempre vazia. Amava todos os animais –e as crianças faziam-no parar, sorrindo, enternecido.

Com esta cordura de monge, tinha todas as prendas de um cavaleiro. Ninguém justava, jogava o tavolado, domava um potro bravo, erguia uma barra de ferro, com mais força e primor.

Nada temia – nem os homens, por mais fortes, nem as feras por mais bravias, nem os duendes por mais malignos. Mas na casa de seu pai era obediente como uma criança

– e era ele quem servia o velho, o ajudava a erguer da sua cadeira, e mesmo lhe penteava os seus cabelos brancos. Um olhar de sua mãe era para ele como um man-damento divino – e com tanta devoção lhe beijava a mão, que outra maior não tinha com a Mãe do Céu.

Nunca sua alma, branca como a água mais pura, fora toldada pela passagem de um pensamento injusto ou impuro. A Justiça era para ele tão necessária como a luz: – e se testemunhava uma injustiça, sofria, como se um guante alheio lhe tivesse batido a face, sentindo-se ofendido na ofensa que via fazer aos outros. Adorava a Verdade, logo abaixo da Virgem Maria: – e todo o olhar que não fosse franco, toda a palavra que não fosse livre, lhe davam o horror de uma coisa suja.

Queria que todos os solarengos lhe falassem sem submissão: – e, amando todos os homens como iguais, a servidão parecia-lhe uma ofensa ao seu amor.

Assim o Senhor D. Gil era, nesses anos ainda curtos, uma das almas melhores da cristandade.

Um dia, tendo despertado com o cantar das calhandras, e sentindo a alma mais triste, partiu só, com um grande lebréu, e levado pelos seus pensamentos, foi dar ao alto de uma colina, que era a mais alta naqueles sítios, e se chamava a serra do Bruxo. Dali via, mais baixas, a vasta colina onde negrejava o seu solar, a aldeia de Gonfalim, espalhada entre a verdura, o branco Convento dos Beneditinos, o rio, luzindo entre as margens altas, e a ondulação dos cabeços, até ao extremo azul: – e de pé, envolto no vento largo que soprava, Gil começou a considerar quanto era estreito aquele horizonte, e quanto seria impossível, na verdade, que dentro dele se realizassem sonhos que abrangiam o mundo todo. Que havia ali, naquele círculo de colinas? Os muros do seu solar, um convento de velhos frades, uma aldeia de pobres colonos, e para além, terras bravias, matos, colinas, que o tojo vestia! Como poderia jamais ser ali o homem que desejava, o homem de grande saber, de grande acção? E quando, por um dom divino, assim se tornasse, onde havia ali uma humanidade múltipla e larga, para ele exercer a acção da sua alma? Mas para além havia outras terras, grandes remos, cidades ricas, grandes escolas, mosteiros de alto saber, e multidões inumeráveis, sobre quem uma alma forte e bem provida podia exercer uma supremacia que valesse a pena conquistar.

Se ele deixasse o seu lar estreito! se ele partisse!

Um alvoroço encheu o seu coração – e quase imediatamente sentiu ao lado, entre umas fragas, uma voz moça e fresca que cantava:

Pelo mundo vou,

Onde chegarei?

E o que procuro

Onde encontrarei?

E um moço apareceu, ligeiro e magro, pobremente vestido, que trazia uma sacola de mendicante a tiracolo, um forte bordão ao ombro, e duas grandes penas de galo no seu gorro remendado.

Uma alegria, franca e livre, alumiava a sua face magra. Todo ele parecia respirar com delícia o ar áspero e livre da serra: – e os seus olhos refulgiam, com um grande fulgor risonho.

Diante de Gil, parou, batendo com o bastão na rocha.

– Como se chama esta serra e onde leva este caminho?

Gil tirou o seu gorro, com cortesia.

– Esta serra não tem nome, e este caminho só leva a outras serras... Para onde ides?

O moço limpou lentamente o suor, que lhe alagava a testa:

– Vou procurando terras de França...

– Assim, para tão longe, a pé!

O moço riu alegremente:

– É que o Senhor Rei, quando distribuiu as terras e os solares, esqueceu-se de me dar uma, e uma mula para jornadear custa bom ouro. Mas as pernas são rijas e mais rijo o coração. E ele que me Leva, neste desejo de ir a França, para entrar nas escolas, e saber o grande saber, e vir a ser Físico-mor no paço de um rei, ou ensinar decretais num conselho. Na herdade em que nasci só havia um livro, que era o missal da capela. E como em todo o mosteiro há uma côdea de pão para um mendigo, e nos ribeiros não falta água, aqui me vou, com o meu cajado, cantando por estes caminhos da terra.

Os seus olhos fulguravam como duas chamas – e do cajado que ele assentara, rindo, sobre uma pedra, chisparam longas faíscas. E continuou:

– Só me falta um companheiro. Moço sois, forte pareceis; em França as mulheres são lindas; nas grandes escolas aprende-se o segredo das coisas; e as guerras não faltam a quem apetece a glória. Vinde também comigo, e seremos dois a cantar.

Gil respondeu gravemente, mostrando Gonfalim e o paço acastelado:

– Acolá fica a casa de meu pai.

Então o moço tirou o seu gorro:

– Rico sois! Ajudai um pobre estudante.

Gil abriu a escarcela, e, corando, tirou uma moeda de prata que pôs na mão do estudante. E, sem saber porquê, sentia uma atracção para ele, como um desejo estranho de se juntar àquele destino errante. Mas o moço, atirando o cajado para as costas, dando um jeito à sacola, partiu. E de novo cantava:

Dia e noite caminho,

Para onde irei?

E o saber que procuro,

Onde encontrarei?

A meio da encosta ainda se voltou, acenou com a mão a Gil – e subitamente desapareceu. No chão, em que os seus pés se tinham pousado, a erva secara toda.

VII

Gil recolheu ao solar, pensativamente. Aquele moço pobre partia, sem temer as misérias do caminho, pronto a esmolar o seu pão pelos mosteiros – só para adquirir, longe, nas grandes escolas, o saber a que aspirava. E ele, rico, que poderia partir, com bolsa farta, escudeiros e bagagens, hesitava em partir, para satisfazer as justas e nobres ambições do seu espírito! Se Deus lhe pusera na alma aquele ideal elevado, era por acaso para que ele o deixasse morrer insatisfeito e inútil? Dava-lhe Deus uma luz clara, para ele alumiar os outros, e em vez de a tornar mais viva e clara, tão alto, quanto alta possa ser uma luz da Terra, ele deixaria, por timidez e enleio da vontade, que ela esmorecesse e perecesse entre as abóbadas de um velho solar? Não, decerto! E como, pensando assim, avistasse à beira do caminho um cruzeiro – tirou o seu barrete, e jurou pela cruz que nessa noite falaria a seu pai, e lhe pediria para ir estudar a França.

E foi num caramanchão, no pomar, que ele revelou a D. Rui e a D. Tareja este grande desejo do seu coração. A ambos pedira para o acompanharem ao pomar, que tinha grande nova a dar a quem tanto amava... E sentado num rude banco de pedra, sob um caramanchão, onde se entrelaçavam rosas e madressilvas, tendo numa das mãos presa a mão do seu pai, na outra a da boa dona, lhes disse quanto lhe penava o passar os anos naquele solar, sem proveito para si, e utilidade para os outros homens, seus irmãos:

– tinha a ambição da glória, de honrar o seu nome, e de espalhar o bem pelo mundo: mas o serviço das armas, se lhe poderia dar glória, não o atraía, porque na guerra não havia senão miséria e mal: – e depois de muito cogitar, decidira que o seu desejo se satisfaria indo estudar às escolas de França, para voltar ao reino, como um grande escolar em medicina, que era um saber próprio de nobres.

Apenas um ou dois anos por lá passaria. Daria de si novas constantes – e ainda eles não teriam começado a sentir a longura da separação, já ele estaria de volta, licenciado no grande saber, para espalhar o bem em todo o reino, e ser bendito dos homens.

– Isto vos peço, pelas chagas de Cristo, que me não negueis este desejo, que é para bem dos homens, e por Jesus inspirado.

As lágrimas caíam pelas faces dos dois velhos. E elas e o seu silêncio, bem mostravam quanto eles julgavam nobre o desejo do seu Gil, inspirado pelo Céu, e difícil de ser recusado.

Mas dois anos de separação – e eles já velhos, e a França tão longe!

Como se ele já partisse, e ela o quisesse reter, a mãe abraçava o filho e murmurava:

– Em tanto mimo criado... E partires só para essas terras! E tão grandes os perigos e as tentações! Nós, sós, sem ti, como viveremos!

Mas o velho, mais forte, recalcando a emoção, exclamou:

– Tão nobre desejo não pode ser negado. O nosso filho tem altos espíritos... Não é nesta aldeia, neste velho solar, que ele pode ganhar fama e servir o reino. Não seria o amor de pai que, para não sofrer um ano, deixasse aqui neste ermo apagar-se, sem serventia, luz de tamanha promessa. Não te pese que choremos... Cumpre tu o teu dever de homem bom. Deus te leva, Deus te trará.

Gil murmurou:

– Deus decerto me trará.

Ficaram um instante todos os três abraçados – depois, em silêncio, foram à igreja, onde muito tempo rezaram.

Sem outras lágrimas, ainda que com grave melancolia, foram feitos os aprestos da longa jornada. Duas possantes mulas de caminho, uma para Gil, outra para o seu escudeiro Pêro, vieram da Feira da Covilhã, com os seus arreios novos. Os alforges de couro foram atulhados de roupas novas: – e o ovençal de D. Rui reuniu quinhentos maravedis de ouro. O bom abade dos beneditinos deu cartas de boa acolhida para os conventos de Espanha e de Provença, e um monge, que fizera a jornada, marcou num grande pergaminho o roteiro que, através de Castela e de Leão, levava à cidade de Paris.

Na véspera da jornada, a capela do solar e a igreja de Gonfalim estiveram toda a noite alumiadas, com capelães e os solarengos rezando, para que o Senhor guardasse o fidalgo que partia. D. Tareja lançou ao pescoço do filho uma relíquia, um pedaço do manto da Virgem, dentro de um escapulário. Nessa madrugada Gil ouviu missa – e o velho Frei Múnio deu a bênção a tudo que ele levava, armas, alforges, o grande lebréu e a mula. Pelas horas de matinas, estando todas as aias e serviçais reunidos no pátio – D.

Gil apareceu, entre o pai e a mãe, pálido, com o seu grande feltro de jornada, um brial escuro, e grandes botas de couro cru, onde brilhavam acicates de ouro. De joelhos, recebeu a bênção do pai, longamente esteve fechado nos braços da mãe. Todos os sinos então repicaram. Os solarengos, erguendo os sombreiros, bradaram: «Boa ida, boa volta!»E, com os olhos vermelhos, mais pálido que uma cera, o Senhor D. Gil, a galope, transpôs a levadiça do solar.

Amparados um ao outro, os dois velhos subiram à torre de atalaia. E quando viram as duas mulas desaparecer, ao fundo da azinhaga, caíram de joelhos nas lajes duras, tremendo, chorando, murmurando o padre-nosso.

À entrada da ponte, um velho de cabelos brancos, sobre a sua garnacha negra, deteve D. Gil que trotava, soluçando. Era Mestre Porcalho, que lhe vinha dizer o adeus da partida. O fidalgo e o velho físico longamente se abraçaram.

– Lede Galeno – murmurava o prático entre lágrimas mal reprimidas.

E quando Gil de novo trotava sobre as lajes sonoras da velha ponte romana, ainda o físico lhe bradou, com a mão descarnada no ar:

– Lede-me sempre Aristóteles!

VIII

Sempre os mesmos rudes e estreitos caminhos, escavados pelo trilho das cavalgaduras, ou dos carros, se sucediam, através de terras pobres, sem verdura e sem homens, de uma cor seca de greda, com alguma árvore poeirenta, onde as cigarras cantavam. Por vezes avistava uma pequena aldeia de adobe e tectos de colmo, agachada em torno de uma velha igreja, meio arruinada, findando por uma taberna, que estendia por cima do caminho o seu ramo de louro, preso na ponta de um pau. Gil desmontava aí, fatigado; havia sempre algum frade mendicante, de aspecto torvo, bebendo o seu pichel de vinho, ou dois mesteirais errantes jogando os dados sobre um toro de carvalho: e a taberna, os homens, toda a aldeia em redor, eram tão tristes, tão rudes, que

Gil tornava a partir, preferindo dormir à beira da estrada, sob a luz das grandes estrelas de Verão, junto de uma fogueira que acendiam, por causa dos lobos.

Outras vezes, caminhando na planície, avistavam num alto de colina, entre rochas, um negro, severo castelo: para lá trepavam; e depois de longas vezes tocarem a buzina, aparecia entre as ameias algum velho servo, que gritava para baixo, num tom rouco:

«Ninguém está, e ninguém entra». Nas ermidas que topavam, encravadas entre fragas, os ermitões pareciam entontecidos pela velhice ou pela penitência, recusavam abrigo aos cavaleiros, ou fugiam para o alto do monte: – e nunca nestas ermidas havia cruz ou imagem santa. Longos dias tinham passado sem que encontrassem uma capela, um cruzeiro, onde ajoelhassem, dissessem as suas rezas. O pão que por vezes compravam nalguma rara taberna, a água quente e turva de algum poço, fora todo o seu alimento: – e Gil pensava consigo que guerra assolara aquelas regiões, ou se seria assim, árida e triste; toda a terra de Portugal, para além do vale de Gonfalim.

Doze dias tinha D. Gil caminhado com o seu escudeiro Pêro Malho: – e tão fastidiosa e monótona se estendia a longa jornada, sob a ardência de Agosto, que por vezes o moço gentil dormitava como um frade, ao lento passo da sua mula, ou, acordando, suspirava com uma saudade do seu solar e dos frescos arvoredos de

Gonfalim. Desde que tanto se alongara da sua aldeia, nas serras da Beira, nada encontrara que lhe fizesse sentir a beleza ou variedade do mundo.

– Meu bom Senhor – murmurava então Pêro Malho – nós vamos errando caminho.

E sucedia então que sempre algum pastor, ou frade mendicante, de barba revolta, ou caçador com a sua besta ao ombro, surgia de um valado, ou de entre rochas, e lhes afirmava ser aquela, bem direita, e bem certa, a estrada que os levaria a Zamora.

Pêro Malho, derreado, com os pés caídos fora das largas estribeiras, coçava a cabeça, pensativamente.

– Senhor meu amo, estes caminhos parecem arranjados para o Diabo andar de jornada... Já reparou Vossa Mercê que ainda não encontrámos nem capela, nem mosteiro, nem cruz a que se reze um padre-nosso? E o que mais me arrenega é que ainda não topámos com águas claras, com águas correntes... Onde não está água, não está Deus. Chão de greda é condado do Demónio.

E como D. Gil permanecia mudo, alongando os olhos para os secos descampados, onde só vivia a urze e a piteira, Malho recuava a mula para trás de seu amo, e suspirava baixinho:

– Ai Portugal, Portugal!

Uma manhã tinham penetrado entre grandes serranias de rocha, seguindo o leito seco de uma torrente. Tão grande era a solidão e o silêncio, que D. Gil sentia como o terror de uma treva, e como se estivesse para sempre separado do mundo e das coisas vivas. O Sol, no alto, faiscava furiosamente através de um ar tão espesso que se lhe via a vibração, o tremor luzidio, como de um pó de vidro suspenso. As patas das mulas estremeciam a cada passada, tocando a ardência das pedras e do chão: – e dos altos muros de rocha, aos dois lados, vinha um calor áspero, seco, como se fossem os muros de tijolo de umas termas acesas. D. Gil arquejava, procurando uma cova, uma fenda de rocha, onde achassem sombra e refúgio: mas as duas encostas só ofereciam, nos seus dorsos redondos, como de grandes fornos, estendais secos e lisos de pedregulho miúdo, que faiscava.

– E serem isto terras de el-rei de Leão! –murmurava Pêro Malho, com tédio.

Então D. Gil, para depressa fugir daquele vale ardente, de mortal secura, picou com furor os ilhais da mula.

Naquele sinistro silêncio da terra morta, sob o faiscar inclemente do Sol, muito tempo galoparam, saltando por duas vezes sobre grandes ossadas de cavalos, que, ainda inteiras, branquejavam entre as pedras. Quando estacaram, esbaforidos, com grandes flocos de espuma caindo dos freios das mulas, estavam em frente de uma vasta planície, deserta, nua, como varrida por um grande vento de assolação e de morte: – e, por cima, o Sol faiscava furiosamente. D. Gil murmurou: «Deus da Boa Viagem nos valha!»

Desde a véspera, em que numa choça deserta uma velha lhes dera, rosnando e praguejando, um pedaço de chouriço e uma malga de vinho, nada tinham comido: já a sede os atormentava e na infinita planície não havia caminho marcado... Que fazer?

– É andar, senhor meu amo – aconselhou Pêro Malho. – Devagar e a direito, e cantando, para espairecer.

E o alegre escudeiro tomou a sua viola de duas cordas, e começou um longo canto mourisco, dolente e dormente – enquanto, a passo, sacudindo a espuma dos freios, as duas mulas arremetiam através do descampado ardente. Nem um galho de tojo seco, nem uma lâmina de piteira, surgiam naquele vasto deserto, chato, onde a terra estalava toda em fendas, sob as patas das mulas. Longos sulcos tortuosos marcavam por vezes os riachos secos. E a única nota viva era o zumbir de grandes moscardos.

Com os pés caídos fora dos estribos, as abas dos sombreiros descaídas sobre a face, as rédeas abandonadas, D. Gil sentia amolecer, fundir-se, naquela grande tristeza da solidão e do calor, a vontade, o desejo de acção, que tão alegremente o fazia galopar nos primeiros dias de jornada, como para uma conquista: – e agora, o seu pensamento voltava-se para ideias de repouso, de indolência, entre mármores frescos, em jardins bem regados. Ao seu lado, com a perna encolhida sobre o arção da sela, Pêro Malho feria as cordas da viola num don-dlin-don seguido, cantando, para animar a marcha, as trovas de um cavaleiro que, atravessando um laranjal, encontrara uma infanta a pentear os cabelos de ouro. E a imaginação de Gil seguia aquela infanta, sentia a frescura do laranjal – dos cabelos da dama passava aos seus braços brancos, que se arqueavam, no mover do pente. Uma sonolência lânguida ia-o invadindo, naquela fraqueza crescente do jejum e da sede. A grande planície, lívida, flamejava em silêncio. Muito cansadas, as mulas mal sacudiam o pescoço baixo, que os moscardos mordiam. Grandes bafos de calor passavam por vezes tão espessos, que as faces dos dois viajantes lhes sentiam o embate mole e ardente. E, incansáveis, teimosos, para animar a marcha, os dedos de

Pêro feriam a viola com um dlin-dlon seguido. O cavaleiro, na sombra do laranjal, ajoelhado na relva aos pés da dama, beijava a franja do seu cinto branco. Gil mal seguia o canto, o suor pingava da sua face pálida, o pó branquejava ás pregas do seu brial, e com os olhos meio cerrados, do cinto da dama vinha a pensar no corpo airoso que ele cingia.

Por que não encontraria ele, na sua jornada, um fresco laranjal assim povoado? A viola fazia dlin-dlin-dlon. A terra seca esfarelava-se sob as patas das mulas. E assim seguiam, por aquele ermo do Reino de Leão, sob o grande sol de Agosto, o Senhor D.

Gil e o seu escudeiro, nas suas mulas cansadas, cobertos de pó, cheios de sede, ao som dormente e áspero da viola mourisca.

Um cismando, outro cantando, entre aquela radiação de luz que os ofuscava como uma névoa de ouro fosco, não tinham os dois cavaleiros reparado que a terra, por onde caminhavam, se ia elevando em colina, docemente. Mas, de repente, um ar mais fresco, onde errava um aroma de verdura, bateu na face do Senhor D. Gil. Despertando daquele tanger que o entorpecia, estacou a sua boa mula. Estavam no cimo de um outeiro: – e em baixo, num vale, cavado e fundo, verdejava um grande bosque, e tremia como um brilho de água.

Com que ansiedade tangeram as mulas! E com que consolo, com que largo suspirar, penetraram sob folhagens e sombras! Era um belo arvoredo, de troncos espaçados, já velhos, onde se prendia, tapando o sol, uma longa renda de folhagens de um verde claro e tenro, como não há em Agosto. Todo o chão era um musgo fresco. E no silêncio fino e alto, aqui e além, um melro cantava. Com os sombreiros na mão, a passo, respirando deliciosamente, eles penetraram naquela frescura bendita, por entre os altos troncos alinhados, como ruas de uma coutada real.

E o bosque parecia infindável, cada vez mais fresco, mais verde, mais silencioso.

Por fim, um espelho de água, que o sol batia, brilhou entre os últimos troncos: – e, espantados, os dois cavaleiros pararam à beira de um belo lago, todo cercado de arvoredo, cujas longas ramagens pendentes roçavam a água. Tão clara e pura era ela, que eles viam no fundo reluzir uma areia muito fina e como misturada de pó de ouro.

No meio surgia uma ilha com um arvoredo, que fazia um grande ramalhete verde. E, à beira da água, seguia um pequeno caminho, limpo e branco, orlado de flores silvestres.

Por esse caminho meteram lentamente, quase esquecendo a fadiga e a sede, no assombro daquele divino recanto de verdura e paz silvana: – e de repente, saindo do arvoredo, encontraram uma vasta e fresca relva, à beira da água, onde estava preguiçosamente estendido um cavaleiro, tendo ao lado um grande alforge aberto, e, espalhados na relva, garrafas, empadões, e fundas taças de prata. Ao tronco da árvore, que lhe dava sombra, estava encostada uma enorme lança branca; dos ramos estendidos como um toldo, pendia o seu escudo negro. Dois cavalos morzelos, com rédeas de couro escarlate e freios de ouro, pastavam junto da água: – e um escudeiro, que, debruçado, desarrolhava uma garrafa que entalara entre os joelhos, voltou para os cavaleiros uma face estranha e grotesca, rapada como a de um frade, com dois olhos negros que chame-javam.

Cortesmente, D. Gil tirara o sombreiro. Com grande cortesia também, o cavaleiro se ergueu da relva.

Era um formidável homem de armas, de barba ruiva, findando em bico, as cores vivas e quentes de um flamengo, e largo, robusto peito cingido numa sobreveste negra.

O cabelo, mais ruivo ainda que a barba, erguia sobre a testa uma poupa aguda e flamante, e recaía em grossos anéis sobre os ombros fortes, capazes do mais duro esforço, e cobertos por um brial escarlate. Dos olhos deste homem, pequenos e redondos, saía um brilho infinitamente esperto, decidido e risonho.

– Bem fatigado deveis vir, senhor cavaleiro, com tanta calma e pó – exclamou ele.

– Esta sombra chega para dois, a merenda está sobre a relva, e quem vos convida, que é o Senhor de Astorga, só quer alegria e paz... Harbrico!

A este grito, que um vivo olhar acentuara, o escudeiro de face de frade correu a segurar o estribo, para que o Senhor D. Gil desmontasse. Mas já Pêro Malho, mais pronto, agarrara o loro: Harbrico então, risonhamente, correu a tirar de dentro do alforge, de cores estridentes, um estofo de samite, rico e macio, que estendeu na relva, para o Senhor D. Gil se recostar.

O moço gentil corava de gosto a estas honras que lhe fazia o Senhor ilustre de

Astorga.

– Bendigo – murmurou ele com a mão sobre o peito – bendigo os duros caminhos que me trouxeram a tão doce acolhimento... O meu nome é D. Gil de Valadares, e o solar de meu pai é bem falado, e bem honrado na nossa terra da Beira.

Com os dedos gordos, que findavam em unhas muito agudas e curvas, o Senhor de Astorga aguçava a ponta da barba, pensando:

– Valadares, Valadares... Um D. Rui de Valadares, conheci eu em Coimbra, que tinha casa de boa pedra, no bairro cintado ao pé da Sé, e era vedor do Senhor D. Sancho

II de Portugal...

– Meu avô.

O Senhor de Astorga atirou uma palmada à coxa:

– Pois soberbo avô tínheis, Senhor D. Gil, homem de boa alegria e façanha! Muito bem me lembro de uma tarde de Maio, em Lorvão... Mas melhor vão, à sesta, as histórias alegres! Agora todo esse suor e pó vos está pedindo água clara e lustral...

E, diante de D. Gil, o ondeante Harbrico sustentava numa das vastas mãos cabeludas uma bacia de prata, na outra uma fina toalha, que arrastava sobre a relva as rendas ricas da sua franja. Com que delícia banhou a face! Da água saía um aroma de benjoim. E uma frescura penetrante calmou de repente toda a sua fadiga dos ermos atravessados... Mas já o ágil Harbrico arrojara toalha e bacia, e voltava, todo ele ondulando, com um denso molho de penas rutilantes de galo: – e tão fina e destramente lhe sacudiu o espesso pó dos caminhos, que a sobreveste negra, os boteirões de couro escarlate, pareceram como novos, sem ter servido, e as esporas de ouro rebrilharam com um lampejo desusado!

D. Gil grandemente se maravilhava. E por trás dele, Pêro Malho, tendo limpo e pendurado as armas do amo, e lançado a pastar as suas mulas, junto aos dois corcéis negros, considerava o Senhor de Astorga com assombro e desconfiança. Era sobretudo aquele tufo de cabelo erguido na testa, como uma crista flamante, que o inquietava. E que alforge era aquele que continha, na sua estreita bolsa, bacias de prata, bragais de linho fino, toda a hucharia de uma mesa real, e tapizes de rico samite? E onde houvera mais coruscante olhar, negro como fendas do Inferno, do que aquele do estranho

Harbrico? O bom Pêro coçava o queixo, com um desejo, que o invadia, de gritar de repente, por sobre o fidalgo, o escudeiro, e os alforges, o nome afugentador de Jesus,

Maria, José.

Mas, justamente, Harbrico espalhava diante dos cavaleiros uma deliciosa e irresistível merenda! Eram gordas perdizes aloiradas, um vasto salmão frio e cor-de-rosa, com um molho de salsa e cravo que perfumava o ar, cestos de pêssegos e uvas, como só há nos pomares de el-rei... E às garrafas, cobertas de veneráveis crustas negras, deitadas com cuidado na relva, o destro Harbrico ajuntou pichéis de vinho espumante e branco, que ele trouxera de entre a espessura do bosque, e onde cintilavam pedras de gelo. Esfomeado, sedento, o bravo Pêro escancarava os lábios de onde escorria uma baba. E, com convicção, pensou: «Venham de Deus, venham do Demónio, quando há fome e sede, não se recusam vinho nem perdiz». E, servilmente, fraternalmente, sorriu a

Harbrico, que mostrou também a grande dentuça amarela e aguda, como a de um lobo.

Todos aqueles bons comeres, e frescura de vinhos, grandemente encantavam D.

Gil! Ele, que, em Gonfalim, nas festas do solar, sempre fora indiferente aos mimos melhores da fornalha e da adega, agora, desde que naquele fresco prado se estendera ao lado do Senhor de Astorga, só pensava nos regalos da boa merenda! Ao enterrar a faca aguda no peito da perdiz, sorria, com os beiços lustrosos, como um frade guloso: – e quando Harbrico lhe deitou na vasta taça de prata um vinho gelado que espumava, a sua mão de cavaleiro tremia de gozo e gula. O Senhor de Astorga apenas colheu alguns bagos de uva. Mas que rijo beber! Rejeitando as taças, agarrava com a sua vasta mão cabeluda os garrafões, e, de um trago breve e ansioso, os despejava, sem que na sua barba ardente restasse um brilho de humidade. E, no entanto, cuidava da satisfação de

Gil.

– Provai daquele empadão de Alsácia... Aquela pimenta amarela vem das pimenteiras do Papa...

Depois, estendendo mais na relva as suas longas pernas, calçadas de botas negras:

– Há na verdade horas doces na vida! –observou. – Que melhor alegria que uma boa merenda, com esta frescura de vinhos, por uma sesta quente de Agosto, entre esta bela verdura!

– Grande razão tendes, Senhor de Astorga! – exclamou D. Gil, cujos olhos resplandeciam. E que esvaziara um copo de vinho de Chipre. – E depois de tão feia jornada, como venho passando, desde que entrei em terras de Leão, esta hora que vos devo é muito para ser lembrada.

O Senhor de Astorga pousou, sorrindo, os seus olhos redondos em D. Gil.

– Muito me recordais por vezes no jeito, no dizer, o vosso avô D. Rui!... E para onde vos ides assim, em tão longa jornada?

– A Paris, Senhor de Astorga.

O Senhor de Astorga moveu lentamente a cabeça:

– Grande cidade, fina cidade... Bons amigos lá tenho! Na Corte e nas Escolas.

Foi uma interessante surpresa para o Senhor D. Gil. Como! O Senhor de Astorga assim conhecia Paris, e as Escolas? Mais venturoso ainda fora, pois, aquele encontro, que dele podia tirar grandemente ensino e conselho. Que para as Escolas, em Paris, ia ele, por aquela jornada... Mas pouco sabia, na verdade, dos mestres que lá ensinavam, e dos usos dos escolares com quem ia acamaradar, e dos preceitos que se impunham a quem procurava o bom saber... Só estava certo, que assim era a fama em Portugal, que para quem desejava aprender, se devia ir às Escolas de Paris. Estava ali a Verdade.

O Senhor de Astorga alçou com solenidade as suas espessas sobrancelhas, alargou os olhos claros, e teve este ditame:

– Para o grande saber, só há na Terra uma escola, e essa em Toledo.

E como Gil o olhava perplexo:

– Que pretendeis vós aprender?

– As artes médicas.

O Senhor de Astorga encolheu os ombros, com largo e risonho desdém:

– Oh! para isso decerto tendes em Paris mestres que bastem. E mesmo em Zamora encontrareis o bom físico árabe Reimão Esterrávia! E até na vossa Coimbra tendes homem professo, que tudo vos podia ensinar, em Mestre Esteves Garracho!... Mas vós,

Senhor D. Gil, um moço de tão boa feição, de altos espíritos, que decerto amais a fama, como vos quereis amesquinhar em saber tão mesquinho?

D. Gil, que corara aos louvores, murmurou surpreendido:

– E que outro saber há mais?

Mas uma risada aguda, silvada, cascalhante, ressoou por trás, entre os troncos das

árvores. E os dois cavaleiros, voltando o rosto, viram Harbrico, sentado na relva, ao lado de Pêro, com vitualhas e garrafas espalhadas diante, que se torcia, com as mãos nas ilhargas magras, a boca fendida numa hilaridade disforme, gritando «que rebentava!» – enquanto ao lado, debruçado sobre ele, com o olho brilhante, o dedo espetado, Pêro lhe segredava uma história. Os dois molossos, sentados em frente, conservavam uma gravidade sombria.

– Divertido escudeiro tendes, Senhor D. Gil – murmurou, sorrindo, o Senhor de

Astorga. – E, pela viola que lhe vi ao ombro, penso que sabe trovar. Ocasião terei de o ouvir por essas estradas, agora que há Lua, porque, como ides a Segóvia, o nosso caminho é o mesmo até Zarro! E agora deveríamos descansar, e fazer a sesta à mourisca, para montar e partir pela frescura da tarde...

E imediatamente D. Gil sentiu que os olhos se lhe cerravam, e, reclinado no coxim de veludo, docemente adormeceu.

Mas, adormecido, percebia a frescura das grandes árvores, via o brilho do claro lago: – e, sem saber se era já a viola de Pêro que tocava, começou de ouvir uns sons muito lentos e doces, que tremiam como fugindo de cordas afinadas. Depois uma fina flauta suspirou, depois um lento gemido de harpa passou. E bem depressa uma doce, grave melodia encheu tão completamente o bosque, como se fossem os ramos que cantassem. E era um canto todo de adoração, mas contido, apenas murmurado, como de uma multidão invisível que, estaticamente, esperasse uma aparição maravilhosa. Uma imensa languidez passou no ar. Todo o sol que caía na água, nas folhas, rebrilhou com uma cintilação mais intensa.

Mas o canto subia, mais ardente, quando por detrás da ponte da ilha, que verdejava no meio do lago, surgiu a proa de uma barca que tinha a forma de um cisne, todo enrufado e nadando. E foi então apenas um murmúrio infinitamente doce, errando na umbrosa espessura do arvoredo. Lentamente a barca avançava: – e nela, de pé, vinha uma mulher de beleza maravilhosa. Entre o vestido negro que a cobria, o seu colo e os ombros nus lançavam uma claridade, como a da neve sob o Sol. Por sobre o manto negro, cujas pregas desciam, pesadas e hirtas, enchendo o barco, os seus imensos cabelos caíam em outro manto de ouro fulvo. Nenhuma jóia a enfeitava, uma languidez negra e profunda cerrava quase os seus olhos, nos seus lábios vermelhos errava a tristeza de um sorriso. Lenta e serena, a barca fendia a água sem deixar sulco; e pouco a pouco o canto em redor, no fresco arvoredo, era mais sumido e vago.

Quando a barca tocou a margem de relva verde, o cântico findou, e houve só em redor um êxtase mudo, da verdura, das águas, da luz. D. Gil esperava, sem se mover, deslumbrado. Então a mulher maravilhosa deu um passo lento na relva, depois outro: o seu grande manto arrastava pesadamente: – e, sob a orla do seu vestido, brilhava a brancura dos seus pés nus. Assim, docemente, se acercou de D. Gil, cujo coração batia ansiosamente: – e à medida que ela assim se avizinhava dele, o casto moço percebia que o pesado vestido negro, o pesado manto negro, se adelgaçavam, se tornavam transparen-tes.

Já deixavam distinguir, sob as suas pregas, as brancuras vagas de um corpo divino.

O longo manto não era mais que um véu tão leve, que nem vergava as pontas finas das relvas. O vestido era tão fino, que se colava aos selos, se enrolava nos joelhos. E, quando a mulher maravilhosa chegou junto do seu rosto, toda a sua nudez, mais bela que a de Helena, de Vénus, resplandecia, mais branca, sob a ténue névoa de uma gaze negra.

Então aquele corpo maravilhoso se debruçou sobre ele, que lhe sentia o calor, o perfume. E os Lábios vermelhos e fortes deram nos seus, que tremiam, um beijo tão profundo, que um grande grito de gosto doloroso fugiu do seu peito. Acordou: – e ao lado, de pé, já com o seu largo sombreiro posto, o Senhor de Astorga afivelava o cinturão da espada.

– Boa sesta fizemos, Senhor D. Gil! A tarde está fresca e é tempo de cavalgar, se queremos ainda hoje chegar a Alba de Tormes.

D. Gil ainda tremia. E os seus olhos inquietos procuravam em redor, numa saudade daquele sonho divino que findara.

Montou em silêncio na sua mula, que Pêro Malho já tinha à rédea. E quando saiu daquele doce prado, ainda se voltou na sela, olhou a relva, a água serena do lago, a ilha, o arvoredo todo – e um suspiro fugiu-lhe dos lábios.

Muito tempo cavalgaram calados. A estrada agora era entre grandes arvoredos, fresca e risonha. 2

2 Termina aqui o manuscrito.

ARTIGOS DIVERSOS

CARTA A CAMILO CASTELO BRANCO

Ex.mo Sr.

Um tardio correio trouxe-me ontem um número, já quase velho, das Novidades, com um artigo, Notas à Procissão dos Moribundos, em que V. Exª, resmungando e rabujando, se queixa ao Público de que eu e os meus amigos implicamos consigo, sempre que isso vem a talho de foice, e lhe assacamos aleivosias. Como exemplo deste indecoroso hábito, cita V. Exª um período da minha carta a Bernardo Pindela nos

Azulejos, em que eu alegremente me rio dos discípulos do Romanticismo que, depois de clamarem contra certos escritores, como realistas e chafurdadores do lodo, apenas imaginam que o Público só esse lodo apetece, para seu consumo intelectual, se apressam a escrever na capa de seus livros: romance realista, para que o Público, aliciado pelo rótulo, os compre também a eles, e os leia também a eles... E V. Exª, meu caro confrade, acrescenta logo com a mais consciente certeza: «Ora isto é comigo!»

Suponha que um dia, numa novela, V. Exª descreve, com o seu vernáculo e torneado relevo, certo animal de longas orelhas felpudas, de rabo tosco, de anca surrada pela albarda, que orneia e que abunda em Cacilhas... E suponha ainda que, ao ler essa colorida página, eu exclamo, apalpando-me ansiosamente por todo o corpo: «Grandes orelhas, rabo tosco, anca pelada... É comigo» Que diria V. Exª, meu prezado confrade?

V. Exª balbuciaria aturdido: «Eu não sei, eu vivo longe... Se as suas orelhas são assim longas, e se o albardão o despelou, há realmente concordância... Mas, na verdade, creia que, mencionando esse animal venerável, não me raiou no ânimo a mais ténue, remota intenção...». Assim, embaraçado e surpreso, diria V. Exª. E assim eu digo. – V.

Exª deve conhecer melhor que eu, que sou distraído e vivo longe, as capas dos seus livros: se V. Exª, para atrair a multidão, nelas colou, ou consentiu que os seus editores colassem, esse rótulo: romance realista –por não poderem legalmente adorná-las com esse outro mais cativante: romance obsceno–então decerto aquilo é consigo. Mas a intransigente verdade me força a confessar que, escrevendo esse período da carta a

Bernardo Pindela, eu não pensava no autor da Corja. Se eu quisesse acusar dessa abjecta concessão, às exigências da venda, um homem que há trinta anos é ilustre na literatura portuguesa – teria escrito o nome todo de V. Exª, sem omitir um só título. Há personalidades a quem por isso mesmo que são fortes, se não alude timoratamente e de longe. Já deste modo se pensava na corte de el-rei Artur. «Se queres falar de Percival, diz bem alto: Percival, e tira a espada». Assim gritava esse cavaleiro, flor dos bons, na velha cidade de Camerlon, uma tarde em que havia algazarra e ciúmes junto a Távola

Redonda. Não se trata, decerto, aqui, de compridas espadas a desembainhar. Mas não deixa de ficar bem a um débil homem de letras, como eu, o seguir essa lição de lealdade e valor dada pelo possante homem de armas Percival.

Assim o exemplo aduzido por V. Exª, para demonstrar o meu escandaloso hábito de implicar consigo – é realmente mal escolhido. Mas permanece, todavia, a queixa, feita ao público com tanta rabuge e tanto azedume, de que – eu e os meus amigos, sempre que isso vem a talho de foice, lhe assacamos aleivosias.

Aleivosia é um termo formidável e sombrio que, se me não engana o vetusto e

único Dicionário que me ampara nesta dura labutação do estilo, significa – «maldade cometida traiçoeiramente com mostras de amizade, insídia, perfídia, maquinação contra a vida e reputação de alguém, etc.». Tudo isto é pavoroso. Mas eu suponho que, sob essas vagas palavras de implicação e aleivosia, V. Exª quer muito simplesmente quei-xar- se de que eu e os meus amigos o não consideramos um escritor tão ilustre, com um tão alto lugar nas letras portuguesas como o costumam considerar os amigos de V. Exª.

Ora aqui V. Exª se ilude singularmente.

Eu nunca tive, é certo, a oportunidade deleitável de apreciar, nem em copioso artigo, nem sequer em curta linha, a obra de V. Exª. Mas sou meridional, portanto loquaz. Por vezes, entre amigos e fumando a cigarette, tem vindo «a talho de foice» conversar sobre a personalidade literária de V. Exª. E, louvado seja Apoio aurinitente! sempre me exprimi sobre o autor do Esqueleto, de um modo que é irrecusavelmente mais digno dele e da sua obra, do que esse outro estranho modo por que o costumam decantar aqueles que se ufanam, já na palestra, já na imprensa, de serem seus amigos e seus discípulos.

Porque eu, falando de V. Exª, considero sempre a sua imaginação, a sua maneira de ver o mundo, o seu sentimento vivo ou confuso da realidade, o seu gosto, a sua arte de composição, a fraqueza ou a força do seu traço; e, pelo menos, admiro sem reserva em V. Exª o ardente Satírico, neto de Quevedo, que põe ao serviço da sua apaixonada misantropia, o mais quente e o mais rico sarcasmo peninsular. E os seus amigos, esses, admiram apenas em V. Exª, secamente e pecamente, o homem que em Portugal conhece mais termos do Dicionário!

Sempre, «a todo o talho de foice», em artigo, em local, em anúncio de partida, em felicitação de dia de anos, V. Exª é pelos seus discípulos e amigos louvaminhado e turibulado – como o grande homem do Vocábulo, esteio forte de Prosódia, restaurador da Ordem gramatical, supremo arquitecto das frases arcaicas, acima de tudo castiço, e imaculadamente purista! E ainda mais na intimidade, os amigos de V. Exª o celebram como o homem que melhor sabe descompor o seu semelhante! E isto tão obstinadamente murmurado ou clamado, que esta geração mais nova, para quem já vou sendo um velho e V. Exª quase um fantasma, não tendo como eu e os do meu tempo rido e chorado sobre os seus livros de paixão e de ironia, o imaginam a V. Exª um intolerável caturra, de capote de frade, debruçado sobre um sebento Léxicon, a respigar termos obsoletos para com eles apedrejar todos os seus conterrâneos!

A V. Exª, crítico sagaz de si mesmo, melhor compete avaliar o que, neste vale de prosa e lágrimas, tem feito para merecer que os seus amigos, como os amigos de César no dia das Lupercais, teimem em lhe enterrar até aos ombros esta dupla e pesada coroa da vernaculidade e da descompostura.

A mim só me compete lamentar que a estas mofinas proporções tenha sido reduzida, pelo zelo crítico dos seus amigos, a larga individualidade que nos deu o Amor de Perdição. Mas ao mesmo tempo adquiro o direito de rogar a V. Exª que, quando se queixar aos ventos e ao Chiado das pessoas que implicam consigo, como V. Exª diz, ou que desdouram a sua glória, como eu traduzo, não se volte para mim e para os meus amigos – mas olhe em torno de si para os seus admiradores, e para dentro de si mesmo, talvez.

A guerra de realistas e idealistas, causa primordial destas explicações, tornou-se já quase tão desinteressante e sediça, meu prezado confrade, como a guerra dos

Clássicos e Românticos, a das Duas Rosas, ou essa outra que, para vantagem única dos livreiros que editam Homero, dois povos semibárbaros tiveram a paciência de arrastar dez anos em torno de uma vila da Ásia Menor murada de adobe e tijolo. Renovar tão antiquada guerra nas Gazetas, é já um acto imperdoavelmente provinciano: mas mais provinciano ainda é estarmos nós aqui, com grãos de incenso nas mãos, e pedras nas algibeiras, fazendo, através do grande mar, mútuas e lentas mesuras. V. Exª, de lá, de entre os seus sinceros arvoredos minhotos, ajanota as suas frases pelos figurinos de

Filinto Elísio, para me dizer gaguejando, e com agridoce generosidade: «O meu caro amigo tem muito talento, com excepção de escrever muita tolice». E eu de cá, mais pérfido, porque habito as cidades, grito sem gaguejar, e com polida efusão: – «E o meu caro amigo tem ainda muito mais, sem excepção absolutamente nenhuma».

E infantil. Antes desperdiçássemos o nosso tempo, preguiçando patriarcalmente, neste doce calor de Junho, sob a figueira e a vinha... Mas quê! V. Exª, que estava brincando funebremente, a fazer no soalho, com tochas de fósforos, uma procissãozinha de moribundos, ergue-se de repente, corre para o Público, mesmo sem tirar o babeiro, e acusa-me, entre lágrimas de furor, de estar sempre a implicar consigo! Que havia eu de fazer, eu inocente e justo? Corro também para o Público, mesmo de jaquetão de trabalho, e brado profusamente com as mãos sobre o peito: «Nunca! É falso! Jamais impliquei com ele, e não lhe quero senão bem!»

A culpa de toda esta inútil prosa é portanto toda sua; e para que ela se não prolongue mais, apresso-me, prezado confrade, a dizer-me

De V. Exª

Sincero e antigo admirador

EÇA DE QUEIRÓS.

ÚLTIMA CARTA DE FRADIQUE MENDES 3

(INÉDITO DA «CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE MENDES»)

A EDUARDO PRADO

Meu caro Prado:

A sua tão excelente carta foi recebida no devoto dia de S. João, neste fresco refúgio de arvoredos e fontes onde estou repousando dos sombrios esplendores da

Amazónia, e da fadiga das águas Atlânticas.

Não esquecerei as queijadas da Sapa; Ficalho, que aqui jantou e filosofou ontem sub tegmine fagi, recebeu das minhas mãos o exacto estudo e as estampas do seu compatriota sobre a Mucuna Glabra; os dois vasos do Rato, com a cruz de Avis, partem domingo, e Deus lhe faça abundar dentro deles, sempre renovadas e frescas, essas rosas da vida que Anacreonte promete aos justos. Tudo isto foi fácil e de amável trabalho.

Mais duro e complicado é que eu lhe dê (como V. reclama tão azafamadamente) a minha opinião sobre o seu Brasil... E V., menos céptico que Pilatos, exige a Verdade, a nua Verdade, sem chauvinismos e sem enfeites... Onde a tenho eu, a Verdade? Não é, infelizmente, na quinta da Saragoça que se esconde, sob o cipreste e o louro, o poço divino onde ela habita. Só lhe posso comunicar uma impressão de homem, que passou e olhou. E a minha impressão é que os Brasileiros, desde o Imperador ao trabalhador, andam a desfazer e, portanto, a estragar o Brasil.

Nos começos do século, há uns 55 ou 60 anos, os Brasileiros, livres dos seus dois males de mocidade, o ouro e o regime colonial, tiveram um momento único, e de maravilhosa promessa. Povo curado, livre, forte, de novo em pleno viço, com tudo por criar no seu solo esplêndido, os Brasileiros podiam, nesse dia radiante, fundar a civi-lização especial que lhes apetecesse, com o pleno desafogo com que um artista pode moldar o barro inerte que tem sobre a tripeça de trabalho, e fazer dele, à vontade, uma vasilha ou um Deus. Não desejo ser irrespeitoso, caro Prado; mas tenho a impressão que o Brasil se decidiu pela vasilha.

Tudo em redor dele, desde o céu que o cobre à índole que o governava, tudo patentemente indicava ao Brasileiro que ele devia ser um povo rural. Não se assuste, meu civilizadíssimo amigo. Eu não quero significar que o Brasil devesse continuar o patriarcalismo de Abraão e do livro do Génesis, reproduzir Canaã em Minas Gerais, e pastorear o gado em torno das tendas, vestido de peles, em controvérsia constante com

Jeová. Menos ainda que se adoptasse o modelo arcádico, e que todos os cidadãos fossem Títiros e Marílias, recostados sob a copa da faia, tangendo a frauta das Éclogas...

Não; o que eu quereria é que o Brasil, desembaraçado do ouro imoral, e do seu D. João

VI, se instalasse nos seus vastos campos, e aí quietamente deixasse que, dentro da sua larga vida rural e sob a inspiração dela, lhe fossem nascendo, com viçosa e pura originalidade, ideias, sentimentos, costumes, uma literatura, uma arte, uma ética, uma filosofia, toda uma civilização harmónica e própria, só brasileira, só do Brasil, sem nada dever aos livros, às modas, aos hábitos importados da Europa. O que eu quereria, (e o que constituiria uma força útil no Universo) era um Brasil natural, espontâneo, genuíno, um Brasil nacional, brasileiro, e não esse Brasil, que eu vi, feito com velhos pedaços da

Europa, levados pelo paquete, e arrumados à pressa, como panos de feira, entre uma

3 Embora o presente artigo já tenha sido publicado na Correspondência de Fradique Mendes, entendemos que o devemos repetir aqui. natureza incongénere, que lhes faz ressaltar mais o bolor e as nódoas.

Eis o que eu queria, dilecto amigo! E considere agora como seria deliciosamente habitável um Brasil brasileiro! Por toda a parte, ricas e vastas fazendas. Casas simples, caiadas de branco, belas só pelo luxo do espaço, do ar, das águas, das sombras. Largas famílias, onde a prática das lavouras, da caça, dos fortes exercícios, desenvolvendo a robustez, aperfeiçoaria a beleza. Um viver frugal e são; ideias claras e simples; uma grande quietação de alma; desconhecimento das falsas vaidades; afeições sérias e perduráveis...

Mas, justos Céus! estou refazendo o Livro II das Geórgicas! Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos; assim Rómulo e Remo; assim cresceu a valente Etrúria; assim Roma pulquérrima, abrangendo sete montes, se tornou a maravilha do mundo! Não exijo para o Brasil as virtudes áureas e clássicas da Idade de

Saturno. Só quereria que ele vivesse de uma vida simples, forte, original, como viveu a outra metade da América, a América do Norte, antes do Industrialismo, do Mercanti-lismo, do Capitalismo, do Dolarismo, e todos esses ismos sociais que hoje a minam, a tornam tão tumultuosa e rude – quando os colonos eram puritanos e graves; quando a charrua enobrecia; quando a instrução e a educação residiam entre os homens da lavoura; quando poetas e moralistas habitavam casas de madeira que as suas mãos construíam; quando grandes médicos percorriam a cavalo as terras, levando familiar-mente a farmácia nas bolsas largas da sela: quando Governadores e Presidentes da

República saíam de humildes granjas; quando as mulheres teciam os linhos de seus bragais e os tapetes das suas vivendas; quando a singeleza das maneiras vinha da candidez dos corações; quando os lavradores formavam uma classe que, pela virtude, pelo saber, pela inteligência, podia ocupar nobremente todos os cargos do Estado; e quando a nova América espantava o mundo pela sua originalidade, forte e fecunda.

Pois bem, caro amigo! em vez de terem escolhido esta existência que daria ao

Brasil uma civilização sua, própria, genuína, de admirável solidez e beleza – que fizeram os Brasileiros? Apenas as naus do Senhor D. João VI se tinham sumido nas névoas atlânticas, os Brasileiros, senhores do Brasil, abandonaram os campos, correram a apinhar-se nas cidades e romperam a copiar tumultuariamente a nossa civilização europeia no que ela tinha de mais vistoso e copiável. Em breve o Brasil ficou coberto de instituições alheias, quase contrárias à sua índole e ao seu destino, traduzidas à pressa de velhos compêndios franceses. O Jornal, o Artigo de Fundo, a balofa Retórica

Constitucional, a tirania da Opinião Pública, os descaros da Polémica, todas as intrigas da politiquice, se tornaram logo males correntes.

Os velhos e simples costumes foram abandonados com desdém: cada homem procurou para a sua cabeça uma coroa de barão, e, com 47 graus de calor à sombra, as senhoras começaram a derreter dentro dos gorgorões e dos veludos ricos. Já nas casas não havia uma honesta cadeira de palhinha, onde, ao fim do dia, o corpo encontrasse repouso e frescura: e começavam os damascos de cores fortes, os móveis de pés dou-rados, os reposteiros de grossas borlas, todo o pesadume de decoração estofada com que

Paris e Londres se defendem da neve, e onde triunfa o micróbio. Imediatamente alastraram as doenças das velhas civilizações, as tuberculoses, as infecções, as dispepsias, as nevroses, toda uma surda deterioração da raça. E o Brasil radiante – por-que se ia tornando tão enfezado como a Europa, que tem três mil anos de excessos, três mil anos de ceias e de revoluções!

No entanto já possuía a Democracia, o Industrialismo, a Sociedade por acções em todo o delírio das suas formas infinitas, a luz eléctrica, o «veneno francês» sob as marcas principais do Champanhe e do Romance. Estava maduro para os maiores requintes, e mandou então vir pelo paquete o Positivismo e a Ópera bufa. Foi uma tremenda orgia: ensinou-se aos sabiás a gorjear Madame Angot, e vendedores de retalho citavam Augusto Comte... Para que prolongar o inventário doloroso? Bem cedo, do

Brasil, do generoso e velho Brasil, nada restou: nem sequer brasileiros, porque só havia doutores – o que são entidades diferentes. A Nação inteira se doutorou. Do Norte ao

Sul, no Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores, com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados; doutores, com uma carteira, fundando bancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios ; doutores, com um apito, dirigindo a polícia; doutores, com uma lira, soltando carmes; doutores, com um prumo, construindo edifícios; doutores, com balanças, misturando drogas; doutores, sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores. O Dr. Tenente-Coronel... O Dr. Vice-almirante... O Dr. Chefe de Polícia... O

Dr. Arquitecto... Homens inteligentes, instruídos, polidos, afáveis – mas todos doutores!

E este título não é inofensivo: imprime carácter. Uma tão desproporcionada legião de doutores envolve todo o Brasil numa atmosfera de doutorice.

Ora o feitio especial da doutorice é desatender as realidades, tudo conceber a priori, e querer organizar e reger o mundo pelas regras dos compêndios. A sua expressão mais completa está nesse doutor, Ministro do Império, que em todas as questões públicas nunca consultava as necessidades da Nação, mas folheava com ansiedade os livros, a procurar o que, em casos vagamente parecidos, Guizot fizera em

França, Pitt em Inglaterra. São estes doutores, brasileiros de nacionalidade, mas não de nacionalismo, que cada dia mais desnacionalizam o Brasil, lhe matam a originalidade nativa, com a teima doutoral de moralmente e materialmente o enfardelarem numa fatiota europeia feita de francesismo, com remendos de vago inglesismo e de vago germanismo.

Assim, o livre génio da Nação é constantemente falseado, torcido, contrariado na sua manifestação original – em tudo; em Política, pelas doutrinas da Europa; em

Literatura, pelas escolas da Europa; na Sociedade, pelas modas da Europa.

A famosa carta de alforria de 29 de Agosto de 1825 não serviu para as inteligências. Intelectualmente o Brasil é ainda uma colónia – uma colónia do

Boulevard. Letras, ciências, costumes, instituições, nada disso é nacional; – tudo vem de fora, em caixotes, pelo paquete de Bordéus, de sorte que esse mundo, que orgulhosamente se chama novo, o Novo Mundo, é na realidade um mundo velhíssimo, e vincado de rugas, dessas rugas doentias, que nos deram, a nós, vinte séculos de

Literatura.

Percorri todo o Brasil à procura do novo e só encontrei o velho, o que já é velho há cem anos na nossa Europa–as nossas velhas ideias, os nossos velhos hábitos, as nossas velhas fórmulas, e tudo mais velho, gasto até ao fio, como inteiramente acabado pela viagem e pelo sol. Sabe o que me parecia (para resumir a minha impressão numa imagem material, como recomenda Buffon)? Que por todo o Brasil se estendera um antigo e coçado tapete, feito com os remendos da civilização europeia, e recobrindo o tapete natural e fresco das relvas e das flores do solo... Concebe V. maior horror? Sobre um jardim perfumado, em pleno viço, tudo tapar, tudo esmagar, rosas abertas e botões que vão abrir, com um tapete de lã, esburacado, poeirento, cheirando a bafio!

E haverá remédio para tão duro mal? Decerto! Arrancar o tapete sufocante. Mas que Hércules genial empreenderá esse trabalho santo? Não sei.

Em todo o caso, creio que o Brasil tem ainda uma chance de reentrar numa vida nacional e só brasileira. Quando o império tiver desaparecido, perante a revolução jacobino-positivista que já lateja nas escolas, e que os doutores de pena hão-de necessariamente fazer de parceria com os doutores de espada; quando, por seu turno, essa República jacobino-positivista murchar como planta colocada artificialmente sobre o solo e sem raízes nele, e desaparecer de todo, uma manhã, levada pelo vento europeu e doutoral que a trouxe; e quando de novo, sem luta, e por uma mera conclusão lógica, surgir no Paço de S. Cristóvão um novo imperador ou rei – o Brasil, repito, nesse momento tem uma chance de se desembaraçar do «tapete europeu» que o recobre, o desfeia, o sufoca. A chance está em que o novo imperador ou rei seja um moço forte, são, de bom parecer, bem brasileiro, que ame a natureza e deteste o livro.

Não vejo outra salvação. Mas no dia ditoso em que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, a ser do novo mundo – haverá no mundo uma grande nação. Os homens têm inteligência; as mulheres têm beleza – e ambos a mais bela, a melhor das qualidades: a bondade. Ora uma nação que tem a bondade, a inteligência, a beleza (e café, nessas proporções sublimes) – pode contar com um soberbo futuro histórico, desde que se convença que mais vale ser um lavrador original do que um doutor mal traduzido do francês.

Não me queira mal por toda esta desordenada franqueza, e creia-me tão amigo do

Brasil como seu.

Paris, 1888.

FRADIQUE MENDES.

TESTAMENTO DE MECENAS

(INÉDITO DAS «CARTAS DE INGLATERRA»)

Esta carta de Inglaterra é datada de Portugal e tem por assunto o Brasil. Mas eu sou um homem de letras, um simples fazedor de livros, como dizia o rude filósofo

Carlyle, e portanto, para mim, mais interessante do que a Irlanda coberta neste momento de forcas; mais interessante que a Exposição das Artes da Pesca, aberta agora em

Londres, tão completa que se vêem barcos japoneses pescando ao candeio nos riachos do parque de Kensington, como numa paisagem de leque, e tão minuciosa que as divi-nas trutas da Noruega são fritas por peixeiras vindas expressamente da Dalecárlia; mais interessante que os esplendores sombrios e bárbaros da coroação do Czar; mais interessante que os nomes feios que um certo fabricante de tapetes baratos nos chamou no Parlamento Inglês, esse rico e ruidoso clube onde se conversa, irresponsavelmente e de chapéu na cabeça, sobre todos os negócios do Universo; mais interessante mesmo que essa rajada de paixão patriótica que atravessou Portugal e que nos levou a pedir à

Europa, por meio de folhetos em verso, que se aniquilasse a Inglaterra; mais interessante que tudo, para mim, homem de livros – é o singular e brilhante testamento do Comendador Peres Cardoso.

Foi em meados de Abril que os jornais de Lisboa, num tom feito de assombro e de incredulidade, copiaram dos jornais do Rio de Janeiro a notícia de ter morrido um

Comendador chamado Peres Cardoso, natural de Cinfães, deixando um testamento extraordinário, concebido quase todo em favor da literatura, com maços de apólices a distribuir entre poetas e romancistas, doações de livros, em lotes de cinquenta volumes, a todo o escritor que fizesse cortejo ao seu caixão, deixas de prédios para fundar jornais

– a esplêndida despedida de um Mecenas, que atravessa da sua biblioteca para a sua sepultura, arremessando punhados de ouro sobre a multidão de letras. E entre todas estas prodigalidades lá sobressaía uma, a mais tocante, a que me põe agora a pena na mão – os doze contos de réis, em apólices da dívida pública, deixados, não a seis padres, nem mesmo a seis advogados, mas a seis simples fazedores de livros portugueses, João de Deus, Crespo, Junqueiro, Camilo, Chagas, e eu.

A impressão foi grande aqui, nesta terra, pouco acostumada a tais larguezas. Estes casos são frequentes lá fora. Em Inglaterra, o pomposo Macaulay, o bom Dickens receberam, em legados de dinheiro e de obras de arte, testemunhos repetidos do amor ou do orgulho que inspiravam aos seus concidadãos. Na Alemanha, não é raro que um banqueiro judeu de Berlim ou de Francoforte deixe no seu testamento, por mero fausto, alguns centos de florins a um filósofo que anda arranjando uma nova explicação do Uni-verso, ou a um desses sábios como os amava Hoffmann, que passam quarenta anos na trapeira de uma melancólica cidade universitária, ressequindo-se dentro de uma especialidade inverosímil – como aquele que escreveu doze grossos volumes sobre a fisionomia das serpentes. A Holanda ainda há pouco deu, por subscrição pública, uma fortuna a esse subtil e amargo humorista que assina Multatulli. Em França, os homens ricos dão toda a sorte de coisas boas aos homens grandes: Vítor Hugo recebeu um dia, de um dos seus fanáticos, cinquenta pipas de rum da Jamaica: a Júlio Verne, esse encanto das crianças e dos convalescentes, foi agora doado um palácio em Itália dentro de um parque, verdadeiro paraíso de cardeal, com águas vivas cantando em bacias de mármore...

Em Portugal, porém, foi-se sempre lamentavelmente mesquinho com os homens de letras. Mesmo quando a literatura vivia exclusivamente da generosidade da nobreza, e era o luxo de toda a casa morgada ter, além do seu capelão privado, o seu vate doméstico – um espírito da ordem do Nicolau Tolentino o mais que granjeava, a troco de trabalhoso soneto ou cansativa ode, era algum resto de peru assado, sobejo frio da copa; e em ocasiões de munificência, dia de anos ou baptizado, lá vinha então uma vara de briche para calções ou uma peça de 7$500 réis, embrulhada num papel – e às vezes falsa. Mas, desde que as brutalidades da Democracia desarranjaram esta bela ordem de coisas, e que nunca mais houve em Portugal um fidalgo que tivesse peru de sobejo – nenhum escritor tornou jamais a receber, em metal ou comestíveis, o menor testemunho de simpatia literária dos seus compatriotas liberais...

E isto faz-me pensar como em Portugal, as pessoas dos escritores, inspiram pouca curiosidade e perturbam pouco as imaginações meridionais. Lá fora, em França, na

Inglaterra, na Alemanha, mesmo sem contar os semideuses radiantes e irresistíveis, como Byron, como Lamartine, como Goethe, não há poeta que não tenha recebido um dia alguma dessas vagas e difusas cartas de amor, algum desses anónimos presentes de flores ou de almofadas bordadas, que revelam que existe algures uma doce criatura a quem o poeta parece tão poético como os seus poemas, e que está desejando sentir bater o mais perto possível do seu coração, à distância de um corpete de vestido, de um chambre, ou ainda de menos, o coração eloquente e cálido de onde brotou tanta paixão bem rimada... Em Portugal, não consta das indiscrições pessoais, nem dos anais literários, que jamais isto sucedesse – nem mesmo àqueles que foram, por profissão ou temperamento, poetas de sentimento.

Os volumezinhos de João de Lemos, de Soares de Passos, estiveram anos sem conta em todos os cestos de costura: e essas composições poéticas, tão doloridas e libidinosas, que eles intitulavam A ti! A ela! fizeram suspirar e cismar sobre os seus bordados, ou sobre os seus tachos de doce, duas gerações de senhoras... Poucas eram então as soirées de terra pequena, em que lindos olhos negros se não humedecessem, quando um bacharel se erguia, depois do chá, e, com o lenço branco na mão, dizia às senhoras o Noivado do Sepulcro, os dois amorosos esqueletos enganchados um no outro, ou então esse famoso Adeus! que foi nestes remos, durante vinte anos, a expressão oficial, e a única garantida pela academia, das dores da separação e das torturas da ausência. E a quantas janelas de província, por noites claras de Estio, não se veio apoiar um vulto, de xale pelos ombros e os cabelos já dentro da rede, murmurando a Lua de Londres, enquanto por baixo o quintal dormia, e o relógio da casa da câmara ia batendo tristemente as dez! Pois, que se saiba, nenhum destes poetas, nem dos outros que têm sido entre nós os fornecedores selectos da sentimentalidade da província, teve jamais a alegria de receber qualquer prova anónima de simpatia inspirada – uma farta lampreia de ovos ou um par de suspensórios bordados a missanga. E todavia, quem como eles falou de amor e de beijos, de delírios, de corpos enlaçados, de virgens que lhes caíam aos pés, de corações patrícios sangrando por entre as cordas das suas liras?

Com todo este tremendo reclamo feito aos seus encantos pessoais e ao seu extraordinário vigor amoroso, nunca houve em toda essa província uma exaltada, uma idealista, uma esposa de boticário, que lhes oferecesse, pelo correio, um coração que ainda não bateu senão por V. Exª!...

Humilhante indiferença para a literatura portuguesa! Alfredo de Musset encontrava, quase todas as manhãs, sobre a mesa do almoço, um bilhete aromatizado, cuja letra assustada e tremida revelava bem que a mão que a traçara estava ainda nervosa de ter tocado as páginas ardentes de Namouna ou de Rolla. As madeixas de cabelos anónimas, remetidas a Balzac pelas suas admiradoras que julgavam reconhecer-se na Mulher de Trinta Anos, no Lírio do Vale ou na duquesa de Maufrigneuse, foram em tal número que o autor do Père Goriot pôde encher com elas esse extraordinário tubo de vidro que lhe servia de bengala – e que não passava, na realidade, de um chouriço de provas de afecto. Estes poetas, aqui, não recebem nada! E como se as nossas concidadãs lhes considerassem os poemas como obras impessoais – coisas mandadas fazer numa fábrica, pelo Governo, para uso da melancolia nacional...

Os únicos escritores portugueses que receberam anonimamente alguma coisa, por meio do correio, fomos nós, Ramalho Ortigão e eu, quando redigíamos ambos as

Farpas: recebíamos então regularmente do Brasil – promessas de bordoada.

Foi por isso larga e ruidosa a sensação –quando nos chegou a nova tocante desse testamento, em que seis escritores portugueses eram publicamente coroados com apólices da Dívida Pública. A imprensa, um momento surpreendida, impressionou-se, aqueceu, e fez uma ovação ao Comendador Peres Cardoso; este defunto obscuro saboreou assim, durante semanas, a popularidade de um herói vivo. Às portas das taba-carias,

(onde Lisboa faz sobre os seus bocados de impressões os seus bocados de frases) o testamento do Comendador era mais discutido que a questão do Zaire, como se sentisse, enfim, que o que se prende com a nossa literatura, interessa mais a nossa nacionalidade do que a posse ou a perda dessas estúpidas terras negras, que só nos dão humilhações e febres... Nas salas, as senhoras, interessavam-se por este homem: achava-se que ele tinha feito alguma coisa de brilhante e de chique: e desejava-se saber a sua idade, a sua figura, os seus gostos e o romance da sua vida. Não houve então brasileiro residente em Lisboa que não fosse detido, duas e três vezes, no seu caminho, com a mesma pergunta, no mesmo sorriso: «Quem é o Comendador Peres Cardoso? Que sabe

V. do Peres Cardoso?...» Este estremecimento de simpatia ondulou até para além da fronteira: os jornais espanhóis falaram do Comendador, chamando-lhe um nobre fidalgo e tratando-o de Mecenas... Era, enfim, um enternecimento, um vasto reconhecimento público – como se o país tivesse pela primeira vez recebido uma afirmação positiva, explícita e visível da sua superioridade intelectual.

Ama Lisboa os seus homens de letras? Não direi que os ame. Mas, há tempos para cá, Lisboa – vendo nas suas ruas os tramways americanos, e os jornais franceses apregoados à porta dos seus teatros, e fotografias de cocottes nas vitrinas das suas lojas

– imaginou que isto era a Civilização, e passou a considerar-se a si mesma cidade civilizada. Desde então Lisboa corrigiu-se cuidadosamente de alguns defeitos selvagens, lavou-se, apurou-se, e, para manter a sua linha de capital culta e chique, impôs-se a si mesma certos hábitos e constrangeu-se a certas poses. Lisboa já põe casaca à noite; anda-se arruinando com um boulevard; finge entender de bricabraque; já vai às corridas e já aposta com coragem a sua placa de cinco tostões: – e Lisboa, enfim, já não despreza os seus homens de letras. Aqui há vinte anos, quando se dizia de um desgraçado que ele era um literato – tinha-se dito dele tudo quanto a imaginação burguesa podia conceber de mais humilhante e de mais esmagador. Hoje, se o mesmo sujeito passa na rua, Lisboa

(já civilizada, mas encostada ainda às esquinas) observa-o com simpatia e diz com respeito: «E um rapaz de muito talento». Nós agora, aqui em Lisboa, temos todos muito talento!

Enfim, Lisboa ainda se não elevou decerto à compreensão de que uma literatura é a melhor justificação de uma nacionalidade – e muitos anos passarão antes que ela acredite que são os homens de letras que dão, a um país, a sua posição e o seu valor na civilização; que um soneto pode salvar uma nação do esquecimento; e que, se ainda hoje se fala tanto de Roma, é isso devido às odes de um sujeito que no seu tempo não foi nem senador, nem banqueiro, mas um simples bon-vivant, e que se chamava

Horácio. Mas é certo que Lisboa já vai considerando os seus literatos como um luxo que se deve ter, alguma coisa de decorativo que fica bem dentro de uma cidade, o quer que seja de brilhante que destaca da melancólica rotina das democracias. O seu sentimento pelos homens de letras, é o de um burguês pelos belos móveis de cetim da sua sala rica: gosta deles, usa-os pouco, e estima sobretudo que os outros lhos gabem. E assim se explica o rumor de simpatia que se elevou, ondulou em torno do testamento do

Comendador Peres Cardoso. O público viu nele mais do que um frio papel selado, contendo as últimas vontades de um proprietário generoso. Viu nele um verdadeiro artigo de crítica, um original artigo de crítica em acção, sobre a literatura portuguesa, feito por um homem de gosto, à hora da sua morte. Somente os escritores, ali, não eram julgados por meio de frases.

O Comendador Peres Cardoso não era um Taine, nem um Sainte-Beuve. Era antes um manejador de fundos públicos. Para ele, nem a frase, nem talvez mesmo a ideia constituíam a coisa bela e suprema em que se pode ocupar uma vida de homem: para ele essa coisa suprema e bela estava no papel de crédito de onde se tira um juro. Por isso, quando na sua revista através das letras portuguesas, ele encontrava um poeta ou um romancista que o satisfizesse, não lhe marcava o valor por meio de uma dessas frases, jóias de subtileza, que deixam em torno do artista e da sua obra uma vaga claridade de auréola. A sua aprovação tomava uma outra forma rude e sincera: abria a gaveta e depositava sobre a obra de arte, e com endosso ao artista, duas apólices da Dívida

Pública. Assim considerada, a apólice vale bem uma coroa, feita de velhas flores de retórica: e, positivamente, eu não julgo esta maneira de fazer crítica inferior à de Sainte-Beuve e à de Taine!

No fim deste manuscrito há a rubrica (Continua); mas a continuação não apareceu entre os papéis do Autor.

O «FRANCESISMO»

Há já longos anos que eu lancei esta fórmula: – Portugal é um país traduzido do francês em vernáculo. A secura, a impaciência, com que ela foi acolhida, provou-me irrecusavelmente que a minha fórmula era subtil, exacta, e se colava à realidade como uma pelica. E para lhe manter a superioridade preciosa da exactidão, fui bem depressa forçado a alterá-la, de acordo com a observação e a experiência. E de novo a lancei assim aperfeiçoada: – Portugal é um país traduzido do francês em calão. E desta vez a minha fórmula foi acolhida com simpatia, com reboliço, e rolou de mão em mão como uma moeda de ouro bem cunhada e rutilante, que é agradável mostrar, fazer tinir sobre o mármore dos botequins. Já a encontrei brilhando num almanaque, numa comédia do

Príncipe Real e num sermão. Por que foi este novo, carinhoso acolhimento? Quem sabe? Talvez porque a ideia da vernaculidade desagradava, lembrando pedantismo, caturrice, a Academia das Ciências, o pingo de rapé, outras coisas antipáticas. Enquanto que a ideia de calão nos sugere, sobretudo a nós lisboetas, chalaça alegre, bacalhau de cebolada, Chiado, Grémio, pescada frita nas hortas, em tarde de sol e poeira, e outras delícias, de que eu, ai de mim, estou aqui privado!

Em todo o caso, ou à maneira de Curvo Semedo, o clássico, ou à maneira do Zé

Pinguinhas, o fadista, é evidente que há quarenta anos, desde a Patuleia, Portugal está curvado sobre a carteira da escola, bem aplicado, com a ponta da língua de fora, fazendo a sua civilização, como um laborioso tema, que ele vai vertendo de um largo traslado aberto defronte – que é a França. Quem dependurou ali o traslado para que Portugal copiasse, com finos e grossos? Talvez os homens de 1820; talvez os românticos da

Regeneração. Eu não fui; – tenho sido acusado com azedume, nos periódicos, ou naqueles bocados de papel impressos, que em Portugal passam por Periódicos, de ser estrangeirado, afrancesado, e de concorrer, pela pena e pelo exemplo, para desportuguesar Portugal. Pois é um desses erros de Salão, em que tão fértil é a frivolidade meridional. Em lugar de ser culpado da nossa desnacionalização, eu fui uma das melancólicas obras dela. Apenas nasci, apenas dei os primeiros passos, ainda com sapatinhos de croché, eu comecei a respirar a França. Em torno de mim só havia a

França. A minha mais remota recordação é de escutar, nos joelhos de um velho escudeiro preto, grande leitor da literatura de cordel, as histórias que ele me contava de

Carlos Magno e dos Doze Pares. Havia aí certamente grandes lições de valor, de lealdade, de heroísmo: mas eram virtudes cavalheirescas que se provavam todas nos montes da Provença ou de Navarra. De cavaleiros portugueses, que dessem cutiladas nos mouros, nunca me contaram história alguma à lareira. Também o meu preto lia contos tristes das águas do mar. Eram as aventuras de um João de Calais. As naus afundavam-se, os gajeiros gritavam terra, mas era tudo em frios mares da Bretanha. De navegadores portugueses, em galeões portugueses, não me contaram jamais história alguma à lareira.

Depois ensinaram-me a ler: e o Estado, que certamente tinha interesse em que eu soubesse ler, e que, por meio das suas Repartições Públicas, estudara prudentemente o livro que melhor me convinha, como lição moral, e como lição patriótica, meteu-me nas mãos um volume traduzido do francês e chamado Simão de Nântua. Eram as aventuras de um justo: abundavam lá os exemplos de modéstia, de diligência, de caridade, de pudor; mas todas estas virtudes, suaves e íntimas, se exibiam longe, em Dijon, na

Alsácia, e nas estalagens da Picardia. De sorte que, para mim, todos os justos, bem como todos os heróis, só em França se produziam na perfeição, como os espargos, nessa

França de onde tudo que é amável vinha, de onde eu mesmo viera, como outras crianças, num açafate de alfazema e cravo. Depois, comecei a subir o duro calvário dos

Preparatórios: e desde logo, a coisa importante para o Estado foi que eu soubesse bem francês. Decerto, o Estado ensinava-me outras disciplinas, entre as quais duas, horrendas e grotescas, que se chamavam, se bem recordo, a Lógica e a Retórica. Uma era destinada a que eu soubesse bem pensar, e a outra, correlativamente, a que eu sou-besse bem escrever. Eu tinha então doze anos. Para eu saber pensar, o Estado e os seus professores forçavam-me a decorar diariamente laudas de definições, de fórmulas misteriosas, que continham a essência, o segredo das coisas, compiladas do francês, de velhos compêndios de Escolástica. Era terrível! O lente, casmurro e soturno, perguntava:

– Quantos são os impossíveis?

Eu devia papaguear em voz clara:

– Dois. O impossível físico, que o homem não pode fazer, mas Deus pode; por exemplo: ressuscitar. O impossível metafísico, que nem ao homem, nem a Deus mesmo

é permitido, como, por exemplo, que uma coisa, ao mesmo tempo, seja e não seja!

«Que nem a Deus é permitido!» Havia pois alguma coisa que nem a Deus era permitida? E quem era então esse outro poder, que, mais omnipotente, mais alto nas nuvens, lho não permitia? A minha cartilha, traduzida também do francês, com a aprovação de um bispo francês) ensinava-me, por outro lado, que Deus é absoluto) de ilimitado poder, e que as suas vastas mãos, que o Universo fizeram) podem o Universo desfazer. Qual tinha pois razão, destes dois livros que o Estado me impunha? A

Cartilha? A Lógica? Dúvida pavorosa, primeiro tormento de alma, em que só antevia uma coisa certa) inevitável: – o R, a raposa. Mas bem depressa compreendi que esta

Lógica, com a divertida, faceta, incomparável Retórica, que tive de decorar durante um ano, eram decerto disciplinas em que o Estado não tinha interesse que eu fosse perfeito.

O seu desejo estava todo em que eu soubesse bem francês. Quando cheguei na dili-gência a Coimbra, para fazer o exame de Lógica, Retórica e Francês, o presidente da mesa, professor do Liceu, velho amável e miudinho, de batina muito asseada, perguntou logo às pessoas carinhosas que se interessavam por mim:

– Sabe ele o seu francês?

E quando lhe foi garantido que eu recitava Racine tão bem como o velho Talma, o excelente velho atirou as mãos ao ar, num imenso alívio.

– Então está tudo óptimo! Temos homem!

E foi tudo óptimo, recitei o meu Racine, tão nobremente como se Luís XIV fosse lente, apanhei o meu nemine, e à tarde, uma tarde quente de Agosto, comi com delícia a minha travessa de arroz-doce na estalagem do Paço do Conde. E desde então nunca mais saí do francês. Quando no último ano de Preparatórios, o Estado, subitamente, se lembrou que era conveniente que eu tivesse algumas noções do Universo, foi através de um Compêndio francês, o Langlebert, que me relacionei com os três Remos da

Natureza. Conheci mais tarde em Paris este Langlebert, que é um médico, no Quartier

Latin. E contei-lhe como nas páginas tão sabiamente por ele compiladas, eu aprendera de cor a fórmula química da água e a teoria do pára-raios. Langle. bert, coçando risonhamente o seu espesso colar da barba, considerou-me com ternura, como a um bárbaro que dá proveito:

– Oui, oui, vous n‘avez pas de ces Livres là-bas... Et j’en suis bien aise! Ça me fait une jolie rente...

Creio bem que lhe fizesse uma linda renda não termos esses livros cá em baixo!

E outros decerto faziam lindas rendas, eles ou os Editores, porque, apenas entrei na Universidade, fui abrindo o meu rego de bacharel através de livros franceses. Direito natural, Direito público, Direito internacional, todos os Direitos, ou em compêndios ou em expositores, eram franceses, ou compilados abertamente do francês, ou secretamente surripiados do francês. E, sobre a mesa de pinho azul dos meus companheiros de casa, só se apinhavam livros franceses de Matemática, de Cirurgia, de Física, de Química, de

Teologia, de Zoologia, de Botânica. Tudo francês! Algumas lições eram dadas em francês, por lentes preclaros, carregados de condecorações, que pronunciavam il faut – ile faúte. Aquele corpo docente nunca tivera bastante actividade intelectual para fazer os seus compêndios. E todavia Coimbra fervilhava de lentes, que decerto tinham ócios.

Havia-os no meu tempo inumeráveis, moços e vetustos, ajanotados e sórdidos, castos e debochados, e todos decerto tinham ócios; mas empregavam-nos na política, no amanho das suas terras, no bilhar, na doçura da família, no trabalho de dominar pelo terror o pobre académico encolhido na sua batina; e o saber necessário para confeccionar a sebenta, iam buscá-lo todos os meses aos livreiros da Calçada, que o recebiam de

França, encaixotado, pelo paquete do Havre.

Ora naturalmente até aqui, simples estudante, eu do vasto mundo só vira, só me interessara, por aquele detalhe que mais se relaciona com o estudante – o compêndio. E só encontrava, só respirava o francês. Mas depressa, compreendendo que por aquele método de decorar todas as noites, à luz do azeite, um papel litografado que se chama a sebenta, eu nunca chegaria a poder distinguir, juridicamente, o justo do injusto, decidi aproveitar os meus anos moços para me relacionar com o mundo. Comecei por me fazer actor do Teatro Académico. Era pai nobre. E, durante três anos, como pai nobre, ora grave, opulento, de suíças grisalhas, ora aldeão trémulo, apoiado ao meu cajado, eu representei entre as palmas ardentes dos académicos, toda a sorte de papéis de comédias, de dramas – tudo traduzido do francês. Por vezes, tentávamos produzir alguma coisa de mais original, de menos visto que a Dama das Camélias, ou o Chapéu de Palha de Itália; reunimo-nos, com papel e tinta; e entre aqueles moços, nascidos em pequenas vilórias da província, novos, frescos, em todo o brilho da imaginação, uma só ideia surgiu: traduzir alguma coisa do francês. Um dia, porém, Teófilo Braga, farto da

França, escreveu um drama, conciso e violento, que se chamava Garção. Era a história e a desgraça do poeta Garção. Eu representei o Garção, com calções e cabeleira, e fui sublime; mas o Garção foi acolhido com indiferença e secura. E um só grito ressoou nos bastidores:

– Ora aí têm... Um fracasso! Pudera! Peças portuguesas!...

Imediatamente nos refugiámos no francês e em Scribe.

O Teatro, pouco a pouco, pusera-me em contacto com a literatura. Encontrei, organizada, completa, uma larga sociedade literária a que em parte presidia o homem, entre todos excelente e grande, que é mais que uma glória da sua pátria, porque é uma glória do seu século. Mas, à parte esse, em quem as largas, fecundas correntes do saber contemporâneo não alteravam de todo esse feitio especial, profundamente português, de ilhéu de boa raça, descendente de navegadores do século XVI – todo o resto desse rancho encantador parecia ter chegado na véspera do Quartier Latin. Sobre as mesas, só havia livros franceses; nas cabeças só rumorejavam ideias francesas; e o cavaco, entre a fumaraça, tomava invariavelmente o picante gosto francês. O que se lia? Só a França.

Toda a França – desde Mery a Proudhon e desde Musset a Littré. Em todo o tempo que vagueei pelas margens do Mondego, creio que não abri um livro português, a não ser, em vésperas de acto, e com infinita repugnância, a Novíssima Reforma Judiciária. Mas conhecia, como todos os meus amigos, cada romancista, cada poeta francês, não só na sua obra, mas na sua vida – nos seus amores, nos seus tiques, e no seu estado de fortuna.

Foi por esse tempo que eu e alguns camaradas nos entusiasmámos pela pintura fran-cesa!...

E extraordinário, bem sei, considerando que estávamos então a seis longos dias de viagem do Louvre e do Luxemburgo, e do Salon. Mas tínhamos os críticos, todos os críticos de arte, desde Diderot até Gautier, e era na prosa deste que nós admirávamos estaticamente a sobriedade austera de Ingres ou o colorido apaixonado de Delacroix. E em tudo isto eu obedecia sempre a um impulso, a uma grande corrente, como uma folha que bóia na água.

Com a minha carta de bacharel num canudo, trepei enfim um dia para o alto da diligência, dizendo adeus às veigas do Mondego. Justamente nesse mesmo tejadilho ia um francês, um commis-voyageur. Era um colosso, de lunetas, duro e brusco, com um queixo maciço de cavalo, que, à maneira que o coche rolava, ia lançando através dos vidros defumados um olhar às terras de lavoura, aos vinhedos, aos pomares, como se os sopesasse e lhes calculasse o valor, torrão a torrão. Não sei porquê, deu-me a impressão de um agiota, estudando as terras de um morgado arruinado. Conversei com este animal; ele pareceu surpreendido da minha facilidade no francês, do meu conhecimento do francês, da política de França, da literatura de França. De facto, eu conhecia romancistas, filósofos franceses, que ele ignorava. E ainda recordo o tom de alta protecção, com que me disse, batendo-me no ombro, enquanto nós rolávamos na estrada, vendo em baixo, no vale, o mosteiro da Batalha:

– Vous avez raison, il faut aimer la France... Il n’y a que ça! Et puis, vous avez, il faut que nous vous fassions des choses, des chemins de fers, des docks, des choses...

Mais il faut nous donner votre argent...

Creio que realmente, depois, temos dado notre argent à França, largamente!

Enfim, cheguei à capital de Portugal – e lembro-me que a primeira coisa que me impressionou foi ver a uma esquina um grande cartaz, anunciando a representação de

Cançonetas francesas, no Casino, a brilhante M.me Blanche, e a incomparável

Blanchisseuse Era outra vez a França, sempre a França. Eu deixara-a dominando em

Coimbra, sob a forma filosófica; vinha encontrá-la conquistando Lisboa, de perna no ar, sob a forma de cancã

Começou então a minha carreira social em Lisboa. Mas era realmente como se eu habitasse Marselha. Nos teatros – só comédias francesas; nos homens – só livros franceses; nas lojas – só vestidos franceses; nos hotéis – só comidas francesas... Se nesta capital do Reino, resumo de toda a vida portuguesa, um patriota quisesse aplaudir uma comédia de Garrett, ou comer um arroz de forno, ou comprar uma vara de briche – não podia.

Nem nos palcos, nem nos armazéns, nem nas cozinhas, em parte alguma restava nada de Portugal. Só havia arremedos baratos da França. A particular atmosfera de coscuvilhice política, que é tão peculiar a Lisboa como o nevoeiro a Londres, forçou-me, a meu pesar, a embrenhar-me também na política. Em que política? Boa pergunta!

Na francesa! Porque havia então em Lisboa toda uma classe culta e interessante de políticos «franceses», que, no Grémio, na Havanesa, à porta do Magalhães, faziam uma

Oposição cruel, amarga, inexorável, ao Império Francês e ao Imperador Napoleão!

Também havia decerto, na Baixa, no Passeio Público, imperialistas, que tinham empreendido a campanha da Ordem contra Rochefort, e contra Gambetta. Mas era uma minoria. Lisboa toda arreganhava o dente para o imperador. E, naturalmente, eu, moço e ardente, cheio de ideias de Liberdade, e de República, trasbordando de ódio contra essa corja dos Rouher e dos Baroche, que proibiam o teatro de Hugo, e tinham levado à polícia correccional Gustavo Flaubert, lancei-me vivamente na oposição às Tulherias. O que eu conspirei! Jesus, o que eu conspirei! O meu desejo era filiar-me na Internacional!

E lembra-me que uma noite, a propósito de não sei que novo escândalo do Império, achando-nos uns poucos no Martinho, em torno de um café, exclamámos todos, pálidos de furor, cerrando os punhos:

– Isto não pode ser! Já sofremos bastante. É necessário barricadas, é necessário descer à rua!

Descer à rua, era a ameaça terrível. E descemos o degrau do Martinho! Depois, na rua, sob o quente luar de Julho, ouvindo os foguetes para os lados do Passeio Público, voltámos para lá os passos frementes – porque um de nós, o mais exaltado, encontrava lá uma certa senhora, em noites de fogo preso. Ah mocidade, mocidade, incomparável encanto! Onde estão os entusiasmos de então, a santa palidez que nos cobria a face ante o espectáculo da injustiça, e a doçura que encontrávamos nos luares de Maio, e os foguetes alegres do Passeio?

Enquanto à Política propriamente portuguesa, escuso dizer que nenhum de nós verdadeiramente sabia se o regime que nos governava era a Constituição ou o

Absolutismo. De tais detalhes portugueses não curavam os filhos de Danton. E enquanto às divisões parlamentares de Regeneradores, Históricos, Reformistas, nem sequer as suspeitávamos, nós que conhecíamos as menores nuances da oposição francesa, e que distinguíamos as pequenas subtilezas de opinião que dividiam Jules

Favre e Gambetta, Picard e Jules Simon.

Mas para que hei-de continuar? Não quero escrever uma página de memórias.

Apenas mostrar, tipicamente, como eu, e toda a minha geração (exceptuando espíritos superiores, como Antero de Quental ou Oliveira Martins) nos tínhamos tornado fatalmente franceses no meio de uma sociedade que se afrancesava e que, por toda a parte, desde as criações do Estado até ao gosto dos indivíduos, rompera com a tradição nacional, despindo-se de todo o traje português, para se cobrir – pensando, legislando, escrevendo, ensinando, vivendo, cozinhando – de trapos vindos da França!

Esta geração cresceu, entrou na política, nos negócios, nas letras, e por toda a parte levou o seu francesismo de educação, espalhou-o nos livros, nas leis, nas indústrias, nos costumes, e tornou este velho Portugal de D. João VI uma cópia da

França, malfeita e grosseira. De sorte que, quando eu, lentamente, fui emergindo dos farrapos franceses em que essa educação me embrulhara, e tive consciência do postiço estrangeiro da nossa civilização, eu pude dizer que Portugal era um país traduzido do francês – no princípio em vernáculo, agora em calão.

Mas dir-me-ão: – Tudo isso é uma pequena minoria, feita de alguns políticos, alguns literatos, alguns banqueiros e alguns mundanos; a vasta maioria do país, a burguesia das vilas, a gente dos campos, permanece portuguesa, conservando no seu sentir e no seu pensar o fio da tradição, que seria fácil ir buscar lá, para com ele se continuar a tecer a nossa verdadeira civilização de feitio português.

Nenhum erro maior! Essa vasta maioria não conta. Um país, no fundo, é sempre uma coisa muito pequena: compõe-se de um grupo de homens de letras, homens de estado, homens de negócio, e homens de clube, que vivem de frequentar o centro da capital. O resto é paisagem, que mal se distingue da configuração das vilas ou dos vales.

É a gente sonolenta da província, que apenas se diferencia das pequenas vielas, tortuosas e sujas, onde vegeta; são os homens do campo, que mal se destacam das terras trigueiras que semeiam e regam. A sua única função social é trabalhar, pagar. A direcção de um país é dada justamente por essa minoria da capital. Quando algum jornalista e algum político de Paris quiser que a França seja republicana, proclama-se a república; quando preferir que haja monarquia, sobe um sujeito, com uma coroa na cabeça, ao trono de Luís XIV. Não são os camponeses da Beauce, nem os burgueses de

Orleães, que escolhem para a França o barrete vermelho ou a coroa fechada. A moda dessa coiffure vem de Paris, de algumas redacções do Boulevard ou dos corredores do

Palais-Bourbon. Na mesma Inglaterra, com a sua vasta descentralização intelectual e social, a classe média não conta, porque, na realidade, os círculos eleitorais das pro-víncias só em questões muito graves, em questões de dinheiro ou dignidade nacional, têm uma opinião sua, e a fazem ouvir de alto: de resto, ocupada no seu trabalho, aceita submissamente as opiniões dos clubes de Pall-Mall, e dos jornalistas de Fleet-St., como aceita a forma de paletós que, para a season, é decretada pelos cortadores de Cook ou de

Poole. Que será pois em Portugal onde, fora do pequeno centro de Lisboa, não há vida intelectual nem social?

O que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de banqueiros, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é. Se um grupo amanhã decidir que Portugal seja turco – através do país inteiro todos os chapéus altos, todos os chapéus desabados, todos os cocos, todos os barretes de varino, tenderão lentamente mais ou menos a tomar a forma de turbante. Por ora, todavia, tudo é francês.

A toda a parte chega esta ondulação do francesismo partida do Chiado – mais forte no

Porto do que em Guimarães, mais visível em Guimarães do que em Lamaçal de Bouças, mas sensível para quem sabe ver debaixo das superfícies. Pode-se conservar o chinelo de ourelo, e ser-se fiel ao sarrabulho de porco, mas por toda a parte há vagamente essa tendência, essa aspiração, esse desejo escondido de não se ser como foram nossos avós, mas de outro modo, como se é lá fora. E lá fora – é a França.

O pai de um amigo meu, em 1836 ou 1848, num ódio repentino a tudo que lhe lembrava o velho Portugal, foi-se à sua mobília antiga, de pau-preto torneado e de assentos de couro lavrado, e num só dia vendeu, queimou, sepultou em sótãos, dispersou todas essas formas vetustas, que lhe vinham do passado; depois correu a um estofador da esquina, e comprou, ao acaso, num lote, uma mobília francesa. O que este homem fez, todo o Portugal o fez. Num rompimento desesperado com o velho regime, tudo quebrou, tudo estragou, tudo vendeu. Achou-se de repente nu; e como não tinha já o carácter, a força, o génio, para de si mesmo tirar uma nova civilização, feita ao seu feitio, e ao seu corpo, embrulhou-se à pressa numa civilização já feita, comprada num armazém, que lhe fica mal, e lhe não serve nas mangas.

Como acontece sempre nestas toilettes feitas à pressa, vêem-se ainda, por baixo do arrebique francês, os restos do fato primitivo e rude. Portugal ainda usa tamancos.

Mas mesmo onde este desventuroso país usa tamancos, tem o seu coração, o seu desejo voltado para a bota de verniz bicuda, que vem de Paris. Numa velha vila da província, um amigo meu entrou numa loja, uma sombria loja, cheirando a mofo, alumiada a azeite, para comprar um guarda-chuva. E, oh horror! eis que o lojista, um pouco pálido, de quinzena de cotim, lhe pergunta, erguendo-se detrás do balcão com o Gil Blas na mão: «V. Exª leu hoje esta deliciosa fantasia de Catulle Mendès?» Naquela loja respeitável, onde seu pai, de chinelos, apilhava, honradamente, os briches e as saragoças, o miserável lia Catulle Mendès! Mais ainda. Um dia, em Braga, abro um jornal e vejo este anúncio: «Na rua de tal, velas de cera, círios, tochas de qualidade superior, tudo o que há neste género de mais pshutt e becarre». Oh miséria incomparável! os santos encantadores do nosso calendário, patronos das nossas casas, fiéis e doces protectores do nosso lar, alumiados nos altares com círios pshutts, e com molhos de velas becarre! A este abismo levou o francesismo, na velha e católica Braga, o venerável e patriótico negócio da cera. Desgraçada cera, desgraçada Braga!

Mas é sobretudo na minha especialidade, na literatura, que esta cópia do Francês é desoladora. Como aqueles patos que Zola tão comicamente descreve na Terre, aí vamos todos, em fila, lentos e vagos, através do caminho da poesia e da prosa, atrás do ganso francês. Quando ele embica para a relva, vamos bamboleando, pata aqui, pata acolá, em direitura à relva; se ele pára, com o bico no ar, todos parámos, com o bico no ar. De repente ele abre as asas, saltita pesadamente, e eis a fila grotesca, e pesada, e saltitante, correndo confiadamente para o charco! Fomos sucessivamente, em imitação do ganso francês, românticos, góticos, satânicos, parnasianos, realistas. Toda a incoerência, toda a afectação, toda a extravagância de uma literatura em decadência, ávida de originalidade, e desengonçando-se no esforço violento de encontrar uma altitude nova que espante o público – é imediatamente macaqueada a sério, com uma gravidade melancólica, que é o fundo do carácter nacional, por uma infinidade de moços honestos e simples.

Há dois ou três anos, esse colossal blagueador e cabotin chamado Richepin, publicou um livro, Les Blasphèmes, em que se propunha simplesmente a acabar de vez, por meio de algumas rimas brilhantes, com o sentimento religioso na humanidade, descrevendo obscenamente a afeição íntima de seu pai e de sua mãe. Era em casa de

Oliveira Martins, e todos achámos imensamente divertida esta nova forma de respeito filial. Antero de Quental, porém, não ria.

– Isto para nós é grave – disse ele. – Porque amanhã vão aparecer aí, por todos esses jornais, estrofes de poetas novos, começando assim:

Meu pai era ladrão, minha mãe meretriz!

E vinte horas não tinham passado sem que todos, no espanto desta profecia, lêssemos, em jornais de Lisboa e Porto, poesias em que moços de maior honestidade, de famílias honradíssimas, acusavam as suas mães de prostituição e tratavam os pais de

«lúbricos machos». Aí está onde leva a França!

Mas, se os que escrevem ou escrevinham vivem da França, os que lêem ou os que apenas folheiam nutrem-se exclusivamente da França. Quem passeia pelas ruas de

Lisboa vê que nas vitrinas dos livreiros só há livros franceses; e quando se sobe às casas, se penetra na sociedade, só lá se descobrem (desde que a conversação se eleva acima das coisas locais), leituras francesas, admirações francesas, frases francesas.

Quase toda a nossa mocidade culta recebe a sua luz intelectual do Figaro. E o banalíssimo, mediocríssimo Wolf é ainda, para muitos homens inteligentes, o representante do espírito francês. Porque é necessário observar que tanto os que escre-vem, como os que lêem, tomam ingenuamente o Boulevard pela França. Para além da

França nada se conhece – e é como se, literariamente, o resto da Europa fosse uma vasta charneca muda, sob a bruma. Da nossa vizinha Espanha, nada sabemos. Quem conhece aí os nomes de Pereda e de Galdós? A literatura inglesa, incomparavelmente mais rica, mais viva, mais forte e mais original que a da França, é tão ignorada, apesar de geralmente se saber inglês, como nos tempos remotos em que vinte longos e laboriosos dias eram necessários para ir de Lisboa a Londres. Há alguns anos, um personagem, um

Político, um Homem de Estado perguntava-me, com um ar de suficiência e superioridade:

– Lá por Inglaterra também há alguma literatura?

E ainda recentemente um homem excessivamente culto, conhecendo perfeitamente o inglês, me dizia:

– A respeito da literatura, imagino que deve ser alguma coisa de muito brilhante e de muito grande; mas, a não ser Dickens, que morreu há vinte anos, não posso citar um só nome, e de nenhum outro posso citar uma só linha!

E todavia não é a curiosidade que nos falta. Mas estamos colados às saias da

França, como às de uma velha amante, a que nos acorrente o vício e o hábito, e de quem não ousamos afastar-nos, para ir falar a alguma mulher mais interessante e mais fresca.

Há tempos, na curta distância que vai do Rossio ao Loreto, eu fui assaltado por seis ou sete pessoas, que me travavam do braço, me arrastavam para a esquina, para me perguntar ansiosamente: «Quem é uma certa Rhoda Brougton que escreve romances?»

E eu ia já indignar-me, pensando que isto era uma scie montada contra mim, quando soube que o Figaro da véspera tinha um artigo sobre a graciosa e fina criadora da

Família Maubrey.

Da rica e grande literatura da Alemanha, podemos dizer, como o meu amigo: nem um nome a citar, nem uma linha a lembrar! E se agora conhecemos alguns romances russos, é porque «estão à moda» no Boulevard.

Mas, pergunto eu, este collage com a França, esta imitação, esta preocupação da

França, é uma tendência fatal, necessária, de temperamento, de congeneridade, de similitude, a que não possamos escapar, como a Dinamarca não pode escapar a imitar a

Alemanha, e a Bélgica se não pode eximir a imitar a França? Não creio. O dinamarquês

é um alemão desbotado. A Bélgica é uma edição barata da França. Mas não há similitude alguma de temperamento, de feitio moral entre nós e a França. Nada mais diferente de um francês do que um português; nem eu compreendo que satisfação, que gozo possa achar o espírito português em se nutrir, em se banhar nas criações do espírito francês. A França é um país de inteligência; nós somos um país de imaginação.

A literatura da França é essencialmente crítica: nós, por temperamento, amamos sobretudo a eloquência e a imagem. A literatura da França é, desde Rabelais até Hugo, social, activa, militante. A nossa, por tradição e instinto, é idílica e contemplativa. Não é só por uma fria imitação de Teócrito e dos bucólicos latinos que nós, desde Rodrigues

Lobo até aos elegíacos da Arcádia, amamos a écloga pastoril: é porque nós somos realmente o povo que se compraz em estar quieto entre os choupais, a ver correr as

águas meigas, pensando em coisas saudosas. Fomos à Índia, é verdade, mas quase três séculos são passados, e ainda estamos descansando, derreados, desse violento esforço a que nos obrigaram alguns aventureiros que tinham pouco do fundo comum da nossa raça, e que, a julgar por Afonso de Albuquerque, deviam ser de origem fenícia, puros cartagineses, talvez da família dos Barcas. Enfim, o símbolo da França será eternamente o galo, o galo petulante e lustroso que canta claro, com uma limpidez de clarim, no fresco arrebol da manhã: e o nosso emblema é e será eternamente o rouxinol, que geme na espessura mal alumiada dos arvoredos, o rouxinol «amavioso e saudoso» que faz chorar Bernardim.

A alma de um povo define-se bem a si mesma pelos heróis que ela escolhe para amar e para cercar de lenda. O grande rei para os Franceses, é e será sempre Francisco I, enorme, robusto, ligeiro, rindo alto, batendo-se valentemente, amando mais valentemente ainda, radiante, gozando largamente a vida, poeta em certos momentos, artista por ostentação, e falador eterno... O nosso genuíno herói, e isto resume tudo, é o poético e pensativo D. Sebastião.

Ora se nenhuma congeneridade de ideia, de sentimento, de natureza, de temperamento, nos cola irremediavelmente à França, ser-nos-á fácil, sem dúvida, separar-nos dela, sem que se dilacerassem as raízes mesmas da nossa sociedade. Nós estamos apenas colados à superfície, somos um parasita. E se nos desprendêssemos desse grande corpo, em que sugamos para viver, poderíamos, sem emagrecer e sem deterioração do nosso organismo, ir procurar noutro corpo social a vida do nosso espírito. Como parasitas prudentes, e o Português é prudente, podemos talvez perguntar a nós mesmos, se nos convém continuar a sugar a pele francesa, e se ela realmente oferece todos os elementos de uma suficiente alimentação para que, como uma pulga obstinada que pica o seio ressequido da carcaça de uma velha, onde não há seiva e sangue, não estejamos nós mordendo, chupando, onde não há sangue e seiva que nos alimente.

É tempo, pois, de considerar se nos convém, como table-d’hôte, a literatura da

França – a nós, parasitas, que em questões de literatura e de tudo, vamos comer às casas alheias. Afoitamente digo que nos não convém. A literatura francesa, neste último quartel do século, sofre de um obscurecimento, um desaparecimento de sol entre nuvens, de que o seu génio decerto sairá mais radiante e iluminado; mas por ora só nela há uma grande sombra, que passa. De cima a baixo, das regiões do alto saber e do alto pensar até à literatura do Boulevard, há um enfraquecimento, um desequilíbrio, um enervamento, que de um lado leva à extravagância, e do outro à banalidade.

Extravagância, banalidade! O grande, luminoso, exacto, crítico espírito francês está oscilando entre estas duas inferioridades. E em toda a linha da criação literária assim oscila, ora dando pulos grotescos com o desagradável Richepin, ora estendendo-se, chatissimamente, ao comprido, com o detestável Ohnet. Veja-se a mais alta figura literária da França, e a mais francesa – Renan. Espírito da mais requintada e subtil finura crítica, saturado de saber, possuidor de uma língua a mais luminosa e a mais bela, tendo o que há de melhor em Racine e de melhor em Voltaire, com alguma coisa de mais aveludado, de mais acariciador, que prende, irresistivelmente arrasta a alma – que ensina ele, hoje, este Mestre, este francês, que domina com a dupla influência da fina crítica e da forma perfeita?

Este Mestre ensina-nos simplesmente que nada na Terra vale, ou tem importância, senão os gozos que dá o amor, ou o esquecimento que dá a morte. Certamente, em boa filosofia, as duas coisas correlacionam-se: a morte e o amor; e há aqui uma grande lógica. Mas nem por isso deixa de ser o mais forte sintoma da decadência intelectual da

França que este Mestre, este sábio, não abra os lábios, não tome a pena, senão para nos apontar alternadamente – ou para a alcova ou para o cemitério. E se, de Renan, descemos à grande massa da literatura – o estonteamento é ainda mais característico. No romance, que é a forma preferida da arte moderna, temos mais que em nenhuma outra a banalidade e a extravagância, instintivamente usadas para os dois grandes fins, os dois grandes objectos de todo o esforço parisiense – ganhar dinheiro e espantar a galeria, o gozo ou a gloríola. Na banalidade, com mais ou menos distinção, (porque tal é o requinte moderno que mesmo na banalidade há distinção), temos duas ou três individualidades que dão o tom por que as outras atrás afinam. É o Sr. Ohnet, o medíocre Sr. Ohnet, que ganha centenares de mil francos, fabricando, com pena fácil, para uso de uma larga democracia igualitária que tem um fundo de educação aristocrá-tica, quadros burgueses, em que os donos de forjas, empreiteiros, proprietários de armazéns de retalho, toda uma classe industrial, aparecem com os sentimentos de cavalheirismo, orgulho, heroísmo, romantismo, que essa pequena burguesia estava habituada a admirar secretamente na classe aristocrática, na gente de privilégio e de espada, nos grands seigneurs! É depois o Sr. Bourget, um parisiense com um ligeiro toque de inglesismo, como pede a moda, que leva para o Faubourg St. Germain, num fiacre, os seus métodos de Psicologia, de uma psicologia que cheira bem, que cheira a opopánace, e tomando uns ares infinitamente profundos, remexe os corações e as sedas das senhoras, para nos revelar segredos que todo o mundo sabe, num estilo que todo o mundo tem.

Por outro lado, gesticulando violentamente, há um pequeno grupo de extravagantes, que se estorcem, se esfalfam para achar alguma coisa inesperada que faça deter os badauds no Boulevard que, com efeito, espantam por vezes como saltimbancos muito destros, mas que no momento em que findam as suas cabriolas, arquejando, são esquecidos pelo homem sério, que pára a olhar, e que passa. Tudo isto é Francês, especialmente nascido das condições especiais de Paris, e não vejo o que aqui tenha a admirar ou a imitar um bárbaro honesto que vive para cá dos Pirenéus. E de todos estes romancistas, talvez aqueles que nós pudéssemos com mais utilidade imitar, são os muito simpáticos e estimáveis Verne e Boisgobey, que ao menos, com suas viagens, as suas intrigas, são um encanto providencial das crianças e dos convalescentes.

Na poesia francesa, tão admirada entre nós, a decadência é maior. Os Franceses nunca foram poetas, e a expressão natural do génio francês é a prosa. Sem profunda, religiosa, ardente emoção, não há poesia; e a França não se comove, permanecendo sempre num razoável equilíbrio de sentimento e de razão, bem senhora da sua clara inteligência. Os clássicos da poesia francesa, Mathurin Regnier, Boileau, La Fontaine, são justamente os homens de bom senso, de fria crítica, de honesta moral. Os bons conhecedores da poesia, em França, admiram sobretudo os poetas, quando eles têm em alto conceito estas qualidades superiores, que são, na realidade, qualidades de prosa. A limpidez nobre de Racine, a graça subtil de La Fontaine, serão o encanto eterno da

França. Vítor Hugo, com o seu violento voo lírico, com o esplendor do seu verbo, teve a admiração, mas nunca teve a estima literária da França. E hoje os poetas mais estimados de França são-no ainda por qualidades que pertencem à prosa – Coppée, pela sua facilidade clara e breve, Leconte de Lisle, pela sua majestade lapidar. A poesia francesa são alexandrinos em prosa. Baudelaire escrevia primeiro em prosa os seus poemas.

Nunca a França teve um só poeta comparável aos poetas ingleses, a Burns, a

Shelley, a Byron, a Keats, homens de emoção e de paixão, tão poéticos como os seus poemas; e hoje, que poeta há em França que se possa pôr ao lado de Tennyson, de

Browning, de Rossetti, de Matthew Arnold, de Edwin Arnold, de Austin, etc.? Um só poeta francês teve a emoção: Musset. Colocado no centro do Romantismo, abalado por largas correntes de emoção, que vinham de Inglaterra e da Alemanha, dotado de uma exaltação natural, apaixonado, ardente, inspirado, este francês singular sofreu, e cantou como sofreu; e, conservando-se francês, foi profundamente humano. Mas a França culta, literária, muito tempo se recusou a ver nele um grande poeta. Diz Paulo de

Musset, que, quando apareceram, na Revista dos Dois Mundos, as Estâncias à

Malibran, As Noites, os verdadeiros homens cultos permaneceram frios! Como havia, porém, naquela poesia, e expressas sinceramente, coisas que são eternas, a mocidade, o amor, a voluptuosidade, a dor – a França, pouco a pouco, foi atraída para aquele canto vivo e doloroso. A simpatia das mulheres venceu a resistência dos críticos. Musset, hoje, é oficialmente um grande poeta, mas nunca veio a ser um clássico. E a França conserva diante dele uma reserva, misturada de desdém e de amor, reprovando e amando, e sentindo que tem naquele homem, que a Europa tanto lhe aclama, um poeta que é ao mesmo tempo medíocre e imortal.

De resto, a inteligência e a poesia, raramente vão juntas. Eu só conheço um homem, uma excepção, em que o sumo génio poético se alia à suma razão filosófica. É o nosso Antero de Quental. Nos seus Sonetos, exprime esta coisa estranha e rara – as dores de uma inteligência. É uma grande razão debatendo-se, sofrendo, e formulando os gritos do seu sofrimento, as suas crises, a sua agonia filosófica, num ritmo espontâneo, da mais sublime beleza poética; cada soneto é o resumo poético de uma agonia filosófica. E é por isso que a Alemanha se lançou sobre este livro de Sonetos (que

Portugal não leu) e os traduziu, os comentou, os fixou religiosamente na sua literatura, como uma coisa rara e sem precedentes, uma pérola fenomenal de criação desconhecida, única no grande tesouro da Poesia Universal. Mas em França não há disso. E a sua clara inteligência tem-lhe vedado os triunfos poéticos. Depois da curta emoção de Musset, a França recaiu mais que nunca na poesia que é admirada por ter as qualidades da prosa.

E isto, naturalmente, devia levar, e levou num momento em que toda a literatura decai, e em que a emoção de todo se esvai, e o espírito crítico um momento se embota – devia levar e levou à banalidade ou à extravagância. Mas se a parte da banalidade é grande no Romance – os poetas, que estão naturalmente mais longe do grande público, foram forçados a chamar-lhe a atenção mais violentamente, e, numa ânsia de originali-dade e de novidade, precipitaram-se em massa na extravagância. Daí provêm todos esses movimentos do Satanismo, que desandou noutro, chamado, Deus me perdoe, o

Nervosismo! Mas aí ainda havia o desejo, no fundo intelectual, de dar um estremecimento, um arrepio novo à alma.

Por fim, toda a intenção intelectual foi posta de parte e ficou a preocupação meticulosa, requintada da forma – de uma forma que tivesse a extrema originalidade no extremo relevo. O sentir foi substituído pelo cinzelar; e uma estrofe, um soneto, foram trabalhados com os lavores, os polidos, os retorcidos, os engastes, as cintilações de um broche de filigrana, tendo apenas, como a filigrana, um valor de feitio, como ela agradá-vel

à vista, mas deixando o espírito indiferente. Estes homens chamaram-se a si mesmos os Parnasianos – e, entre nós meridionais, que amamos o lavor e o feitio, o brilho, o luxo da forma, exerceram uma influência devastadora. A eles se devem esses estilos delirantes, que tornaram nestes últimos anos a poesia, em Portugal, uma coisa grotesca e pícara.

Mas mesmo em França a sua influência, ou antes o seu contágio, não foi menos lamentável. Nada há mais tirânico do que a moda nas formas: a bota bicuda, sendo moda, impõe-se irresistivelmente aos espíritos mais profundos; e a cabeça de artista em que brilhem as ideias do mais puro gosto, ou rolem os sistemas mais profundos, submete-se resignadamente ao chapéu que decrete em Londres The Journal of Fashion.

Ninguém gosta de aparecer na rua menos bem entrapado que o seu concidadão, seja em casaco ou em estilo. E foi assim que veneráveis poetas franceses caíram, já entrados nos dias da sua velhice, no Parnasianismo: Autran e Laprade, eles mesmos, passaram uma camada de esmalte novo, das cores da moda, sobre os seus severos e suculentos alexandrinos: e viu-se o bardo Banville, o amável e fecundo bardo que desde 1830 cantava de omne re scibile numa lira larga e fácil, descer ao Boulevard e espantar a multidão, mais fecundo e amável que nunca, com ritmos e rimas tão sarapintados, tão desengonçados, que não se sabia bem se aquilo que cabriolava e reluzia no papel, eram os versos de um poeta ou as bolas de um pelotiqueiro.

Mas estes tempos dos Parnasianos ainda eram os bons tempos. Hoje, que os poetas aclamados depois da geração de Hugo, de Lamartine, de Gautier – os

Prudhommes, os Lisle e outros, têm entrado na Academia e no silêncio, e a sua influência salutar foi arrefecendo como um sol que declina, rompeu, com o crepúsculo, uma imensa, infrene orgia no Parnaso Francês. Tão infrene que as pessoas tímidas e honestas não se arriscam a aproximar-se – e, como no tempo de Baco, os homens graves da planície param aterrados, e de longe contemplam, sem ousar ver de perto, as tochas e os gritos das Coribantes perpassar, enchendo de desordem, de troça e de escândalo, a espessura do bosque sagrado.

Eu, pelo menos, educado com Musset e Hugo, não ouso aproximar-me desses

Coribantes, e dos seus livros. Jamais abri um desses livros amarelos, dentro dos quais passam estrofes, com bulhas e gritos intoleráveis. Sei apenas que esses novos se chamam a si mesmos, com uma sublime sinceridade, os Decadentes, os Incoerentes, os

Alucinados. Têm as suas coteries, como quem diria os seus Colégios Sacerdotais, celebram em comum os seus ritos, e, como todos os Colégios Sacerdotais, redigem os seus anais, em cadernetas que se chamam o Jornal dos Incoerentes, a Revista dos

Alucinados... Zelosos dos seus privilégios, detestando as confrarias rivais, todo o tempo em que não desonram o Monte Olimpo, com desabaladas orgias de ritmo, o passam, como os gramáticos do Baixo Império, a questionarem sobre precedências e valores relativos da sua escola: é assim que alguns poetas ultimamente declaravam em todos os jornais que fulano de tal, poeta, não era de modo nenhum o Chefe dos Incoerentes, e que esse Chefe ilustre dos Incoerentes, o homem inspirado e supremo, que em si resumia toda a Incoerência, era Verlaine, só Verlaine, e não outro. E Verlaine, indisputadamente, guarda a coroa da Incoerência.

É necessário dizer-se, todavia, que há aqui talento! Há mesmo muito talento, uma habilidade de ofício maravilhosa, uma presteza de mão que surpreende, uma técnica de rima, uma abundância de cor, uma arte no detalhe que maravilha. Somente, nestes milhares de versos admiráveis – não há um verso poético: estes poetas não têm poesia: e, entre tantos talentos, não há uma só alma!

MAIS DOIS DISPERSOS

DE EÇA DE QUEIRÓS

Recentemente veio-nos às mãos o número único de uma publicação intitulada

LISBOA-PORTO, publicação essa feita pela imprensa de Lisboa em benefício das vítimas sobreviventes do incêndio do Teatro Baquet. Nele colaboraram os nomes mais brilhantes da

época, como sejam, entre tantos outros: El-Rei D. Luís I, S. M. a Rainha D. Maria Pia, S.

A. Real o Príncipe D. Carlos, S. A. R. D. Amélia, o Infante D. Afonso, Rafael Bordalo

Pinheiro, Columbano Bordalo Pinheiro, Eduardo Coelho, Teófilo Braga, Henrique Lopes de Mendonça, Jaime Batalha Reis, Eça de Queiroz, etc., etc.

Entendemos ser nosso dever corresponder à sorte que nos foi dada usufruir com este achado, reproduzindo as linhas que o insigne romancista, Eça de Queiroz, escreveu para esse número único.

Julgamos que, igualmente, devíamos inserir neste volume o artigo «Fraternidade», que Eça de Queirós escreveu para Anátema, número único da iniciativa de António Vaz de

Macedo e Artur Pinto da Rocha, publicado em Maio de 1890, a favor da Grande Subscrição

Nacional, por motivo do ultimato de 11 de Janeiro de 1890; e que a revista Ocidente, de

Lisboa, reproduziu no seu nº 91, de Novembro de 1945.

OS EDITORES.

DO «LISBOA-PORTO»

A propósito do incêndio do Teatro Baquet, no Porto, em 1888.

Assim devia ter sido nessa primeira desgraça do mundo. E assim é hoje, entre os homens, quando uma catástrofe, a terra que treme, um rio que submerge os campos, o chamejar de um vasto incêndio, nos dão o inesperado terror desta bruta e divina

Natureza que nos contém, que é mãe e tutelar nutridora, e que bruscamente nos ataca com uma violência que nada discerne, e que, indiferentemente, cai sobre a fraqueza e sobre a arrogância, sobre o que já vai murchando e sobre o que ainda não floriu, sobre o monstro e sobre o santo.

Há então um ansioso aglomerar de gente, a mais oposta e mais vária, na mesma ideia – a ideia de fraternização, de unidade, de aliança contra a Natureza, senão já para debelar o desastre com que ela a todos podia esmagar, ao menos para minorar as curáveis misérias que o desastre a todos poderá estender. É este sentimento, este confuso medo de uma Natureza incerta e traiçoeira, que inspira, no fundo, as grandes correntes de piedade e de caridade.

Depois, está claro, volvido o rio ao seu leito, apagadas as labaredas, clareadas as ruínas e acalmada a Natureza, todos, já sem susto, se vão pouco a pouco desagregando, cada um volta ao seu interesse e ao ódio do seu vizinho – e o lobo recomeça a devorar o cordeiro. Mas, enfim, houve uma bela hora de harmonia, de fé partilhada, em que os corações bateram em ritmo, as vontades trabalharam em concordância – e da mesma emoção nasceu o mesmo heroísmo. Há, por isso, alguma coisa de nobre e de tocante em querer prolongar, mesmo artificialmente, este radiante momento de união moral. Eu, por mim, acho bom que ele se alargue, se exagere, ganhe até um começo de rotina e de

Os artistas da Renascença, quando pintavam o Dilúvio, nunca deixavam de mostrar, em evidência na tela, como alegoria e como lição, um cabeço de cerro – onde se amontoavam animais contrários, as feras e as presas, cordeiros e lobos, gazelas e tigres, os que assaltam e os que fogem, colados dorso a dorso, buscando um no outro refúgio, no pavor comum da maré negra que em torno sobe e os vai todos tragar... maneirismo. É um instante amável de paz que se rouba ao contínuo conflito humano! É como quando, num longo e áspero Inverno, rompe um dia de sol e doçura, em que tudo parece embelezar, uma bondade esparsa flutua, o céu azula a vida e os homens, sem motivo, sorriem quando se cruzam. Quem não desejaria espaçar este relance de suavidade e de luz?

Bem cedo voltará o vendaval e o negrume – e nos montes, como nas cidades, o lobo recomeçara a devorar o cordeiro.

Brístol, Abril de 1888.

FRATERNIDADE

Nunca na Europa se falou com tanta segurança, como hoje, de «fraternidade, de concórdia entre os povos, de fusão das raças numa simpatia»; – e ainda há pouco em

Paris, num congresso, um Moralista, um sábio, predizia, entre aclamações, que bem cedo da linguagem purificada dos homens desapareceria este vetusto e bárbaro termo – o estrangeiro.

De facto, porém, nunca entre as nações existiu, como neste declinar dos velhos regimes, tanta desconfiança, tanta malquerença, ódios tão intensos apesar de tão vagos.

Não se encontram hoje na Europa dois povos genuinamente fraternais; – e nos países cujos interesses mais se entreligam, as almas permanecem separadas. O Alemão detesta o Russo. O Italiano abomina o Austríaco. O Dinamarquês execra o Alemão. E todos aborrecem o Inglês – que os despreza a todos.

São estes antagonismos, irracionais e violentos, tanto ou mais que as rivalidades de Estado, que forçam as nações a essa rígida atitude armada em que elas se esterilizam e se enervam: – e hoje, diferentemente dos tempos antigos, o amor e o cuidado da paz está nos reis e nos povos o impulso para a guerra.

Isto provém de que o poder, ou a influencia sobre o poder, passou das castas para as massas, das oligarquias para as democracias. Outrora as oligarquias, tornadas

«cosmopolitas» pela educação, pelas viagens, pelas alianças, pela comunidade de hábitos e de gostos, pela similitude dos deveres da corte, pela tolerância geral que dá a cultura e pelas especiais afinidades de espírito que criava a cultura clássica, não odiavam nunca as outras nações – porque as outras nações se resumiam para elas nas outras oligarquias com que se sentiam congéneres em todos os modos de viver, de pensar, de representar, de governar. As democracias, ao contrário, profundamente nacionais e nunca cosmopolitas, conservando com tradicional fidelidade os seus costumes próprios, e intolerantes para os costumes alheios – apenas se conhecem

(através das noções estreitas de uma instrução fragmentária) nas suas feições mais nacionalmente características e portanto mais irreconciliavelmente opostas: – e dessas diferenças que entre si pressentem ou constatam, lhes vem por instinto um mútuo afastamento e como uma antipatia etnográfica. O operário inglês, há cem anos, não conhecia sequer a existência do Russo. Hoje sabe, imperfeitamente, por leituras apressadas de jornais e de magazines populares, que o Russo é um homem que dele absolutamente difere no tipo, no traje, no idioma, nas maneiras, nas crenças... Daqui uma primeira repulsão: e como sabe além disso vagamente, pela imprensa, que esse homem, tão dessemelhantemente de si, vai marchando sobre a índia «para se apossar dos domínios da Rainha», enxerta sobre o seu antagonismo de raça a sua indignação de patriota, e chega a odiar o Russo, tão intensamente, que se não pode em Londres, num café-concerto ou num circo, desdobrar a bandeira da Rússia, sem que rompam das bancadas do povo apupos e clamores de cólera.

Por toda a parte assistimos assim ao desenvolvimento exaltado do indivíduo nacional. E, com o advento definitivo das democracias, haverá na Europa, não a universal fraternidade que os idealistas anunciam, mas talvez um vasto conflito de povos, que se detestam porque se não compreendem, e que, pondo o seu poder ao serviço do seu instinto, correrão uns contra os outros –como outrora, nas velhas demagogias gregas, os homens da Mégara se lançavam sobre os homens da Lacónia, e toda a Ática se eriçava de armas, por causa de um boi disputado no mercado de Fila ou de uma bulha de rufiões nos grandes pátios de Aspásia.