As Minas de Salomo

 

de Rider Haggard

 

 

(traduo de Ea de Queirs)

 

 

INTRODUO

 

 Agora que este livro est impresso, e em vsperas de correr o mundo largo, comea a pesar fortemente sobre mim a desconfiana de que, para ele ser aceitvel, muito lhe falta corno estilo e como histria.

Enquanto histria, realmente, no pretendi nem tentei meter nestas pginas tudo o que fizemos e tudo o que vimos na nossa viagem terra dos Cacuanas. H, todavia, nesse estranho povo, coisas que mereciam exame detalhado e lento: a sua fauna, a sua flora, os seus costumes, o seu dialecto (to aparentado com a lngua dos Zulus), o magnifico sistema da sua organizao militar, a sua arte subtil em trabalhar os metais... Que interessante estudo se faria, alm disso, com as lendas que ouvi e coleccionei acerca das armaduras de malha que nos salvaram na batalha de Lu! Que curiosa, tambm, a tradio que entre eles se tem perpetuado sobre os Silenciosos, os dois colossos que jazem entrada das cavernas de Salomo! No entanto pareceu-me (e assim pensaram o baro Curtis e o capito John) que seria mais eficaz contar a histria a direito, e secamente, deixando todas estas particularidades sobre a regio e sobre os homens para serem tratadas mais tarde, num tomo especial, com minudncia e largueza.

Resta-me, pois, implorar a benevolncia para a minha tosca maneira de escrever. Estou mais habituado a manejar a carabina do que a pena e sempre me foi alheia a fina arte dos arrebiques e floreios literrios. Talvez os livros necessitem esses floreios e ornatos: no sei nem possuo autoridade para o decidir; mas, na minha brbara ideia, as coisas simples so as mais impressionadoras e mais facilmente se deve acreditar e estimar o livro que venha escrito com sria e honesta singeleza. Lana aguda no precisa brilho, diz um provrbio dos Cacuanas; e, movido por este conselho da sabedoria negra, arrisco-me a apresentar a minha histria, nua, lisa, nas suas linhas verdadeiras, sem lhe pendurar por cima, para a tornar mais vistosa, os dourados gales da eloquncia.

 

ALO QUARTELMAR

 

 

I

ENCONTRO COM OS MEUS CAMARADAS

 

bem estranho que nesta minha idade, aos cinquenta e seis anos feitos, esteja eu aqui, de pena na mo, preparando-me a redigir uma histria!

Nunca imaginei que to prodigiosa ocorrncia se pudesse dar na minha vida vida que me parece bem cheia, e vida que me parece bem longa... Sem dvida, por a ter comeado to cedo! Com efeito, na idade em que os outros rapazes ainda soletram nos bancos da escola, j eu andava agenciando o meu po por esta velha colnia do Cabo. E por aqui fiquei desde ento, metido em negcios, em servios, em travessias, em guerras, em trabalhos e nessa dura profisso, que a minha, a caa ao elefante e ao marfim. Pois, com toda esta diligncia, s ultimamente, h oito meses, arredondei o meu saco. um bom saco! um saco grado, louvado Deus. Creio mesmo que um tremendo saco! E apesar disso, juro que para o sentir assim, redondo e soante entre as mos, no me arriscava a passar outra vez os transes deste terrvel ano que l vai. No! Nem tendo a certeza de chegar ao fim com a pele intacta e com o saco cheio. Mas eu no fundo sou um tmido, detesto violncias, e ando farto, refarto de aventuras!

Como dizia, pois, coisa estranhssima que assim me lance a escrever um livro. No est nada no meu feitio ser homem de prosa e de letras ainda que, como outro qualquer, aprecio as belezas da Santa Bblia e gozo com a Histria do Rei Artur e da Sua Tvola Redonda. No entanto, tenho razes, e razes considerveis, para tomar a pena com esta mo inbil que h quase cinquenta anos maneja a carabina. Em primeiro lugar, os meus companheiros, o baro Curtis e o digno capito da Armada Real, John Good (a quem chamo, por hbito, o capito John), pediram-me para relatar e publicar a nossa jornada ao reino dos Cacuanas. Em segundo lugar, estou aqui em Durban, estirado numa cadeira, inutilizado para umas semanas, com os meus achaques nas pernas. (Desde que aquele infernal leo me traou a coxa de lado a lado, fiquei sujeito a estas crises, todos os anos, ordinariamente pelos fins do Outono. Foi em fins de Outono que apanhei a trincadela. duro que depois de um homem matar, no decurso da sua honrada carreira, quarenta e cinco lees, seja justamente o ltimo, o quadragsimo sexto, que o file e use dele como de tabaco que se masca. duro! Quebra a rotina, a estimvel rotina e para mim, pessoa de ordem, qualquer surpresa me sabe pior do que fel.) Em terceiro lugar, alm de encher os meus cios, componho esta histria para meu filho Henrique, que est em Londres, interno no Hospital de S. Bartolomeu, estudando Medicina. uma maneira de lhe mandar uma longussima carta que o entretenha e que o prenda. Servio de doentes, numa enfermaria abafada e lbrega, deve pesar intoleravelmente.

Mesmo o retalhar cadveres termina por ser uma rotina, rica em monotonia e tdio e assim esta histria, onde tudo h menos tdio, vai, por uns dias, levar ao meu rapaz uma saudvel e alegre sensao de aventuras, de viagens, de fora e de vida livre. E enfim, como ltima razo, escrevo esta crnica, por ser, sem dvida, a mais extraordinria que conheo na realidade ou na fbula. Digo extraordinria mesmo para os leitores profissionais de romances apesar de nela no haver mulheres, alm da pobre Fulata. H Gagula, sim. Mas esse monstro tinha cem anos, pouca forma humana, e no sensibiliza. Em todas estas duzentas pginas, realmente, no passa uma saia. E todavia, assim escasso como nas graas do feminino, no creio que exista um caso mais raro e mais cativante.

A nica vez que tive de fazer publicamente uma narrao foi diante dos magistrados, no Natal, quando depus como testemunha sobre a morte dos nossos serviais Quiva e Venvogel. Por essa ocasio comecei assim, muito dignamente, com aprovao de todos, com louvores do peridico de Durban: Eu, Alo Quartelmar, residente em Durban, no Natal, gentleman, declaro e juro que... No me parece, porm, que seja esta a adequada maneira de principiar um livro. Alm disso, posso eu afirmar, em tipo de imprensa, que sou um gentleman? O que um gentleman? O que ser gentleman? Conheo aqui cafres nus que o so; e conheo cavalheiros chegados de Inglaterra, com grandiosas malas e anis de armas nos dedos, que o no so. Eu, pelo menos, nasci gentleman apesar de me ter volvido depois num pobre e simples caador de elefantes. Ora, se nessa carreira e nos acasos que ela me trouxe, permaneci sempre gentleman, no me compete a mim avaliar. Deus sabe que, com valente esforo, procurei conservar-me gentleman como nascera. Tenho morto, certo, muito homem; mas estas duas mos, bem haja a minha fortuna, esto puras de sangue intil. Matei para que me no matassem. O Senhor deu-nos as nossas vidas, como sagrados depsitos que lhe pertencem e que devemos defender. Guiei-me sempre por este princpio; e conto que o bom Deus, um dia, me dir l em cima: Fizeste bem, Quartelmar! Este mundo, meus amigos, spero de atravessar; e os destinos violentos impem-se por vezes com uma lgica inexorvel. Aqui estou eu, homem ordeiro, tmido, bonacheiro, que, constantemente, desde criana, me acho envolvido em carnificinas! Felizmente nunca roubei. Uma ocasio, e verdade, abalei com quatro vacas que pertenciam a um cafre. Mas o cafre tinha-me rapinado sordidamente e desde ento essas quatro vacas trago-as sempre na conscincia. S quatro vacas. Pois tm-me pesado mais que uma manada de gado!

Foi h dezoito meses, pouco mais ou menos, que encontrei os dois homens que deviam ser meus companheiros nesta aventura singular terra dos Cacuanas. Nesse Outono, eu andara numa grande batida aos elefantes, para l do distrito de Bamanguato. Tudo nessa expedio me correu mal, e por fim apanhei as febres. Mal me pude ter nas pernas, larguei para as minas de diamantes (as diamanteiras), vendi o marfim que trazia, passei o carro e o gado, debandei os caadores, e tomei a diligncia para o Cabo. Ao fim de uma semana, no Cabo, descobri que o hotel me roubava infamemente: alm disso, j vira todas as curiosidades, desde o novo Jardim Botnico que h-de certamente conferir grandes benefcios cidade, at ao novo Palcio do Parlamento que, tenho a certeza, no h-de conferir benefcios nenhuns; de sorte que decidi, voltar para o Natal pelo Dunkeld, pequeno vapor costeiro que estava nas docas espera do paquete de Inglaterra, o Edimburgh Castle. Tomei passagem, e fui para bordo. Nessa tarde chegou o Edimburgh Castle: os passageiros que trazia para o Natal transbordaram para o Dunkeld, e levantmos ferro ao pr-do-sol.

Entre os passageiros de Inglaterra que mudaram para o Dunkeld havia dois que me despertaram logo certo interesse. Um deles, um homenzarro de perto de trinta e cinco anos, tinha os ombros mais cheios e os braos mais musculosos que eu at a encontrara, mesmo em esttuas. Alm disso, cabelos ondeados e cor de ouro; barbas ondeadas e cor de ouro; feies aquilinas e de corte altivo; olhos pardos, cheios de firmeza e de honestidade. Varo esplndido que me fez pensar nos antigos dinamarqueses. Para dizer a verdade, dinamarqueses s conheci um, moderno, horrivelmente moderno, que me estafou dez libras; mas lembro-me de ter admirado um quadro, Os Antigos Dinamarqueses, em que havia homens assim, de grandes barbas amarelas e olhos claros, bebendo num bosque de carvalhos por grandes cornos que empinavam boca. Este cavalheiro (vim a saber depois) era um ingls, um fidalgo, um baronet. Chamava-se Curtis o baro Curtis. E o que me feriu mais foi ele parecer-se extremamente com algum que eu encontrara no interior, para alm de Bamanguato. Quem?... No me podia lembrar.

O sujeito que vinha com ele pertencia a um tipo absolutamente diferente, baixo, reforado, trigueiro, e todo rapado. Calculei logo pelas suas maneiras que tnhamos ali um oficial de marinha; e verifiquei depois, com efeito, que era um primeiro-tenente da Armada Real, reformado em capito-tenente, e por nome John Good. Este impressionou-me pelo apuro. Nunca conheci ningum mais escarolado, mais escanhoado, mais engomado, mais envernizado! Usava no olho direito um vidro, sem aro, sem cordel, e to fixo que parecia natural como a plpebra. Nem um s momento o surpreendi sem aquele vidro, e cheguei mesmo a pensar que dormia com ele cravado na rbita. S muito tarde descobri que noite o metia no bolso das calas no mesmo bolso em que guardava a dentadura postia, a mais bela, a mais perfeita dentadura que me recordo de ter contemplado, mesmo em anncios de dentistas. E o capito, destas, possua duas!

Apenas nos fizemos ao largo, comeou o mau tempo. Brisa forte, nvoa hmida e fria. Depois cada solavanco (o Dunkeld, barco de fundo chato, no levava carga) que no se podia arriscar uma passada confortvel na tolda. De sorte que me recolhi para junto da mquina, onde fazia um calorzinho sereno, e ali fiquei olhando para o pndulo, que marcava, com desvios largos, o ngulo de balano do Dunkeld.

 Pndulo errado rosnou de repente uma voz ao meu lado, na sombra da noite que caa.

Olhei. Era o oficial de marinha.

  Errado, hem?... Acha? perguntei.

  Acho o qu?... Se o vapor se inclinasse quanto marca o pndulo, no se tornava mais a levantar... Aqui est o que eu acho. Mas sempre assim, com estes capites de marinha mercante...

Felizmente, nesse instante, tocou a sineta do jantar, com imenso alvio meu porque se h, sob a cpula dos cus, uma coisa temerosa, a loquacidade de um oficial da marinha de guerra desabafando sobre a inpcia dos oficiais da marinha mercante. Pior do que essa coisa temerosa s a coisa inversa!

O capito John e eu descemos juntos para o salo. O baro Curtis j l estava, no topo da mesa, direita do comandante do Dunkeld. John acomodou-se ao lado do seu companheiro; eu defronte, onde havia dois talheres desocupados. Logo depois da sopa o comandante, com a lamentvel mania dos homens de mar, comeou a falar de caa. Primeiramente de caa mida, de condores e de abutres. Depois passou a elefantes.

Ah! comandante exclamou ao lado um patrcio meu, de Durban para elefantes temos presente uma grande autoridade... Se h homem em frica que entenda de elefantes, aqui o nosso companheiro e amigo Alo Quartelmar.

Por acaso, nesse momento, eu pousara os olhos no baro Curtis; e notei que o meu nome, assim pregoado com a minha profisso, lhe causara emoo e surpresa. John cravou tambm em mim o seu vidro, com uma curiosidade que faiscava. Por fim o baro inclinou-se, atravs da mesa, e numa voz grave e funda, bem prpria do robusto peito donde saa:

Peo perdo disse mas porventura ao sr. Alo Quartelmar que me estou agora dirigindo?

A ele prprio.

O homenzarro passou a mo pelas barbas, e distintamente, muito distintamente, o ouvi murmurar: Ainda bem!

No se passou mais nada at ao doce. Mas fiquei ruminando aquele espanto e aquele ainda bem.

Depois do caf, enchia o meu cachimbo para subir tolda, quando o baro, com os seus modos srios e lentos, se adiantou para mim, e me convidou a passar ao seu beliche, tomar um grogue, e conversar... Aceitei. O baro ocupava um camarote de tolda, o melhor do Dunkeld, espaoso, arejado, com um sof, espelhos, e duas largas cadeiras de verga. O capito John viera tambm. Todos trs nos sentmos, acendendo os cachimbos, enquanto o moo corria pelos grogues.

Houve primeiramente um silncio. Outro criado entrou, a acender o candeeiro. Por fim, apareceram os grogues.

O baro Curtis, ento, passou a mo pelas barbas, nesse jeito que lhe era costumado, e voltando-se bruscamente:

Diga-me uma coisa, sr. Quartelmar... Aqui h dois anos, por este tempo, esteve num stio chamado Bamanguato, ao norte do Transval. No verdade?

Perfeitamente respondi eu, pasmado de que aquele cavalheiro se achasse, no seu condado, em Inglaterra, to bem informado das jornadas que eu fazia no Sul de frica!

A negcio, hem? acudiu o capito John.

Sim, senhor, a negcio. Levei uma carregao de fazendas, acampei, fora da feitoria, e l fiquei at liquidar.

O baro conservou, durante um momento, pregados em mim os seus olhos cinzentos e largos. Pareceu-me que havia neles ansiedade e temor.

E diga-me, encontrou a, em Bamanguato, um homem chamado Neville?

Encontrei. Esteve acampado ao meu lado durante uns quinze dias, a descansar o gado antes de meter para o Norte. Aqui h meses recebi eu uma carta de um procurador, perguntando-me se sabia o que era feito desse sujeito... Respondi como pude...

Bem sei! atalhou o baro. Li a sua resposta. Dizia o sr. Quartelmar que esse sujeito Neville partira de Bamanguato, no princpio de Maio, num carro, com um servial e um caador cafre chamado Jim, tencionando puxar at Iniati, ltima estao na terra dos Matabeles, para de l seguir a p, depois de vender o carro. O sr. Quartelmar acrescentava que o carro decerto o vendera ele, porque seis meses depois vira-o em poder de um portugus. Esse portugus no se lembrava bem do nome do homem a quem o comprara. Sabia s que era um branco, e que se metera para o mato com um cafre...

verdade murmurei eu.

Houve outro silncio, que eu enchi com um sorvo ao grogue. Por fim o baro prosseguiu, com os olhos sempre cravados em mim, insistentes e ansiosos:

O sr. Quartelmar no sabe quais fossem as razes que levaram assim esse sujeito Neville para o Norte?... No sabe qual era o fim da jornada?

Ouvi alguma coisa a esse respeito murmurei.

E calei-me prudentemente, porque nos amos avizinhando de um ponto em que, por motivos antigos e graves, eu no desejava bulir.

O baro voltou-se para o seu companheiro, como para o consultar. O outro, por entre a fumaraa do cachimbo, baixou a cabea num sim mudo. Ento o meu homenzarro, decidido, abriu os braos, desabafou:

Sr. Quartelmar, vou-lhe fazer uma confidncia! Vou-lhe mesmo pedir o seu conselho, e talvez o seu auxlio... O agente que me remeteu a sua carta afianou-me que eu podia confiar absolutamente no Sr. Quartelmar, que um homem de bem, discreto como poucos, e respeitado como nenhum em toda a colnia do Natal.

Dei um sorvo tremendo ao conhaque, para esconder o meu embarao porque sou extremamente modesto.

Sr. Quartelmar concluiu o baro esse sujeito chamado Neville era meu irmo.

Ah! exclamei.

Com efeito! Agora, agora recordava eu bem com quem o baro se parecia! Era com esse Neville. Somente o outro tinha menos corpo, e a barba escura. Mas nos olhos havia a mesma franqueza, e havia a mesma deciso.

Era meu irmo continuou o baro. Meu irmo mais novo, e nico. At aqui h cinco anos, vivemos sempre juntos. Depois um dia, desgraadamente, tivemos uma questo, uma terrvel questo. E para lhe dizer a verdade toda, sr. Quartelmar, eu comportei-me para com meu irmo da maneira mais injusta! Foi sob o impulso do despeito, da clera, certo... Mas, em suma, comportei-me injustamente.

Cruelmente murmurou do lado o capito John, que fumava com os olhos cerrados.

Cruelmente, com efeito. Como o sr. Quartelmar sabe, em Inglaterra, quando um homem morre sem testamento e no tem seno bens de raiz, tudo passa para o filho mais velho. Ora sucedeu que meu pai morreu exactamente quando meu irmo Jorge e eu estvamos assim de mal. Herdei tudo; e meu irmo, que no tinha profisso, nem habilitaes, ficou sem real. O meu dever, est claro, era criar-lhe uma situao independente. o que todos os dias se faz em Inglaterra, nesses casos. Mas por esse tempo, a nossa questo estava em carne viva. Eu no lhe ofereci nada. Ele tambm, orgulhoso, sobretudo brioso, nada pediu. Assim ficmos, de longe, eu rico e ele pobre... Peo perdo de o fatigar com estes detalhes, sr. Quartelmar, mas preciso pr as coisas bem claras... No verdade, John?

Escrupulosamente claras! acudiu o outro. De resto, o nosso amigo Quartelmar guarda para si esta histria...

Pudera! exclamei.

Pois bem continuou o baro meu irmo possua de seu, nessa poca, umas duzentas libras. Um belo dia, agarra nesta misria, toma o nome de Neville, e abala para frica a tentar fortuna! Eu s o soube mais tarde, meses depois de ele ter embarcado.

Passaram trs anos. Notcias dele, nenhumas. Comecei a andar inquieto. Escrevi-lhe. Naturalmente as minhas cartas no lhe chegaram. E eu cada dia mais aflito! Para o sr. Quartelmar compreender tudo bem, deve saber que, desde pequeno, desde o bero, meu irmo foi a forte e grande afeio da minha vida. E, por outro lado, a nossa questo, assim amarga e spera por sermos ambos muito novos e muito exaltados, nasceu de qu? De uma mulher cujo nome j quase me esqueceu. E meu pobre irmo, coitado, se ainda vivo, no se lembrar mais do que eu. Ora aqui tem! E j por isto o sr. Quartelmar compreende...

Perfeitamente, perfeitamente...

Pois bem, descobrir meu irmo passou a ser a minha ideia constante, dia e noite. Mandei fazer aqui, no Cabo, toda a sorte de pesquisas. Um dos resultados, o mais importante, foi a sua carta, sr. Quartelmar. Importante porque me dava a certeza que, meses antes, meu irmo estava na frica, e vivo. Desde esse momento decidi vir eu mesmo, pessoalmente, continuar as pesquisas. Agentes, por mais dedicados, mais bem pagos, no tm o interesse de corao: com o corao justamente que eu conto, com a perspiccia, a inspirao especial que ele s vezes possui. De resto, sempre tencionei visitar as nossas colnias de frica... E aqui tem o sr. Quartelmar a minha histria. O mais extraordinrio, que o tivssemos encontrado logo, a si, a pessoa justamente que viu meu irmo vivo, a pessoa justamente a quem eu me ia dirigir apenas chegasse ao Natal. Quer que lhe diga? Acho bom agouro. Em todo o caso, aqui estou, pronto para tudo, com o meu velho amigo, o capito John, companheiro fiel de muitos anos, que teve a dedicao de me acompanhar.

O outro encolheu os ombros, sorrindo, com a sua esplndida dentadura.

No havia neste momento nada interessante a fazer na velha Europa!... Gasta, insipidssima, a velha Europa!

Depois, reenchendo o cachimbo, acrescentou muito srio:

E agora que o nosso amigo Quartelmar conhece os motivos que nos trazem frica, e o interesse que nos prende a esse homem chamado Neville, espero da sua lealdade que no ter dvida em nos dizer tudo o que sabe, ou tudo o que ouviu, a respeito dele. Hem?

Impressionado, respondi:

No tenho dvida, por ser questo de sentimento.

 

 

II

PRIMEIRA NOTCIA DAS MINAS DE SALOMO

 

Sacudi a cinza do cachimbo na palma da mo, e comecei, muito devagar, para tudo pr bem claro e exacto:

Aqui est o que ouvi a respeito desse cavalheiro Neville.. E isto, que me lembre, nunca, at ao dia de hoje, o disse a ningum. Ouvi que esse cavalheiro fora para o interior busca das minas de Salomo.

Os dois homens olharam para mim, com assombro:

As minas de Salomo!? Que minas?... Onde so?

Onde so, no sei. Sei apenas onde dizem que esto. Aqui h anos vi de longe os dois picos dos montes que, segundo corre, lhes servem de muralha. Mas entre mim e os montes, meus senhores, havia duzentas milhas de deserto. E esse deserto, meus senhores, nunca houve ningum (quero dizer, homem branco) que o atravessasse, a no ser um, noutras eras. Porque toda esta histria vem muito de trs, de h sculos! Eu no tenho dvida em a contar, mas com uma condio: que os cavalheiros no a ho-de transmitir sem minha autorizao. Tenho para isso razes, e fortes. Esto os cavalheiros de acordo?

Com certeza!

Narrei ento, longamente, tudo o que sabia, histria ou fbula, sobre as minas de Salomo. Foi h trinta anos que pela primeira vez ouvi falar destas minas a um caador de elefantes, um homem muito srio, muito indagador, que recolhera assim, nas suas jornadas atravs de frica, tradies e lendas singularmente curiosas. Tinha-me eu encontrado com ele na terra dos Matabeles, numa das minhas primeiras expedies ao interior, busca do elefante e do marfim. Chamava-se Evans. Era um dos melhores caadores de frica. Foi estupidamente morto por um bfalo, e est enterrado junto s quedas do Zambeze.

Pois uma noite, sentados fogueira, no mato, sucedeu mencionar eu a esse Evans umas construes extraordinrias com que casualmente dera, andando caa do koodoo por aquela. regio que forma hoje o distrito de Lidemburgo, no Transval. Essas obras foram depois encontradas, e aproveitadas at, pela gente que veio trabalhar as minas de ouro. Mas ningum (quero dizer, nenhum branco) as tinha visto antes de mim. Era uma estrada enorme, magnfica, cortada na rocha viva, levando a uma galeria sem fim, metida pela terra dentro, toda de tijolo, e com grandes pedregulhos de minrio de ouro empilhados entrada. Obra extraordinria! E a raa que a fizera desaparecera, sem deixar um nome, nem outro vestgio de si, alm daquela galeria, que revelava um grande saber, uma grande indstria e uma grande fora.

Curioso! murmurou Evans. Mas conheo melhor!

E contou-me ento que no interior, muito no interior, descobrira ele uma cidade antiqussima, toda em runas, que tinha a certeza de ser Ofir, a famosa Ofir da Bblia. Lembro-me bem a impresso e o assombro com que eu escutei a histria dessa cidade fencia perdida no serto de frica, com os seus restos de palcios, de piscinas, de templos, de colunas derrocadas!...

Mas depois Evans ficara calado, cismando. De repente diz:

Tu j ouviste falar das serras de Suliman, umas grandes serras que ficam para alm do territrio de Machuculumbe, a noroeste?

No, nunca ouvi.

Pois, meu rapaz, a que Salomo verdadeiramente tinha as suas minas, as suas minas de diamantes!

Como se sabe?

Como se sabe!? Tem graa! Sabe-se perfeitamente. O que Suliman seno uma corrupo de Salomo? O nome das serras, realmente, sempre foi serras de Salomo. Alm disso, uma feiticeira do distrito de Manica, uma velha de mais de cem anos, contou-me tudo... Isto , contou-me que para l das serras vive um povo que da raa dos Zulus, e fala um dialecto zulu: mas como fora, e corpulncia, e coragem, vale mais que os Zulus. Pois nesse povo h videntes, grandes feiticeiros, que de gerao em gerao tm trazido o segredo de uma mina prodigiosa, que foi de um rei branco, muito antigo, e que ainda hoje est cheia de pedras brancas que reluzem... De sorte que no h dvida nenhuma.

Para mim havia toda a dvida. As runas de Ofir interessavam-me, como da nossa crena e da Bblia: mas das minas de pedras brancas que reluzem, conhecidas em segredo por feiticeiros zulus, teria certamente rido se no fora o respeito devido a um caador to digno como Evans. De madrugada Evans partiu a acabar tristemente nas pontas de um bfalo. E no pensei mais em Salomo, nem nas suas minas de diamantes.

Aqui h vinte anos, porm, num encontro muito singular que tive no distrito de Manica, de novo ouvi falar das minas de Salomo, e de um modo que para sempre me devia impressionar. Era num stio chamado a aringa de Sitanda. No h pior em toda a frica. Fruta nenhuma, caa nenhuma, tudo seco, tudo triste e os pretos vendem os ossos de um frango por fazenda que vale uma vaca.

Apanhei l um ataque de febre, e estava fraqussimo, enfastiadssimo, quando me apareceu um dia um portugus de Loureno Marques, acompanhado por um servial mestio. Entre os portugueses de Loureno Marques h sofrvel e h pssimo. Mas este era dos melhores que eu vira um homem muito alto e muito magro, de belos olhos negros, os bigodes j grisalhos todos retorcidos, e umas maneiras graves que me fizeram pensar nos velhos fidalgos portugueses que aqui vieram h sculos e de que tanto se l nas histrias. Conversmos bastante nessa noite, porque ele falava um bocado de mau ingls, eu um bocado de mau portugus; e soube que se chamava Jos Silveira, e que possua uma fazenda ao p da cidade, em Loureno Marques.

Na manh seguinte, cedo, antes de partir com o mestio, acordou-me para se despedir, de chapu na mo, corts e grave como os antigos, os que tinham Dom.

At mais ver, camarada!

Boa viagem! At mais ver!

O homem conservava pregados em mim os grandes olhos negros, que rebrilhavam. Depois acrescentou muito srio:

Se nos tornarmos outra vez a encontrar, hei-de ser a pessoa mais rica deste mundo! E pode contar, camarada, que no me hei-de esquecer de si! Nem ri. Estava debilitado para rir. Fiquei estirado na manta, olhando para o estranho homem que, a grandes passadas, com a cabea alta e cheia de esperana, se metia pelo mato dentro.

Passou uma semana, e melhorei da febre. Uma tarde achava-me sentado no cho defronte da barraca, rilhando a ltima perna de um desses frangos que os pretos me vendiam por chita do valor de uma vaca, e pasmando para o enorme disco de Sol que descia ao fundo do deserto quando de repente avistei, escura sobre a vermelhido do poente, numa elevao do terreno, a figura de um homem que era certamente europeu porque trazia um casaco comprido. No mesmo momento em que eu dera com os olhos nele, o homem oscila, cai de bruos e comea a arrastar-se pelo cho, lentamente! Com um esforo desesperado, ainda se ergueu, e tentou pelo cmoro abaixo alguns passos que cambaleavam. Por fim tombou de novo, e ficou estirado, como morto, contra um tufo de tojo alto. Gritei a um dos meus caadores que acudisse. E quando ele voltou, amparando o homem nos braos quem hei-de eu ver? O Jos Silveira! Jos Silveira ou antes o seu miservel esqueleto, com todos os ossos rompendo para fora da pele, mais seca que pergaminho e amarela como gema de ovos. Os olhos saltavam-lhe da cara, maneira de dois bugalhos de sangue. E o cabelo, que eu lhe vira grisalho, vinha branco, todo branco como uma bela estriga de linho.

gua! gemeu ele. gua, pelas cinco chagas de Cristo!

O infeliz tinha os beios horrivelmente estalados, e entre eles a lngua pendia-lhe, toda inchada e toda negra! Dei-lhe gua com leite, de que bebeu talvez dois quartilhos, a grandes sorvos, e sem parar. Foi necessrio arrancar-lhe a vasilha. Depois caiu de costas, rompeu a delirar. Ora gemia, ora gritava. E era sempre sobre as serras de Suliman, os diamantes e o deserto!

Levei-o para dentro da tenda: e, com o pouco que tinha, fiz o pouco que podia. O homem estava perdido. Rente da meia-noite sossegou. Eu, esfalfado, adormeci. Acordei de madrugada; e, ao primeiro alvor da luz, dou com ele (forma sinistra!) de joelhos, porta da barraca, de olhos cravados para o longe, para o deserto! Nesse instante, um raio de sol que nascia frechou atravs do vasto descampado, e foi bater ao fundo, a cem milhas de ns, o pico mais alto das serras de Suliman. O homem soltou um grito, atirou desesperadamente para diante os dois braos de esqueleto:

L esto elas, Santo Deus, l esto elas!... E dizer que no pude l chegar! Parecem to perto! Logo ali, uns passos mais... E agora acabou-se, estou perdido, ningum mais pode l ir!

De repente, emudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, a face lvida e como esgazeada por uma ideia brusca.

camarada, onde est voc?... J o no distingo, vai-me a fugir a vista!

Estou aqui; sossegue, homem.

Tenho tempo para sossegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou a morrer. Voc tem sido bom comigo, camarada... E para que havia eu de levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos algum se aproveita! Talvez voc l possa chegar, se conseguir atravessar esse deserto que matou o meu pobre criado, que me est a matar a mim...

Comeou ento a procurar tremulamente dentro do peito da camisa. Tirou por fim uma espcie de bolsa de tabaco j velha, apertada com uma correia. Estava to fraco que as suas pobres mos nem puderam desfazer o n. Fez-me um gesto, um gesto exausto, para que eu o desatasse. Dentro havia um farrapo de linho amarelado, com linhas escritas, num tom antiqussimo, de cor de ferrugem. E dentro do farrapo estava um papel dobrado.

O papel murmurou ele numa voz que se extinguia a cpia do que est escrito no trapo. Levou-me anos a decifrar, a entender... Foi um antepassado meu, um dos primeiros portugueses que vieram a Loureno Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acol naquelas serras. Chamava-se D. Jos da Silveira, e j l vo trezentos anos... Um escravo que ia com ele, e que ficara a esperar, do lado de c do monte, vendo que o amo no voltava, procurou-o, foi dar com ele morto, e trouxe para Loureno Marques o bocado de linho que tinha letras. Desde ento ficou guardado na nossa famlia. H trezentos anos! E ningum pensou em o decifrar at que eu me meti nisso... Custou-me a vida. Mas talvez outro consiga. Talvez outro chegue l, s malditas serras! Ser ento o homem mais rico deste mundo! O mais rico, o mais rico! Tente voc, camarada... No d o papel a ningum! V voc!

As ltimas palavras saram como um dbil sopro. Caiu de costas, recomeou a delirar. Da a uma hora tudo acabou. Deus tenha a sua alma em descanso! Morreu serenamente, sem esforo e sem dor. Por minhas mos o enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos por cima do peito. Ao menos assim no daro com ele os chacais.

Foi ao p da cova onde o desgraado jazia que examinei o documento. Era, como disse, um farrapo de linho, rasgado de uma fralda de camisa e do tamanho de um palmo. No topo tinha os traos de um mapa, ou de um roteiro, rapidamente e toscamente lanados.

Era pouco mais ou menos isto:

Por baixo vinham linhas escritas, numa letra muito antiga e cor de ferrugem. Para mim eram ininteligveis. Mas o papel continha a decifrao, e dizia assim:

 

Estou morrendo de fome, numa cova da banda norte de um destes montes a que dei o nome de Seios de Sab, no que fica mais a sul. Sou D. Jos da Silveira, e escrevo isto no ano de 1590, com um pedao de osso, num farrapo da camisa, tendo por tinta o meu sangue. Se o meu escravo aqui voltar, reparar neste escrito, e o levar para Loureno Marques, que o meu amigo (aqui um nome ilegvel) logo pela primeira nau que passar para o reino mande estas coisas ao conhecimento de el-rei, para que Ele remeta uma armada a Loureno Marques, com um troo de gente, que se conseguir atravessar o deserto, vencer os Cacuanas, que so valentes, e desfazer os seus feitios (devem vir muitos missionrios) tornaro Sua Alteza o mais rico Rei da Cristandade. Com meus prprios olhos vi os diamantes sem conta amontoados num subterrneo que era o depsito dos tesouros de Salomo, e que fica por trs de uma figura da Morte. Mas por traio de Gagula, a feiticeira dos Cacuanas, nada pude trazer, apenas a vida!

Quem vier, siga o mapa que tracei, e trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sab, o esquerdo, at chegar ao cimo, donde ver logo, para o lado norte, a grande calada feita por Salomo. Da siga sempre, e em trs dias de marcha encontrar a aringa do rei. Quem quer que venha que mate Gagula. Rezem pelo descanso da minha alma. Que El-Rei Nosso Senhor seja logo avisado. Adeus a todos nesta vida!

 

Tal era o extraordinrio documento que textualmente li ao baro Curtis e ao capito, porque trazia sempre comigo (e ainda trago) uma traduo dele, em ingls, na carteira.

Quando acabei, os dois amigos olhavam para mim, mudos de espanto. Por fim o capito, com o leve suspiro de quem repousa de uma prolongada emoo, bebeu um trago de grogue e mais sereno:

O nosso amigo, o sr. Quartelmar, no nos tem estado a intrujar?

Meti com fora o papel na algibeira, e, erguendo-me, repliquei secamente:

Se os cavalheiros assim pensam, no me resta mais nada seno desejar-lhes muito boas noites!

O baro acudiu, pousando-me no ombro a sua larga mo:

Pelo amor de Deus, sr. Quartelmar! Nem John, nem eu duvidamos da sua veracidade. Mas, enfim, tenho ouvido dizer que aqui na colnia coisa corrente e bem aceita troar um pouco os que chegam, os novatos de frica... E depois essa histria to extraordinria!

Insisti, ainda ofendido:

O original escrito pelo velho fidalgo no farrapo de camisa, tenho-o em Durban! Ser a primeira coisa que lhes hei-de mostrar em chegando!... No h uma palavra... O baro atalhou, gravemente:

Toda a palavra do sr. Quartelmar coisa sria, e como tal a tomamos.

Durante um momento ficmos calados. Eu serenei. Por fim o baro, que dera  sobre o tapete do beliche alguns passos pensativos, parou diante de mim:

E meu irmo? Como soube o sr. Quartelmar que meu irmo tentou tambm essa jornada s minas?

Narrei ento o que me sucedera com esse sujeito Neville, quando estvamos acampando, lado a lado, em Bamanguato. Eu no o conhecia; nem ento comemos relaes, apesar de termos o gado junto. Mas conhecia perfeitamente o servial que o acompanhava, um chamado Jim. Era um bexuana, excelente caador e, para bexuana, esperto, consideravelmente esperto! Na manh em que Neville devia meter-se para o serto, vi Jim, ao p do meu carro, cortando folhas de tabaco.

Para onde essa jornada, Jim? perguntei eu, sem curiosidade, s para mostrar interesse ao rapaz. Ides a elefantes?

Jim mostrou os dentes todos, num riso vivo:

No, patro. Vamos a coisa melhor que marfim.

Melhor que marfim!? Ouro?

Melhor que ouro! murmurou ele, arreganhando mais a dentua.

Calei-me, porque no convinha minha dignidade de patro e de branco revelar curiosidade diante de um bexuana. Confesso, porm, que fiquei intrigado. Da a pouco Jim acabou de cortar o tabaco. Mas por ali se quedou, rondando, coando devagar os cotovelos, espera, com os olhos em mim. No dei ateno.

patro! murmurou ele, numa nsia de desabafar.

Permaneci indiferente, por dignidade. Ele tornou:

patro!

Que , homem?

Vamos procura de diamantes, patro! atirou-me ele ao ouvido.

Diamantes!? Boa! Ento ides para o lado oposto. Deveis meter direito ao Sul, para as diamanteiras.

O bexuana baixou mais a voz:

patro! J ouviu falar das serras de Suliman? Pois l que esto os diamantes. O patro nunca ouviu?

Tenho ouvido muita tolice na minha vida, Jim.

No tolice, patro. Eu conheci uma mulher que veio de l, com um filho, e que vivia no Natal. Morreu h anos, o filho por l anda. E foi ela que me disse tudo. H l diamantes!

Olha, Jim, o que te digo que teu amo vai dar de comer aos abutres, que andam por l esfomeados. E tu, essa pouca carne que tens nos ossos, tambm vai daqui direitinha aos abutres.

O homem teve outro riso fino:

A gente tem de morrer, e eu no desgosto de experimentar terras novas. O elefante por aqui j no rende. O bexuana c vai para os diamantes, e o bexuana vai cantando!

Pois quando a morte te agarrar pelas goelas, veremos ento se ainda canta o bexuana!

Jim abalou. Da a meia hora o carro do sr. Neville ps-se em marcha para o Norte. Mas no rodara ainda dez jardas, quando Jim voltou para trs, a correr.

Adeus, patro! exclamou. No me quis ir de todo sem lhe dizer adeus, porque me parece que o patro tem razo e que nunca mais c voltamos!

Ouve c, Jim, teu amo vai com efeito s serras de Suliman, ou tudo isso patranha?

O bexuana jurou que no contava patranhas. O amo ia realmente em demanda das serras e das minas que estavam para alm. Ainda na vspera o amo dissera que, para tentar fortuna na frica, tanto montava ir em cata de diamantes, como de ouro ou de ferro. Tudo dependia da sorte, porque no torro tudo havia. Assim ele ia aos diamantes, que era o mais rpido para enriquecer ou para morrer.

Reflecti um momento.

Escuta, Jim. Vou escrever umas palavras a teu amo. Mas hs-de prometer que no lhas entregas seno em chegando a Iniati!

Iniati ficava da a umas quarenta lguas. O bexuana prometeu.

Rasguei um bocado de papel da carteira, escrevi a lpis estas linhas: Quem vier.., trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sab, o esquerdo, at chegar ao cimo, donde ver logo, para o lado norte, a grande calada feita por Salomo.

Bem! Ora agora, Jim, quando deres este papel a teu amo, diz-lhe que lho manda quem sabe, e que siga bem a indicao! Mas ouviste? S lho ds quando chegares a Iniati; que eu no quero que ele me volte para trs e me venha fazer perguntas! Entendeste? Ento abala, madrao, que o carro come caminho!

Jim agarrou o bilhete e largou a correr. Da a pouco o carro sumiu-se por trs das colinas. E isto, em verdade, era tudo o que eu sabia a respeito desse sujeito Neville. Mal eu acabara, o baro, sem hesitar, e com perfeita simplicidade, disse:

Sr. Quartelmar, vim frica procurar meu irmo. Desde que algum o viu pondo-se em marcha para as serras de Suliman, o que devo a mim mesmo marchar tambm para esse lado. Pode ser que o encontre; ou que venha a saber que morreu; ou que volte sem nada saber, na antiga incerteza; ou que no volte, como o velho fidalgo. Em todo o caso o meu dever, desde que me impus esta tarefa, tomar o caminho que meu irmo tomou. E agora pergunto eu: quer o sr. Quartelmar vir comigo?

Tambm no hesitei. Foi logo, de golpe:

Muitssimo obrigado, senhor baro! Se tentssemos atravessar as cordilheiras de Suliman, ficvamos l como os dois Silveiras. Eis a minha cndida convico. Ora h em Londres um pobre rapaz que anda nos seus estudos, que meu filho, e que me no tem seno a mim neste mundo. E por ele, se no j por mim, no me convm por ora morrer. Em todo o caso agradeo a sua lembrana. de amigo!

O baro voltou-se para o seu companheiro, com um ar profundamente desconsolado, e que quase comovia naquele homem to robusto e to nobre. O outro murmurou: ǃ pena, grande pena!

Sr. Quartelmar! exclamou ento o baro. Quando me meto numa empresa, tudo sacrifico para a levar a cabo. Eu tenho fortuna, uma grande fortuna, e necessito do seu auxlio. O sr. Quartelmar pode, portanto, pedir-me o que quiser pelos seus servios, j no digo dentro do razovel, mas dentro do possvel. Alm disso, apenas chegarmos a Durban, vamos a um tabelio, e eu obrigo-me, por uma escritura, a continuar a educao de seu filho, no caso de lhe acontecer a si um desastre, ou a deixar-lhe uma independncia, no caso de eu estourar tambm. V que estou pronto a tudo. Ainda mais. Se, por acaso, descobrssemos os diamantes, metade deles ficariam pertencendo ao sr. Quartelmar, outra metade ao capito John. verdade que nenhum de ns acredita nos diamantes, e, portanto, esta vantagem conta como zero. Mas podemos aplicar a mesma regra a ouro ou marfim, qualquer fazenda que encontrarmos. Finalmente, escuso de dizer que todas as despesas da expedio correm por minha conta. Creio que no posso fazer mais.

Eu olhava para ele, deslumbrado:

Baro, essa proposta a mais generosa que tenho recebido na minha vida! Mas tambm, que diabo, a empresa seria a mais arriscada em que me tenho metido... Preciso pensar. E antes de chegar a Durban eu lhe darei a resposta. Por hoje, ficamos aqui.

Ficamos aqui por hoje! acudiu o capito, erguendo-se e respirando com alvio.

Com efeito, era tarde. Dei as boas-noites aos dois cavalheiros; e no meu beliche, at de madrugada, sonhei com o antigo D. Jos da Silveira, com el-rei Salomo, e com montes de pedras que reluziam no fundo de uma caverna.

 

 

III

O HOMEM CHAMADO UMBOPA

 

Durante o resto da jornada, pensei constantemente na proposta do baro. Mas nem eu nem ele voltmos a falar de Neville, ou da travessia para as minas. Na tolda e no beliche as nossas conversas rolavam todas sobre caa, sobre aventuras de caa na frica. Os dois, homens de grande sport, no se fartavam de escutar. E eu, velho palrador, cheio de memrias e j anedtico, no me fartava de contar.

Finalmente, numa esplndida tarde de Janeiro (que aqui o ms mais quente do ano) avistmos a costa de Natal com a esperana de dobrar a ponta de Durban ao sol-posto.

Toda esta costa adorvel, com as suas longas dunas avermelhadas, os ricos tapetes de verdura clara, as alegres aringas dos cafres espalhadas aqui e alm, e a orla espumosa e alva do mar que rebenta nas rochas. Mas, justamente perto de Durban, a regio toma uma incomparvel riqueza de tons. Nas ravinas, cavadas pelas enxurradas de sculos, fascam riachos inumerveis; o verde do mato mais intenso; os outros verdes de jardins entremeiam-se com as plantaes de acar; e a espaos uma casa muito branca, sorrindo para a azul placidez do mar, pe uma linda nota, humana e domstica; na vastido da paisagem.

Como disse, contvamos dobrar antes do sol-posto a ponta de Durban. Mas quando deitmos ncora j era crepsculo cerrado, tarde de mais para entrar a barra. Tnhamos ainda essa noite a bordo; e descemos ao salo, para um jantar quieto em guas serenas, depois de ver o salva-vidas remar para terra com as malas do correio. Quando voltmos tolda, a Lua ia alta, e to brilhante sobre mar e praia, que quase ofuscava os lampejos largos do farol. De terra vinham, atravs do ar calmo, aqueles picantes e doces aromas de especiarias, que, no sei porqu, me fazem sempre lembrar hinos de igreja e missionrios. O bairro de Berea parecia em festa, com todas as varandas alumiadas. Num grande brigue, ancorado ao lado, os marinheiros estavam cantando, ao som do banjo. Era uma noite de encanto como s as h neste abenoado Sul de frica, que lanava sobre a alma uma infinita paz, infinita e suave como a luz que derramava a Lua cheia. At o bull-dog de um passageiro irlands, que no cessara de rosnar ferozmente durante toda a jornada, cedera enfim s pacificadoras influncias do Sul, e dormia, estirado no convs, com um ar de trguas e de perdo aos homens. O baro, o capito John e eu estvamos sentados junto roda do leme, olhando e fumando em silncio.

Ento, sr. Quartelmar? exclamou de repente o baro, sorrindo. Aqui estamos em Durban... Pensou nas nossas propostas?

Vamos ou no vamos de companhia busca do sr. Neville? ecoou do lado o amigo John.

No tugi. Mas ergui-me, e fui, devagar, sacudir para fora da amurada a cinza do meu cachimbo. A verdade que, depois de muito matutar, eu ainda no tomara uma resoluo ou antes, a minha resoluo permanecia vaga, informe, mal assente, necessitando um pequeno impulso exterior que a definisse e a fixasse. E foi justamente aquela exclamao risonha dos dois, o movimento de me erguer e de me abeirar da amurada, que tudo fixou e definiu no meu nimo. Ainda a cinza no cara na gua e j eu estava resolvido a partir.

Pensei e vou! declarei, voltando a sentar-me. E se os cavalheiros me do licena, direi as razes por qu, e as condies com que. Expus logo as condies, muito claramente:

O baro, em primeiro lugar, corria com todas as despesas; e qualquer achado de valor, diamantes, ouro ou marfim, feito durante a expedio, seria irmmente dividido entre mim e o capito John. Em segundo lugar, o baro pagar-me-ia em dinheiro de contado, antes de partirmos, quinhentas libras, comprometendo-me, eu a acompanh-lo e fielmente servi-lo at que a jornada terminasse ou por um triunfo, ou por um desastre, ou simplesmente por se reconhecer a sua inutilidade. Em terceiro lugar, o baro obrigar-se- ia, por uma escritura, a dar anualmente a meu filho, enquanto durassem os seus estudos, uma penso de duzentas libras, no caso de eu morrer ou ficar inutilizado... Ainda eu no findara, j o baro aceitara tudo, largamente, alegremente!

O que eu quero, seja por que preo for dizia ele a sua companhia, sr. Quartelmar, o socorro da sua experincia!

Muito bem. Pois agora, depois de dizer as condies em que vou, quero dizer as razes por que vou. porque se ns tentarmos atravessar as serras de Suliman, no voltamos de l vivos! O que sucedeu ao velho Silveira, ao que tinha Dom, h trezentos anos; o que sucedeu ao outro, ao que no tinha Dom, aqui h vinte; o que sucedeu naturalmente ao sr. Neville, o que nos vai acontecer a ns! No samos de l vivos. Olhei atentamente para os dois homens. O amigo John arrepiou um bocado a face. O baro ficou impassvel, murmurando apenas:

Corremos-lhe o risco!

Eu prossegui:

Agora diro os cavalheiros. Se julgas que no saias de l vivo, para que vais l? Em primeiro lugar, porque sou fatalista. Se Deus j decidiu que eu hei-de morrer nas montanhas de Suliman, nas montanhas de Suliman hei-de morrer ainda que l no v. E se Deus decidiu j o contrrio, posso l ir impunemente e de cara alegre. Isto claro. Em segundo lugar, estou velho, e j vivi trs vezes mais do que costuma viver na frica um caador de elefantes. De sorte que, continuando nesta carreira, e, desgraadamente, no tenho outra, que posso eu durar ainda? Uns anos. Ora se morresse agora, com as dvidas que me pesam em cima, o meu pobre rapaz ficava numa situao m, coitado dele! Enquanto que assim, com quinhentas libras sonantes, saldo as dvidas; e se estourar, o meu rapaz tem diante de si duzentas libras por ano para acabar o curso e para se estabelecer. Ora aqui tm os cavalheiros a coisa em duas palavras. O baro ergueu-se, excelente homem!, e apertou-me as mos com efuso.

Essas razes, a ltima sobretudo, fazem-lhe imensa honra! Enquanto a sairmos vivos ou no da aventura, o tempo dir. Eu, por mim, estou decidido a ir at ao cabo, seja qual for, triunfo ou morte! Em todo o caso, se temos assim de morrer to cedo, no me parecia mau que antes disso, pelo caminho, arranjssemos uma batida aos elefantes. Sempre desejei caar o elefante, e com a perspectiva de deixar assim os ossos nas serras de Suliman, prudente que me apresse... No verdade, John?

Com certeza!... De resto, todos ns vimos j muitas vezes a morte diante dos olhos. um detalhe; para que se h-de insistir nele? Viemos frica com um certo fim. H perigos? Acabou-se. Deus grande.

Est tudo, portanto, decidido conclu eu e parece-me que chegou a ocasio de um grogue.

Fomos ao grogue.

No dia seguinte desembarcmos. Alojei os meus amigos numa barraca que possuo na Berea, e a que chamo, em dias de orgulho, a minha casa. construda de tijolo, com um telhado de zinco que abriga trs quartos e uma cozinha. Em redor, porm, est plantado um bom jardim, com esplndidas rvores e flores, que um dos meus caadores, chamado Jack, traz lindamente tratadas. um pobre homem a quem um bfalo esmigalhou a perna na terra dos Sicucunes. J no pode seguir a caa; mas, na sua qualidade de Griqua, jardina bem coisa que um zulu nunca faria decentemente. O zulu tem horror s artes da paz.

O baro e o seu amigo dormiram numa tenda que lhes armei no jardim (dentro de casa no havia espao) no meio do laranjal. Aqui, em Durban, as laranjeiras tm ao mesmo tempo a flor e o fruto; de sorte que, com o perfume todo em torno, e o brilho das laranjas cor de ouro, e o murmrio de guas correntes, o stio era aprazvel e grato. H pior na Europa.

Logo no dia seguinte, sem mais tardana, comemos os preparativos. Antes de tudo fomos ao tabelio lavrar a escritura, em que o baro se obrigava a pensionar o meu rapaz; houve dificuldade, por jazerem em Inglaterra as propriedades do baro; mas arranjou-se uma tangente, e segura, graas s artes de um advogado que pelos seus servios apresentou a conta infame de vinte libras! Depois recebi o meu cheque de quinhentas libras. Satisfeita assim a prudncia, passmos a comprar o carro e as juntas de bois. Descobrimos um carro excelente, com eixo de ferro, slido e leve, que j fizera uma excurso a Loureno Marques o que garantia a firmeza e resistncia das madeiras. Era um carro dos que chamamos de meia-tenda isto , toldado somente at ao meio, e aberto em frente para as bagagens. Sob o toldo tinha almofades onde podiam dormir bem duas pessoas; alm disso, suspenses para as espingardas e bolsas de guardar roupa. Custou-nos cento e vinte e cinco libras, e saiu barato. As juntas de bois eram dez, magnficas. Ordinariamente para uma jornada atrelam-se oito juntas; mas para uma aventura destas, vinte bois no vo de mais. Todos eram de raa zulu, a mais pequena de frica, mas a melhor; e todos eles salgados. Chamamos aqui salgados aos bois j muito jornadeados pelo Sul de frica, e prova, portanto, da LJgua vermelha que destri s vezes todas as juntas de um carro. Alm disso, todos tinham sido vacinados contra a maleita de pulmes, forma horrvel de pneumonia, que nestas terras um flagelo para o gado.

Em seguida organizmos provises e remdios. Este detalhe demandava cincia e cuidado, porque convinha, numa empresa to acidentada, que nem faltasse o necessrio, nem o carro partisse abarrotado e carregado em demasia. Para os remdios foi-nos de grande utilidade o capito John, que em tempos estudara para mdico da Armada e que (alm de possuir, muito a propsito para ns, um estojo de cirurgia e uma farmcia de viagem) conservara conhecimentos genricos e uma tolervel prtica. Durante a nossa estada em Durban cortou ele o dedo polegar a um cafre com uma maestria que fazia apetite ver! O que o perturbou foi o cafre (que observava a operao em perfeita impassibilidade) pedir-lhe depois para lhe pr outro dedo novo.

Restava, enfim, a importante questo de criados e armas. Armas tnhamos por onde as escolher entre as que eu possua e a coleco esplndida que o baro trouxera de Inglaterra. Sete espingardas de dois canos para diferentes caas, trs carabinas Winchester, trs revlveres Colt assim ficou constitudo o nosso armamento.

Enquanto a criados, depois de muita consulta e reflexo, decidimos limitar o nmero a cinco um guia, um boieiro e trs serviais. Boieiro e guia achmos ns facilmente em dois zulus, que se chamavam um Goza e outro Tom. Mas os serviais eram de mais difcil e delicada escolha. Da pacincia, da fidelidade, da coragem dos serviais poderiam muitas vezes depender as nossas pobres vidas nesta aventura sem igual.

Finalmente, arranjei dois, um hotentote, chamado Venvogel, e um rapazito zulu, de nome Quiva, que tinha o mrito (considervel para os meus companheiros) de falar ingls com fluncia. O hotentote j eu conhecia. Era um dos melhores farejadores de caa de toda a frica. Ningum mais rijo nem mais resistente. O seu defeito srio consistia na bebida. Mas como amos para regio onde no h LJguas-ardentes, nem quase guas correntes, pouco importava esta fragilidade do digno Venvogel. Tnhamos, pois, dois serviais. O terceiro parecia impossvel descortinar. Tentei, tentei at que resolvemos partir sem ele, esperando encontrar, antes de metermos para o deserto, algum homem aproveitvel entre Iniati e Zucanga. Na vspera, porm, da nossa partida estvamos jantando, quando Quiva, o rapaz zulu, veio anunciar que um homem se viera sentar no meu portal, minha espera. Mandei entrar. Apareceu um rapago muito esbelto, robusto, magnfico, aparentando trinta anos, e claro de mais para zulu. Floreou no ar o cajado maneira de saudao, encruzou-se sobre o soalho, a um canto, e ficou calado com singular dignidade. No lhe dei logo ateno. Assim se deve proceder com os zulus. Se o branco lhes fala com prontido e agrado, o Zulu conclui imediatamente que est tratando com pessoa de pouco comando. Observei, no entanto, que este homem era um queslha, um homem-de-anel isto , que trazia na cabea aquela espcie de rodilha, feita de goma, e toda lustrosa de sebo, que eles entremeiam na grenha e usam quando chegam a uma idade de respeito ou atingem nas suas aringas uma posio superior. Tambm me pareceu reconhecer aquela cara realmente bela.

Bem disse por fim como te chamas?

Umbopa respondeu o homem numa voz lenta e grave.

Estou a pensar que j te vi algures.

J, Macumazan!

Macumazan o meu nome cafre e significa aquele que se levanta pelo meio da noite para vigiar; ou antes, aquele que conserva sempre os olhos bem abertos.

Macumazan continuou o zulu viu-me em Izand-Luana, na vspera da batalha...

Lembrei-me ento completamente. Eu fui um dos guias de Lord Chelmsford, na desgraada guerra com os Zulus. Por acaso, na vspera da batalha de Izand-Luana, que consumou o desastre das tropas inglesas, fui mandando levar para fora do acampamento uns poucos de carres de bagagens. Quando se estava atrelando o gado, este homem (que comandava um troo de cafres, dos indgenas auxiliares) veio para mim, dizendo que o acampamento no estava seguro, que era certa uma surpresa, e que o vento trazia cheiro de inimigo. Respondi-lhe que dobrasse a lngua, e deixasse a segurana do acampamento a melhores cabeas que a dele. Pois grande razo tinha o zulu! Logo nessa noite o acampamento foi terrivelmente assaltado... Tudo isso, porm, vem na Histria.

Que queres tu? perguntei. Lembro-me perfeitamente de ti. Diz o que queres.

Quero isto. Correu aqui voz que Macumazan vai para o Norte, numa grande expedio, com os chefes brancos que vieram de alm do mar. verdadeira a voz?

Verdadeira.

Correu aqui tambm voz que Macumazan e os chefes iam para o lado do rio Lucanga, que fica a um bom quarto de lua de jornada do distrito de Manica. verdade? Franzi o sobrolho, descontente de ver assim to conhecido o roteiro da nossa expedio.

Para que queres tu saber? Que tens com isso?

Tenho isto, brancos! Que se ides assim para to longe, eu quereria ir convosco.

Havia uma altivez nas maneiras deste homem, e especialmente no seu emprego da expresso Ǘ brancos e em lugar de Ǘ incosis (chefes), que me surpreendeu grandemente.

Ests esquecendo a quem falas! repliquei. As palavras saem-te demasiadas e imprudentes. Como o teu nome? Onde a tua aringa? necessrio saber quem temos diante de ns!

O meu nome Umbopa. Sou da raa dos Zulus, mas no sou zulu. O stio da minha tribo muito longe, para o norte; os meus ficaram l quando os Zulus desceram para aqui, h muito, h mais de mil anos, antes de Chaca ser rei. No tenho aringa. Muitos anos vo que ando errante. Quando vim do Norte era criana. Depois fui dos homens de Cetevaio no regimento de Nomabacosi. Por fim fugi dos Zulus e vim para o Natal para ver as artes dos brancos. Foi ento que servi na guerra contra Cetevaio, e que te encontrei, Macumazan! Agora tenho trabalhado no Natal. Mas estou farto, quero ir para o Norte. O meu lugar no aqui. No peo soldada, mas sou valente, e valho bem o po que comer. Eis as palavras que tinha a dizer.

Este homem e a sua grande maneira de falar intrigavam-me singularmente. Era certo para mim que s dissera a verdade; mas na cor, nos modos, diferia muito do zulu ordinrio; e a sua oferta de vir connosco sem soldada, extraordinria num africano, enchia-me de desconfiana.

Na dvida, traduzi as estranhas falas aos meus amigos, solicitei-lhes conselho. O baro pediu-me que mandasse pr o homem de p. Umbopa ergueu-se, deixando escorregar ao mesmo tempo o vasto casaco militar que o envolvia, e ficou diante de ns, mudo, erecto, soberbo, todo nu, com um simples pedao de pano em torno dos rins e um fio de garras de leo enrolado ao pescoo. Era, realmente, um esplndido homem! Tinha mais de dois metros de altura, e largo em proporo, gil, admirvel de formas. Na luz da sala em que estvamos, a pele parecia apenas muito trigueira, como a de um rabe. Aqui e alm, pelo corpo, conservava cicatrizes terrveis de antigos golpes de azagaia. O baro foi direito a ele, e cravou-lhe os olhos nos olhos, que se no baixaram, e que rebrilharam.

Gosto de ti, Umbopa disse em ingls e tomo-te ao meu servio.

Umbopa evidentemente compreendeu, porque murmurou em zulu:

Est bem.

Depois, atirando um olhar para a grande estatura e fora do branco, acrescentou:

Somos dois homens, tu e eu!

 

 

IV

OS ELEFANTES

 

Samos de Durban no fim de Janeiro, e andadas quase as trezentas lguas que vo daqui ao stio em que se juntam os rios Lucanga e Caluque, chegmos, pelos meados de Maio, a Iniati, no longe da aringa de Sitanda, onde acampmos. Durante a jornada tivemos aventuras vrias, mas daquelas que so usuais em todas as travessias de frica e j muito contadas nos livros. Em Iniati, ltima estao mercante da terra dos Matabeles, onde Lobengula (esse atroz velhaco!) rei, separmo-nos, com fundas saudades, do nosso confortvel carro. Dos vinte bois que trouxramos de Durban, s doze restavam. Um morrera da mordedura da cobra, trs da falta de gua; um perdeu-se; os outros trs comeram uma erva venenosa, chamada tlipa. Os restantes deixmo-los com o vago ao cuidado de Goza e de Tom (o boieiro e o guia), pedindo a um digno missionrio escocs que habita aquele desterro que caridosamente nos vigiasse o carro, o gado e os homens. E no dia seguinte, acompanhados por Umbopa, Quiva, Venvogel e meia dzia de carregadores que arranjmos em Iniati, largmos para o deserto, a p, em seguimento da nossa temerria aventura.

Era de madrugada: e lembrei-me que no momento de nos pormos em marcha estvamos todos trs bem comovidos! Cada um perguntava a si mesmo, decerto, se jamais tornaria a ver o carro, os bois e o missionrio. Eu, por mim, levava a certeza que no. Os primeiros passos foram lentos, dados em grave silncio. Mas, de repente, Umbopa, que marchava na frente, rompeu num grande canto

uma cano zulu, dizendo de uns homens que, cansados da vida e da monotonia das coisas, se tinham metido ao deserto, para achar ocupao ou morrer, e que, para alm dos sertes, subitamente, encontravam um paraso cheio de raparigas moas, de gado, de caa, de inimigos para matar! Esta cano pareceu-nos de boa promessa. A quinze dias de marcha de Iniati comemos a atravessar uma regio arborizada e farta em guas. As colinas estavam espessamente cobertas de mato que os indgenas chamam idaro e por toda a parte se estendiam bosques de machabeles, rvores que do um fruto amarelo, enorme, quase todo caroo, mas deliciosamente fresco e doce. As folhas e frutos destas rvores so o alimento querido dos elefantes; e decerto os imensos animais andavam perto, porque a cada passo topvamos arbustos quebrados e desarraigados. O elefante por onde vai comendo, vai assolando.

Uma tarde, depois de uma caminhada fatigante, chegmos a um stio particularmente pitoresco e de amvel repouso. Era junto de um outeiro todo vestido de arvoredo. Ao p serpeava o leito seco de um rio, conservando aqui e alm poas de gua cristalina e fria, espezinhadas em redor pelas largas pegadas de feras. Em frente verde-java um belo parque de mimosas, machabeles e outras rvores ainda, raras e cheias de flor e em torno era o mato, o mato silencioso, denso, impenetrvel.

Decidimos ficar ali e construir um scherm, a pouca distncia de uma das poas de gua. O scherm uma espcie de acampamento entrincheirado, que se faz cortando grande quantidade de mato espinhoso e armando-o circularmente numa vasta e rude sebe que forma defesa. Todo o espao interior se aplaina como uma arena: ao centro amontoa-se erva seca, um capim chamado tambouki, que serve de div e de cama; aqui e alm, em volta, acendem-se alegres fogueiras.

Quando acabmos de arranjar o scherm vinha nascendo a Lua. O jantar estava pronto. Bem parco era ele, composto dos tutanos e lombos de uma girafa, que nessa tarde, ao fim da sesta, fora morta pelo capito John com um tiro providencial. Mas depois de corao de elefante (a mais fina delcia que se pode ter), tutano e lombo de girafa so os petiscos superiores de frica, e grandemente os saboremos sob o esplendor da Lua cheia, que ia alta nos cus. Depois acendemos os cachimbos, e conversmos no vasto silncio em roda do lume.

Os meus companheiros no se fartavam de contemplar aquela cena de serto, familiar para mim, com os meus quarenta anos de frica, mas que a eles s oferecia estranhezas at na maneira por que as claridades alumiam, at na maneira por que a noite silenciosa. Eu por mim, confesso, admirava sobretudo o nosso excelente capito John. Ali estava ele, no interior da Terra Negra, em pleno deserto, estirado em cima de um saco de couro to apurado, to correcto, to bem pregado, como se viesse de passear num parque luxuoso de castelo ingls, em dia de caa ao faiso. Tinha um fato completo de cheviote castanho, com chapu da mesma fazenda, polainas irrepreensveis, luvas amarelas de pele de co, a face escanhoada, monculo no olho, os dentes postios rebrilhando em glria! Nunca o serto africano vira decerto um homem mais catita. At trazia colarinhos altos (colarinhos de guta-percha), de que emalara na mochila uma escandalosa poro por serem leves (dizia ele), fceis de lavar, e dar logo gente um ar de asseio e distino.

Pois assim estivemos muito tempo, sob o magnfico luar, conversando e observando os cafres, que chupavam a dacca nos seus longos cachimbos feitos de cornos de eland, e que, um por um, se iam enrolando nas mantas e estirando beira do lume. S Umbopa por fim ficou acordado, longe dos cafres (a quem geralmente no admitia familiaridades), com o queixo encostado ao punho, os olhos perdidos na Lua, numa daquelas abstraces em que por vezes eu o surpreendera desde o comeo da nossa jornada.

De repente, da profundidade do mato, por trs de ns, subiu no ar um longo e rouco rugido. ǃ um leo!, exclamei. Todos nos erguemos, a escutar. Quase imediatamente, junto poa de gua pura vizinha do nosso scherm, ressoou, como em resposta, a estridente trompa de um elefante. Uncungunlovo! Uncungunlovo1 , murmuraram uma os cafres, levantando as cabeas das mantas e momentos depois avistmos uma fila de enormes e escuras formas, movendo-se devagar da beira da gua para o mato. O capito, com um salto, agarra a espingarda. Tive de o segurar pelo brao:

intil, no se faz nada. Nada de barulho. Deix-los ir.

Em todo o caso disse o baro excitado este stio para um caador um verdadeiro paraso! Se aqui ficssemos um dia ou dois?...

Estranhei: porque at a o baro, impaciente, viera-nos sempre apressando para diante sobretudo desde que soubera em Iniati, pelo missionrio, que dois anos antes um ingls, chamado Neville, vendera ali o carro em que viera de Bamanguato e se internara no serto com um cafre por servial. Mas ouvira o leo, ouvira o elefante e os seus instintos de caador dominavam, irresistivelmente.

Pois muito bem, filhos meus disse eu uma vez que se quer um bocado de divertimento, ter-se-; mas amanh. Por agora tratar de dormir, e erguer com o primeiro luzir do dia, para apanhar esse rico gado antes que ele v aos seus negcios. Toca pois a acomodar..

O capito John (extraordinrio homem!) tirou o fato, sacudiu-o, meteu o monculo e os dentes postios dentro do bolso das calas, dobrou tudo cuidadosamente, guardou tudo ao abrigo do orvalho debaixo do seu makintosh, alisou o cabelo, tomou um bochecho de gua, e estirou-se de lado para dormir, com correco e conforto. O baro e eu, depois de contemplar, rindo, estes requintes, embrulhmo-nos simplesmente num cobertor e da a pouco envolvia-nos aquele sono profundo, absoluto, sem sonhos, sem movimentos, que a recompensa e a consolao de quem moureja por estas terras negras.

Com o primeiro alvor da madrugada estvamos a p, preparando para a aco. Tommos as carabinas, munies abundantes, cantis cheios de ch frio (que a melhor bebida, a nica, quando se caa), e partimos, depois de engolir de p um almoo breve, acompanhados de Umbopa, de Quiva e de Venvogel.

No tivemos dificuldade em achar o carreiro aberto e pisado pelos elefantes que, segundo Venvogel declarou, deviam ser uns vinte ou trinta, a maior parte machos e todos crescidos. Mas o bando afastara-se durante a noite; e eram quase nove horas, o calor ardia em cu e terra, quando pelos arbustos quebrados, pelas cascas e folhas de rvores esmagadas, e pelos montes de bosta fumegante, percebemos que os bichos andavam cerca e seguros. Da a instantes, efectivamente, avistmos o rebanho todo, uns vinte a trinta elefantes (como Venvogel calculara), parados numa cova de terreno, quietos, tendo decerto acabado o primeiro repasto, e sacudindo com lentido e majestade as suas imensas orelhas. Era uma vista soberba! S as h assim na frica! Estvamos separados deles por umas cem jardas. Agarrei um punhado de capim e atirei-o ao ar para tomar a direco do vento porque, se um elefante nos farejasse, bem sabia eu que, antes de podermos pr as carabinas cara, o rebanho inteiro abalava. A aragem, se alguma corria, soprava para ns do lado dos bichos; de sorte que rastejmos cuidadosamente atravs do mato, mudos, sem respirar, at nos aproximarmos umas quarenta jardas mal medidas. Justamente diante de ns, estacionavam trs magnficos elefantes machos, um deles com enormes dentes e o ar supremo de um patriarca. Avisei, baixinho, os companheiros que me encarregava do animal do meio; o baro apontou ao mais pequeno, ao da esquerda; o capito ao <(patriarca.

Agora! murmurei.

Bum! bum! bum! O elefante do baro tombou redondo, varado no corao. O meu caiu pesadamente sobre os joelhos; mas quando pensei que ia desabar para o lado, morto, vejo a enorme massa que se ergue e larga galopando por diante de mim. Meti-lhe segunda bala na ilharga, que o abateu. pressa, com dois cartuchos mais na carabina, corri para ele e findei-lhe misericordiosamente a agonia.

Voltei-me ento para ver o que se passara com o elefante do capito, o patriarca, que eu ouvira por trs de mim bramando de dor e fria. Encontrei John excitadssimo. Ao que parece, o elefante rompera contra ele (que meramente teve tempo de se desviar com um salto), e seguira, furioso e sem ver, para a banda do nosso acampamento.

O resto do rebanho no entanto, espavorido, rompera para o outro lado, atravs da espessura.

Durante um momento ficmos indecisos entre seguir o patriarca ferido ou o resto da manada. Por fim resolvemos bater atrs do bando. Segui-los era fcil, porque tinham aberto um caminho, mais largo e liso que uma estrada real, esmagando o mato espesso como se fosse relva de Primavera. Ach-los, porm, era mais complicado: e tivemos, durante duas infindveis horas, de marchar sob um sol faiscante, antes de os avistarmos. L estavam todos outra vez muito juntos, excepto um dos machos; e pela inquietao com que se mexiam, pelo constante erguer das trombas desconfiadas, farejando O ar era claro que esperavam temiam outro ataque. Um dos machos, afastado, laia de sentinela, vigiava para o nosso lado, de tromba ameaadora e alta. Entre ele e ns mediavam umas sessenta jardas. Se este cavalheiro nos pressentisse, dava o sinal e o rebanho abalava, tanto mais facilmente quanto nos achvamos, bichos e homens, em terreno descoberto. De sorte que todos trs lhe apontmos, todos trs lhe atirmos. Bum! bum! bum! Morto! Mas os outros partiram, numa desfilada, como colinas rolando.

Infelizmente para eles, logo adiante havia um nullah, isto , uma ribeira seca com as bordas abarrancadas do nosso lado e quase a pique do lado fronteiro (stio parecido quele em que o prncipe imperial foi morto na Zululndia). Para a justamente se atiraram os elefantes em tropel. Quando chegmos borda, demos com eles em medonha confuso, esforando-se por trepar a outra ribanceira (escarpada e hirta), empurrando-se uns aos outros, num furor e egosmo verdadeiramente humanos, e atroando os ares de bramidos. A nossa oportunidade era escandalosamente brilhante. Sem outra demora, disparando to depressa como carregvamos, demos cabo de cinco elefantes; e teramos dizimado o rebanho inteiro se eles de repente, abandonando a teima estpida de galgar a ribanceira, no largassem a fugir ao comprido do leito seco que se perdia ao longe na espessura. Estvamos cansados de mais para os perseguir, enjoados tambm desta vasta mortandade. Oito elefantes numa manh, antes do almoo, decente.

De sorte que, depois de descansarmos e vermos os cafres cortar os coraes a dois dos elefantes para servir ceia, voltmos vagarosamente os passos para o acampamento, devagar, satisfeitos com a proeza, e calculando o valor do marfim, que no dia seguinte, cedo, os carregadores viriam serrar.

Ao passar no stio em que o capito tinha ferido o patriarca, encontrmos um rebanho de elands. No lhe atirmos, porque no h nada no eland que valha dinheiro, e mantimentos j trazamos, deliciosos e abundantes. O bando passou ao nosso lado, ligeiro e trotando; depois, adiante, onde se erguia um tufo de arbustos em flor, parou; e todos a um tempo se voltaram, a olhar para ns, espantados.

O capito nunca vira um eland. Quis aproveitar a ocasio, deu a carabina a Umbopa, e seguido de Quiva adiantou-se, de monculo fito, para o tufo de arbustos em flor. O baro e eu sentmo-nos espera, numa pedra.

O Sol ia justamente descendo, num grande esplendor de vermelho e ouro. O baro e eu contemplvamos, calados, aquela beleza de cu e luz, quando, de repente, ouvimos o bramido de um elefante e vimos, escura sobre a vermelhido do poente, uma vasta forma avanando a galope, de tromba erguida e cauda espetada. Logo imediatamente vimos outra coisa horrvel: o capito e Quiva, o servial zulu, fugindo para ns numa carreira perdida, perseguidos pelo elefante! Era o grande bicho ferido, o patriarca, que ali ficara errando. Agarrmos num mpeto as carabinas. Mas qu! Fera e homens, correndo para ns, vinham juntos! Se disparssemos, a bala podia varar Jonh ou Quiva... E assim ficmos nesta indeciso, com o corao a tremer, quando o pobre capito escorrega naqueles infames botins de bezerro com que teimava em trilhar o serto e cai, estatelado, de face na terra, diante mesmo do enorme elefante que chegava bramindo!

Fugiu-nos a respirao! O pobre camarada estava perdido! Largmos ainda a correr para ele, desesperadamente. E o desastre veio, com efeito mas de um modo bem diferente. Quiva, o zulu (valente, herico rapaz que era!) vendo o amo por terra, volta-se e arremessa a azagaia a toda a fora contra a tromba do elefante. A fera lana um uivo de dor, arrebata o desgraado zulu, bate com ele no cho, pe-lhe uma imensa pata sobre as pernas, e, enrodilhando-lhe a tromba no peito, rasga-o literalmente o rasga em dois.

Corremos, cheios de horror, fizemos fogo uma vez, outra vez, furiosamente at que o elefante se abateu como um monte sobre os pedaos sangrentos do zulu. Foi um instante de indizvel consternao. Apesar de endurecido por quarenta anos de caa e carnificinas, eu prprio sentia um n na garganta, e creio que me fiz plido. O baro tremia todo. E o pobre capito torcia as mos, na dor de ver assim despedaado o servo valente que dera a vida por ele.

S Umbopa teve a palavra serena que convinha disciplina. Veio, com os seus passos altivos e leves, contemplar os restos de Quiva, numa poa de sangue, junto massa enorme do elefante, moveu a mo no ar e disse:

Morreu. Bem dele, que morreu como um homem!

 

 

V

A NOSSA ENTRADA NO DESERTO

 

Tnhamos morto nove elefantes. Dois longos dias levmos a serrar-lhes os dentes e a enterr-los com cuidado debaixo de uma enorme rvore, que destacava isoladamente na vasta plancie e formava um sinal inesquecvel. Era um esplndido lote de marfim! S os dentes do patriarca pesavam (tanto quanto pude avaliar) uns cento e setenta arrteis!

O pobre Quiva, esse, sepultmo-lo ao p da colina, com uma azagaia ao lado, para se defender dos espritos malignos na sua difcil jornada para o Paraso zulu. Ao romper do terceiro dia levantmos o acampamento todos ns fazendo votos, no silncio da nossa alma, para que nos fosse dado voltar um dia! Eu, mentalmente, acrescentava: Voltar e desenterrar este rico marfim!

Depois de uma fatigante marcha, cortada desses episdios africanos que todos os africanistas experimentam, chegmos enfim aringa de Sitanda, ao p do rio Lucanga. A era verdadeiramente o nosso ponto de partida. A comeariam as nossas misrias.

Perfeitamente me lembro do stio, e da nossa chegada. Para a direita descia, tresmalhada, uma pequena povoao de negros, com currais de gado murados de pedra solta, e leiras de terra cultivada ao comprido da gua clara. Por trs da aldeia ondulavam grandes pradarias de erva alta, onde a caa abundante esvoaava. E para a esquerda era o escuro, silencioso, infindvel deserto.

O nosso acampamento ficou junto desse riacho alegre, que corria entre arbustos em flor. Defronte erguia-se um outeiro pedregoso. Apenas erguemos as tendas, subi l com o baro. Era aquele o stio, aquele o outeiro onde eu vira, havia vinte anos, numa tarde como esta, a figura do pobre Silveira, com o seu grande casaco comprido, aparecer cambaleando, toda escura na vermelhido do poente. Como ento, o globo do Sol, afogueado, descia j rente da terra e os seus raios frechavam, obliquamente, aquele deserto coberto de tojo, sombrio, sem gua, sem vida, terrivelmente mudo, que matara o pobre portugus, que nos ia talvez matar a ns. Ficmos olhando para ele em silncio. O ar era de uma admirvel finura e transparncia; e longe, muito ao longe, podamos distinguir, recortada no horizonte, palidamente azulada e com laivos brancos de neve, a cordilheira de Suliman. Mostrei-a ao meu companheiro:

A entrada das minas de Salomo l est... Chegaremos ns l?

Nesse instante senti algum por trs de ns respirando: era Umbopa, que trepara tambm ao cmoro, e considerava o deserto com pensativa gravidade. Vendo que eu reparara nele, deu um passo lento, depois outro mais lento. E dirigindo-se ao baro (a quem parecia ter-se afeioado), apontando com a sua grande azagaia para o lado dos montes:

para aquela terra alm que tu vais, Incubu?

Incubu uma palavra do dialecto zulu que significa elefante e que servia, entre os cafres, para designar o nosso chefe. Estranhei a audcia de Umbopa, e perguntei-lhe asperamente que tosca maneira era essa de falar a seu amo... Que o negro d uma alcunha negra ao patro, por lhe ser mais facilmente pronuncivel que o nome v! Que a um como eu, pobre caador que ganha o seu po, o negro se dirija sempre pela alcunha negra v ainda!

Mas que a atire face de um senhor, de um fidalgo isso no!

Fala assim aos teus iguais gritei eu. Fala assim aos que contigo comem da mesma gamela!

O zulu teve uma risadinha doce que me enfureceu.

Que sabes tu acrescentou ele se eu no sou igual ao amo que sirvo? Ele pertence a uma grande casta, pelo olhar se v logo; mas talvez eu pertena a uma casta maior! Pelo menos sou to forte como ele, e posso com ele repartir o que tenho no corao. S pois a minha boca, Macumazan! Diz as minhas palavras ao Incubu meu amo! E entende-as tu tambm, porque em mim s h verdade!

Fiquei perfeitamente indignado. Nunca um cafre me falara naquele tremendo tom!

Mas, no sei porqu, o maldito zulu tinha a arte de me impressionar. Alm disso, sentia uma viva curiosidade... De sorte que lhe traduzi as palavras, acrescentando que a criatura me parecia imprudente e ousada.

O baro, porm, homem de excelente pacincia, voltou-se sorrindo para o zulu:

para as montanhas que vou com efeito, Umbopa! Vou em procura de um homem da minha raa, de um irmo meu, que atravessou este deserto, e que eu suponho estar alm!

O zulu moveu lentamente a cabea:

Assim , assim ... Encontrei um homem no caminho que me disse: H dois anos que um branco se meteu tambm ao deserto como ns, levando um s servial...

Nunca mais voltaram...

Quem te disse? perguntei, vivamente. Porque te saem s agora essas palavras? Onde te disseram?

Antes de Iniati, um homem que ele encontrara no caminho. Contara-lhe que o branco se parecia com o chefe Incubu, mas tinha a barba escura; e que ia seguido por um caador bexuana chamado Jim.

So eles! exclamei. No h dvida! So eles! Jim conhecia eu bem.

O baro ficou pensativo.

Se meu irmo tinha decidido atravessar o deserto murmurou por fim ou o atravessou, ou morreu. Recuar ou mudar de fito no era da tmpera dele. Ou no vive, ou est para l das serras.

O zulu, que lhe seguira as palavras com os grandes olhos brilhantes, tornou muito gravemente:

uma longa jornada, Incubu.

Quartelmar, diga-lhe que no h jornada que o homem no possa empreender replicou o baro (que evidentemente estimava e considerava aquele singular zulu). Nada h que o homem no possa fazer, nem desertos que no possa atravessar, nem montanhas que no possa subir, se puser nisso alma e vontade. O essencial contarmos a vida por coisa nenhuma, alegremente prontos a conserv-la ou a perd-la, segundo Deus ordenar.

Quando o zulu compreendeu, toda a face se lhe iluminou:

Grandes palavras, meu pai Incubu! Grandes, soberbas palavras que enchem bem a boca de um forte! Que a vida, na verdade? a semente da erva que o vento sopra aqui e alm. As vezes cai em boa terra e frutifica; outras vezes, na rocha dura, e definha... O homem nasce para morrer. Mais tarde ou mais cedo, que importa? sempre a morte. Eu por mim irei contigo, Incubu! Irei por montanha e deserto, e ser-te-ei sempre fiel...

Parou. E subitamente rompeu numa dessas rajadas de poesia, frequentes nos zulus, que tanto surpreendem os que pela primeira vez as testemunham, e que, apesar de nevoentas, redundantes e decoradas de gerao em gerao, mostram que se a raa no inteligente, pelo menos imaginativa.

Que a vida exclamava Umbopa, abrindo os braos, naquele tom cantado que os zulus tomam nesses momentos de exaltao. Que a vida? Dizei-me, brancos, vs que sabeis os segredos deste mundo, e do mundo das estrelas que brilha por cima, e do outro mundo que est para alm das estrelas! Dizei-me, brancos, dizei-me o segredo da vida! Donde vem ela, para onde vai?... No podeis, no sabeis! Escutai ento! Ns samos da treva, e para a treva marchamos. Como um Pssaro acossado pela tormenta, ns samos do fundo da escurido; durante um momento passamos, e as asas brilham-nos luz das fogueiras; depois, de novo e para sempre, mergulhamos na treva! A vida o pirilampo que fulgura de noite e de dia negro! o hlito dos rebanhos no ar de Inverno! a sombra que corre sobre a relva, e que desaparece ao poente!... Calara-se, com os braos ainda abertos, o olhar perdido nas alturas.

s um homem bem singular, Umbopa! exclamou o baro, que o escutara assombrado.

O outro pareceu acordar, sorriu:

Creio que nos assemelhamos, Incubu. Talvez eu tambm v procurando um irmo entre as gentes que esto para l das montanhas.

Olhei para Umbopa, com o sobrolho franzido.

Que gentes? Que sabes tu das gentes que vivem para l das montanhas?

Pouco, Macumazan, muito pouco. H para alm uma terra de feitios, de jardins, de gente valente... H tambm uma grande estrada branca, toda de pedra. Assim ouvi. Mas de que vale dizer? Quem l chegar, l ver!

Aquele homem, evidentemente, sabia alguma coisa que no queria revelar. Ele decerto percebeu a minha desconfiana porque acudiu, espalmando as mos:

No te arreceies, Macumazan! No te arreceies! No abro covas, para que tu caias dentro. Se chegarmos a atravessar o deserto, eu te contarei o que sei. Mas a morte est l com uma lana, nossa espera. Melhor te fora, Macumazan, voltar aos teus elefantes... Falei o que tinha a falar.

E meneando a azagaia maneira de saudao, desceu o cmoro, recolheu ao acampamento onde da a instantes o encontrmos limpando uma carabina, atento, calado, como qualquer servo cafre vazio de pensamento e vontade.

Homem extraordinrio! murmurou o baro.

Extraordinrio de mais! No gosto nada daqueles mistrios... Mas, enfim, ns estamos metidos numa aventura fantstica, e um zulu misterioso de mais ou de menos no tira nem pe.

Na manh seguinte comemos os preparativos para a marcha. Era impossvel naturalmente levar connosco, atravs do deserto, todo o pesado armamento, e as cantinas. Fomos portanto forados (depois de abandonar os carregadores) a confiar tudo a um velho cafre, um atroz sacripanta, que possua ali uma aringa considervel. Bem penoso me era abandonar as nossas magnficas armas merc daquele velho malandro cujos olhos se fixavam j nos nossos bens com um fulgor de cobia e rapina. Tomei por isso as minhas precaues.

Comecei por carregar as espingardas. Depois declarei ao bandido, num tom cavo, que aqueles canos estavam enfeitiados e que se ele lhes tocasse ali (mostrei o gatilho) os demnios fugiriam de dentro despedindo um raio! Imediatamente (como eu calculara) o cafre puxou o gatilho a uma carabina Express. E o raio partiu. Partiu, com tanta felicidade, que matou uma vaca que pastava pacificamente a distncia, beira de gua e atirou o velho de pernas ao ar, com a inesperada fora do recuo. O pavor do malandro foi indizvel. Tremia todo, dava pulos em volta da vaca morta (que depois, mais tranquilo e com toda a impudncia, queria que lha pagasse), olhava para o cu, olhava para o cho... Por fim rompeu aos berros:

Tirem esses demnios que estoiram! Ponham-nos l em cima, sobre o colmo!.... Ai, que no fica vivo nenhum de ns!

Apenas ele serenou, continuei a minha prdica. Afirmei-lhe, com olhares esgazeados, que, se ao voltarmos, uma s arma daquelas faltasse, eu, que possua as artes dos brancos, o mataria a ele e a toda a sua gente por meio de bruxarias sangrentas; e que se ns morrssemos e ele tentasse apoderar-se do que era nosso, eu voltaria em esprito persegui-lo, puxar-lhe de noite pelos ps, tornar-lhe o gado bravo, dessorar-lhe o leite fresco, secar-lhe a semente da terra e fazer a vida na aringa to dura e terrvel que seus prprios filhos o amaldioariam... Enfim, dei-lhe uma ideia razovel do Inferno, como horrores inditos. O velho malandro, espavorido, jurou que olharia pelas nossas armas como se fossem os ossos de seu pai! Era um patife infinitamente supersticioso.

Em seguida combinmos o que ns cinco o baro, o capito John, eu, Umbopa e Venvogel devamos levar connosco atravs do deserto. Muito calculmos, muito experimentmos. No logrmos chegar a um peso menor de quarenta arrteis por homem. E havia escassamente o necessrio! Eis aqui o que conduzamos:

Cinco espingardas com a competente munio (quatrocentas cargas);

Trs revlveres;

Cinco cantis de gua, de cinco quartilhos cada um;

Cinco mantas;

Vinte e cinco arrteis de biltong que uma espcie de carne seca;

Dez arrteis de contas de vidro para presentes aos indgenas; Navalhas, fsforos, um compasso, um filtro de algibeira, uma enx, uma garrafa de conhaque, tabaco e os fatos que tnhamos no corpo.

Era tudo: e era pouco, como necessidade e conforto, numa semelhante empresa! Ainda assim peso considervel para cinco homens acarretarem, por um sol terrvel, atravs de um deserto estril!

Depois, com imensas dificuldades, persuadimos trs negros da aldeola a acompanharem-nos durante vinte milhas, levando cada um s costas uma larga cabaa de gua fresca. O meu fim era podermos encher de novo os cantis, depois da primeira noite de marcha (porque decidramos partir na frescura da noite). Os negros, a quem eu contara que amos caar o avestruz, no acreditaram: tinham por certo que morreramos de sede e de fome no grande serto; eles prprios temiam a morte e os demnios que vagam no deserto; e s consentiram em nos seguir a troco de trs facas de mato e de uma manta vermelha.

Durante todo esse dia descansmos e dormimos. Ao pr-do-sol celebrmos um grandioso jantar, de caa, de carne fresca e de ch o ltimo ch, observou John com melancolia, que naturalmente beberamos por longos meses. Depois, apetrechadas as mochilas, espermos que nascesse a Lua. Perto das nove horas subiu ela, em toda a sua serena e pensativa glria, inundando de luz branca e vaga todo o imenso deserto, que parecia to mudo, solene, impenetrvel e virgem de pegadas humanas como o claro firmamento que por cima resplandecia. Com a Lua que se erguia nos erguemos ns tambm. Tudo estava pronto, os negros de cajado na mo e todavia, hesitvamos ainda, como o fraco homem hesita sempre. perante o irrevogvel. Lembro-me bem. Adiante de ns alguns passos, Umbopa, de azagaia na mo, com a carabina a tiracolo, olhava fixamente para o deserto; atrs de ns, num grupo, Venvogel, com os trs negros que levavam as cabaas de gua, esperavam, direitos e mudos; e ns trs, os homens brancos, muito juntos, sentamos bater forte o corao.

De repente, o baro tirou devagar o chapu. E com profunda emoo:

Amigos, vamos comear uma das mais estranhas jornadas que homens tm ousado tentar. O que ser de ns, no sei; mas, para bem ou para mal, juntos estamos, juntos nos encontraremos sempre! E agora, antes de partir, ergamos o pensamento para Aquele que tudo pode!

Escondeu a face entre as mos, ficou imvel. O capito John e eu baixmos tambm a cabea, com reverncia, com humildade. Eu, por mim, confesso, nunca fui homem de oraes. Caadores de elefantes, na dura vida de frica, raro se lembram de falar a Deus. Em todo o caso, naquele momento, rezei. Rezei com fervor; e senti-me depois mais alegre e mais leve. Creio que o capito (religioso no fundo, apesar de praguejar medonhamente) tambm rezou. O baro, esse, era homem de piedade e crena... Quando destapou o rosto, olhou em redor, ergueu o brao e com um belo ar de resoluo e de esperana

Pronto?... Larga!

Os bordes ressoaram na terra dura e largmos.

Para nos guiar no deserto tnhamos apenas as distantes montanhas de Suliman e o roteiro que o velho D. Jos da Silveira traara no pedao de camisa. Cada um de ns trazia na algibeira uma cpia desse mapa rude. Mas, considerando que essas linhas tinham sido riscadas por um homem meio morto, h trezentos anos era bem certa a sua utilidade? A nossa salvao, naquela jornada, seria encontrar a lagoa, ou poa de gua salobra que o velho fidalgo portugus marcara a meio caminho entre a aldeia donde partramos e as serras de Suliman. Se a no achssemos, tnhamos certa a morte, uma morte terrvel, a morte pela sede. E, para mim, a probabilidade de descobrir uma lagoa de trs ou quatro metros naquela vastido de areia e tojo, parecia-me mnima, infinitsima. Mesmo supondo que o portugus a marcara com exactido quem nos afianava que, nesses trezentos anos, ela no secara ou no fora coberta pelas areias movedias?

Era nisto que eu pensava enquanto silenciosamente, como sombras, amos marchando sob o luar silencioso. O caminho no era fcil: o tojo denso e espinhoso retardava-nos o passo; a areia metia-se nos sapatos, e cada meia hora devamos parar para os esvaziar; e, apesar de a noite no estar quente, havia alguma coisa de pesado e de espesso, que amolentava. Mas o que sobretudo nos oprimia era a solido, o silncio o infinito, terrvel silncio. John ainda tentou assobiar uma cantiga galante de bordo. Mas a toada jovial, o estribilho de teus doces olhos, parecia lgubre naquela severa imensidade. O engraado homem emudeceu. E seguimos numa fila muda atravs do mato mudo.

Perto da meia-noite, sobreveio uma aventura que nos assustou e depois nos divertiu imensamente. John, como marinheiro, levava a bssola, e marchava adiante, guiando. De repente ouvimos um berro John desaparece! Ao mesmo tempo rompia, em torno de ns, uma balbrdia medonha de roncos, bufos, grunhidos, sons de patas fugindo e vemos formas, como garupas, galopando atravs do tojo, entre rolos de areia. Os negros atiraram-se ao cho, gritando que eram demnios acordados! Eu prprio e o baro ficmos surpresos e o nosso assombro cresceu quando avistmos John, aparentemente montado num potro, fugindo aos gales para o lado dos montes, e ganindo como um desesperado. Um momento mais e vemo-lo sacudir os braos no ar, e de novo desaparecer, no mato baixo, com um baque tremendo. Corremos para ele e percebemos o caso estranho: tnhamos ido cair no meio de um rebanho de zebras adormecidas; John estatelara-se exactamente sobre as costas de uma enorme; e o bicho, pulando espavorido, abalara com o nosso amigo nas ancas. Felizmente no se magoara no tombo final: fomos dar com ele sentado na areia, de monculo firmemente cravado no olho, aturdido, indignado mas intacto de pele e osso.

Depois disto marchmos sossegadamente at perto das duas horas da noite.

Fizemos ento uma paragem, bebemos uns goles de gua (no muitos, nem largos, porque a gua passava a ser preciosa) e ao fim de trinta minutos de descanso recomemos a caminhar para diante, para diante sempre, at que o nascente se tingiu de laivos de rosa. Vimos as estrelas desmaiar, vivas barras alaranjadas alongarem-se ao rs do horizonte, a Lua declinar mais lvida que um crio, longos raios de luz varar e colorir de fogos os nevoeiros, todo o deserto cobrir-se de uma trmula refraco de ouro e ser dia!

No parmos, apesar de j cansados pela certeza de que bem cedo o Sol, nado e alto, nos impediria de dar um passo nico, sob o seu trrido esplendor. Com efeito, s seis horas j ardia! Por felicidade avistmos ento na plancie um monto de rochas. Para l nos arrastmos, exaustos. E por felicidade maior, uma enorme lasca de pedra, pousada sobre grossos blocos, fazia como um telheiro, cuja sombra caa sobre um pedao de areia fina. Abrigo providencial! Ali nos aninhmos; e, depois de beber alguns goles de gua bem contados e de comer uma lasca de biltong, adormecemos deliciosamente. s trs horas acordmos. Os carregadores que tinham trazido as cabaas j se preparavam para voltar sua aringa. De sorte que absorvemos uma farta tarraada de gua, enchemos de novo os cantis, e distribumos pelos homens as facas de mato prometidas. Da a instantes vimo-los (no sem uma vaga melancolia) voltar costas ao deserto e romper a marcha para o lado da sua aldeia, para o lado da frescura e da gua! s quatro e meia metemos de novo a caminho. A cada passo, tudo de redor se parecia alargar em silncio e desolao. Ao princpio ainda avistmos, aqui e alm, entre o mato, um avestruz. Depois, nem mesmo rpteis topvamos na plancie arenosa. A nossa nica companhia era a mosca, a mosca ordinria e caseira... Digno e venervel animal! Em qualquer lugar em que o homem penetre, deserto, montanha, caverna a mosca l est. Foi este decerto o primeiro dos seres vivos que surgiu sobre a Terra. J havia moscas para pousar no nariz de Ado. O derradeiro homem h-de morrer com uma mosca a zumbir-lhe em torno da face. E talvez haja moscas no Paraso.

Ao sol-posto parmos, esperando que nascesse a Lua. Mais bela e serena que nunca surgiu ela s dez horas e toda a noite, sob o seu calmo e pensativo brilho, na mudez da vastido, caminhmos, caminhmos... O Sol nado ps um termo valente marcha. Sorvemos por conta uns goles de gua dos cantis, atirmo-nos para cima da areia, e ali nos tomou o sono a todos quatro simultaneamente. No havia necessidade que um velasse. Nada tnhamos a recear, nem de homem nem de fera, naquela imensidade despovoada. Desta vez, porm, nenhuma rocha nos abrigava e s sete horas acordmos sob o Sol faiscante, com a sensao que deve experimentar um bife de lombo achatado sobre a grelha. Estvamos sendo fritos! O Sol por cima, a areia por baixo, secavam-nos o sangue nas veias. Todos nos erguemos, de salto, quase sem respirao.

Santo Deus! murmurou o baro, sacudindo os enxames de moscas.

Pode-se chamar a isto calor! gemeu do lado o capito, que arquejava. Podia chamar, na verdade. E eram apenas sete horas! Em toda a vasta extenso nem um abrigo! S mato rasteiro e por cima uma vibrao radiante, to viva e intensa que vamos tremer o ar.

Que se h-de fazer? exclamou o baro. impossvel aguentar isto!

Olhmos uns para os outros, estupidamente.

Se abrssemos uma cova? lembrou John. Podamos meter-nos dentro e cobrir-nos com tojo... uma ideia.

No brilhante! Mas era a nica de modo que, j com a enx, j com as mos, passmos a abrir uma cova do tamanho aproximado de uma larga cama. Cortmos uma  poro de mato; e ali nos sepultmos, colados como sardinhas numa caixa, todos quatro, o baro, John, eu e Umbopa porque Venvogel, como hotentote, no sentia os ardores do sol. Foi ele que nos cobriu de mato. Realmente, assim, estvamos ao abrigo dos raios perpendiculares do Sol mas que pavorosa ardncia a daquela fossa, em que cada torro, junto do corpo, era como uma brasa viva! No compreendo como nos desenterrmos vivos. Dormir, impossvel! Jazamos estendidos, hirtos, sem ter j que suar, quase curtidos, arquejando ansiosamente. S possuamos o consolo de humedecer, de vez em quando, os beios com uma gota de gua muito medida! Esta avara medio da gua era o tormento maior. A cada instante necessitvamos recalcar a furiosa tentao de sorver de um s trago os quatro cantis. Mas qu! se a gua faltasse breve viria a morte!

Tudo tem um fim neste mundo, diz a sabedoria oriental, contando que se possa esperar. Espermos: a horrvel, interminvel manh passou; e pelas trs horas preferimos encontrar a morte, andando (se a morte tinha de vir) a ser por ela lentamente envolvidos naquele infame buraco. Reconfortmo-nos com um curto sorvo nossa gua que diminua terrivelmente, e subira j temperatura do sangue. E com um esforo rompemos de novo atravs da plancie flamejante.

Tnhamos transposto umas dezassete lguas de ermo. Ora no roteiro do velho D. Jos da Silveira, a total extenso do deserto estava fixada em quarenta lguas; e a famosa poa de gua salobra vinha marcada a meio do deserto. A esse tempo, portanto, devamos estar a umas trs lguas da gua se a gua existia! Em toda a tarde, porm, fizemos pouco mais de uma milha por hora. Ao pr-do-sol parmos espera da Lua.

Deixei-me cair para o cho, como um morto, cerrei os olhos. Mas da a um instante Umbopa fez-me erguer e notar, distncia de oito ou nove milhas, uma espcie de outeiro redondo e liso que se erguia, abruptamente, na plancie rasa. No parecia uma elevao natural de terreno, na sua semelhana estranha com uma metade de laranja. Quando me tornei a deitar adormeci logo, murmurando: Que ser?...

Ao romper da Lua de novo partimos, j alquebrados de cansao e de sede. O andar franco e firme acabara para ns. Era agora um arrastar de passos quase cambaleante, com paragens bruscas de meia em meia hora, em que caamos para cima da areia, sem fora, de corao desmaiado. Nem nimo nos restava para conversar. At a ainda gracejvamos, heroicamente. John sobretudo jovial camarada! Mas agora! Nem voz tnhamos para gemer!

Finalmente, perto das duas horas, vencidos de corpo e de alma, chegmos ao p do cmoro estranho. Era uma espcie de duna de areia, escura, lisa, atarracada, da altura de uns trinta metros, e cobrindo na base duas jeiras de terreno. Parmos. E desesperados com a sede, sorvemos o resto da gua. Tnhamos meio quartilho por boca! Podamos ter emborcado um almude!

Cada um em silncio se estendeu para dormir. Eu fechava os olhos, resvalava j docemente no esquecimento e no sonho, quando ouvi Umbopa ao meu lado murmurar para si prprio em zulu:

O que a vida! Se amanh no achamos gua, a Lua, ao nascer, encontra aqui quatro mortos... Vida, sombra que passa! Vida, murmrio que finda!

Apesar do calor senti um arrepio. Pois tanta era a fadiga, que confortado por esta probabilidade (uma agonia de sede num deserto de areia) adormeci profundamente. Eram quatro da manh quando acordei. E, bruscamente, entrou comigo a tortura da sede.

Estivera todo o tempo sonhando que passeava beira de um regato de gua, muito puro e muito frio, bordado de relvas e de grandes rvores de frutas... Quando me ergui, esfreguei a face com ambas as mos; mos e faces pareceram-me mais secas e duras do que couro; e as plpebras e os beios estavam to pegados, to colados, que tive de os descerrar fora com os dedos, como se os unisse uma cola forte. A madrugada ainda vinha longe; mas no reinava no ar a natural frescura matutina, antes uma espessura mole e morna intoleravelmente pesada. Os outros dormiam... Fiquei calado, olhando em redor a desolada solido. E pouco a pouco comecei a sentir de novo, junto de mim, o murmrio fresco do regato que corria, o ramalhar da verdura, pios de aves, e toda uma sensao de paz, de sombra, de abundncia, que me fazia sorrir sozinho num imenso contentamento... Ao mesmo tempo tinha a certeza do deserto e da aridez que me envolvia. Creio na verdade que delirei!

Voltei a mim, quando os outros em redor se comearam a mexer, erguendo-se devagar sobre o cotovelo, esfregando como eu as faces ressequidas, separando fora, como eu, os lbios sem saliva e mirrados. J rompia a claridade. Apenas acordados todos, e conscientes, comemos a falar da nossa situao que era sombriamente desesperada. No nos restava uma gota de gua! Voltmos os cantis para baixo, chupmos-lhes os gargalos. Mais secos que ossos! O capito John, que guardara a garrafa de conhaque, sacou-a da mochila, consultou-nos com um sedento olhar. Mas o baro arrancou-lha das mos. Beber lcool, naquele estado?... Era a morte.

Mortos estamos ns murmurou o capito encolhendo os ombros se daqui noite no achamos gua!

Se o roteiro do portugus estivesse exacto disse eu suspirando a poa de gua devia aparecer por aqui algures... Foi nesta altura exactamente que ele a achou...

Os outros nem responderam. Realmente, nenhum de ns tinha j confiana no roteiro do velho fidalgo. Mesmo que a poa existisse como encontrar nessa imensido o stio exacto e preciso onde ela estaria, mais pequena e perdida do que uma moeda de prata numa praia de areia? S por um bambrrio! Ou s se ela jazesse junto de acidente do terreno, que pela sua especial salincia, na vasta plancie, inevitavelmente atrasse os olhares e os passos.

A claridade ia crescendo; e quando assim estvamos, lanando conjecturas, nesta terrvel ansiedade reparei que o nosso hotentote Venvogel andava a distncia, com os olhos no cho, lentamente, como quem procura um rasto... De repente parou, soltou um grito, com o brao espetado para a terra.

Que ? exclammos todos.

E corremos alvoroadamente.

Pegadas de coro! bradou ele em triunfo, apontando para o cho.

E ento?

Coros nunca andam longe de gua!

verdade! gritei eu. E louvado por isso seja Deus!

Foi como se renascssemos vida. No era ainda a gua mas a esperana dela, para breve! E numa crise aflitiva como a nossa, uma esperana, por mais vaga e tnue, vale sobretudo pela coragem de que enche logo a alma.

Venvogel, no entanto, comeara a andar em redor, com o nariz erguido (o seu largo nariz mais chato que o de um bull-dog), sorvendo o ar quente, farejando.

Cheiro gua! dizia ele cheiro gua!

E ns todos atrs dele, farejando tambm, quase j vamos a gua sabendo bem que estes hotentotes, como todos os selvagens, possuem um faro maravilhoso. Mas nesse instante, os grandes raios do Sol que nascia bateram-nos o rosto. E olhando, descobrimos uma to grandiosa paisagem, que por um momento esquecemos a gua e os tormentos da sede!

Diante de ns, a umas dez ou doze lguas, rebrilhando como prata nos primeiros raios do dia, erguiam-se os dois enormes montes que o portugus chamara os Seios de Sab; e de cada lado deles, estendendo-se sem fim, durante centenas de milhas, a vasta cordilheira de Suliman! No possvel transmitir, no verbo humano, a incomparvel grandeza e beleza daquele quadro de montanha!

Ali estavam as duas enormes serras que no tm iguais na frica, nem creio que no resto do mundo, medindo pelo menos mais de quinze mil ps de altura, emergindo da cordilheira infinita brancas, mudas, de portentosa solenidade, enchendo o cu at acima das nuvens. E o que esmagava a alma, era a assombrosa estrutura. A cordilheira estendia-se como um muro disforme de granito, da altura de mil ps: as duas serras formavam como os dois torrees de uma porta, perdidos nas profundidades; a parte da serra que separava os dois montes, sendo talhada a pique, lisa e rigorosamente horizontal no alto, reproduzia a configurao de uma porta prodigiosa e o aspecto todo era como o de uma muralha cercando uma cidade fabulosa de sonho ou de lenda! Bem justamente chamara o velho fidalgo portugus aos dois montes Selos de Sab! Tinham, com efeito, a forma perfeita de dois peitos de mulher: as suas vastas faldas iam subindo da plancie, numa curva doce e tmida, parecendo quela distncia formosamente redondas e lisas; e no cimo de cada uma, um imenso outeiro sobreposto, todo coberto de neve, semelhava exactissimamente a ponta, o bico de um peito.

Prodigiosa estrutura! Se a Terra, como pretendia a antiga mitologia, uma mulher, a enorme Cibele a estavam decerto os seus peitos ubrrimos! Mas minha imaginao (nunca muito inventiva, mas perturbada e excitada nesse momento pela fraqueza) aquilo tudo se afigurava uma muralha estupenda, cercando e defendendo uma regio de infinito mistrio; e a cada instante me parecia que a porta de granito ia rolar, abrir-se com fragor, e desvendar algum segredo secular o segredo talvez da Terra de frica! E o mais extraordinrio foi que, enquanto assim contemplvamos assombrados, comearam a subir, a aglomerar-se em torno aos dois montes, lentas e estranhas nvoas e nuvens, como para esconder aos nossos olhos mortais a majestade daquele dito, que uma vontade divina nos deixara por um momento entrever. Da a pouco, os Selos de Sab estavam envolvidos de todo, sob o mstico vu atravs do qual s podamos distinguir agora as suas linhas, formidavelmente espectrais!... Depois, mais tarde, descobrimos que esses montes, em tudo singulares, estavam ordinariamente velados por esta curiosa nvoa, como por uma cortina de sacrrio. S a certas horas, ao romper do Sol, a cortina se descerrava, como numa celebrao, desvendando aos homens a maravilha sem par.

Passada a violenta surpresa, de novo nos considermos com a mesma ansiosa interrogao: Que fazer? Venvogel insistia, convencido, que lhe cheirava a gua mas debalde buscvamos, trilhvamos o terreno em redor, esquadrinhvamos atravs do mato. Nada! S a areia ondulando, com manchas de matagal. Demos a volta toda ao singular outeiro onde parramos de noite. Avanmos para os lados, em todas as direces do vento, com atentos e lentos passos, e olhos sfregos que furavam a terra. Nada! Nenhum vestgio de uma nascente, de uma poa, de um charco. S areia, rido tojo.

Idiota! gritei eu desesperado com o hotentote. No h, nunca houve aqui gua!

Naquela spera, rida imensidade no parecia, com efeito, haver possibilidade, nem sequer verosimilhana de gua... E quanto tempo de resto poderia durar ali uma poa salobra, como a que encontrara o velho fidalgo, sem ser chupada pelo sol ardente ou atulhada pelas areias movedias?

No entanto Venvogel, o hotentote, continuava a farejar, com as ventas erguidas e abertas:

Eu sinto o cheiro de gua, patro. Sinto-a no ar!

No ar no duvido. H gua que farte nas nuvens! Tambm no duvido que venha a cair. Mas h-de ser para nos lavar os esqueletos!

O baro, no entanto, cofiava a barba pensativamente.

E todavia murmurava ele por aqui a encontrou o velho portugus! O stio este. Foi aqui, em volta. A meio caminho exacto, na linha direita de norte a sul, da aringa de Sitanda s serras. aqui. Aqui esteve gua!

Sim, mas h trezentos anos! Em trs sculos muita gua brota e seca! Quem nos afianava de resto a exactido do portugus, esvado de fome, meio delirando, no comeo da sua agonia! J no era pequena estranheza que ele a tivesse encontrado nesta deserta imensidade, justamente quando dela lhe dependia a vida!... A no ser que para ela fosse atrado insensivelmente e naturalmente por algum acidente de terreno, muito saliente e muito visvel de longe como um bosque, uma colina... Uma colina! E quando eu assim pensava, eis que o baro grita, como ecoando o meu pensamento:

No alto da colina! Talvez a gua esteja no alto da colina!

Tolice! acudiu o capito encolhendo os ombros.

gua no topo de uma colina! Onde se viu isso?

Procuremos! disse eu, com um bater de corao que era todo de esperana. Trepmos ansiosamente pelo outeiro. Umbopa corria adiante. De repente estaca, com os braos no ar:

Nanzie manzie!

Pulmos para junto dele e com efeito, mesmo no topo da colina, numa cova redonda como uma taa, l estava gua, gua escura, lbrega mas gua! Agua! gua! Gritvamos de puro gozo. E num momento, estirados de barriga no cho, com as faces na poa, sorvamos deliciosamente, a grandes e rpidos sorvos, aquele lquido desapetitoso, que to bem imitava gua. Cus! O que bebemos! E mal findmos de beber, arrancmos o fato, saltmos para o charco, e, sentados nele, ficmos horas a embeber-nos de frescura atravs da pele da nossa pobre pele mais dura e mais seca que um pergaminho secular.

Quando nos erguemos, refrigerados e saciados, camos sobre a carne seca. Comemos a fartar. Uma longa cachimbada por cima completou aquela hora de consolao. E o sono que nos tomou at ao meio-dia, deitados junto da poa e da sua humidade, foi profundo e bendito!

Todo aquele dia tardmos junto da gua bebendo dela, mergulhando nela, olhando para ela e dando louvores sem conta ao velho fidalgo, que to exactamente a marcara no mapa. Por fim, tendo enchido de gua os estmagos e os cantis, continumos a. marcha, mais animados e geis, ao erguer da Lua cheia. Fizemos vinte e cinco milhas nessa noite. No tornmos a encontrar gua. Mas seguamos confiados, com a certeza de a achar, abundante e fresca, nas faldas das serras. Quando o Sol se ergueu e desfez as nvoas, avistmos de novo a cordilheira e os dois Seios de Sab (agora afastados de ns apenas vinte milhas), tomando o cu com a sua majestade sublime. Essas vinte milhas cobrimo-las durante a noite. E ao outro alvorecer pismos enfim as primeiras ladeiras do seio esquerdo de Sab!

Com amargo espanto no encontrmos gua e a nossa j ia findando! No havia agora esperana de topar nascentes antes de chegarmos linha de neve, que branquejava l longe, no alto da serra; e j a sede nos comeava outra vez a torturar.

Desconsoladamente, fomos arrastando os passos por sobre o trrido cho de lava que formava a base do monte. Caminhada atroz! Pelas onze horas da manh, apesar de curtos repousos, estvamos exaustos por causa sobretudo dos ladrilhos de lava, speros e rugosos, que nos magoavam horrivelmente os ps. De sorte que, descobrindo a umas trezentas jardas acima grossos pedregulhos de lava, decidimos descansar umas fartas horas sua sombra providencial. Para l nos empurrmos, por l nos abrigmos. E no foi pequena surpresa (se ainda nos restava a faculdade de experimentar surpresa!) avistar a pequena distncia, num planalto formando terrao sobre um barranco, uma extensa e fresca tira de verduras. Evidentemente a lava, decompondo-se, formara ali um cho de terra, onde as sementes trazidas por pssaros tinham alastrado e verdejado...

Demos, porm, pouca ateno a essas ervagens, porque no havia l nem fruto nem gua e de relva s Nabucodonosor se conseguiu alimentar. Ali ficmos, pois, estirados sombra dos pedregulhos, sem fora no corpo e sem esperana na alma, pensando que nunca homens de senso se tinham arriscado a mais estril, mais absurda aventura! Umbopa, no entanto, depois de considerar algum tempo em silncio a leira de verduras, caminhara para l lentamente. E qual no o meu assombro ao ver aquele indivduo, ordinariamente to composto e grave, romper em pulos frenticos, brandindo na mo o quer que fosse de verde! Arremetemos para ele, na esperana ansiosa de gua descoberta.

gua, Umbopa? gritava eu pulando por sobre a lava.

Agua e sustento, Macumazan! exclamava ele agitando no ar a coisa verde, com efusivo triunfo.

Percebi enfim o que era. Era um melo! Tnhamos dado num meloal, um enorme meloal bravo, com milhares de meles, a cair de maduros!

Meles! uivei eu para os companheiros que corriam atrs.

Meles! meles! foi o berro vitorioso que ressoou nas quebradas.

Num momento, cada um de ns tinha os dentes cravados num melo, sofregamente. Comemos ali, entre todos, uns trinta meles; e apesar de medocres, creio que nunca nada na vida me soube to deliciosamente. Mas o melo no alimenta e refrescada a sede no tardou a fome, mais intensa e aguda. Conservvamos ainda o biltong, a carne seca; mas j nos enjoava atrozmente; e alm disso devamos poup-la com avaro cuidado, pela incerteza de encontrar outras provises na longa ascenso da serra.

Nesse dia, porm, estvamos em sorte, decididamente, como disse John. Lanando os olhos para o deserto, enquanto conversvamos sobre esta terrvel evi-dncia, a fome vi de repente uns oito ou dez grandes pssaros voando em direco a ns, lentamente.

Atire, patro, atire! exclamou baixo o nosso servo hotentote, acaapando-se imediatamente no cho.

Os outros agacharam-se tambm, para que, confundidos com a cor da lava, no fssemos avistados pelos pssaros. Era um bando de enormes abetardas, que, no seu voo direito e alto, deviam passar a umas cinquenta jardas por cima das nossas cabeas. Tomei uma carabina Winchester, e esperei acocorado. Quando o bando vinha perto, ergui-me, com um grito e um salto. Assustados, os pssaros juntaram- se todos precipitadamente em monto; e atirando massa escura, pude facilmente abater um soberbo bicho, que pesava pelo menos vinte arrteis. Dentro de meia hora ardia uma fogueira de talos secos de melo, e o bicho alourava em cima. Foi um banquete! Comemos aquela abetarda toda, fora carcaa e bico!

Nessa noite continumos a ascenso do monte, luz da Lua, carregados de meles para a sede. A maneira que subamos, o ar esfriava consoladoramente. Ao clarear do dia estvamos a umas doze milhas da linha de neve. Encontrmos mais meles; e a gua enfim, louvado Deus, j no nos inquietava, porque bem cedo penetraramos nas regies do gelo. No entanto, era imenso o nosso pasmo de no encontrar nascentes, quedas de gua, um riacho corrente; porque no Vero as neves, derretendo, deviam encher de gua aquelas encostas. Por onde corria a gua, pois, para onde se sumia a gua? S mais tarde descobrimos que (por uma causa ainda hoje para mim incompreensvel) toda a gua, em riacho ou em queda, descia pela vertente norte da serra.

A subida cada vez se tornava mais spera e custosa. Apenas fazamos uma milha por hora. A carne seca acabara. Meles, nenhuns mais encontrmos. O frio aumentava quase a cada passada, o que nos permitia certamente caminhar de dia, mas nos regelava de noite, terrivelmente! Havia agora muitas horas que no comamos. A serra subia, subia diante de ns, cada vez mais desolada, mais nua de verdura ou vida. Os nossos momentos de repouso passavam num silncio sombrio e cheio de desesperana. Eu, por mim, ia j to debilitado e confuso que, desses trs dias que nos levou a ascenso da serra, no me recordo com bastante nitidez e s poderia reconstru-los pelos apontamentos do meu Dirio. Na nota com data de 22 de Maio encontro isto: Partimos ao nascer do Sol. Vamos meio desmaiados de fraqueza. S quatro milhas andadas.

Comemos os pedaos de neve que comemos a encontrar. Frio intenso. Cada um de ns bebe uma gota de conhaque. Para dormir, amontomo-nos uns sobre os outros: nem assim conservmos calor. Estamos verdadeiramente sofrendo de fome. Julguei que Venvogel, o nosso hotentote, ia morrer esta noite. Tudo isto j terrvel. Mas o seguinte apontamento, datado de 23 de Maio, recorda sofrimentos mais vivos: Estamos numa situao medonha. A no ser que encontremos que comer hoje, o nosso fim est prximo. O conhaque acabou. Venvogel que, como todos os hotentotes, no pode aguentar frio, parece perdido. As nsias agudas da fome passaram. O que eu sinto ( e os outros dizem que sentem o mesmo) uma espcie de adormecimento, de torpor no estmago. Estamos ao nvel da grande escarpa, que eu chamo a porta, o colossal muro de terra, lava e rocha, que liga os dois Seios de Sab. Para trs de ns estende-se o deserto que atravessmos... Para que o atravessmos ns? Logo abaixo destas linhas h outra, escrita decerto num dos momentos em que parvamos: Deus se amerceie de ns, que chegou o nosso fim!

Esta linha no tem data, mas Sem dvida foi traada no dia 24. Depois, os apontamentos falham; mas eu muito bem me recordo dos sucessos nesse estranho dia. amos ento caminhando atravs da neve, com paragens incessantes, impostas pela incomparvel fadiga. Tudo em redor era radiantemente, indescritivelmente branco. E esta absoluta brancura, sob o absoluto silncio, tornava-se tanto mais desoladora, quanto evidenciava a ausncia de vida e a impossibilidade de achar que comer, fosse animal ou planta. Quase ao pr-do-sol chegmos junto da ponta do seio, dessa enorme colina de neve dura, que, pousada no topo da montanha (da montanha que reproduzia a forma perfeita de um seio), parecia ela prpria o bico desse peito descomunal. Apesar de exaustos, prendemo-nos um instante na admirao daquele esplndido cume de monte mais esplndido ainda pela luz vermelha e cor-de-rosa em que os raios do Sol poente o envolviam, dando-lhe um tom de carne, de uma carne sobrenatural que de si irradiasse luz. Mas a admirao no podia durar em homens colocados, como ns, a to extrema vizinhana da morte. O nosso mal era sobretudo o frio. Bem comidos, estimulados por um vinho generoso, ainda poderamos aguentar a pavorosa temperatura daquelas neves eternas. Mas assim, moribundos de fome como resistir noite que vinha caindo? Quando o sol nos faltasse, como viveramos, a menos de encontrar um abrigo? Abrigo!... Onde estava ele, nessa branca e lisa vastido de neve?

A cova de que fala o portugus, no papel, deve ser por aqui murmurou o capito John. Pobre John! Tinha os olhos (como os outros, como eu decerto) encovados, esgazeados, rebrilhantes de febre, sobre a lividez da face hirsuta. Considerei um momento o pobre amigo, encolhendo os ombros.

Cova! Se tal cova existe... Na cova estamos ns, ou beira dela.

O baro, porm agora acreditava firmemente na escrupulosa exactido do velho D. Jos da Silveira. Se ele a achou (argumentava o baro, e com razo) que essa cova est situada de tal sorte, to saliente e to visvel, que no pode deixar de atrair os olhos, e logo os passos de quem for trepando a serra.

Ainda a encontramos, e antes do sol-posto! afirmou ele, com um grande gesto de esperana.

Se a no encontramos foi a minha consoladora rplica e a noite vier sobre ns, assim desabrigados, o fim da nossa aventura. Em todo o caso, real ou metaforicamente, a cova!

Durante dez ou doze minutos arrastmos os passos num silncio mortal. Umbopa ia adiante, com os ombros abafados na manta curta, e um cinto de couro muito apertado, arrochado em volta da cinta para encolher a fome. Eu seguia atrs, quase vergado em dois. De repente tropecei nele, que parara, e que me agarrou pelo brao:

Macumazan, acol! exclamou surdamente, apontando com o cajado.

O que ele apontava era a linha abrupta onde comeava, subindo, a primeira encosta do bico do peito. E a, na brancura da neve, destacava uma mancha preta.

a caverna! exclamou Umbopa.

Talvez fosse! Parecia, com efeito, a abertura negra de um buraco. Para l endireitmos os passos. E na realidade encontrmos uma gruta, de entrada baixa e lbrega, que bem podia ser a que o velho D. Jos da Silveira marcara no seu roteiro. Em todo o caso ali estava um abrigo. E bendito era o seu encontro porque (como sucede nestas latitudes) o Sol sumiu-se subitamente, e logo atrs dele, de golpe, sem crepsculo, sem gradao, a noite caiu, gelada e negra. Enfimos bem depressa para dentro da caverna, como animais acossados. Aconchegmo-nos uns contra os outros, sentados no cho, costas com costas. E ali ficmos na treva, mudos, tiritando e procurando esquecer no sono a nossa extrema misria. Mas o frio, intenso de mais, no nos consentia dormir. Estou convencido que, naquela altura, o termmetro marcaria regularmente catorze ou quinze graus abaixo de zero! E era esta temperatura que tnhamos de afrontar, de todo alquebrados de fadiga, meio inanimados de fome!

Pois ali estivemos em monto, encolhidos uns nos outros, durante a infindvel noite, sentindo a cada instante, atravs do corpo, comeos de congelao ora num p, ora nos dedos, ora na orelha. Debalde nos apertvamos! Para qu! Nenhum tinha em si calor bastante para comunicar carcaa alheia. s vezes um conseguia dormitar durante momentos, mas para acordar logo em sobressalto, recomear a tremer. De resto, naquelas condies, o sono que se prolongasse decerto se tornaria eterno. Foi uma noite angustiosa! Eu, por mim, creio que me conservei vivo por um violentssimo e teimosssimo esforo da vontade.

Um pouco antes da madrugada, Venvogel, o nosso pobre hotentote, cujos dentes toda a noite tinham batido como castanholas, chamou baixo por mim, deu um pequeno suspiro, e ficou profundamente sossegado, como se tivesse adormecido. As costas dele pousavam contra as minhas costas. Pareceu-me que as sentia pouco a pouco arrefecer. Por fim tomaram-se, positivamente, como uma grande pedra de gelo que me regelava. Duas vezes as repeli. Duas vezes a pedra se abateu sobre mim, mais fria. O ar, no entanto, clareava. A entrada da cova foi aparecendo como uma nvoa luminosa, feita de refraco do sol sobre a neve. Uma luz mais viva e fixa estendeu para dentro a sua brancura e olhando ento para trs, descobri que o pobre hotentote estava morto!

Decerto morrera quando o ouvi suspirar. Pobre Venvogel! No admirava que lhe tivesse sentido as costas cada vez mais frias, mais frias... A sua misria findara. Ali estava agora, na mesma postura, com as mos apertadas em torno dos joelhos, a cabea cada para baixo, gelado. Todos nos erguemos de salto, com horror. J a esse tempo o dia penetrara na caverna, numa luz mortia e vaga. De repente, ao meu lado, ressoou um grito. Volto a cabea vivamente. E vejo vejo ao fundo da gruta, que no tinha mais de quatro metros, uma forma, uma figura humana, sentada numa pedra, com a cabea toda descada sobre o peito, os braos hirtos e pendentes para o cho. Aproximei-me mais, aterrado. E percebi que era tambm um morto. Pior ainda, percebi que era um branco!

Os nossos nervos, desorganizados j, no puderam com esta nova e brusca emoo. Tropeando uns nos outros, largmos desesperadamente a fugir para fora da caverna.

Mas depois, fora, na plena luz, olhmos uns para os outros envergonhados.

Vou ver outra vez exclamou o baro, terrivelmente plido. Talvez a figura que vimos seja a de meu irmo.

Era possvel. E um por um, num silncio apavorado, atrs do baro, tornmos a penetrar na gruta. Ao princpio, deslumbrados pela grande luz exterior e pela alvura da neve, nada distinguamos na penumbra cncava. Por fim a estranha, horrvel figura destacou, surgiu na sombra. Avanmos para ela. O baro ajoelhou, espreitou a face morta, teve um suspiro de alvio:

No, graas a Deus, no ele!

Fui tambm olhar. No, nem remotamente se parecia com esse sujeito chamado Neville, que eu encontrara em Bamanguato. O cadver era o de um homem alto, de meia-idade, com feies aquilinas, cabelo j grisalho, e longos bigodes negros. A pele, perfeitamente amarela, estava toda esticada sobre os ossos. No tinha fato, a no ser uns restos de meias altas, de l, at aos joelhos. Do pescoo, preso por uma correntezinha, pendia-lhe um crucifixo de marfim. Todos os membros hirtos se lhe tinham petrificado.

Quem poder ser? murmurei, assombrado.

O capito John contemplava a figura, pensativamente.

Tenho uma ideia... No pode ser seno ele! o velho fidalgo! D. Jos da Silveira!

Eu e o baro soltmos o mesmo grito de incredulidade:

Impossvel! H trezentos anos!

Mas o capito tinha as suas razes, e decisivas. Numa temperatura como a da cova, que a de uma geleira, um corpo morto pode perfeitamente conservar-se trezentos anos mesmo trs mil... Essa temperatura, de quinze a dezassete graus abaixo de zero, nunca ali mudava; nenhum raio de sol entrara jamais naquela cova voltada para noroeste; no havia animais que ali penetrassem e que destrussem o corpo. Que importavam trs sculos? A carne de aougue, que vem de Nova Zelndia para Londres dentro das geleiras artificiais, est fresca ao fim de trinta dias; e conservada em iguais condies, no se deterioraria ao fim de trinta sculos. Naturalmente o escravo (de quem ele fala no papel), quando o encontrou morto, tirou-lhe o fato, no se deu ao trabalho de o enterrar, e abalou...

E olhai! acrescentou o capito apanhando uma espcie de osso da forma de um lpis, e aguado, que jazia no cho, ao lado. Aqui est com que ele desenhou o mapa! Tirou sangue do brao, escreveu com esta ponta de osso!

Passmos o osso de mo em mo, em silncio, esquecendo as nossas prprias misrias no espanto daquele encontro. J no podia haver dvida. Ali estava ele, pois, sentado numa pedra, frio e duro como ela, o homem cujo derradeiro escrito, traado havia mais de trezentos anos, nos trouxera ao lugar mesmo onde ele o escrevera para o encontrar a ele prprio, na mesma atitude em que, com o seu sangue, riscara o roteiro que de alm-tmulo nos guiava! Incomparvel maravilha! Ali tinha eu na mo a rude pena com que ele traara essas linhas! E parecia que ante mim, pouco a pouco, ressurgiam visveis, redivivos, os momentos passados h trs sculos o herico fidalgo, morto de frio e de fome, procurando revelar ao seu rei o segredo imenso que descobrira; a camisa rasgada, a veia aberta; as linhas trmulas ansiosamente lanadas; a pena informe, escorregando-lhe da mo; a treva da noite enchendo a cova; o derradeiro beijo pousado no crucifixo; um pensamento dado ainda aos seus, terra donde partira num galeo, ao rei que servia com indomada f; por fim a morte, o lento e sereno resvalar para a morte, naquele imenso silncio e na imensa solido!

Por vezes mesmo, olhando para ele, parecia-me reconhecer as aquilinas e enrgicas feies do seu descendente, o pobre Silveira que me morrera nos braos. Talvez a imaginao. Em todo o caso ele ali estava, o primeiro, o antepassado, esse de quem o seu remoto neto me falara, estendendo os olhos j embaciados para os distantes Seios de Sab. Ali estava; e provavelmente l est ainda, l estar, atravs dos sculos que ho-de vir, para espantar outros aventurosos homens como ns, se jamais houver outros que cheguem a penetrar na sua espantosa e solitria tumba!

Vamos embora! exclamou o baro, muito plido.

Mas parou. E apontando o corpo de Venvogel, que ficara na mesma postura, com os joelhos boca, os braos apertados em volta dos joelhos:

Demos uma companhia ao pobre morto, para dormir neste esquecimento.

Erguemos ento o cadver de Venvogel e colocmo-lo sentado na pedra, junto do do velho fidalgo portugus. Depois o baro quebrou a corrente que pendia do pescoo de D. Jos da Silveira, e guardou o crucifixo no seio. Eu prprio tomei o osso em forma de lpis. Aqui o tenho ao meu lado, enquanto estas linhas escrevo. s vezes assino com ele o meu nome.

Finalmente, tendo-os deixado lado a lado, o altivo fidalgo de outras eras e o pobre servo hotentote, a passar a sua eterna viglia entre essas eternas neves, samos da caverna para a luz esplndida e retommos em fila o nosso triste caminho, pensando que bem cedo estaramos como eles, gelados e hirtos, num barranco da serra.

Andada uma milha, que nos levou muito tempo, chegmos enfim extremidade do planalto do monte, sobre o qual assentava o bico do peito. E foi uma grande emoo. Por baixo de ns, adiante de ns, estava (devia estar) enfim essa regio misteriosa para alm das serras, que ns vnhamos demandando mas toda ela se ocultava sob um denso nevoeiro. Ali ficmos pois repousando, esperando. Pouco a pouco, as camadas mais altas da nvoa foram-se desfazendo. Avistmos ento um pendor da serra, muito doce e todo coberto de neve. Depois outras camadas de nevoeiro mais abaixo clarearam; e apareceu aos nossos olhos famintos uma campina de erva verde, um regato correndo atravs, e beira da gua, deitados ou pastando, uns dez ou doze animais que nos pareceram antlopes.

A nossa alegria foi como a de uma ressurreio. Caa! Ali estava caa para comer, e deliciosa! Era a salvao, era a vida! A dificuldade era caar essa caa!...

Lembro-me que, no nosso imenso alvoroo, tivemos uma rpida e atarantada discusso, em voz baixa e trmula se devamos aproximar-nos da caa ou fazer fogo dali, se devamos usar as carabinas Winchester ou a Express! Indeciso terrvel porque de acertar ou falhar dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentssemos atravessar o pendor da neve, podamos espantar o rebanho. E a carabina Express, apesar de um alcance inferior, era prefervel porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antlopes.

Enfim, fizemos fogo, todos a um tempo, com um estampido que rolou tremendamente nas quebradas dos montes. O fumo clareou. E eis que, alegria sem par, vemos um dos animais por terra esperneando furiosamente. Berrmos de puro gozo. Estvamos salvos! Salvos! De fome j no morramos! Corremos aos trambolhes pela neve abaixo e em poucos momentos tnhamos nas mos os fgados e o corao do animal, quentes e fumegando!

Mas surgia uma dificuldade. Sem lenha, sem lume, como assar a caa?

Gente faminta no tem exigncias gritou excitadamente o capito John. A ela, e crua!

No restava outra soluo e no nos pareceu repugnante. Arrefecemos as vsceras na neve, lavmo-las na gua corrente e devormo-las com voracidade! Parece horrvel mas confesso que aquela carne crua me soube divinalmente! Da a um quarto de hora, que mudana! Voltara-nos a vida, o vigor! O pulso batia outra vez forte e regular. Eu, por mim, sentia positivamente o sangue degelar-se, correr-me dentro das veias!

O baro apertou as mos, e disse simplesmente:

Louvado seja Deus por isto!

Ficmos olhando uns para os outros, muito tempo, sem fala, num sorriso mudo. E no havia em ns outra sensao seno a de estarmos salvos, de estarmos vivos! Por fim adormecemos, envoltos docemente no sol, que subia macio e tpido. Quando acordmos, e esfregmos os olhos, o nevoeiro desaparecera. Toda a vasta regio em baixo nos apareceu num relance. Demos um grande ah, lento e maravilhado! Nunca eu vira (nem outra vez verei!) terra mais deslumbrante! Mudo ainda, tonto da fadiga e da fome passada, parecia-me que morrera, que chegara ao Paraso, e que o Senhor nos ia aparecer!

Estvamos no planalto de um dos Seios de Sab, com um dos bicos do peito erguendo-se por trs de ns at s nuvens, sublime e brilhante de neve. Logo por baixo desciam os vastos pendores da serra, numa profundidade de cinco mil ps; e para alm das derradeiras faldas, a perder de vista, eram lguas e lguas de uma terra esplendidamente frtil, de adorvel beleza. Vamo-la desdobrada ante ns, como um imenso mapa em relevo; e os seus encantos diferentes, assim abrangidos num relance, davam a impresso de um Paraso resumido, onde Deus prodigamente tivesse reunido as suas obras melhores. Escassamente se pode detalhar uma paisagem to formosa e vria.

Aqui alastrava-se uma vasta mancha de floresta; alm um rio ondulava com vivos brilhos de ao novo; para diante longas pradarias tapetavam o solo de verde tenro e claro; mais longe era um lago que brilhava, grandes rebanhos que pastavam, ou uma colina onde a gua viva borbulhava e faiscava entre as rochas. As culturas abundavam, ricamente coloridas. A cada instante entre pomares e regatos avistvamos aldeias graciosas, com as cabanas coroadas por um tecto de colmo agudo. De tudo se elevava uma sensao prodigiosa de vida e de fartura, de paz. No horizonte surgiam picos de serras remotas, cobertas de neves. E um sol radiante derramava ilimitadamente a alegria do seu fulgor de ouro.

Duas coisas nos impressionaram. Primeiramente, que aquela regio to rica estivesse pelo menos cinco mil ps acima do nvel do deserto. E depois que toda aquela gua da serra corresse de sul para norte, do lado oposto ao serto, indo unir-se ao magnfico rio que se perdia no horizonte azulado.

Nenhum de ns falava, arroubados na contemplao daquela incomparvel Natureza. Por fim o baro estendeu o brao:

H uma estrada marcada no mapa, com o nome de estrada de Salomo, no verdade? Pois l est, alm, para a direita...

E com efeito, para a direita, nos primeiros declives da serra, abaixo dos nossos ps, branquejava uma grande estrada! Tnhamos j perdido toda a faculdade de admirar. E a nenhum de ns pareceu estranho que, no topo de uma montanha, no centro de frica, a centos de lguas de toda a cincia e civilizao, houvesse uma estrada, com as propores e grandeza de uma velha via romana, branca como neve, talhada sobre os abismos.

O melhor descermos disse simplesmente o capito John.

A estrada ficava (como disse) nossa direita, surgindo por trs de grossas penedias que se amontoavam no primeiro pendor da serra. Cortmos para l devagar, ora atravs de grandes espaos de neve, ora por sobre montes de lava. Quando dobrmos por fim as penedias, avistmo-la de repente, em baixo, a algumas jardas. Era magnfica, toda cortada na rocha viva, e admiravelmente conservada! Mas, coisa extraordinria, parecia comear ali, ao meio da serra, bruscamente. Continumos a descida alvoroados, pusemos enfim os ps sobre as suas fortes lajes. Olhmos, explormos em redor. A estranha via findava com efeito ali, entre umas rochas de lava entremeadas na neve!

Extraordinrio! exclamou o baro. Porque comea esta estrada assim, ou porque acaba assim, de repente, no meio da serra?

Abanei a cabea, em perfeita ignorncia.

Parece-me que percebo disse o capito, coando o queixo. Esta estrada simplesmente maravilhosa! No acaba aqui. Antigamente galgava a cordilheira e seguia pelo deserto. Mas a parte que galgava a serra para alm foi coberta por montes de lava, nalguma erupo; e a parte que cortava o deserto foi invadida pelas areias movedias. No pode ser seno isto.

Talvez fosse. Em todo o caso, largmos os passos por sobre essa surpreendente estrada, que tinha o nome de Salomo. Esta suave descida por uma magnfica calada, com as foras restauradas, e a abundncia a esperar-nos em baixo, nos frteis campos cheios de gado, era bem diferente da subida pela neve acima, extenuados de fome e de fadiga, e com a aflitiva incerteza do que estaria para alm. Na verdade, se no fosse a triste lembrana do pobre Venvogel e da sinistra cova, onde ele espectralmente ficara ao lado do velho de outras eras, poderamos cantar de pura alegria. A cada milha que andvamos, o ar cada vez se tornava mais macio e tpido e a regio em tomo parecia crescer para ns, a transbordar de abundncia e beleza. A estrada, essa, era positivamente portentosa. Afirmava o baro que tinha semelhanas com a estrada do Saint-Gothard sobre os Alpes. Eu, por mim, no vira maravilha maior! Num certo stio abria-se uma ravina medonha, de uns trezentos ps de largura, de uma profundidade de mais de cem mil ps; pois este abismo estava vadeado por um colossal aqueduto, com arcos para a passagem das torrentes, sobre o qual a estrada seguia com soberba segurana. Noutros stios, cortada em zigue-zague na rocha, contornava pavorosos precipcios, com parapeitos que a defendiam e formavam balces sobre o abismo. Mais adiante, perfurava um monte de rocha, com um tnel de trinta jardas.

Nas paredes deste tnel corriam singulares relevos, representando guerreiros com cotas de malha, que retesavam arcos, guiavam carros de combate. Havia mesmo uma grande cena de batalha, com lanas em confuso, e cativos acorrentados.

Tudo isto obra egpcia dizia a baro, parando a cada instante. Tudo isto eu vi nos templos do Alto Egipto. O nome da estrada vir de Salomo. Mas estas esculturas so das mos de egpcios.

Pela uma hora da tarde tnhamos descido a montanha at s faldas baixas onde comeava o arvoredo. Ao princpio eram apenas raros arbustos silvestres. Depois a estrada penetrava num bosque de olmos, uns olmos cujas folhas brilham como prata, e que eu supunha s existirem no Cabo.

Estamos ao menos em terra de lenha! exclamou entusiasmado o capito John.

Vamos parar, e cozinhar um jantar. Eu, por mim, j digeri aquela carne crua... Reentremos solenemente na civilizao!

Todos, com efeito, tnhamos fome; e deixando a estrada, fomos em direco a um regato que brilhava a distncia entre rvores e relvas. Bem depressa fizemos um fogo de ramos secos; e, cortando suculentos bifes do lombo do antlope que trouxramos connosco, assmo-los na ponta de espetos de pau, velha maneira dos cafres. Ao fim do delicioso repasto acendemos os cachimbos e, estirados sombra das frescas rvores, gozmos enfim, depois de to longos e duros dias, um repouso perfeito.

O lugar era adorvel. O regato, muito frio e muito puro, cantava sobre seixos que reluziam. As margens verdejavam, cobertas de fetos esplndidos, entremeados com plumas de espargos silvestres. Aqui e alm cresciam tufos de flores. Uma brisa, tpida e macia como veludo, sussurrava nas folhas dos olmos. Bandos de rolas arrulhavam meigamente. E, de ramo em ramo, faiscavam as asas de pssaros mais brilhantes que jias.

Nenhum falava, no enlevo daquela paz e daquela doura. E por muito tempo nenhum de ns se moveu at que o capito John, surgindo de repente nu do leito. espesso de fetos onde se enterrara, correu para o riacho, e mergulhou num longo e ruidoso banho. Deitado de costas, num bem-estar indizvel, ocupei-me ento a observar aquele homem admirvel, que, apenas se achava numa regio de ordem, retomava os seus complicados hbitos de asseio e de elegncia. Depois do banho, o nosso excelente amigo revestiu a camisa de flanela; e, sentando-se beira do regato, rompeu a lavar os seus colarinhos de guta-percha. Finda esta barrela sacudiu, escovou, esticou as calas, o colete, o jaqueto, dobrou tudo cuidadosamente, e ps-lhe por cima pedras para acamar e desfazer os vincos. Em seguida, profundamente concentrado, passou s botas, que esfregou com uma mo-cheia de feto, e depois besuntou com gordura de antlope (que pusera de lado) at lhes dar uma aparncia comparativamente lustrosa e decente. Tendo-as examinado com cuidado, de monculo fixo e cabea banda, encetou outras e mais delicadas operaes. De um pequeno saco que trazia na mochila, tirou um espelhinho e examinou cuidadosamente dentes, olhos, cabelos, barba a barba j grossa de oito dias. Este exame parecia humilh-lo, porque abanava a cabea com desconsolao e tdio.

Comeou ento pelas unhas, que aparou e poliu; depois seguiu ao cabelo, que acamou e apartou... Mas de repente, com uma ideia, calou as botas que pusera ao lado; e assim, de botas, com as pernas fluas, e em camisa de flanela, ergueu-se para ir pendurar o espelhinho num ramo de rvore, O arranjo no provou satisfatoriamente, porque voltou para a beira do regato, e com custo e arte equilibrou o espelho numa folha grossa de feto. Tornou logo a meter a mo no saco e tirou uma navalha de barba... Santo Deus!, pensei eu, erguendo-me no cotovelo, o homem ir fazer a barba? Ia. Tomando outra vez o pedao de gordura de antlope com que ensebara as botas, lavou-a escrupulosamente no regato, esfregou com ela desesperadamente a face e o queixo, e principiou a rapar o plo spero de oito dias. Era porm uma operao difcil, porque cada movimento da navalha vinha acompanhado de um angustioso gemido. Por fim conseguiu escanhoar a face esquerda e metade do queixo. Grande suspiro de alvio! E ia atacar a outra face quando, de repente, vi uma coisa passar e lampejar por cima da cabea.

John deu um pulo, com uma praga. Ergui-me tambm de salto e na mesma margem do regato, a distncia de uns trinta passos, dei com os olhos num bando de homens. Era uma gente de grande estatura, imensamente robusta, e cor de cobre. Alguns deles traziam aos ombros peles de leopardo, e na cabea umas coroas de altas penas, negras, direitas, que ondulavam na brisa. Em frente do bando, um rapaz de uns dezassete anos conservava ainda o brao erguido e o corpo inclinado, na atitude graciosa de uma esttua que eu vira no Cabo, um efebo grego que lana um dardo. Evidentemente a coisa que passara e brilhara era um dardo e fora o moo airoso que o arremessara.

Quase imediatamente, um velho, de ar erecto e marcial, saiu de entre o grupo, e, agarrando o brao do rapaz, falou-lhe baixo como se o avisasse. Em seguida todos avanaram para ns.

O baro, John e Umbopa tinham logo agarrado e apontado as carabinas. Os homens todavia continuavam avanando, devagar, em grupo. Percebi logo que nunca tinha visto espingardas, pelo modo como afrontavam assim tranquilamente os trs canos erguidos.

Baixem as armas! gritei aos outros.

Tinha compreendido tambm que a nossa segurana entre essa gente selvagem dependia toda de conciliao e de ardil. Apenas pois os companheiros baixaram as armas, caminhei lentamente para o velho.

Bem-vindo! exclamei em zulu, ao acaso, sem saber que idioma entenderiam aqueles homens.

Com surpresa minha, o velho compreendeu. E respondeu logo, no em zulu, mas num outro dialecto, to parecido com o zulu, que Umbopa e eu o percebemos perfeitamente:

Bem-vindo!

Como viemos a saber depois, a lngua deste povo era uma forma antiquada da lngua zulu e estando para o zulu do Sul como o ingls do tempo dos Tudores est para o ingls polido do sculo XIX. No entanto o velho avanara outro passo, erguendo a mo.

Donde vindes? continuou ele. Quem sois? Porque tendes trs de vs as faces brancas, e o outro a pele como ns e como os filhos de nossas mes?

E apontava para Umbopa que na realidade, pela figura, pela cor, pelas feies, era muito semelhante queles homens formidveis. Eu ento repeti a saudao ao velho. E, muito espaadamente, para que ele apanhasse bem o meu zulu:

Somos gente de outros stios, vimos em boa paz, e este homem nosso servo. O velho abanou lentamente a cabea, ornada de imensas plumas negras que ondulavam.

Mentes! A gente de outros stios no pode atravessar as montanhas, nem o deserto sem gua onde toda a vida acaba. Mas no importa que mintas... Se sois estranhos e vindes de outros stios, tendes de morrer, porque no e permitido a ningum entrar na terra dos Cacuanas. a vontade do nosso rei. Preparai-vos pois para morrer, gentes!

Fiquei um pouco perturbado tanto mais que vi alguns selvagens levarem logo a mo ao cinto donde lhes pendiam umas armas em forma de pesadas navalhas.

Que diz esse malandro? perguntou o capito, percebendo o meu embarao.

Diz simplesmente que nos vai retalhar faca.

Santo Deus! murmurou o nosso amigo.

E, como era seu costume em frente de um perigo ou de uma crise, passou nervosamente a mo pelo queixo e pelos beios. Alguma coisa decerto lhe sucedeu ento dentadura postia (que momentos antes tirara para lavar e que tornara a pr), porque num relance lhe vi os dentes todos de fora, e logo sumidos para dentro! No percebi bem o caso. Mas qual o meu espanto quando os cacuanas soltam um grito de terror, e recuam em tropel!

Que foi? exclamei.

Foram os dentes! acudiu o baro, excitadamente.

Os selvagens viram-lhe os dentes a mover-se... Tira-os de todo, John, tira-os de todo. Talvez os assustes.

O capito prontamente compreendeu, passou a mo devagar por sobre a boca, e escamoteou a dentadura. Os cacuanas, no entanto, numa nsia de curiosidade, avanavam de novo, com os olhos arregalados para John. E foi o velho (evidentemente um chefe) que ergueu a voz e a mo, com solenidade:

Quem este homem, gentes, que tem o corpo coberto, as pernas fluas, cabelo s em metade da cara, e um grande olho que reluz? Quem ele que faz mexer assim vontade os dentes para dentro e para fora da boca?

Abra a boca, John! murmurei eu baixo para o capito.

John arreganhou os beios, e exibiu duas gengivas muito vermelhas, desdentadas como as de um recm-nascido. Entre os selvagens passou um sussurro de espanto.

Onde esto os dentes? Ainda agora tinha dentes! exclamavam eles, entre si, com gestos apavorados.

Ento John deu um movimento vagaroso cabea, passou a mo pela boca com soberana indiferena, e desfranzindo de novo os beios mostrou duas esplndidas filas de dentes, muito fortes, muito sos, que rebrilhavam.

No mesmo instante o rapaz que despedira o dardo arremessou-se para o cho, com gritos espavoridos. Todo o bando tapava as faces com as mos, num terror. E o velho, que parecia o mais resoluto, tremia tanto, e to encolhido, que lhe batiam os joelhos um contra o outro.

S quem conhece selvagens e a mobilidade daquelas imaginaes infantis pode compreender como subitamente, em cada um deles, ao desejo de nos matar ia j sucedendo o impulso de nos adorar... Quando o velho tornou a levantar a voz, foi muito humildemente e numa postura de splica:

Vs sois espritos! Bem vejo que sois espritos, gentes! Nunca houve homem nascido de mulher que tivesse s cabelo num lado da cara, e um olho redondo e transparente, e dentes que se derretem e de repente crescem outra vez... Vs sois espritos. Perdoai-nos, senhores, perdoai-nos!

Aproveitei logo esta esplndida ocasio. E estendendo o brao, com soberba magnanimidade:

Estais perdoados.

Era porm necessrio, para nossa salvao, que deslumbrssemos e inteiramente nos apoderssemos daquelas almas ferozes e simples. E para isso, na frica (como noutras partes) o mais pronto instrumento o sobrenatural. No hesitei portanto (com vergonha o confesso) em me atribuir, a mim e aos meus companheiros, uma origem divina! De resto, com o negro da frica Central, que pela primeira vez v o branco, e assiste a alguns dos milagres que o branco pode realizar com os pequenos recursos da sua pequena civilizao, este procedimento o mais seguro e o mais humano. O selvagem fica desde logo (pelo menos por algum tempo) contido dentro do respeito, absolutamente razovel e tratvel; e assim, poupando ao negro as traies, os brancos poupam a si prprios as represlias.

Ergui pois a mo, e disse, com vagar e majestade:

J que vos perdoei, porque sois ignorantes, condescendo tambm em vos dizer quem somos. Somos espritos. Vivemos alm, por cima das nuvens, numa daquelas estrelas que vs vedes de noite brilhar. E viemos visitar esta terra, mas em paz e para alegria de todos!

Entre os indgenas correram grandes ah! ah! lentos e maravilhados.

Eu prossegui, mais grave:

Ns conhecemos todos os reis e todas as gentes. E eu, que sou a voz dos outros, conheo todas as lnguas.

A nossa bem mal! arriscou com timidez o velho guerreiro.

Dardejei-lhe um olhar chamejante que o estarreceu. E gritei logo, para fazer uma diverso brusca quela observao to justa e perigosa:

Viemos em paz, certo! Mas fomos recebidos em guerra. E talvez devssemos castigar j o ultraje feito por esse moo, que sem provocao atirou uma faca ao esprito divino cujos dentes de repente nascem e caem.

Oh! no! meu senhor! gritou numa ansiosa splica o velho guerreiro. Poupai-o! Poupai-o, que o filho do nosso rei! Eu sou seu tio, que o ajudei a criar. S eu respondo por cada gota do sangue que lhe gira nas veias!... meu senhor, a demncia vai bem aos espritos!

Afectei no compreender a angustiosa prece, e tornei com superior indiferena:

As nossas maneiras de castigar so simples e terrveis. Num instante ides ver... Tu, escravo que nos segues (e aqui encarei para Umbopa), d-me a arma de feitios que troveja.

Umbopa, que assistira absolutamente impassvel e srio a todas as minhas afirmaes de divindade e que (zulu inteligente, afeito aos brancos e s suas manhas) lhe percebera o alcance estendeu-me uma carabina Winchester, com humilssima reverncia.

Justamente nesse instante avistei, para alm do riacho, a umas setenta jardas de distncia, um pequeno antlope, imvel sobre um monto de rochas.

Vedes aquele gamo? exclamei eu para os selvagens. Julgais possvel que um simples homem, nascido do ventre da mulher, o mate daqui donde estou, s com fazer estalar um pequeno trovo?

No possvel! murmurou, recuando, o velho guerreiro. No possvel para homem nascido do ventre da mulher!

Ides ver.

Apontei. Bum! E subitamente o gamo, dando um pulo furioso no ar, tombou morto, imvel, estatelado nas pedras.

Um fundo murmrio de assombro, de terror, passou entre os cacuanas... Eu acrescentei simplesmente:

A est. E se tendes fome, podeis ir buscar aquele gamo!

O velho fez um sinal. Dois homens, correndo, trouxeram a caa. E amontoados em volta dela, todos em silncio (num silncio que era religioso pelo pavor que continha), ficaram contemplando boquiabertos o buraco da bala que lhe acertara entre os ombros.

Se no estais satisfeitos volvi eu ainda se em vez de um gamo me quereis ver matar um homem, que um de vs se coloque alm sobre as pedras ou mais longe, e o raio ir ter com ele.

Houve um movimento geral dos cacuanas, recuando e protestando.

No! No! gritaram alguns. Acreditmos, acreditmos... No vale a pena gastar feitios com ns outros, que acreditmos e que somos amigos!

O velho guerreiro interveio, com alacridade:

Assim ! Ns somos amigos. E para que nos conheais bem, almas das estrelas, que trovejais e matais to de longe, sabei que eu sou Infands, filho de Cafa, antigo rei dos Cacuanas. Este moo Scragga, filho de Tuala, nosso rei! Tuala, o homem de mil mulheres, senhor dos Cacuanas, terror dos seus inimigos, sentinela da Grande Estrada, sabedor das artes negras, chefe de cem mil guerreiros, Tuala o supremo, Tuala o de um s olho...

Basta interrompi sobranceiramente. Leva-nos ento ao rei Tuala. Porque, nas nossas jornadas pelo mundo, ns s falamos a reis!

Certamente, meu senhor, certamente... Mas ns andvamos caando nestes stios, e estamos a trs dias de jornada da aringa do rei. So trs dias que tendes de caminhar.

Caminharemos. Escuta tu, porm, Infands, e tu, Scragga, filho de Tuala! Se por acaso tentardes no caminho armar-nos uma traio, ou se essa ideia vos atravessar sequer a cabea, ns, que tudo adivinhamos, tomaremos de vs tal vingana, que far ainda estremecer os filhos de vossos filhos. Aquele cujo olho reluz, e cujos dentes vo e vm, incendiar todas as vossas searas com a chama do seu olho, e despedaar todas as vossas carnes com as pontas das suas presas! E ns faremos ressoar os canos que trovejam de uma maneira que ser pavorosa! Toda a gua secar. Todo o gado morrer. E os espritos maus viro, nossa voz, dispersar os vossos ossos... E agora a caminho. Esta tremenda fala era quase suprflua porque os nossos novos amigos acreditavam, superabundantemente, nos nossos poderes sobrenaturais. Ainda assim, o velho Infands saudou-nos com uma reverncia mais funda e mais servil, repetindo trs vezes estas palavras: Crum! Crum! Crum! Como depois soubemos, esta a maneira cacuana de saudar o rei. Corresponde ao Baiete! dos Zulus.

Depois o velho atirou um gesto aos seus, que imediatamente carregaram s costas as nossas mochilas, cantinas, mantas e outras miudezas excepto as espingardas, de que eles se afastavam em grandes voltas e com olhares de terror.

Um deles lanou mo ao fato do capito John, ainda cuidadosamente dobrado beira da gua. O excelente John deu logo um pulo para as calas. E rompeu ento uma imensa altercao.

No, meu senhor gritava Infands no consentirei que o meu senhor carregue com essas coisas!

Mas que eu quero pr as calas! berrava John.

Todos somos aqui seus escravos para servir e carregar...

Mas as calas...

Meu senhor!

Larga as calas, malandro!

Tive de intervir, sufocado de riso.

Escute, John. O caso mais srio do que parece. Um dos motivos do terror que estamos inspirando a sua luneta, a sua cara meio barbada e meio rapada, os seus dentes postios, e essas pernas brancas mostra... Tudo isso espanta as imaginaes de selvagens. E se o amigo quer que no nos percam o medo, necessrio continuar a aparecer-lhes nessa figura. Se o amigo lhes surgir amanh de outro modo, tomam-nos por impostores, e a nossa vida no vale mais um pataco. Assim o viram nesta terra, assim nela tem de ficar.

John, inquieto, hesitante, voltou os olhos para o baro.

O amigo Quartelmar tem razo afirmou o baro. E d graas a Deus que j estavas de botas, e que a temperatura to doce.

John teve um suspiro de furiosa resignao. E, durante a nossa estada na terra dos Cacuanas, foi assim que John se mostrou e sempre praticou notveis feitos de botas, de pernas nuas, com uma metade da cara rapada, outra coberta de barba, e a fralda voando ao vento!

 

 

VI

PENETRMOS NO REINO DOS CACUANAS

 

Toda essa tarde trilhmos a larga, magnfica estrada que seguia infindavelmente para o lado de noroeste. Alguns dos negros marchavam adiante (uns cem passos), como vedetas. Outros seguiam levando as nossas bagagens. Ns amos no meio entre Infands e Scragga.

Pouco a pouco, Infands e eu descamos numa palestra familiar e amigvel. O velho era esperto e loquaz.

Quem fez esta estrada, Infands?

Foi feita h muito tempo, meu senhor. Ningum sabe quando; nem mesmo uma mulher que tudo sabe, Gagula, que tem vivido atravs de geraes... J ningum pode fazer estradas assim... Mas o rei no consente que se desmanche, nem que lhe cresa a erva por cima.

E h quanto tempo vivem aqui os Cacuanas, Infands?

A nossa gente, meu senhor, veio para aqui de grandes terras que esto para alm (indicava o Norte) h mais de dez mil milhares de luas. Para baixo no puderam seguir, segundo diziam nossos avs, que o disseram a nossos pais, e segundo conta Gagula, a mulher que tudo sabe. No puderam por causa das altas montanhas que esto em redor, e do deserto onde tudo morre. De modo que, como a terra era frtil, aqui assentaram; e tantos e to fortes se tornaram que, agora, quando Tuala, nosso rei, chama os seus regimentos, o cho treme todo com o seu peso, e at onde a vista alcana s se vem plumas de guerreiros e lanas.

Mas se a terra est murada de montanhas e se no tendes vizinhos, para que so tantos soldados?

A terra est aberta para alm (e indicava o Norte). E s vezes descem de l multides, que no sabemos quem so e que ns destrumos. J correu a tera parte de uma vida de homem desde a ltima guerra. Depois houve outra guerra, mas, foi entre ns, irmo contra irmo.

Como foi isso, Infands?

Infands comeou ento uma dessas histrias de pretendentes e de guerras dinsticas, que abundam em todos os continentes. O pai dele, Capa, que era o rei dos Cacuanas, tivera por primeiros filhos, da primeira mulher (ele, Infands, era filho de uma concubina) dois gmeos. Ora a lei dos Cacuanas manda que, de dois gmeos reais, o mais fraco seja sempre destrudo. Mas a me, por piedade e amor, escondeu o gmeo mais fraco, que se chamava Tuala, e, ajudada por Gagula, educou-o em Segredo numa caverna. Quando Capa morreu, o gmeo mais velho, que se chamava Imotu, foi portanto rei; e logo depois teve da sua mulher favorita um filho por nome Ignosi. Ora por esse tempo passara a guerra com os povos do Norte: os campos no tinham sido semeados; veio uma fome; e havia grande misria e dor entre o povo, que, como uma fera esfaimada, rosnava, procurando com os olhos sangrentos alguma coisa em redor para despedaar. Foi ento que Gagula, a mulher que tudo sabe e que no morre, rompeu a dizer que os males todos provinham de que Imotu reinava sem ser rei. Imotu, a esse tempo, estava doente na sua cubata, com uma ferida. Comeou a correr um clamor entre o povo. Por fim Gagula, um dia, rene os soldados, vai buscar Tuala, o gmeo mais novo que ela e a me tinham escondido nas cavernas, apresenta-o ao povo, descobre-lhe a cinta, e mostra a marca real com que entre os Cacuanas os reis so marcados ao nascer uma tatuagem representando uma cobra, que se enrosca em torno de um ventre real, e vem reunir, sobre o umbigo real, a cabea e o rabo. E, ao mesmo tempo, Gagula gritava: Eis o vosso verdadeiro rei, que eu salvei e que escondi, para ele vos vir salvar agora! O povo, tonto de fome, ignorando a verdade, espantado com a evidncia da marca real, largou a bradar: Este o rei! Este o rei! Alguns sabiam bem que no e que neste s havia impostura. Mas nesse momento, ouvindo os alaridos, o rei Imotu sai doente e trpego da sua cubata, com a mulher e o filho que tinha trs anos, a saber por que vinham tantos brados e porque pediam eles o rei. Imediatamente Tuala, o irmo, corre para ele e crava-lhe uma faca no corao! E o povo, que as aces decididas e bruscas sempre fascinam, gritou logo: Tuala rei! Tuala provou que rei! Diante disto a pobre mulher de Imotu agarrou o filho, o seu Ignosi, e fugiu. Ainda apareceu, passados dias, numa aringa, pedindo de comer. Depois viram-na seguir para os lados dos montes e nunca mais voltou.

De modo observei eu, interessado por esta pgina de histria negra que Tuala no o verdadeiro rei.

O velho respondeu com prudncia:

Tuala, o grande, rei. Mas se Ignosi vivesse ainda, s esse tinha o legtimo direito de reinar sobre os Cacuanas. A cobra sagrada foi-lhe marcada em torno da cinta. O rei ele. Somente decerto h muito que Ignosi morreu...

Casualmente, nesse instante, voltando-me para falar aos camaradas que marchavam atrs, esbarrei com Umbopa que quase me pisava os calcanhares, absorto naquela histria de Imotu e de Ignosi, com uma curiosidade, um interesse que lhe punham nos olhos um brilhar desusado, lhe davam a expresso de quem de repente lembra coisas vagas, remotas, semiesquecidas, perturbadoras. Nessa ocasio permaneci indiferente. Mas depois, atravs da jornada, muitas vezes pensei naquela ansiosa, esgazeada curiosidade do zulu.

No entanto j trilhramos algumas fortes milhas de estrada. As montanhas de Sab ficavam para trs, envoltas nos seus msticos vus de nvoa. E o pas cada vez se oferecia mais famoso e mais rico.

Ao comeo da tarde avistmos enfim uma grande povoao que, segundo Infarids nos declarou, pertencia ao seu comando militar e continha uma vasta guarnio. O velho guerreiro mandara mensageiros adiante, correndo, num passo de gazela, a anunciar a nossa vinda. E quando nos aproximmos da aldeia, descobrimos, com efeito, saindo das portas e marchando ao nosso encontro densas companhias de soldados.

O baro tocou-me no brao, com receio que as coisas se apresentassem desagradavelmente. Infands decerto compreendeu, pelo tom, pelo franzir de sobrancelhas do baro, o sobressalto que o tomara (e a mim), porque acudiu ansiosamente, com redobrada reverncia:

Que os meus senhores no suspeitem de mim! Aquele um dos regimentos que eu comando! Mandei-o sair e desfilar, para prestar as honras aos que vm do mundo das estrelas...

Esbocei um gesto e um sorriso de soberana indiferena. Realmente estava bem inquieto!

A povoao ficava direita da estrada, separada dela por um declive de terreno areado e bem pisado, onde o regimento se formara em parada. Havia ali talvez uns trs mil homens. E quando nos acercmos, pudemos ver, com admirao e assombro, de que esplndida, de que formidvel raa eram estes guerreiros cacuanas! Nenhum media menos de seis ps de altura; e todos veteranos de quarenta anos, geis, experientes, prodigiosamente robustos, endurecidos por exerccios perptuos. Sobre a cabea todos traziam a coroa de altas e pesadas plumas negras, sempre tremendo ao vento. Em volta da cinta pendia-lhes um saio feito de rabos de boi, muito juntos uns aos outros e brancos; e no brao esquerdo sustentavam escudos redondos de ferro, recobertos de couro pintado de branco. Por armas tinham uma azagaia semelhante dos Zulus e trs facas (uma no cinto, duas em presilhas no escudo), facas enormes que eles chamam tolas e que arremessam a distncias de cinquenta jardas e mais, com uma certeza terrvel.

As companhias conservavam-se mais imveis que esttuas de bronze. Mas, medida que amos passando em frente delas, cada oficial (que se distinguia por uma capa de pele de leopardo) dava um sinal; e os homens, brandindo a azagaia no ar, soltavam a saudao real, a grande voz: Crum! Crum! Crum!

Assim penetrmos na povoao ao rumor de aclamaes. A aldeia devia ter uma milha de circunferncia e era defendida por um largo fosso e por uma alta estacada feita de troncos de rvores. Na porta central, do lado da estrada, havia uma ponte levadia. Parecia uma aldeia admiravelmente bem ordenada. Ao centro, entre rvores, corria uma ampla, extensa rua, cortada em ngulos rectos por outras mais estreitas, formando sries de quarteires, cada um dos quais alojava uma companhia. As cubatas redondas, feitas de uma grossa verga entrelaada, findavam, maneira das dos Zulus, por tectos de colmo em forma de zimbrio agudo; mas, diferentes nisto das dos Zulus, tinham uma porta larga e fcil, e eram cercadas por uma varanda, cujo cho de cal dura rebrilhava ao sol. Os dois lados da grande rua apinhavam-se de mulheres que tinham corrido de todas as cubatas para nos admirar. Era uma bela raa de mulheres altas, airosas, esplendidamente feitas, com o cabelo mais ondeado que encarapinhado, as feies por vezes aquilinas, e os beios sempre finos. Mas o que mais nos impressionou foi o seu ar grave e srio. Nem pasmo selvagem, nem risos, nem injrias, ao verem-nos desfilar, to estranhos e diferentes de todos os homens que at a tinham encontrado. Nem mesmo a singular figura de John lhes arrancou uma exclamao; apenas os largos olhos negros se lhes arregalavam para as pernas nveas do pobre amigo, que, rodo de vergonha, praguejava baixo.

Quando chegmos ao centro da aldeia, Infands parou em frente de uma espaosa e rica cubata cercada de dependncias menores, entre arvoredo. E com palavras grandiosas maneira dos Zulus, ofereceu-nos a hospitalidade:

Aqui habitareis, meus senhores. E no tereis de apertar o ventre com fome! Em breve vos traremos mel, leite, uma ou duas vacas, alguns carneiros. No muito, espritos! Mas dado por coraes que se regozijam de vos ver.

Bem, bem, Infands murmurei eu. O que precisamos, sobretudo. descansar, fatigados da nossa descida atravs dos espaos e dos reinos do ar.

A cubata era muito confortvel, com erva aromtica espalhada no cho, grandes peles servindo de leitos, e vistosos cntaros para a gua. Da a pouco entre cantos e risos apareceu porta um bando de raparigas trazendo leite, mel em covilhetes, frutas em cestos e atrs dois rapazes seguiam, arrastando um vitelo pelos cornos. Um dos rapazes tirando a faca do cinto, matou o vitelo de um golpe; e logo o outro gil e destramente, o esfolou e retalhou.

Ajudado por uma das raparigas (que era extremamente bonita), Umbopa passou a cozer a carne numa panela de barro sobre uma alegre fogueira acesa porta da cubata; e ns mandmos convidar Infands e Scragga para partilharem do nosso repasto. Quando entraram, notei que, para comer, se no encruzavam no cho maneira dos Zulus mas se sentavam em pequenos bancos que abundavam na cubata encostados s paredes. O jantar foi longo e afvel. O velho guerreiro todo ele exibia doura e respeito. Mas o rapaz Scragga parecia olhar para ns, e para cada um dos nossos gestos, com singular desconfiana. Talvez ao ver que ns comamos, bebamos, e tnhamos as necessidades de qualquer cacuana, comeava a suspeitar da nossa origem divina. No me agradou este sentimento, to real e lgico. Que nos poderia assegurar as vidas perdidos entre aquelas turbas negras, seno o terror supersticioso?

Depois de jantar acendemos os cachimbos o que encheu os nossos amigos de espanto. Na terra dos Cacuanas, como na dos Zulus, a planta do tabaco cresce em abundncia mas eles s a sabem usar torrada e seca, pulverizada. S conhecem o rap. No entanto conversmos a respeito da nossa jornada. Infands j tudo organizara para que ela continuasse na madrugada seguinte, mandando adiante emissrios a prevenir Tuala da nossa chegada ao seu reino. Tuala estava ento na sua grande cidade de Lu, preparando-se para a revista de tropas, a dana das flores e a caa aos feitios, que constituem a maior solenidade religiosa e militar dos Cacuanas, na primeira semana de Junho. E segundo afirmava Infands, ns devamos (a no ser que nos detivessem os rios transbordados) entrar as portas de Lu ao fim de dois dias de marcha.

Depois, como comeavam a luzir as estrelas e a aldeia ia caindo em silncio, os nossos amigos deixaram a cubata. E trs de ns atiraram-se logo para cima dos leitos de peles, enquanto outro, com as carabinas carregadas, velava, no seu turno de sentinela, para prevenir as traies.

Mas essa primeira noite na terra dos Cacuanas foi muito calma e segura.

 

 

VII

O REI TUALA

 

No me dilatarei nos incidentes da nossa jornada at Lu, que nem foram considerveis nem pitorescos. Durante dois longos dias trilhmos a estrada de Salomo, por entre ricas terras cultivadas e alegres povoaes que nos encantavam pelo seu ar florescente e calmo. A cada instante passavam por ns troos de gente armada, regimentos emplumados marchando tambm para a cidade, para o grande festival sagrado. No segundo dia, ao pr-do-sol, parmos numa colina, que a estrada galgava por entre dois renques de rvores em flor e em baixo, numa plancie deliciosamente frtil, avistmos enfim Lu, a capital dos Cacuanas.

Para cidade de frica era enorme com seis milhas talvez de circunferncia, toda ela defendida por estacadas, e rodeada de pomares e de vastas aringas, onde se aquartelavam tropas. Pelo centro corria um largo e claro rio, vadeado por pontes. Para o norte, a duas milhas, erguia-se uma colina, que oferecia a forma singular de uma ferradura; e, mais longe, a umas sessenta milhas, surgiam bruscamente da plancie, em tringulo, trs serras isoladas, escarpadas, todas cobertas de neve.

A estrada explicou Infands, vendo que contemplvamos com estranheza os trs montes acaba alm nessas serras, que se chamam as Trs Feiticeiras.

E porque acaba alm, Infands?

Quem sabe! murmurou o velho, encolhendo os ombros. As trs montanhas esto todas furadas por cavernas. H no meio delas uma cova imensa. l que se sepultam agora os nossos reis. E era ali que os homens antigos, que sabiam tudo, vinham buscar certas coisas...

Que coisas, Infands? exclamei eu, cravando nele um olhar que sondava. O velho sorriu, com uma grossa malcia de negro:

Os espritos que vm das estrelas sabem decerto mais do que um cacuana...

Com efeito! acudi eu, num tom ciente e profundo. E por isso te posso dizer, Infands, que esses homens antigamente vinham procurar um feno amarelo que rebrilha, e umas pedras brancas que fascam.

Talvez fosse, talvez fosse! balbuciou Infands, embaraado, afastando-se bruscamente para lanar uma ordem aos carregadores da bagagem.

Acol disse eu aos meus companheiros, mostrando as Trs Feiticeiras esto a minas de Salomo.

Todos trs, comovidos, ficmos a olhar aqueles montes to prximos, onde jaziam ainda talvez (se o velho D. Jos da Silveira contara a verdade) os mais ricos tesouros da Terra... A que prodigioso momento chegara a nossa aventura!

De repente, quando assim pasmvamos, o Sol desapareceu e a noite caiu, sem transio, visivelmente, como uma coisa tangvel. Naquelas latitudes no h crepsculo. A luz acaba como a chama de um bico de gs que se fecha; e, num instante, a terra toda fica envolta numa cortina de treva.

Nessa ocasio, porm, durou pouco a escurido, porque bem cedo a mais larga e esplndida lua que me lembro de ter visto subiu majestosamente n cu, derramando uma to sublime refulgncia, to divinamente serena, que, sem saber porqu, cada um de ns tirou o chapu, como num templo, ante uma imagem sagrada. Infands, porm, quebrou a nossa contemplao, dando o sinal de descer para a cidade, que, agora, batida de luar, cheia de lumes, parecia infindvel atravs da plancie. E da a uma hora, tendo passado a ponte levadia, entre piquetes de sentinelas a quem Infands deu baixo o santo-e-senha, seguamos calados pela rua central de Lu, toda ladeada de sombras de rvores e de senzalas onde se cozinhava. Levou uma hora antes de chegarmos grade de um ptio redondo, com o cho muito batido e duro, todo caiado de branco. Em volta erguiam-se cubatas espaosas, cobertas de colmo. Eram ali (segundo declarou Infands) os nossos humildes pousos.

Cada um de ns tinha, s para si, uma cubata. Havia dentro um grande asseio. Os leitos eram feitos com peles estendidas sobre enxerges de erva aromtica. Uma esteira tapetava o solo. Tripeas pintadas alternavam com frescas vasilhas de gua. No podamos esperar mais cuidadosa hospedagem! E apenas nos lavmos, sacudimos o p, apareceu logo um bando de raparigas, das mais belas que at a encontrramos no pas, trazendo leite, carnes assadas e bolos de milho, em vistosos pratos de madeira.

Depois da ceia fizemos reunir todas as quatro camas na maior das cubatas (precauo que encheu de riso as raparigas), e no tardmos em adormecer com grata tranquilidade. Acordmos quando o Sol ia nado e a primeira e aprazvel impresso que recebemos foi a do bando das raparigas, acocoradas no cho, a um canto, espera que despertssemos para nos ajudar a lavar e a vestir.

Quando uma delas, a mais alta (e que figura! que braos!) fez esta amvel oferta, o capito John teve uma exclamao, um gesto de atroz desespero:

Vestir! bom de dizer! Quando uma pessoa no tem seno uma camisa e um par de botas!... E com estas raparigas todas, bonitas raparigas, a por essa cidade. No! Isto no pode continuar! Eu no arredo p daqui da cubata, seno de calas! Quero as calas!

Vi o meu amigo to decidido, que reclamei as calas. Mas uma das raparigas voltou da a momentos, declarando que essas sagradas e maravilhosas relquias tinham sido j mandadas ao rei!

O furor do nosso John foi imenso. Teve de se contentar em barbear a face direita; porque na esquerda no consentimos que ele eliminasse um s plo farta sua que j lhe crescera. Aquela cara espantosa, rapada de um lado, barbuda do outro, era uma das evidncias da nossa raa sobrenatural. Todos ns, de resto, tnhamos aspectos estranhos. Os cabelos do baro, amarelos e sempre longos, desciam-lhe agora at aos ombros, numa juba rude, que lhe dava o ar de um brbaro dos tempos do rei Olof. O almoo j esperava, fora, no terreiro, em caoulas que fumegavam. Mas, primeiramente, quisemos tomar o nosso tub, atirar pelas costas alguns frios baldes de gua. E o assombro, a desconsolao das raparigas foi considervel, quando lhes pedimos pudicamente que se retirassem cerrando a porta de vime...

Logo depois do almoo, Infands apareceu anunciando que el-rei Tuala nos mandava saudar, e esperava a nossa comparncia em palcio. Declarei imediatamente, com indiferena e altivez, que ainda nos achvamos cansados, tnhamos ainda um cachimbo a fumar, etc., etc.

Convm sempre, tratando com potentados negros, no mostrar pressa nem respeito. Tomam invariavelmente a polidez por pavor. De sorte que, apesar da nossa ansiedade em ver o terrvel Tuala, retardmos nas cubatas uma farta hora, preparando, ao mesmo tempo, os escassos presentes que destinvamos ao rei e corte: a espingarda do pobre Venvogel, um bocado de seda, alguns fios de contas de vidro.

Afinal partimos, guiados por Infands e seguidos por Umbopa, que levava as ddivas.

Ao fim de um curto quilmetro, chegmos a um imenso terreiro, com cho duro e caiado de branco como o das nossas moradas, e cercado por uma estacada baixa. Em redor, fora da estacada, corria uma fileira de cubatas, que (segundo nos informou Infands) pertenciam s mulheres do rei; e ao fundo, fronteira porta por onde entrramos, estendia-se uma construo, uma cubata enorme, com varas e plumas espetadas no tecto de colmo, que era o palcio real. No recinto no crescia uma rvore; e todo ele estava nesse dia cheio de regimentos em forma, perfilados, imveis, verdadeiramente magnficos, com os seus altos penachos, os escudos brancos, as lanas a rebrilhar.

Em frente cubata real ficava um espao vazio, com uns poucos de escabelos de madeira. A convite do bom Infands, ocupmos trs desses assentos privilegiados, tendo Umbopa por trs, de p; e assim ficmos espera, no meio de um silncio absoluto, sentindo cravados sobre ns oito mil pares de olhos sfregos. Finalmente a porta da cubata rangeu e surgiu dela uma figura gigantesca, com um esplndido manto de peles de tigre lanado sobre o ombro, e uma azagaia na mo. Atrs dele vinha Scragga e uma outra criatura estranha, equvoca, que nos pareceu uma macaca uma macaca velhssima e friorenta, toda embrulhada em peles. A figura gigantesca abateu-se pesadamente sobre uma das tripeas de pau. Scragga permaneceu de p, por trs, apoiado lana. A velha macaca arrastou-se para a sombra que lanava a cubata real, e ali se acocorou lentamente.

O mesmo silncio continuava no entanto opressivo, aflitivo.

Ento a figura gigantesca arrojou o manto que a envolvia, e ergueu-se, oferecendo s vistas a sua real pessoa, verdadeiramente terrfica! Nunca em minha longa vida encarei um homem mais repulsivo. E ainda s vezes revejo, ante mim, aquela face horrvel com os beios muito grossos, ressudando sensualidade, as ventas enormes e chatas de fera, e o olho nico (porque o outro era apenas um buraco negro) atrozmente brilhante, de um brilho frio e cruel. Uma cota de malha reluzente cobria-lhe o corpo formidvel. Da cinta pendia-lhe o saio do uniforme, feito de rabos brancos de boi. Ao pescoo trazia uma gargaleira de ouro; e da testa, onde luzia um enorme diamante bruto, subia-lhe, ondeando no ar, um tufo esplndido de plumas de avestruz.

O silncio ainda pesou, mais profundo, diante daquela presena assustadora! Mas de repente o monstro (que logo compreendemos ser Tuala, o rei) levantou a lana no ar. Oito mil lanas faiscaram ao sol. E de oito mil peitos rompeu, atroando o cu, a grande aclamao real:

Crum! Crum! Crum!

Depois, no silncio que recara, vibrou uma voz, agudssima, estrdula, horripilante, e que parecia vir da macaca agachada sombra:

Treme e adora, povo! o rei!

E oito mil peitos de novo atroaram o cu, bradando:

E o rei! o rei! Treme e adora, povo!

E tudo de novo emudeceu. Mas quase imediatamente, ao nosso lado, houve um rudo de ferro batendo sobre pedra. Era um soldado que deixara cair o escudo. Tuala dardejou logo o olho cruel para o stio onde o som retinira.

Avana tu! berrou, num tom trovejante.

Um soberbo rapago saiu da fileira, ficou perfilado.

Co infernal! rugiu o rei. Foste tu que deixaste cair o escudo? Queres que eu, teu chefe, seja escarnecido pelas gentes que vm das estrelas!

Foi sem querer, mestre das artes negras! acudiu o rapaz, cuja pele fusca parecia empalidecer.

Pois, tambm sem querer, vais morrer!

O soldado baixou a cabea e murmurou simplesmente:

Eu sou a rs do rei!

Scragga! bramiu Tuala. Mostra como sabes usar bem a lana. Vara-me aquele co!

O odioso Scragga deu um passo para diante, com um sorrisinho feroz, e levantou o dardo. O desgraado tapou a face, e esperou, imvel. Ns nem respirvamos, petrificados. Um, dois, trs! Scragga soltou a lana. O soldado atirou os braos ao ar, caiu morto.

De entre os regimentos saiu ento um longo murmrio que rolou, ondulou, se esvaiu por fim no silncio.

O baro, lvido de indignao, agarrara a espingarda das mos de Umbopa. E eu, aflito, tive de o agarrar a ele, lembrar que as nossas vidas estavam merc do rei, e que ramos quatro contra todo um reino.

Tuala, no entanto, sorria sinistramente:

O golpe foi bom. Arrastem para fora o co morto.

Quatro homens saram da fileira, levaram o corpo.

E ento a mesma voz esganiada, sibilante, horrvel (que evidentemente era da macaca) cortou o ar:

A palavra do rei foi dita! A vontade do rei foi feita! Treme e adora, povo! E cobri bem depressa as manchas de sangue. A palavra foi dita, a vontade foi feita!

Uma rapariga saiu de trs da cubata real com um vaso de loua, e, atirando dele cal s mos-cheias, escondeu as ndoas horrveis. Tuala permanecia imvel, como um dolo.

Por fim, lentamente, voltou para ns a face medonha.

Gente branca! disse ele. Gente branca, que vindes no sei donde, nem sei a qu, sede bem-vinda!

Bem estejas, rei dos Cacuanas! respondi eu, com dignidade.

Houve um silncio, atravs do qual ficmos imveis, sentados, com os olhos cravados no monstro.

Gente branca volveu ele que vindes vs procurar aqui?

Vimos do mundo das estrelas, rei! No indagues como, nem para qu. So coisas muito altas para ti, Tuala.

O rei franziu a face, de um modo inquietador:

Altas me parecem as vossas palavras, gentes das estrelas!... No esqueais que as estrelas esto longe e a minha vontade est perto... Pode bem ser que saiais como aquele que agora levaram.

Era necessrio ostentar um soberbo desdm da ameaa. Comecei por lanar uma risada, muito cantada (e na verdade muito forada):

rei, tem cautela! No caminhes sobre brasas, que podes escaldar os ps! Toca num s dos nossos cabelos e a tua destruio est certa.. No te disseram estes (e apontei para Infands e Scragga) que espcie de homens ns somos, e que grandes artes temos? Viste tu algum como ns, entre os filhos dos homens?

Nunca vi murmurou ele.

No te contaram esses como ns damos a morte de longe, atravs de um trovo?

No creio! exclamou Tuala, batendo fortemente o joelho. Mostrai-me primeiro, vs mesmos, a vossa arte. Matai um desses homens que esto alm (apontava uma companhia de soldados magnficos, junto porta da aringa) e eu prometo acreditar! Repliquei que no derramvamos nunca sangue de homem, seno em justo castigo. Mas que o rei soltasse um boi para dentro do ptio, atravs dos soldados, e antes de ele correr vinte passos, cairia morto, de chofre. O rei rompeu a rir.

Um boi! Um boi!... No, matai um homem para eu acreditar!

Perfeitamente! exclamei eu, com tranquilidade.

Ergue-te tu, rei, caminha atravs do ptio, e antes de chegares ao portal da aringa rolars morto no cho. Ou, se no queres ir tu mesmo, manda teu filho Scragga. A isto, Scragga deu um grito, lanou um pulo, e fugiu para dentro da aringa real. Perante a estranha audcia com que lhe propnhamos, para mostrar as nossas artes mgicas, matar um prncipe ou um boi, sua escolha Tuala ficou esgazeadamente perplexo. O seu olho coruscante ora se pousava em ns, ora no cho. Depois, num tom surdo:

Bem, que enxotem uma vaca para dentro do ptio!

Dois homens, imediatamente, largaram correndo.

Baro disse eu ao nosso amigo chegou a sua vez. Mate a vaca. No quero que imaginem que s eu sei fazer as maravilhas.

O baro tomou a carabina Express, e esperou, no fundo silncio que se alargara. Por fim, porta da aringa, houve um rudo; e vimos entrar por ela, correndo, enxotada, uma grande vaca rua. Ao avistar a multido, o animal estacou, olhou estupidamente, deu uma volta lenta, e mugiu.

Agora! gritei ao baro, vendo a vaca de lado e em bom alvo.

Bum! O tiro partiu, a vaca tombou, varada no corao. De toda a enorme soldadesca se exalou um murmrio de admirao e terror.

Ento menti, rei Tuala? exclamei eu, fitando o monstro com altivez.

No, verdade rosnou ele.

Baixara o olho cruel, parecia atemorizado. Eu continuei, com soberana confiana:

Escuta, Tuala! Na arte mgica de destruir, ningum nos vence. Destrumos de longe a vida dos homens, e a vida dos animais... E as prprias armas, os ferros mais duros, reduzimo-los de longe a estilhaos. Escuta! Manda cravar alm no cho, com a ponta do ferro voltada para cima, essa lana que tens na mo, a tua prpria lana, que nunca foi vencida, Tuala! Manda, e eu te mostrarei!

Espantado, o rei cedeu. Um soldado cravou no cho, ao fundo da aringa, a lana real, com a ponta faiscando no ar, sob um raio de sol.

Bem disse eu. Agora, v em que estilhas vai ficar a tua lana invencvel.

Apontei, disparei a bala bateu na folha da lana e separou-a em bocados. Um sussurro maior, de assombro, rolou atravs do terreiro.

Dei ento um passo para o rei, com a carabina na mo.

Tuala, este tubo mgico que troveja e destri um presente que te fazemos. Se te mostrares leal connosco, ensinar-te-emos o segredo de o usar e de vencer com ele. Mas se descobrirmos traio em ti, esse prprio tubo se voltar contra o teu peito, e sers como a vaca morta ou como a lana partida. Aqui tens. E estendi-lhe a arma. Ele tomou-a com desconfiana, com uma seca antipatia, e p-la no cho, aos ps, devagar.

Nesse instante, aquela figura estranha que o acompanhara e que me parecera uma velha macaca, deu um guincho e surgiu da sombra da cubata real, onde permanecera agachada. Muito devagar, muito devagar, vinha caminhando nas quatro patas mas quando chegou defronte do rei, ergueu-se subitamente, arrojou de si a longa cobertura de peles que a envolvia, e mostrou, aos nossos olhos atnitos, um vulto extraordinariamente sinistro e quase fantstico. Era uma mulher, evidentemente, uma mulher velhssima, tendo passado todos os limites conhecidos da vida humana. A face que voltou para ns estava reduzida ao tamanho de uma facezinha de criana, de uma criana de um ano, toda em rugas profundas, ressequidas, duras e amarelas, como se fossem entalhadas em marfim. A boca j no se via, de sumida, entre o queixo sado para fora e extremamente agudo e a testa proeminente, lvida, com duas sobrancelhas ainda espessas e todas brancas. A cabea, de facto, pareceria a de um cadver curtido ao sol, se os olhos grandes no refulgissem com intenso fogo e vida. Mas a hediondez principal daquele semblante estava no crnio, todo nu, pelado, liso como uma bola, e a que ela fazia mover e enrugar a pele, como as cobras contraem e movem o capelo. No se podia contemplar aquela criatura sem um arrepio de honor. Durante um momento, o estranho monstro permaneceu imvel depois estendeu lentamente um brao descarnado, a mo seca de Parca, verdadeira garra armada de unhas longas a recurvas, e comeou, numa voz silvante que regelava:

Rei Tuala, escuta! Povo, escuta! Montes, rios, cus, coisas vivas e coisas mortas, escutai! Escutai, escutai, que o Esprito desceu dentro de mim e eu vou profetizar!

As slabas findaram num uivo longo e triste. Toda a multido, que enchia a aringa, parecia gelada de terror. E eu mesmo, que vira tantas vezes na frica os esgares e as declamaes das feiticeiras, senti no sei que peso no corao. A velha era decerto terrfica.

Som de passos, som de passos que vem! prosseguiu ela, com a garra trmula no ar. So os passos da gente branca que vem de longe! a terra que treme sob os passos dos brancos. Cheiro a sangue, cheiro a sangue! So rios de sangue que vo correr. Eu j os vejo, j os sinto. Toda a terra est vermelha, todo o cu fica vermelho! Os lees lambem sangue por toda a parte! Os abutres batem as asas de alegria! Parou um momento. Os olhos rebrilhavam-lhe como lumes. Depois soltou um grito longo, como uma ululao sepulcral.

Sou velha! Velha! Velha! Tenho visto correr muito sangue. E hei-de ver correr muito ainda, e danar de gozo! Que idade pensais vs que eu tenho? Os vossos pais j me conheceram; e os pais dos vossos pais; e os outros pais que geraram a esses. Tenho visto muitas coisas, aprendi muitas coisas. J vi o branco, e sei o desejo que ele tem no corao. Quem fez a grande estrada que desce dos montes? Quem gravou as figuras nas rochas? No sabeis. Mas eu sei! Foi um povo branco, que estava aqui antes de vs virdes, que voltar e vos destruir e ficar aqui quando vs fordes como, a nuvem de p que passou!

E de repente, deu um passo, com os dois braos, as duas garras recurvas estendidas para ns:

Que vindes aqui fazer, gente branca? Vindes das estrelas? Das estrelas! Ah! ah! Vindes procurar um como vs? No est aqui. E o que veio, h muito, h muito, veio s para morrer. So as pedras que brilham que vs procurais? Eu conheo o vil desejo do corao do branco. procurai, procurai! Talvez as acheis quando o sangue secar. Mas voltareis vs s estrelas, ou ficareis aqui comigo?

Depois, com arremesso terrvel, voltando-se para Umbopa, que as suas garras estendidas pareciam querer despedaar:

E tu, tu que tens a pele escura, quem s, que procuras aqui? No as pedras que brilham, nem o metal que reluz! Ah, parece-me bem que te conheo! Oh cus! oh montes! Sers tu?... Eu conheo, eu conheo pelo cheiro o sangue que tens nas veias! Desaperta essa cintura...

Um momento, ficou como esgazeada em face de Umbopa. E subitamente, batendo os braos no ar, caiu no cho, como morta.

Um bando de raparigas surdiu da cubata, levou nos braos a feiticeira. Tuala erguera-se sombriamente. Todo ele tremia. Lanou um gesto . uns aps outros os regimentos comearam a desfilar, at que todo o ptio ficou vazio e rebrilhando ao sol. Ento Tuala voltou-se para ns, com a face pavorosamente franzida:

Gente branca! Gagula anunciou males estranhos! Est-me a parecer que vos devo matar.

Eu sorri, com superioridade.

rei, tu viste a vaca. Queres tu ser como a vaca?

gentes, vs ameaais o rei! volveu ele, cerrando os punhos.

No ameao. Digo s que to fcil s nossas artes matar uma vaca, como matar um rei. Pensa e treme, Iuala!

O enorme bruto levou os dedos testa, reflectindo.

Ide em paz! disse por fim. Esta noite a Grande Dana. Vireis e vereis. No tenhais medo que eu vos arme ciladas. E amanh decidirei.

Est bem, Tuala gritei eu, com um grande gesto.

E, acompanhados por Infands, recolhemos nossa aringa.

Quando chegmos s cubatas, depus num escabelo o revlver, e voltando-me para Infands, que entrara connosco:

O teu rei Tuala um monstro, Infands!

O velho guerreiro teve um suspiro.

Ai de mim! Toda a nao geme com as suas crueldades, meu senhor! Vereis esta noite. a grande caa aos feitios; vem Gagula e as suas farejadoras farejar, adivinhar quem so, de entre os guerreiros e o povo, os que meditam ou j cometeram feitios e malefcios. Se o rei apetece o gado de um vizinho, ou o detesta, ou teme que ele se lhe torne infiel, Gagula ou uma das farejadoras aponta para esse homem, e o homem logo morto... Quem sabe? Talvez hoje mesmo me chegue a minha vez. At aqui Tuala tem-me poupado em respeito minha experincia das armas, e porque os soldados me amam. Mas quem sabe? Tuala cruel, a terra toda sofre e est cansada dele!

Mas, pela luz das estrelas, porque no depondes vs ou matais essa fera? Infands encolheu os ombros:

o rei!... E o filho que lhe sucederia, Scragga, tem ainda o corao mais negro, pesaria sobre ns com mais furor. Se Imotu no tivesse sido morto, e se Ignosi, o filhinho dele, no tivesse acabado tambm no deserto com a me, ento havia uma esperana no reino! Mas assim...

De repente (e ainda me parece incrvel que eu tivesse assistido a lance to romanesco, to semelhante aos que se lem nos contos de grande enredo), de repente ergueu-se uma voz da sombra da cubata:

E quem te diz a ti que Ignosi morreu?

Todos nos voltmos, espantados. Era Umbopa.

Que queres tu dizer? Que tens tu a falar, rapaz? gritou Infands, que, como velho chefe de sangue real, detestava familiaridades.

Umbopa deu para ns um passo lento:

Escuta, Infands. No verdade que o rei Imotu foi morto, e que a mulher e o filho desapareceram? No verdade que correu ento voz de ambos se terem perdido e morrido nas montanhas?

Com um gesto, Infands concordou.

Escuta! Nem a me nem o filho morreram. Galgaram as montanhas, atravessaram as grandes areias guiados por uma turba errante, entraram de novo em terras de relva e gua, viajaram durante muitas luas, e foram ter a um povo dos Amazulos, que da raa dos Cacuanas. Escuta ainda! O filho cresceu, a me morreu. O filho cresceu, e serviu nas guerras dos Amazulos. Depois foi ao pas dos brancos e aprendeu as artes dos brancos; trabalhou com as suas mos,- meditou dentro do seu corao; e sabendo que homens fortes vinham para o Norte, tomou servio com eles, atravessou outra vez as grandes areias, galgou de novo as serras de neve, pisou terra dos Cacuanas e est na tua presena, Infands!

E subitamente, arrancando a tanga que o cobria, ficou nu diante de ns, com os braos abertos, gritando:

Sou Ignosi, legtimo rei das Cacuanas!

Infands precipitara-se sobre ele, com os olhos fora das rbitas, a examinar-lhe o ventre onde corria, numa tatuagem azul, o desenho de uma cobra que lhe dava volta cinta e juntava a boca com o rabo, logo debaixo do umbigo. Esta tatuagem a marca, o emblema real, que se grava a tinta azul, logo ao nascer, no legtimo herdeiro do reino. E a evidncia l estava, certamente irrecusvel, porque Infands caiu sobre os joelhos, bradando:

Crum! Crum! o filho de Imotu! o rei! o rei!

Umbopa acudiu:

Ergue-te, meu tio Infands, que ainda no sou rei! Mas com a tua ajuda, e a destes homens fortes com quem vim, posso ser rei! Diz, pois. Queres pr a tua mo na minha e ser o meu homem? Queres correr comigo os perigos que haja a correr para derrubar Tuala, o usurpador, o corao de fera? Diz.

O velho Infands pousou dois dedos na testa e pensou. Depois tornou a ajoelhar diante de Ignosi, ps a sua larga mo na mo dele, e murmurou, lentamente, como na frmula de um cerimonial:

Ignosi, legtimo rei dos Cacuanas, ponho a minha mo na tua mo, e at morrer sou teu homem!

Ns, de p, em redor, ficramos verdadeiramente atnitos! O baro e o capito John s muito vagamente compreendiam o maravilhoso lance. Tive de lhes traduzir, desenrolar os detalhes. E ambos exalavam o seu assombro em exclamaes, contemplando Umbopa quando ele nos interpelou, com um gesto que comeava a ser rgio:

E vs, homens brancos de quem comi o po? Quereis vs ajudar-me tambm?

Nada tenho que vos oferecer em troco do vosso brao forte. Mas essas pedras brancas que reluzem, e que vs amais, se, como rei, eu as vier a possuir, podereis lev-las tantas quantas quiserdes. Basta isto?

Traduzi de novo aos meus amigos esta deslumbrante oferta. O baro franziu o sobrolho:

Quartelmar, diga-lhe que um ingls no se vende por diamantes. Mas de graa, porque sempre o achei leal, porque gosto dele, e porque me apetece derrubar esse monstro de Tuala, estou pronto a ajudar Umbopa com o pouco que posso, que o meu brao. E tu, John?

O capito encolheu os ombros:

Que lhe havemos ns de fazer? Alm disso, homem que no briga enferruja. Em todo o caso, ponho uma condio: quero as calas.

Comuniquei estas adeses a Umbopa que apertou ardentemente as mos dos meus dois amigos.

E tu, Macumazan, mestre da caa, olho vigilante, mais fino que o bfalo, estars tu tambm por mim?

Cocei a cabea, pensativamente:

Eu te digo, Umbopa, ou Ignosi, ou o que s; eu no gosto de revolues... Sou um homem de ordem e de mais a mais um cobarde. Escusas de te rir, sei perfeitamente o que digo, sou um cobarde. Por outro lado, tenho por costume ser fiel a quem me foi fiel; e tu, nesta jornada, andaste sempre como um servo dedicado e bravo. Portanto, s ordens! Mas h uma coisa. Eu sou um pobre caador de elefantes e tenho de ganhar a minha vida. Tu falaste a nos diamantes. Eu aceito os diamantes. Se lhes pudermos lanar mo, aceito-os, quantos mais e mais grados, melhor! No que eu acredite muito neles. Mas, se aparecerem, desde j te prometo que, com licena tua, hei-de abarrotar as algibeiras...

Tantos quantos puderes levar! exclamou Umbopa radiante.

E j se voltava para Infands, naquele triunfal entusiasmo de pretendente a quem as adeses afluem quando eu o interrompi vivamente:

Alto! Temos ainda outra, Ignosi. Ns viemos, como tu sabes perfeitamente, procura do irmo do Incubu (era a alcunha do baro, em zulu). Quero que me prometas que hs-de fazer tudo o que puderes, como rei, para nos ajudar a encontr-lo... Comea por te informar agora com teu tio Infands.

Ignosi pousou os olhos em Infands, com singular majestade:

Meu tio Infands, em nome do emblema sagrado que me envolve a cinta, e como teu rei legtimo, intimo-te a que me digas a verdade. Houve j algum homem branco que, antes destes, tivesse vindo terra dos Cacuanas?

Nunca, meu senhor!

E poderia algum ter vindo, sem que tu o soubesses?

Nenhum poderia ter vindo sem que eu o soubesse.

O baro deu um longo suspiro.

Bem! Bem! exclamei logo, para lhe no matar de todo a esperana, e cortar os tristes pensamentos. Quando Ignosi for rei, teremos ento mais facilidade de procurar o irmo do Incubu, at aos confins do reino, e nas terras que esto alm! Agora vamos ao que urge. Que plano tens tu, Ignosi, para recuperar a coroa? Porque enfim, meu rapaz, bom ser rei de direito divino, mas...

No tenho plano. E tu, meu tio Infands?

Infands pensou um instante, com a barba sobre o peito.

Esta noite disse ele por fim a caa aos feitios. Muitos vo morrer, e em muitos outros mais recrescer o dio contra Tuala. Depois da dana, falarei a alguns dos grandes chefes que podem dispor de regimentos. necessrio que os chefes te venham ver, Ignosi, se convenam com seus olhos que s o rei. E se eles puserem as mos nas tuas, amanh tens vinte mil lanas para combater por ti. Porque a guerra certa. Depois da dana, se eu viver, se todos vivermos, virei aqui, para combinar na escurido. Mas a guerra certa!

Neste momento houve fora do terreiro um brado, anunciando que se avizinhavam mensageiros do rei. E trs homens entraram, cada um deles trazendo erguida nas mos uma cota de malha, que rebrilhava como prata, e uma magnfica acha de batalha.

Um arauto que os precedia exclamou, batendo no cho com o conto da lana:

Presentes de Tuala, o rei, aos homens que vm das estrelas!

Agradecemos ao rei volvi eu secamente. Ide!

Apenas os homens partiram, examinmos as cotas com grande interesse. Eram maravilhosas, de uma malha to fina, to cerrada, to elstica e macia, que uma armadura toda podia caber no cncavo das suas mos. Perguntei a Infands se eram fabricadas no pas.

No, meu senhor, so coisas que existem h muito, e que herdmos de pais para filhos. J muito poucas restam. S os de sangue real as podem usar. E o rei que as mandou, que est muito contente ou que est muito assustado. Em todo o caso no h feno que as atravesse, e bom ser, meus senhores, que as useis esta noite na dana.

Quando Infands saiu, ficmos conversando neste estranho incidente que transformava a nossa pacfica jornada numa aventura poltica. Como notou o baro, fora este, decerto, desde a nossa partida do Natal, um dos dias mais ricos de emoes e surpresas.

Extraordinrio disse o capito. Tem de ser registado no livro de bordo.

Chamava ele livro de bordo a um almanaque do ano, com folhas brancas intercaladas, onde costumava assentar os episdios da nossa espantosa empresa.

Que dia hoje? perguntou ele, sentando-se, com o almanaque sobre o joelho.

Trs de Julho.

O baro e eu voltramos a examinar as ddivas de Tuala quando, da a instantes, o capito exclamou com os olhos no almanaque:

curioso! Amanh, quatro de Julho, h um eclipse total, visvel em toda a frica! Deve comear s duas e quarenta minutos... Bom terror vo ter os pretos!

Escassamente demos ateno quela notcia; e como o capito findara de escrever, preparmo-nos para partir para a grande dana, porque o Sol j descia, e j ia fora um rumor de regimentos passando. Pelo prudente conselho de Infands envergmos as cotas de malha, que achmos confortveis e leves. A do baro, homem de forte estatura, vestia-o como uma pelica; a do capito e a minha danavam-nos sobre as costelas, com pregas pouco marciais.

A Lua surgia, magnificamente clara, quando Infands apareceu, com todas as suas plumagens e armas de gala, acompanhado de vinte guerreiros, para nos escoltar ao palcio. Afivelmos os revlveres cinta, empunhmos as achas de guerra, e largmos consideravelmente comovidos.

No terreiro, onde estivramos de manh, encontrmos a mesma formidvel parada de regimentos, perfazendo talvez vinte mil homens mas formados de modo que entre cada companhia ficava um carreiro aberto para as farejadoras de feitios (como nos foi explicando Infands). No havia outra luz alm da Lua, cheia e lustrosa, que punha longas fieiras de fascas nos ferros altos das lanas. Daquela escura massa de homens, do luar, do silncio, saa uma indefinvel impresso de majestade e tristeza.

Est aqui todo o exrcito? murmurei eu para Infands.

Um tero, no mais, meu senhor. Outro tero ficou nas guarnies. E o outro est fora, em torno ao palcio, para o caso de sedio, quando comear a matana...

Escuta, Infands! Achas que corremos perigo?

No sei, espero que no... Mas no mostreis medo! E se escaparmos com vida esta noite... quem sabe? Talvez amanh Tuala seja como o raio que feriu e se apagou. amos no entanto caminhando, atravs dos regimentos mais imveis que bronzes, para o espao vazio diante da cubata real, onde havia, como de manh, uma fila de escabelos de honra. E ao mesmo tempo outro grupo, com um brilho e rudo de armas, saa da aringa real.

Tuala disse baixo Infands e Scragga, e Gagula, e os homens que matam.

Os homens que matavam eram uns doze negros gigantescos, de faces hediondas, com plumagens vermelhas, armados de facalhes e de azagaias pesadas.

Bem-vindos, gentes das estrelas! gritou logo Tuala, abatendo-se pesadamente sobre um escabelo. Sentai, sentai! E no percamos o tempo, que a noite curta para as grandes coisas que tm de ser feitas. Olhai em roda, e dizei-me se nas estrelas tivestes jamais tantos valentes juntos... Mas vede tambm como eles j tremem, os que abrigam maldade no seu corao!

Comeai! Comeai! ganiu na sua silvante voz Gagula, que se agachara aos ps do rei. As hienas tm fome de ossos, os abutres tm sede de sangue... Comeai! Comeai!

Houve durante momentos um silncio lgubre, que pesava horrivelmente, como um prenncio de matana e de horror.

O rei ento agitou a lana. Imediatamente vinte mil ps se ergueram, e trs vezes, em cadncia, bateram n cho que tremia. Depois, l ao fundo, de entre as densas e escuras filas de homens, subiu ao ar um canto solitrio, arrastado, plangente, infinitamente triste, findando neste estribilho:

 

Qual a sorte, sobre a terra,

De quem teve de nascer?

 

E os regimentos todos volviam, numa nica, grande e rolante voz:

 

Morrer!

 

Mas pouco a pouco, as companhias, umas aps outras, foram entoando uma estrofe de cano, at que toda a vasta multido armada formava um coro coro brbaro, rude, informe, onde todavia, por vezes, distinguamos como conscientes expresses de sentimentos notas suaves e lentas de amor, brados triunfais de guerra, cnticos solenes de orao. Depois os cantos vrios fundiam-se num lamento nico, contnuo, ululado, como de um povo num funeral. De repente tudo estacava. E de novo o lgubre estribilho gemia no ar:

 

Qual a sorte, sobre a terra,

De quem teve de nascer?

 

E de novo a multido clamava, num unssono desolado:

 

Morrer!

 

O canto por fim findou, um sombrio silncio caiu, o rei levantou as mos.

Imediatamente, sentimos como o trote ligeiro de ps de gazelas; e, de entre os profundos renques dos soldados, apareceram correndo para ns estranhas e medonhas figuras. Percebi que eram mulheres, quase todas velhas, pelos longos cabelos brancos e soltos que lhes batiam as costas. Traziam as faces pintadas s listras brancas e vermelhas; dos ombros pendiam-lhes, esvoaando, e misturadas s madeixas, longas peles de serpente; em torno cinta caam-lhes como berloques de ossos humanos, que chocalhavam sinistramente, e cada uma brandia na mo uma curta forquilha.

Ao chegarem em frente a Gagula pararam, ferindo o cho com as forquilhas. E uma, a mais alta, alargou os braos, gritou:

Me, aqui estamos!

Bem, bem ganiu o decrpito monstro. Tendes hoje os olhos bem claros, Isanusis?

Bem claros, me!

Tendes hoje os ouvidos bem abertos, Isanusis?

Bem abertos, me!

Ide ento! Farejai, farejai! Entre esses todos descobri os que querem mal ao seu vizinho, os que possuem o gado indevido, os que tramam contra o rei, os que devem morrer por ordem de cima! Farejai! Vede os pensamentos que se no mostram, ouvi as palavras que se no dizem! Ide, meus lindos abutres! Os homens das estrelas tm fome e sede de ver a grande Justia! Agora!

Com uivos horrendos, as sinistras criaturas dispersaram correndo, para todos os lados, atravs das fileiras armadas. No as podamos seguir a todas, na sua obra mortal. De sorte que, por mim, cravei a ateno na que ficou junto de ns, uma velha, esgalgado feixe de ossos, que deitava lume pelos olhos. Quando esta harpia chegou em frente aos soldados, parou farejando. Depois rompeu a danar, girando sobre si mesma, to rapidamente que as longas grenhas soltas pareciam uma estrela feita de estrigas de linho a redemoinhar pelo ar. No entanto ia gritando por entre silvos de alegria: J o farejo, o homem do mal! Ali est ele, o que envenenou a me! Acol treme o que pensou mal do rei!

E, cada vez mais vertiginosamente, vinha girando, girando, at que a espuma lhe saa aos flocos da boca e os ossos lhe rangiam alto! De repente estacou, hirta, tesa, como petrificada. Depois, devagar, devagar, como uma fera que rasteja, avanou de forquilha estendida para a fileira de soldados, que visivelmente se encolhiam num indominvel terror. Parou ainda, outra vez tesa e hirta. Por fim, com um brado estridente, arremeteu, e bateu com a forquilha no peito de um rapaz soberbamente forte. Dois camaradas imediatamente o agarraram pelos braos, o empurraram para defronte do rei. O desgraado caminhava sem resistncia, inerte, j morto na alma. O bando dos executores avanara a passos graves.

Mata! disse o rei.

Mata! ganiu Gagula.

Mata! rugiu Scragga.

E antes que as palavras se perdessem no ar, o miservel tombara morto, com uma azagaia cravada no peito, o crnio aberto por uma pancada de dava.

Um contou Tuala, sorrindo com, satisfao.

Mal findara o feito horrvel, j outro soldado era arrastado como uma rs um chefe decerto, esse, porque lhe pendia dos ombros a capa de pele de leopardo. Dois golpes de facalho, vibrados com destreza, bastaram para o acabar sem um suspiro.

Dois! contou o rei.

E assim at cem! At cem! E ns ali, aterrados, imveis, impotentes para suster a carnificina, maldizendo surdamente a nossa impotncia! Eu findara por fechar os olhos. A meia-noite, enfim, houve uma suspenso. As farejadoras, esfalfadas, em grupo defronte do rei, limpavam lentamente o suor. Respirei, num infinito alvio, supondo que findara todo este incomparvel honor. Mas de repente, com desagradvel surpresa, descobrimos Gagula, erguida, apoiada num cajado, dando alguns passos que tremiam e lhe sacudiam o crnio calvo de abutre. Coisa pavorosa, ver o velhssimo monstro, ordinariamente vergado em dois pela decrepitude, ganhando alento, remoando quase, j direito, j vibrante, medida que se acercava da fileira dos homens, a recomear por gosto prprio a obra sinistra das farejadoras! Mas nela o estilo era diferente. No danava, no uivava. Dando umas corridinhas curtas, aqui e alm, cantava baixinho e tristemente, como para se embalar. Assim trotou, assim cantarolou, at que, de repente, se precipitou sobre um magnfico velho, perfilado em frente a um regimento e tocou-o silenciosamente com o cajado. Um murmrio de dor, de contida indignao, correu entre os soldados que ele evidentemente comandava. Todavia dois deles, empolgando-lhe os pulsos, arrastaram-no como um boi para o aougue. Soubemos depois que era um chefe de grande riqueza e de grande influncia, primo do rei. Foi trucidado com azagaia, facalho e dava e Tuala contou cento e um...

Quase imediatamente Gagula, depois de alguns saltinhos curtos de macaca, comeou a avanar para ns, num movimento muito lento de valsa, que era medonho na repulsiva bruxa.

Justos Cus! murmurou o capito John. Querem ver que, agora, connosco!

Tolice! acudiu o baro, plido todavia.

Eu por mim senti um suor frio na espinha. E Gagula, cada vez mais perto com os olhos a saltar-lhe do crnio, um fio de baba na boca.

Por fim estacou, como um perdigueiro que avista a caa.

Qual ser? murmurou o baro.

Como se lhe respondesse, a velha deu um pulo, e tocou Umbopa (ou Ignosi) sobre o ombro.

Morte! gritava ela. Morte! Cheiro-lhe o sangue! Est cheio de malefcio e de traio. Mata-o depressa, rei, mata-o depressa antes que por ele gema em desgraa o reino!

Houve um silncio, um pasmo. E nem sei como (porque sou realmente um cobarde) achei-me diante de Tuala, falando com soberana firmeza:

Este homem, rei, o servo dos teus hspedes, e quem deseja o seu sangue como se desejasse o nosso! Pela lei de hospitalidade, que cumpre aos reis manter, exijo a tua proteco para ele!

Tuala franziu o sobrolho:

Gagula, me das Isanusis, sabedora das artes, cheirou-lhe a traio dentro das veias. O homem tem de morrer, brancos!

Quem lhe tocar exclamei, batendo furiosamente com o p no cho que tem de morrer!

Agarrem-no! bradou Tuala aos carrascos que esperavam em roda, j todos manchados de sangue.

Dois brutos romperam para ns mas hesitaram. Ignosi erguera a azagaia, decidido a morrer combatendo.

Para trs, ces! berrei eu, num tom tremendo. Tocai num s cabelo do homem, e vs mesmos, e a vossa feiticeira, e o vosso rei, no vereis mais a luz do dia! E bruscamente apontei o revlver a Tuala. O baro tinha j o seu erguido contra um dos carrascos; e John marchava sobre Gagula.

Houve um instante de indizvel assombro.

Decide depressa, Tuala! gritei, tocando-lhe quase a testa com o cano do revlver.

O monstro, visivelmente apavorado, rosnou, num tom surdo:

Tirai para l os vossos canos mgicos! Invocastes as leis da hospitalidade, e s por amor delas, no por medo de vs, poupo a vida a esse co... Ide em paz.

Est bem, Tuala! E lembra-te sempre que contra os homens das estrelas nada podem os homens da Terra!

O rei, ainda trmulo de furor impotente, ergueu a lana. Os regimentos comearam logo a desfilar.

Da a pouco estvamos na nossa aringa conversando luz de uma das curiosas lmpadas que usam os Cacuanas, em que o pavio feito de fibra de palmeira, e o azeite de toucinho de hipoptamo. E o que afirmvamos todos com convico, com ardor, era a necessidade e a justia urgente de ajudar a conspirao de Umbopa contra um vilo como Tuala!

 

 

VIII

A GRANDE DANA

 

J muito tarde, quase de madrugada, Infands apareceu, como prometera, com os chefes seus amigos, todos homens de porte marcial e decididos. A conferncia foi longa e curiosa. Ignosi, convidado a expor a sua romntica histria e os seus direitos ao reino dos Cacuanas, comeou por tirar a tanga em silncio e mostrar o emblema sagrado, a grande serpente tatuada na cinta. Cada chefe, um a um, tomava a lmpada, e, agachado, examinava o sinal com respeito; depois, em silncio, passava a lmpada a outro.

Em seguida Ignosi, reatando a tanga, contou a sua vida estranha, desde a fuga com a me atravs do deserto. Os chefes permaneceram calados. Infands, por seu turno, recordou os longos crimes de Tuala, retraou as matanas dessa noite de festa em que dois guerreiros valentes, de casas ilustres, tinham sido trucidados, s por possurem grandes rebanhos que Scragga apetecia. Por fim, fez um grande apelo razo e ao corao dos chefes, que s tinham a escolher entre o monstro que, por avidez e capricho, lhes arrancava a vida, ou o homem que lhes garantia a existncia feliz nas suas senzalas e a posse tranquila dos seus gados. Mas, com espanto nosso, os chefes pareciam hesitantes e desconfiados.

Finalmente, um deles, homenzarro possante, de carapinha branca, deu um passo, e declarou que a terra na verdade gemia sob a crueldade de Tuala, e que seu prprio irmo nessa noite estava sendo pasto das hienas... Mas aquele era um singular e confuso caso! E quem lhes afianava que eles no ergueriam as suas lanas por um impostor? A guerra era certa. Muitos ficariam fiis a Tuala, porque mais se adora o Sol que brilha, que o Sol que ainda no nasceu. Necessitavam, pois, uma evidncia. E quem melhor lha poderia dar que os homens das estrelas, senhores das grandes artes mgicas, que tinham trazido Ignosi ao pas, e sabiam decerto os segredos?

Se ele o herdeiro legtimo, os homens que o trouxeram das estrelas que o provem fazendo um grande milagre. S assim o povo acreditar e tomar armas por ele!

Mas a cobra, o emblema sagrado! exclamei eu.

No basta. A cobra podia ser pintada no ventre j depois de ele ser homem...

Necessitamos de um milagre! O povo no se move, nem ns mesmos, sem um milagre! Um milagre! A situao era terrvel e grotesca. Exigir-se um milagre a trs honestos e ingnuos mortais, que nem sequer sabiam, como qualquer prestidigitador de feira, escamotear uma noz dentro da manga! E terem os honestos mortais de fazer um milagre ou de perder a vida!... Voltei-me para os meus companheiros, a explicar rapidamente o risvel e perigoso lance.

Parece-me que se pode arranjar disse John, depois de um curto silncio.. Pea a estes amigos que nos deixem ss, Quartelmar.

Abri a porta da cubata, os chefes saram. E apenas os passos morreram na sombra:

Temos o eclipse! exclamou o nosso admirvel John.

Era o eclipse que ele descobrira na vspera, folheando o almanaque (o livro de bordo), e que nesse dia, s duas e quarenta minutos, devia ser visvel em toda a frica.

A est o milagre! afirmava John. anunciar aos chefes que, para lhes provar que Ignosi o rei, e que devem pegar em armas por ele, ns faremos desaparecer o Sol!

A ideia era esplndida. O nico receio que o almanaque estivesse errado.

No! um almanaque martimo, no pode estar errado. Os eclipses so calculados matematicamente. No h nada mais pontual que um eclipse... Durante meia hora, trs quartos de hora talvez, esta regio toda ficar em trevas.

Eu, por mim disse o baro parece-me que devemos arriscar o eclipse.

V pelo eclipse!

Mandmos Umbopa buscar os chefes. Quando voltaram, cerrei a porta da cubata com um sombrio aparato de mistrio, e comecei por lhes declarar, majestosamente, que ns, os homens das estrelas, no gostvamos de alterar o curso natural das coisas e mergulhar o mundo em terror e confuso... Mas, como se tratava de uma grande e santa causa, estvamos decididos a fazer um milagre.

Escutai! Julgais vs que um homem pode soprar sobre o Sol, e apag-lo?

Os chefes olharam para mim, recuando com assombro.

No murmurou um deles no h homem que o possa fazer! O Sol mais forte que toda a Terra!

Perfeitamente conclu eu. Pois amanh, depois do meio-dia, ns, homens das estrelas, apagaremos o Sol durante uma hora, espalharemos trevas sobre a Terra, e ser o sinal de que Ignosi o verdadeiro rei dos Cacuanas e que o povo deve tomar armas por ele. Ser bastante este milagre?

O chefe da carapinha branca abriu os braos para ns, esgazeado:

gentes das estrelas, senhores das grandes artes, esse milagre ser mais que bastante!

Bem. Tereis o milagre. Agora Infands, que experiente, diga o momento em que mais convm que ns apaguemos o Sol.

Apagar o Sol! murmuraram os chefes entre si. A grande lmpada! O pai de tudo, que brilha eternamente!

Fala, Infands!

Meu senhor, na verdade um milagre espantoso que vs prometeis! Mas enfim... O melhor momento o da dana das flores, que h-de logo comear ao meio-dia.

As mais lindas raparigas de Lu esto l, para danar. E aquela que Tuala achar mais linda de todas , segundo o costume, morta por Scragga em sacrifcio aos Silenciosos, as figuras de pedra que esto alm na montanha vigiando. Que os meus senhores nesse momento apaguem o Sol, salvem a rapariga, e o povo acreditar!

O povo na verdade acreditar! exclamaram todos os chefes.

A duas milhas de Lu continuou Infands h uma colina em forma de meia-lua, que realmente uma fortaleza, onde esto aquartelados o meu regimento e trs outros que estes chefes comandam. Mas podemos arranjar de modo que, ainda esta manh cedo, marchem para l trs ou quatro regimentos dos mais fiis minha vontade. E se os meus senhores apagarem com efeito o Sol, eu poderei, a favor da escurido, faz-los sair do terreiro real e da cidade, e lev-los para essa fortaleza, onde ficaro a salvo e donde comearemos a guerra contra o rei.

Est entendido resumi eu. Agora ide, que queremos dormir e depois combinar com os espritos!

Com longas reverncias, Infands e os chefes deixaram a nossa aringa. O Sol ia nado.

Oh meus amigos exclamou Ignosi, apenas eles partiram. certo que podeis fazer esse milagre, ou estveis vs ganhando tempo e soltando no ar palavras vs?

Parece que no nos h-de ser difcil, meu Umbopa, quero dizer, meu Ignosi declarei eu sorrindo.

espantoso! Apagar o Sol... E, todavia, sois ingleses, e o ingls tudo pode! Mas ah, se vs fizerdes isso por mim, o que no farei eu por vs?

Uma coisa j tu nos podes prometer, Ignosi! acudiu gravemente o baro. , se chegares a ser rei com o nosso auxlio, acabar com as farejadoras de feitios, com matanas como as desta noite, e no consentir que homem algum seja condenado sem provas de crime, e sem ter sido julgado pelos doze mais velhos do lugar.

Era o jri, santssimo Deus! Era a nobre instituio do jri que este digno baro queria implantar no centro selvagem da frica! No h seno um liberal ingls para estas esplndidas imposies de civilizao e de ordem. Com razo hesitou o astuto Ignosi! Com razo conservou longo tempo dois dedos sobre a testa, calculando. Por fim, num rasgo de generosidade ou de condescendncia:

Os costumes dos negros no se podem moldar pelos costumes dos brancos. Contudo, uma coisa te prometo, Incubu! que no haver no meu reino, nem matanas de festa, nem execues sem julgamento. Ests contente?

O baro apertou-lhe a mo em silncio.

Da a pouco estvamos estendidos nos leitos de folhas secas, e profundamente dormimos, at que Ignosi nos acordou s onze horas. O nosso primeiro cuidado foi instintivamente correr fora da cubata, olhar para o Sol. Nunca esse divino astro me pareceu to brilhante e to seguro da sua luz. Nem um sinal de eclipse! Uma radincia firme, absoluta, que nenhum movimento dos corpos celestes parecia poder alterar!

Pois, meu digno astro murmurei eu, ousando interpelar directamente a fonte de toda a vida se continuas assim, todo o dia, acabas, sem querer, com trs honrados homens!

Depois de almoar, um slido e valente almoo que nos amparasse na crise iminente, revestimos as cotas de malha, afivelmos os cintures de cartuchame, e de outros modos nos apetrechmos para a grande dana. E ao meio-dia para l voltmos os passos que a inquietao interior e a certeza do perigo no permitiam que fossem nem bem alegres nem bem ligeiros!

O terreiro real oferecia, nessa manh, um aspecto bem diverso e onde na vspera reinara o horror, transbordava agora a graa. Em lugar de fuscos e duros guerreiros, todo o espao estava ocupado por longas filas de raparigas cacuanas, escuras tambm, verdade, mas lindas, pelas formas, a expresso, a viosa mocidade. Toilette, no tinham nenhuma nem mesmo o pano, a tanga da frica civilizada; mas salvavam esta encantadora deficincia pelo franco luxo das flores. Todas traziam na cabea uma coroa de flores; grinaldas de flores, grandes como festes, envolviam-lhes a cinta; e cada uma segurava nas mos uma palma verde e um lrio branco. Nos escabelos de honra j estava o rei acompanhado por Infands, Scragga, guardas emplumados e a sinistra Gagula. Reconhecemos tambm, de p, por trs dele, alguns chefes que nessa noite tinham connosco conspirado.

Tuala acolheu-nos com muita cordialidade ostensiva dardejando ao mesmo tempo sobre Umbopa um olhar sangrento e mau.

Bem-vindos, homens das estrelas, bem-vindos! Vedes hoje aqui coisas diversas; mas no to belas, to belas! Beijos e festas de mulheres so doces; mas mais doce o brilho das lanas e o cheiro do sangue. Olhai em redor, gentes das estrelas; e se quiserdes casar nesta terra, escolhei, escolhei... Podeis levar destas raparigas as melhores, e tantas quantas pedirem os vossos desejos.

O nosso John, extremamente sensvel e amoroso como todos os marinheiros, deu logo um passo, teve um sorriso, como se se preparasse a aceitar e a recrutar ali, para ocupar o seu corao na terra dos Cacuanas, um serralhozinho de donzelas escuras. Mas eu, homem idoso e experiente, receando as complicaes do eterno feminino, apressei-me a recusar:

No, Tuala, obrigado! Os homens brancos que vm das estrelas s se ligam s mulheres brancas que esto nas estrelas...

Tuala riu:

Est bem, est bem... Ns temos um provrbio cacuana que diz: Aproveita a que est perto, porque com certeza a que est longe te engana! Mas talvez seja de outro modo nas estrelas... Sede pois bem-vindos, e comece a dana!

Um grande tant ressoou, acompanhado por finas flautas de cana em que trs mocinhos sopravam agachados no cho. As fileiras de raparigas avanaram, cantando um canto muito lento e doce e fazendo ondular nas mos as palmas e os lrios. Era um grande bailado brbaro, infinitamente pitoresco. As raparigas ora saltavam brandamente sobre as pontas dos ps, numa graciosa languidez de gestos; ora, enlaadas aos pares, redemoinhavam vivamente; ora, fileira contra fileira, simulavam uma batalha, tendo por armas os ramos de palmas; ora, ajoelhando em reverncia, ofertavam os lrios ao rei. Depois eram grandes marchas bem ordenadas em que o canto tomava um tom triunfal; e logo uma alegre confuso, numa grulhada melodiosa, com um vivo saltar de corpos geis que espalhava pelo ar as ptalas das flores desfolhadas.

Por fim o bailado parou; e uma esplndida rapariga, de olhos radiantes, mais airosa que uma Diana caadora, avanou devagar, e rompeu numa dana estranha, cheia de graa e de brilho, em que os movimentos tudo traduziam, desde os requebros fugidios da noiva tmida, at aos pulos bravos da cora ciosa... Assim danou longamente; os seus olhos cada vez mais rebrilhavam; a grinalda que lhe envolvia a cinta desfizera-se flor a flor; e todo o corpo adorvel lhe reluzia ao sol, como um bronze humedecido. Por fim, cansada, sorrindo, recuou at ao grupo das bailadeiras, onde ficou de olhos baixos, a refrescar-se com o seu ramo de lrios. Veio ento outra, muito alta, danar; e outra depois, e muitas ainda, todas belas a hbeis mas nenhuma como a Diana caadora tinha beleza, graa e consumada arte.

O rei ergueu a mo, o tant cessou.

Gentes das estrelas disse ele qual delas achais mais linda?

A primeira respondi eu irreflectidamente.

E logo me arrependi, lembrando o que anunciara Infands que a mais linda tinha de perecer, sacrificada aos dolos. Ao mesmo tempo deitei um olhar ao Sol, que continuava a refulgir com uma teima desesperadora.

Tuala, no entanto, soma:

Os vossos olhos, gentes, das estrelas, vem ento: como os meus. A primeira a mais bonita. mau para ela, que tem de morrer!

Tem de morrer! ecoou Gagula, que parecera dormitar durante a festa, e acordava, j interessada, desde que pressentia sangue e dor.

Morrer! exclamei eu, sorrindo tambm, como se no acreditasse. Porqu, rei? Ela danou bem, a todos agradou. Alm disso, moa e linda. Seria cruel e estranho recompens-la com a morte.

A fera afectou uma simpatia, que, nele, arrepiava:

Tambm o lamento, mas o costume do meu reinado. Os Silenciosos, que esto alm na montanha vigiando, precisam receber o seu tributo. H uma profecia do nosso povo que diz: O rei que no dia da grande dana no sacrificar aos Silenciosos a mais linda das donzelas perecer, e com ele a sua casa. Por no ter cumprido a ordem de cima, caiu meu irmo e em seu lugar reino eu... Ide (voltando-se para os guardas), trazei a virgem! E tu, meu Scragga, agua a lana!

Dois da guarda real marcharam para a pobre e doce rapariga, que desfolhava nervosamente as ptalas do seu lrio branco. De repente, e s ento, ela pareceu compreender a fatalidade que a perdia, por ser formosa e pura. Deu um grito, tentou fugir. Duas mos fortes agarraram-na e trouxeram-na, toda em lgrimas e debatendo-se, para diante de Tuala.

Que nome o teu, linda moa? ganiu a horrvel Gagula. No respondes? Queres que o filho do rei tenha de erguer a lana, sem saber quem tu sejas?

A isto, Scragga deu um salto com sofreguido, alando a sua imensa azagaia.

Vendo o ferro luzir, a pobre rapariga cessou toda a luta entre as mos fortes dos guardas. E com grandes lgrimas que lhe caam, ficou toda a tremer.

O medonho Scragga teve uma risada bestial:

Como ela treme, como ela treme diante da minha fora!

Ah, canalha, se te apanho a jeito! rosnou o capito, apertando na mo o revlver.

No entanto Gagula, com atroz zombaria, animava a desgraada:

Sossega! Diz o teu nome. Vem, filha! No temas!

me! balbuciou a pobre criatura entre soluos, numa voz que desfalecia. me! O meu nome Fulata, e sou da casa de Suco. Mas porque hei-de eu morrer, eu que no fiz mal nenhum?

Tens de morrer prosseguiu a hedionda velha para contentar os que vigiam alm na montanha. Mais vale dormir de noite que trabalhar de dia. Mais vale estar quieta e morta que agitada e viva. E tu, filha ditosa da casa de Suco, vais morrer s mos reais do filho do nosso rei.

Olhei ansiosamente para o Sol. Nada! Um brilho impassvel, que achei quase cruel!

No entanto a pobre Fulata, apertando desesperadamente as mos, suplicava, com gritos de angstia:

me, rei, no me deixeis morrer!... E eu to nova! Pois nunca mais hei-de ver a aringa de meu pai? nem embalar meus irmos pequeninos? nem cuidar dos cordeiros doentes? E porqu? Mandaram-me aqui para danar e eu dancei! O meu noivo est l fora minha espera! Minha me ficou sentada debaixo das machabeles at que eu volte para mungir as vacas... E porque hei-de eu morrer? Nunca fiz mal nenhum; e no terreiro da nossa casa deixava sempre cair gros de aveia, para os pssaros levarem aos ninhos...

Nas prprias faces dos guardas e dos chefes, perfilados junto a Tuala, se espalhava um ar de piedade. Muitas raparigas soluavam baixo. E subitamente, o capito John, sem se poder conter mais, arrancou o revlver da cinta e fez um movimento to saliente, de to clara interveno que a rapariga viu, num relance compreendeu... Desprendendo-se dos guardas, que a seguravam frouxamente, veio arrojar-se aos ps de John, abraando-lhe as pernas nuas.

pai branco, que vens das estrelas! gritava ela. Deixa acolher-me sombra da tua fora... Salva-me destes homens, e de Gagula, a me que to cruel... Tornei a olhar para o Sol... E com um alvio, uma alegria to intensa que ainda hoje o record-la me aquece o corao, vi uma linha de sombra, muito fina ainda, surgindo orla do disco radiante!

O eclipse! gritei eu para os outros. John, conserve a a rapariga atrs! E armas na mo, rapazes!

Imediatamente avancei para o rei.

Tuala exclamei com firmeza e arrogncia. Ns, gentes das estrelas, no podemos consentir nesta maldade! Tal no ser! Deixa que a rapariga volte para a sua morada!

Tuala ergueu-se com um pulo brusco de surpresa e de clera. E dos chefes, das agitadas filas de mulheres, subiu um murmrio que era de assombro, e talvez de esperana.

No consentis! bramiu o rei, com o olho sangrento dardejando lume. E quem s tu, perro branco, para vir latir contra o leo na sua caverna? Tal no ser! E como o podes tu impedir? Vai talvez a tua vontade prevalecer contra a minha fora? Scragga, mata a criatura! E vs, guardas, ol, agarrai esses homens!

Uma multido de soldados surgiu, correndo, de trs da aringa real. O baro, Umbopa e o capito (com Fulata agarrada a ele) vieram pr-se ao meu lado, de carabinas apontadas.

Outro olhar meu ao Sol! A linha de sombra, lenta e gradualmente, avanava sobre o globo rutilante. Com esplndida confiana, ergui a mo, bradei:

Parai! Ns, os filhos das estrelas, decidimos que a rapariga no morrer! E se algum ousar ir contra a nossa vontade, ou avanar contra ns um passo, ns, os mgicos das grandes artes, apagaremos o Sol e mergulharemos o mundo em trevas! O efeito foi tremendo. Os soldados estacaram. E Scragga ficou diante de ns, com a lana erguida no ar, como uma figura de pedra. Mas Gagula erguera-se, sacudindo os braos com furor:

Ouvi, ouvi o grande mentiroso, que diz que apaga o Sol como um lume da terra! Pois que o faa, e a rapariga ir livre para a sua morada! Mas se o no fizer, rei, que ele morra com ela, e com ele morram os ces malditos que vm latir contra ti! Sem mais, ergui a mo solenemente para o Sol (movimento que logo imitaram John e o baro) e rompi a bradar. No me lembro j das coisas absurdas que tumultuosamente atirei ao divino astro. Recitei-lhe versos de Shakespeare, pedaos da Bblia, provrbios, datas, nomes de firmas comerciais que me acudiram, as ruas da cidade do Cabo que sei eu? Tudo o que me aflua aos lbios, e que fosse em ingls, na lngua mgica. Ousei mesmo espantosas familiaridades com o respeitvel centro do sistema planetrio. Gritava: Anda-me assim, solzinho da minha alma! Para diante, valente! Deixa avanar essa rica sombra! Ah! que ests um catita, meu astro! Mais, mais!...

E o Sol obedecia! A mancha escura, ntida e convexa, avanava, comia a luz imortal. Um grande sussurro de terror agitava a multido. Voltei ento a falar cacuana, livremente:

V tu, rei! V tu, Gagula! Vede vs, chefes! Mentem ento os homens das estrelas? Quisestes a treva eterna, ei-la que vos vem tragar!... Sol, pai de tudo, reluzente e triunfante, retira a luz, some-te nossa ordem, mata o mundo com escurido e frio, e que, sem ti, parem para sempre estes coraes cruis!... O Sol vai morrer! Gritos de terror ressoavam j no terreiro. As mulheres, cadas de joelhos, choravam, implorando misericrdia. E o rei, calado, tremia.

S Gagula resistia ao pavor.

Vai passar, vai passar! uivava ela. Eu j vi o Sol assim. Ningum o pode apagar. Ficai quietos! Sossegai! A sombra vem e vai... Eu j vi, eu que sou a mais velha, e conheo os segredos!

Eu por mim animava os companheiros:

V, rapazes! J no sei que hei-de dizer ao Sol. Veja se se lembra de alguns versos, baro. Tudo serve, at pragas!

E John, admirvel marinheiro, rompeu ento a praguejar. Foi sublime. Teve todas as pragas clssicas e teve-as inditas. Nem eu supunha mesmo que a humanidade possusse, no seu vocabulrio, uma tal riqueza de blasfmias! O que o Rei do Dia ouviu! No entanto a mancha negra alastrava. Estranhas, sinistras sombras flutuavam no ar. Uma triste quietao descia sobre a terra. Todos os pssaros se tinham calado. Ao longe os ces uivavam.

E a mancha crescia, crescia... A atmosfera tornara-se espessa. J mal distinguamos as faces cruis da gente real. Esmagadas de temor, as mulheres nem tugiam. Por fim John parou a torrente de invectivas. Eo que restava do Sol parecia uma luz agonizante.

O Sol morreu! berrou de repente Scragga. Os bruxos das estrelas mataram o Sol! Tudo vai morrer nas trevas!...

E fosse o delrio do medo ou da raiva, ergueu a azagaia, arremessou-a a toda a fora contra o peito do baro. Mas a cota de malha repeliu o ferro. E antes que ele pudesse revibrar o golpe, o baro arrancara-lhe a lana das mos e passou-lha atravs do corao. Com um uivo hediondo, Scragga tombou morto.

Quase nada restava da luz. Era como se tudo acabasse conjuntamente, o Sol, o mundo, e a descendncia do rei! Num terror indizvel, a multido de raparigas largou fugindo, em confuso e gritos, para as portas da aringa. Foi um pnico estonteado. Os guardas, arrojando as armas, galgavam as estacadas. Os chefes, aos saltos por cima dos escabelos, desapareciam como lebres. E por fim, o prprio e ferocssimo rei, com Gagula atrs, arremeteram para as cubatas, ganindo num pavor vil. Uma debandada que nos deixou ss, eu, os amigos, a pobre Fulata ainda agarrada a John, Infands, os chefes que conspiravam, e o cadver de Scragga.

Chefes! gritei eu. Eis o milagre que tnhamos prometido. Sabeis agora que Ignosi o rei nico e forte. O feitio est trabalhando. Corramos para a cidadela que dissestes, enquanto a treva dura!

Vinde! exclamou Infands, segurando-me pela mo. E vs todos segui! O dia nosso!

Ao chegarmos porta da aringa, a luz findou inteiramente.

Agarrados uns aos outros pelas mos, com Fulata no meio, fomos tropeando atravs da escurido. Dentro das senzalas ouvamos gemidos de terror. E para o aumentar, lanvamos a espaos, atravs da treva, um lgubre brado de revolta e de guerra:

Morte a Tuala!

 

 

IX

ANTES DA BATALHA

 

Durante mais de uma hora caminhmos, atravs da escurido, guiados por Infands e pelos chefes at que de novo surgiu, como um fino trao luminoso, a orla do Sol. Da a pouco havia j luz suficiente; e achmo-nos ento longe de Lu, junto de uma larga colina de duas fartas milhas de circunferncia, em forma de ferradura, e toda ela inteiramente plana no topo. Desde tempos imemoriais, aquele planalto fora (segundo nos disse Infands) aproveitado como acampamento permanente, e ordinariamente ocupado por uma guarnio de trs mil homens. Nessa manh, porm, maneira que amos trepando os flancos da colina, luz j viva e quente do Sol, descobramos sucessivos regimentos, formando uma diviso de dezoito ou vinte mil homens, quase todos veteranos. Estavam ainda sob o espanto e terror da misteriosa treva que de repente os envolvera. E foi em silncio que passmos atravs das suas filas cerradas, em direco a um grupo de cabanas que se erguia a meio do planalto. Com surpresa e grande alegria, encontrmos l dois servos, espera, carregados com todas as nossas bagagens, cantinas e munies que nessa manh deixramos nas cubatas de Lu. Numa trouxa, as calas de John. Com que sofreguido ele as envergou, pudico homem!

Fui eu que mandei vir tudo, cautela! explicou o servial Infands. Quem sabe quantos dias estaremos neste deserto!

Como no havia tempo a desperdiar, o velho e activo guerreiro deu ordem para que se formassem as tropas imediatamente. Era necessrio antes de tudo (disse ele) aclarar aos regimentos os motivos da revolta j decidida pelos chefes e apresentar-lhes Ignosi, o legtimo rei por quem iam combater.

Meia hora depois os regimentos (a flor do exrcito dos Cacuanas) estavam em formatura nos trs lados de um imenso quadrado. Do lado aberto ficmos ns com Ignosi, o velho Infands e os chefes conjurados. Logo que um arauto intimou silncio Infands avanou: e com um calor, um entusiasmo, irresistivelmente persuasivos, narrou a histria de Ignosi, o seu nascimento real, a serpente tatuada na cinta, a trgica morte de seu pai mo de Tuala, a sua fuga atravs dos montes, o seu exlio entre estranhos. Depois retraou o reinado cruento de Tuala, os seus crimes, as suas espoliaes, as frias e inteis crueldades. Em seguida contou como os homens brancos das estrelas, que de l de cima tudo vem, se tinham compadecido da grande aflio que ia no reino dos Cacuanas; como tinham ido ento buscar Ignosi, o rei legtimo, s terras distantes onde ele definhava no exlio, e o haviam trazido pela mo, atravs dos areais e dos montes, ao pas de seus pais; como nessa manh, para mostrar a Tuala e a todos o seu poder mgico, e provar aos chefes descontentes que Ignosi era rei, eles com as suas artes tinham apagado e depois tornado a acender o Sol; e como, enfim, esses mgicos que nenhuma fora vencia estavam dispostos a derrubar Tuala, o falso rei e pr em seu lugar Ignosi, o rei verdadeiro!

Apenas ele findara, entre - um longo murmrio de aprovao, Ignosi deu dois passos, e, alteando a sua nobre estatura, apelou para as tropas. Elas tinham ouvido Infands, seu tio! Cada palavra dele luzia como a verdade. Os Cacuanas agora s podiam escolher entre Tuala, o monstro que os roubava, os trucidava, e cobria a terra de horror e desordem, e ele, rei legtimo, que no permitiria mais no reino a caa aos feitios, nem matanas de festa, nem castigos sem julgamento, nem a opresso dos mais fortes... Pelo contrrio, sob ele, s haveria paz e abundncia! A todos os que ali estavam e o ajudassem daria cubatas, mulheres e gados e todos, ganha a vitria sobre Tuala, iriam viver nas suas senzalas bem providas, em descanso e alegria para sempre. De resto, os homens das estrelas estavam com ele, a seu lado, para manter os seus direitos. E quem podia ir contra a fora das suas artes mgicas? No tinham eles visto o Sol apagado, depois outra vez brilhante, ordem dos espritos brancos?

Um rumor de aquiescncia, de adeso, corria j entre as tropas. Ignosi ento recuou um passo, e erguendo no ar o seu formidvel machado de guerra:

Eu sou o rei! Na verdade vos digo que sou o rei! E se a h algum, de entre vs, que diz que eu no sou o rei, que saia a terreiro, se bata comigo, e bem cedo o seu sangue, correndo no cho, provar que na verdade sou rei. Escolhei pois entre mim e Tuala, chefes, soldados, vs todos! Sou eu o rei!

s o rei! foi a universal, aclamadora resposta, que atroou toda a colina.

Bem! Tuala est mandando j emissrios a reunir os seus homens, para nos combater. Os meus olhos esto abertos e vero aqueles que mais fiis me so, e que merecero mais terra, mais gado, mais riqueza. E agora ide, e preparai-vos para as batalhas, em defesa do vosso rei!

Houve um silncio. Um dos chefes ergueu a mo; e os vinte mil homens, ferindo o solo com as azagaias, soltaram a grande saudao real: Crum! Crum! Crum! Ignosi estava aclamado rei. Os batalhes imediatamente recolheram aos seus acampamentos. No planalto reinou silncio e ordem.

Logo depois celebrmos um conselho de guerra, com todos os capites. Era evidente que em breve seramos atacados pelas tropas fiis a Tuala. J do alto da nossa colina ns vamos regimentos marchando, a concentrar-se em Lu e um incessante movimento de armas por toda a estrada de Salomo. Do nosso lado contvamos com vinte mil homens. Tuala, segundo o clculo dos chefes, poderia ter reunidos, na manh seguinte, trinta e cinco a quarenta mil soldados. Mas desses, muitos eram recrutas; e a flor do exrcito, os veteranos endurecidos, os capites de experincia, estavam felizmente connosco, sobre a colina da revolta.

O primeiro cuidado era fortificar a nossa posio. Comemos por obstruir, com grossos rochedos, todos os carreiros que subiam da plancie. Nos pontos mais acessveis erguemos estacadas e trincheiras. Acumulmos, orla do planalto, montes de pedras para arremessar sobre os assaltantes. Aqui e alm cavmos fossos. E, como todo o exrcito trabalhava, ao fim da tarde a colina fora convertida em cidadela. Justamente antes do pr-do-sol, vimos um grupo de homens que, de uma das portas de Lu, avanava para ns, fazendo soar um tant. Um deles trazia na mo uma palma verde. Era um arauto.

Ignosi, Infands, dois ou trs chefes, eu e os amigos, descemos ao seu encontro. Vimos um soberbo homem, ainda moo, com a pele de leopardo aos ombros.

Sade! gritou ele, parando e agitando a palma. O rei envia o seu saudar queles que lhe fazem uma guerra infiel. O leo envia o seu saudar aos chacais.

Fala! bradei.

Estas so as palavras do rei: Entregai-vos minha merc, antes que a minha forte mo cai sobre vs! Assim disse o rei. J foi arrancada ao touro negro a espdua direita! J o rei o anda enxotando, ensanguentado, em volta ao acampamento!

Quais so as condies de Tuala? perguntei com curiosidade.

O arauto declarou que as condies eram misericordiosas e dignas de um grande rei. Muito pouco sangue o contentaria. De cada dez homens um seria morto, os outros perdoados; mas o branco Incubu que matara Scragga, o servo Ignosi que pretendia o seu trono, e Infands que preparara a rebelio, seriam postos a tormentos, em sacrifcio aos Silenciosos. Tais eram as misericordiosas condies do rei.

Consultei um instante com os chefes, e repliquei, num tom estridente, para que todos os soldados ouvissem, por sobre a colina:

Volta para Tuala que te mandou, co, filho de co! E diz-lhe em nome de Ignosi, legtimo rei, e de Infands, seu tio, e dos homens das estrelas que apagam o Sol, e de todos os chefes e soldados aqui juntos, diz a Tuala que antes que o Sol d duas voltas o cadver de Tuala jazer hirto e frio no terreiro de Tuala... Vai e treme, co, filho de co!

O oficial riu, com arrogncia:

No se assustam homens com palavras inchadas! Amanh se ver em que terreiro e que corpos jazero hirtos e frios. Adeus, pois, homens das estrelas. Para meu prprio regalo, espero que tenhais o brao to forte como tendes ousada a lngua.

Com este sarcasmo o valente voltou costas. Quase imediatamente a noite desceu. luz da Lua ainda continuaram os trabalhos da defesa. Depois, j por noite alta, quando tudo se completara, o baro, Ignosi e eu, acompanhados por um chefe, desce-mos a colina a visitar os postos avanados. A maneira que caminhvamos, vamos de repente surgir dos stios menos esperados, de uma cova na terra, de uma moita de arbustos, de um monto de rochas, alguma enorme figura emplumada, com a ponta da azagaia rebrilhando lua, que, trocada a palavra de passe, logo se sumia, como dissolvida na sombra das coisas. A vigilncia era realmente perfeita. Demos assim toda a volta colina, que tommos a subir pela vertente norte, atravs das companhias de soldados adormecidos. A lua batia nas lanas ensarilhadas. Aqui e alm uma sentinela destacava imvel, com as suas altas plumas ondeando brisa fria da noite. E os robustos homens escuros, estirados no cho, uns contra os outros, no confuso abandono da fadiga e do sono, formavam como um vasto monto de humanidade j postada e preparada para a sepultura. Quantos daqueles estariam ainda vivos quando na outra noite de novo nascesse a Lua? Estranha fatalidade e tristeza da vida! Muitos desses tinham alegria e paz nas suas aringas. Um prncipe ambicioso passava. E eis que milhares, que ali dormiam um sono tranquilo, cairiam, varados por lanas, seriam frios cadveres, desapareceriam em p impalpvel, sem de si deixar mais vestgio que folhas de rvores que um vento leva. E ns mesmos quem sabe? tomaramos ns a ver a Lua brilhar naquela colina?

Baro disse eu de repente, dando voz a estes pensamentos , sinto-me num lamentvel estado de atrapalhao e de medo.

O amigo Quartelmar costuma sempre queixar-se...

No, no! Desta vez srio. Nem sinto as pernas. Ns amanh somos atacados com foras colossalmente superiores e no escapa um de ns. estpido! E para qu? No temos nada com as questes dinsticas dos Cacuanas! Somos estrangeiros, somos neutros!

verdade. Mas j agora, estamos envolvidos na aventura e necessrio lev-la a cabo airosamente. E depois, que diabo, Quartelmar! Mais vale morrer de repente, numa batalha, que durante meses na cama!...

Eu pensei comigo (e bem estupidamente) que o melhor era no morrer nem numa cama, nem numa batalha. E da a instantes recolhamos nossa estreita senzala, a dormir algumas horas antes da grande aco.

Infands veio-nos acordar ao romper da alvorada, dizendo que se observavam j do lado da cidade movimentos de tropas, e que j ligeiras escaramuas tinham obrigado as nossas sentinelas avanadas a recolher. Comemos logo, febrilmente, os nossos preparativos. O baro, pelo princpio de que na Cacunia se deve ser cacuano, armou-se e enfeitou-se como um guerreiro selvagem pele de leopardo aos ombros, enorme pluma de avestruz presa testa, cintura de rabos de boi, escudo de ferro coberto de couro branco, machada de combate, facalhes de arremessar, azagaia, todo o complicado armamento de um chefe negro. E devo confessar que, assim armado e emplumado, era uma esplndida e formidvel figura! O capito John no causava tanta impresso. Em primeiro lugar, insistira em conservar as calas que Infands lhe obtivera; e um cavalheiro baixote e gordote, de monculo, sua de um lado e a cara rapada do outro, com uma cota de malha de ferro metida para dentro das pantalonas, grande lana e chapu-coco, oferece na realidade um espectculo mais estranho que imponente. Eu por mim, ao contrrio, tinha tirado as calas para correr mais lesto, se tivssemos de retirar; mas a fralda da camisa aparecia-me por baixo da cota de malha; um facalho que pendurara cinta batia-me lamentavelmente nas canelas; o escudo enfiado no brao entanguia-me os movimentos; e sentia em geral que no apresentava para combate uma figura suficientemente herica. De sorte que espetei uma imensa pluma no meu bon de caa e procurei dar ao rosto uma expresso de ferocidade. Alm do arsenal de armas selvagens, tnhamos naturalmente as nossas carabinas, que trs soldados atrs conduziam com os sacos de munio.

Apenas armados, engolimos pressa o almoo, e abalmos. Numa das extremidades do planalto do monte havia uma espcie de casebre de pedra, que servia ao mesmo tempo de quartel-general e de torre de vigia. Encontrmos a Ignosi, magnificamente emplumado e apetrechado. Com ele estava Infands; e, como guarda real, o regimento de Infands, decerto o mais numeroso e aguerrido de todo o exrcito. Este regimento tinha por nome os Pardos, porque usava plumas pardas na cabea. Era composto de trs mil praas; e estava colocado de reserva, deitado em ordem e por companhias sobre o capim que ali crescia. Os chefes, num grupo, junto do casebre, com as mos em pala sobre os olhos, observavam o movimento das tropas de Tuala que vinham nesse momento saindo de Lu em longas colunas semelhantes a formigueiros. Cada uma dessas colunas tinha de onze a doze mil homens. Logo que saram as portas de Lu e se acharam na plancie, pararam; depois, formadas em batalha, marcharam uma para a direita, outra para a esquerda, a terceira em direco nossa colina.

Bom murmurou Infands vamos ser atacados por trs lados!

 

 

X

O ATAQUE COLINA

 

Devagar, em perfeita ordem, as trs colunas avanaram. A da direita e a da esquerda, separadas, e obliquando como para envolver e cercar a nossa posio; a do centro, direita, sobre ns, marchando por aquela lngua da plancie que entrava pela nossa colina dentro colina que (como disse) tinha a forma de uma meia-lua com as duas pontas voltadas para a cidade de Lu. A umas quinhentas jardas esta coluna parou dando tempo a que as outras circundassem a nossa posio. O plano das gentes de Tuala era evidentemente dar, por cada lado, nossa cidadela, um assalto simultneo e brusco.

Ah! suspirou John, olhando aquelas multides espalhadas em baixo quem tivera aqui uma metralhadora!

Nem falemos nessa delcia! exclamou o baro com igual pesar. Em todo o caso, Quartelmar, veja se a sua carabina chega at quele magano, de pele de leopardo, que parece comandar a fora.

Carreguei tranquilamente a carabina com bala, agachei-me por trs de uma pedra e apontei. O pobre comandante de pele de leopardo avanara das fileiras uns trinta passos, seguido por uma ordenana, a examinar a nossa posio; e erguia justamente o brao, quando eu lhe mandei uma bala. Tombou sem um movimento mais, com a face no cho. Os nossos regimentos, espantados, aclamaram este milagre do homem das estrelas; e eu (tanto a guerra nos endurece o corao) gostei destes aplausos. Creio mesmo que agradeci, como um actor! No entanto o baro apontara a um outro oficial, que correra a recolher o cadver do camarada e que, por seu turno, bateu com os braos no ar, caiu morto. A fora inimiga, aterrada, comeou logo a recuar. Os nossos uivavam de deleite e de furor. John juntara-se a ns com a sua carabina; e antes que a diviso se tivesse retirado para fora do nosso fogo, abatemos uns dez ou doze homens. Como efeito moral parecia excelente.

De repente, porm, ouvimos um imenso clamor nossa direita, e um clamor igual nossa esquerda. Eram as duas colunas circundantes que nos atacavam. Imediatamente a massa de homens em frente - de ns rompeu, avanando por aquela lngua de plancie que penetrava em subida suave no interior da nossa meia-lua. Vinham num passo vivo, certo, elstico, que cadenciavam entoando um canto rouco. Comemos de novo a fazer fogo. Muitos homens caram. Mas era como se atirssemos pedras a uma grande vaga de equincio. A mar humana subia.

Subia com grandes brados, repelindo os nossos postos, colocados entre as rochas, base da colina. A sua marcha, porm, diminua de mpeto maneira que a subida se convertia em ladeira, depois em ngreme pendor de monte. A onde comeava o monte, estacionava a nossa primeira linha de defesa. J de lado a lado, entre as foras, se comeavam a atirar as tolas, grande facas de arremesso que faiscavam no ar. Os que avanavam vinham bradando: Tuala, Tuala! Chiel, chiel! Os nossos replicavam: Ignosi, Ignosi! Chiel, chiel! As primeiras azagaias entrechocaram-se; e, com o encontro, peito a peito, das duas massas de homens, na vertente da colina, a batalha comeou.

As foras que atacavam eram esmagadoras; e a nossa primeira linha, onde os homens caam como folhas no Outono, cedeu e reentrou na segunda linha de defesa. A luta aqui foi terrvel; mas os nossos recuaram, e a terceira linha entrou em batalha orla j do planalto. O baro, cujos olhos se acendiam, no se conteve mais. Brandindo a sua machada de guerra, arremessou-se para o meio do combate, seguido do capito John. Ao avistar a gigantesca figura do homem das estrelas que vinha em seu socorro, os nossos soldados bradaram com entusiasmo: Nanzie Incubu! Chiel, chiel! E, carregando com redobrado vigor, em poucos momentos repeliram a diviso de Tuala, que j cansada, sem poder romper a sebe viva de lanas que a continha, voltou a descer a colina em confuso. Nesse instante tambm um mensageiro esbaforido veio anunciar a Ignosi (ao lado de quem eu ficara) que o ataque na esquerda da colina fora rechaado; e j eu e Ignosi nos congratulvamos, quando, com grande horror, vimos os nossos que estavam defendendo a direita vir correndo pelo planalto, acossados por multides inimigas, que evidentemente naquele ponto tinham rompido as nossas linhas. Ignosi bradou uma ordem. Imediatamente o regimento dos Pardos se desdobrou, para reter a debandada dos nossos, rechaar a invaso. E, sem que eu compreendesse bem como, instantes depois achei-me envolvido numa furiosa carnificina. Tudo o que me lembra o estridente rudo dos escudos de ferro entrechocando-se e logo adiante a apario de um enorme bruto furioso, com os olhos sangrentos a saltarem-lhe das rbitas, que erguia sobre mim uma longa azagaia. O meu revlver findou-lhe os furores para todo o sempre. Mas, quase em seguida, senti uma pancada na cabea e quando tornei a abrir as plpebras estava no casebre do quartel-general, deitado numa esteira, com o excelente John a meu lado, velando.

Ento! exclamou ele ansiosamente, pondo no cho a cabaa de gua com que me borrifava.

Antes de responder, ergui-me muito devagar, apalpei com cuidado o meu precioso corpo.

Bem, obrigado. Estou perfeitamente bem!

Graas a Deus! Quando o vi, trazido numa padiola, deu-me uma volta o corao!

No, no foi desta! Levei s uma bordoada, suponho eu. E a batalha?

Por hoje, repelimos a pretalhada do rei. Mas perdemos perto de dois mil homens. Veja aquele horror, Quartelmar!

E o bom John mostrava fora o terreiro, convertido num hospital de sangue. Para transportar os seus feridos, os Cacuanas usam um longo e esguio tabuleiro com uma argola a cada canto. E destes tabuleiros, postos no cho, cada um com o seu homem, havia longas filas por entre as quais caminhavam, curvados, os cirurgies cacuanas. O mtodo destes clnicos simples e piedoso. Se a ferida se apresenta curvel, o soldado besuntado com unguentos nativos, e isolado nas senzalas. Se a ferida incurvel ou muito grave, o cirurgio, com uma lanceta, corta subitamente uma artria do homem, que expira em poucos instantes sem sofrer.

Fugindo a este espectculo, John e eu seguimos para o outro lado do quartel-general, onde encontrmos o baro (ainda de machado na mo, todo tinto de sangue) reunido em conselho com Ignosi, Infands e dois chefes idosos.

Ainda bem que chega, Quartelmar! gritou o baro. Eu no posso compreender o que quer esta gente... Parece que vamos ser cercados!

E assim era, segundo explicou lentamente Infands. Tuala, repelido, reunira reforos, e parecia tomar disposies para pr stio colina, e vencer-nos pela fome e pela sede. Os mantimentos no durariam mais de dois dias. Mas o pior era que a nascente de gua, sorvida a cada instante por dezasseis mil bocas sedentas, estava prestes a esgotar-se; e antes da manh seguinte o exrcito gemeria de sede. Nestas conjunturas, Ignosi queria saber o que propunham os homens das estrelas.

Dize tu, Macumazan, velha raposa, que tens visto muito e sabes todas as artes.

Conversei um momento com os amigos, e declarei em seguida ao conselho que, sem po e sem gua, nada nos restava seno fazer imediatamente uma tremenda surtida contra Tuala. Todos aprovaram com ardor a minha ideia. Mas sob que plano se tentaria esse ataque? Cabia a Ignosi, o rei, decidir e os olhos de cada um voltaram-se para o nosso antigo servo, que, agora, nas suas armas e plumagens de guerra, tinha um magnfico ar de rei guerreiro.

Depois de pousar dois dedos sobre a testa, maneira zulu, Ignosi falou e desenvolveu um plano excelente. Ao comeo da tarde (era ento meio-dia), os Pardos, comandados por Infands e o baro, desceriam aquela lngua da plancie que penetrava na meia-lua da colina, e avanariam sobre Tuala, enquanto ele prprio, Ignosi (que eu devia acompanhar), ficaria de reserva para trs com tropas frescas. Decerto Tuala, vendo os Pardos romper numa surtida, lanaria sobre eles toda a sua fora para os esmagar. Enquanto na lngua de terra se estivesse dando esse primeiro recontro, uma tera parte das nossas foras desceria pela ponta direita da colina, levando consigo John, o do olho rutilante; outra tera parte iria de manso pela ponta esquerda; subitamente, ambas cairiam sobre os flancos de Tuala e nesse instante ele, Ignosi, desceria pela frente com as tropas frescas, e, se a fortuna estivesse com ele, cearamos nessa noite, contentes, na cidade de Lu!

O plano foi acolhido entre aplausos e imediatamente entrou em preparao, com uma presteza, um mtodo, que fez honra aos oficiais cacuanas. No espao de duas horas foram servidas as raes aos homens, as trs divises formadas, a ordem de ataque bem explicada aos chefes, e toda a fora (menos uma guarda que se deixou aos feridos) colocada nos seus postos.

Era, pois, outra imensa carnificina que se preparava e em que me veria envolvido eu, homem de ordem, de gostos simples, que tanto detesto violncias! Quando John, ao partir com a ala direita, nos veio dizer adeus, um pouco comovido eu, com a voz abalada tambm, s tive estas palavras:

Se escapar, amigo John, louve a Deus, e no se meta mais com pretendentes!

 

 

XI

A BATALHA DE LU

 

No contarei os pormenores sangrentos deste grande combate, que se ficou chamando a batalha de Lu. Todos estes medonhos conflitos de selvagens, mesmo travados com a disciplina dos Cacuanas, se assemelham. sempre uma vasta confuso de corpos escuros e emplumados, um estridente rudo de escudos entrechocando-se, azagaias reluzindo no ar, saltos, guinchos, uivos, clamores imensos, onde destaca uma nota assobiada, o sgghi! sgghi! que solta o selvagem quando trespassa com o ferro o inimigo.

O plano de Ignosi, de resto, foi triunfalmente realizado. Os Pardos avanaram naquela lngua de terra que penetrava na nossa meia-lua, e com admirvel heroicidade sustentaram os ataques de regimentos aps regimentos arremessados sobre eles por Tuala.

Quando dos Pardos restava apenas metade, e a ateno de todo o exrcito inimigo estava concentrada nesta luta com o herico regimento, as duas alas nossas, que tinham caminhado pelos dois cornos da meia-lua, caram sobre os flancos desprevenidos do inimigo, como um crculo de ces de fila sobre lobos descuidados. Comeou uma pavorosa matana. Ignosi carregou ento de frente com as reservas frescas e decidiu a batalha. Eu fiz parte dessa carga: e, no sei como, achei-me ao p do baro, que parecia o verdadeiro deus da guerra, com os longos cabelos de ouro a esvoaar ao vento, todo ele vermelho de sangue, e soltando a cada grande golpe de machado o velho grito saxnio de ataque: O-hoy! O-hoy! Tambm me parece que avistei Tuala na confuso, coberto com a sua cota de malha, arremessando as tolas, as facas enormes dos Cacuanas, que dois guerreiros atrs dele traziam em sacos de couro. Lembro-me ainda tambm de um chefe que, em vez de escudo, erguia, para se defender, o cadver de um Pardo, e que combatia cantando. De resto, tudo se me confunde na memria o sangue correndo, os corpos tombando, um grande estridor de armas, um imenso esvoaar de plumas.

Com o embate das duas colunas nossas sobre os flancos do exrcito de Tuala, a batalha ficou ganha e dentro em breve a vasta plancie que se estendia entre a nossa colina e a cidade de Lu estava cheia de soldados fugindo em terrvel desordem. O regimento dos Pardos, no entanto (ou o que dele restava), reunira numa pequena elevao de terreno onde tristemente verificmos que, dos trs mil valentes que o compunham, ainda de manh, apenas acudiam chamada cento e noventa e cinco homens; Entre eles estava Infands, que combatera heroicamente, tendo somente um leve golpe no brao. Ignosi, com um grupo de chefes, entre os quais vinha John (ferido numa perna e manquejando), em breve se veio juntar a esta gloriosa falange dos Pardos. E foi seguido dela, como da sua guarda de honra, que o rei, e ns com ele, marchmos sobre a cidade de Lu. s portas da cidade, ainda fechadas, estavam j postados grossos destacamentos dos nossos para as atacar. Mas dentro, os soldados de Tuala, inteiramente desmoraliza-dos pela derrota do seu rei, no pareciam dispostos resistncia. Com efeito, s primeiras intimaes dos arautos, a ponte levadia da porta chamada Real foi descida; e, seguindo Ignosi, penetrmos enfim na cidade vencida. Nas ruas, s portas das aringas, nos terreiros, por toda a parte se apresentavam soldados, com a cabea baixa, os escudos e as lanas pousadas aos ps em sinal de submisso, que saudavam Ignosi como rei. Assim chegmos aringa real.

No terreiro silencioso, porta da sua grande senzala, solitrio, abandonado, sem um soldado, sem um corteso, sem uma das suas mil mulheres, estava Tuala, sentado num escabelo, com o rosto cado sobre o peito, as mos pousadas sobre os joelhos. Cheguei a sentir uma vaga piedade pelo pobre rei derrotado! Um nico ser lhe ficara fiel, Gagula que, agachada aos seus ps, rompeu num fluxo de injrias, mal nos viu assomar ao terreiro, seguindo o triunfante Ignosi.

Tuala, esse, no parecia ver, nem sentir. S quando Ignosi parou, e os soldados bateram em cadncia com os contos das azagaias no cho, o velho tirano ergueu a cabea emplumada. Depois, atirando sobre ns um olhar mais reluzente que o grande diamante que lhe ornava a testa:

Salve, rei! gritou ele a Ignosi, com amargo escrnio. Tu que, por feitios dos homens das estrelas, seduziste os meus regimentos, diz, que sorte me destinas?

A sorte de meu pai, que tu mataste! foi a fria e dura resposta.

Bem! Saberei morrer, para que te fique como exemplo quando a tua vez chegar. Mas reclamo um privilgio da famlia real dos Cacuanas. Quero morrer combatendo.

Concedo respondeu Ignosi. Escolhe o teu homem. Eu no posso, porque o rei no se bate em combate singular.

O sinistro olho de Tuala percorreu-nos lentamente a todos. E, como durante um momento se fixou em mim, eu senti ali o mais atroz pavor da minha vida aventurosa! Justos Cus! Se ele se quisesse bater comigo? Tambm, tomei logo a minha resoluo recusar, fugir, ainda que fosse apupado por toda a nao cacuana! Felizmente, o bruto escolheu:

Incubu! exclamou, estendendo a mo para o baro. Tu que mataste meu filho, querers tu lutar comigo, ou ser chamado um cobarde?

No gritou logo Ignosi , Incubu no se bater contigo!

Decerto no, se tem medo.

Infelizmente o baro compreendera. Todo o sangue lhe subiu s faces. E avanou logo, de machado erguido.

Acudimos, suplicando-lhe que no arriscasse a vida com aquela fera, inteiramente desesperada, de antemo condenada morte. Provas de herico valor j ele as dera de sobra! Para que ir-nos despedaar o corao, se uma desgraa lhe sucedesse?

O baro, porm, permaneceu inabalvel.

Nenhum homem vivo, civilizado ou selvagem, me chamar nunca cobarde.

Quero bater-me com ele!

Ignosi, bem a custo, cedeu.

Seja, pois!... Tuala, o grande Incubu vai marchar para ti!

Tuala riu, ferozmente; e os dois gigantescos homens ficaram frente a frente. O primeiro ataque foi o do baro, que lanou sobre Tuala o machado a toda a fora. Com um salto, Tuala esquivou o corte, e arremessou outro, em resposta, sobre o baro, que o aparou no escudo. E, durante um momento, houve assim uma viva e faiscante troca de machadadas, que ora bruscos saltos evitavam, ora os broquis defendiam. Ns nem respirvamos. O regimento dos Pardos, esquecida a disciplina, fizera crculo, e soltava gritos, batia palmas a cada golpe vibrado. John, agarrado ao meu brao, andava aos saltos sobre a perna s, animando o baro com berros:

Bravo! Anda-me a! Esse foi bom! Atira-lho de ilharga!...

Subitamente, um brado de horror ressoou. De uma pancada, Tuala cortara o cabo do machado do baro, que ficava assim desarmado e, erguendo o seu prprio machado, caa sobre ele com um uivo furioso de triunfo. Tudo acabara, eu fechei os olhos... Quando os abri, Tuala e o baro, agarrados um ao outro como dois gatos bravos, estavam rolando no cho e o baro, com um desesperado esforo. procurava arrancar a Tuala a machada que ele tinha presa ao pulso por uma correia de bfalo. Pareceu-me uma eternidade o tempo que eles assim rolaram um sobre o outro, nesta furiosa luta pela posse do machado. Finalmente a correia quebrou e com um ltimo, monstruoso arranque, o baro, desprendendo-se de Tuala, ergueu-se de salto, com o machado na mo. Num instante Tuala estava tambm de p e ambos tinham as faces a escorrer sangue. Foi Tuala, que, mais rpido, arrancou do cinto o facalho e o vibrou contra o peito do baro. O valente homem cambaleou, mas a couraa de malha repeliu a facada. De novo Tuala arremeteu com a lmina e ento o baro, retesando-se todo num esforo, alou o machado, no momento mesmo em que Tuala se inclinava, e deixou-lhe cair uma machadada, com tremenda fora, sobre o pescoo. Houve um grito enorme. E, coisa pavorosa!, vimos a cabea de Tuala saltar-lhe dos ombros, dar como uma pla dois pulos pelo cho, e rolar at aos ps de Ignosi! Durante um segundo o corpo ficou erecto, com o sangue saindo em grossos borbotes e a fumegar. De repente tombou, com um rudo surdo. E do outro lado o baro caiu tambm, desmaiado.

Erguemo-lo ansiosamente, encharcmos-lhe o rosto em gua. Pouco a pouco, abriu os olhos. Estava salvo!

O Sol ia justamente descendo. Eu baixei-me para a cabea de Tuala, que ali ficara numa poa de sangue, e, desapertando o grande diamante que lhe ornava a testa, entreguei-o solenemente a Ignosi e bradei:

Salve, rei dos Cacuanas!

Ele apertou o diamante sobre a testa. Depois pousou um p sobre o peito de Tuala morto, e, cercado dos seus guerreiros, entoou um canto de vitria.

 

 

XII

O REI IGNOSI

 

Tudo findara gloriosamente. Chegara a hora de repousar ou, melhor, de convalescer. O baro e o capito (cuja perna, de todo inchada, o fazia agora sofrer muito) foram levados em braos para a aringa palacial de Tuala. E eu para l me arrastei, exausto de emoes, com a cabea consideravelmente dorida da paulada dessa manh na defesa do planalto.

O primeiro cuidado foi despir as cotas de malha, tarefa difcil (pelo nosso combalido estado), em que nos ajudou a linda Fulata, que se constitura, desde o comeo da revolta, nossa vivandeira, nossa enfermeira e nosso anjo da guarda. Arrancadas as cotas, vimos que os nossos pobres corpos eram uma massa medonha de pisaduras negras. No tumulto da batalha tnhamos apanhado decerto muita facada, muita lanada. As pontas dos ferros eram repelidas pela malha impenetrvel; mas nem por isso cada um dos golpes arremessados deixava de constituir uma terrvel pontuada, que nos amolgava corpo e membros. Eu estava positivamente negro de pisaduras. Mas o pior era a ferida de John na perna, e a do baro, a quem uma das machadadas de Tuala cortara profundamente a face sobre a maxila. Fulata preparou-nos uns emplastros de ervas aromticas, que nos aliviaram as dores. E como o capito John tinha noes e prtica de cirurgia (segundo contei), foi ele que fez o tratamento da ferida do baro e da sua prpria, to bem quanto lho permitiam os poucos fios, o resto da pomada anti-sptica que encontrou na sua botica porttil e a escassa luz da lmpada cacuana. Depois, Fulata arranjou-nos um caldo muito forte, e estendemo-nos nas magnficas peles que juncavam o cho da aringa do rei. Mas no pudemos dormir. De toda a cidade, em torno de ns, subia a triste e ululada lamentao das mulheres, chorando, maneira dos Zulus, os valentes mortos na batalha. Mesmo ao nosso lado, as carpideiras reais estavam carpindo a morte de Tuala, com estridente dor. A noite ia cheia de prantos e, alm disso, a cada instante sentamos os gritos agudos das sentinelas, ou a ruidosa passagem de rondas. Foi s de madrugada que pude cerrar os olhos os olhos que, apesar de cerrados, continuavam a ver os lances da batalha, com tanta realidade que, por vezes, estremecia em sobressalto e me erguia no cotovelo a procurar as minhas armas, ou a lanar uma ordem de ataque.

Quando, enfim, acordei, com o Sol j alto, soube que os meus dois amigos tambm no tinham dormido. De facto, o capito John estava com uma imensa febre e comeava a delirar. Alm disso, sintoma assustador, toda a noite cuspira sangue. O baro, esse, mal podia ainda mexer o corpo; e a ferida da face no lhe permitia comer, escassamente falar. Eu era, ainda assim, o mais restabelecido. Tomei o delicioso caldo de Fulata, e sa um instante ao terreiro a respirar. Encontrei justamente Infands que chegava, to fresco e gil como se na vspera, em lugar de uma batalha, tivesse celebrado uma festa. Ficou desolado ao saber a doena de John. Entrou um momento na cubata para o ver e o baro, que no se podia ainda levantar e apenas mover os membros sobre o seu fofo leito de peles. Em voz baixa, por causa de John, Infands contou-nos que todos os regimentos se tinham submetido a Ignosi, que das outras cidades chegavam ferventes adeses, e que o novo reinado se firmava para longas eras de prosperidade e de paz.

Quando ele se retirava, apareceu Ignosi, seguido de uma guarda real. No pude deixar, ao v-lo, de pensar nas estranhas revolues da sorte! Aquele moo, que havia meses, na minha casa em Durban, me pedia para entrar ao meu servio ei-lo agora rei,  potentado de frica, comandando cinquenta mil guerreiros, senhor de povos, de rebanhos e de terras sem conta!

Salve, rei! exclamei eu, erguendo-me com respeito.

Graas a ti, Macumazan, e aos teus amigos! exclamou ele, apertando-me as mos com carinho.

Entrou tambm, como Infands, na cubata para ver o baro e o pobre John, que dormia um sono de febre, horrivelmente agitado, sob os olhos compassivos e vigilantes da boa Fulata. Depois, quando samos de novo ao terreiro, conversando, perguntei-lhe o que contava ele fazer de Gagula.

Gagula o gnio mau desta terra disse ele. Conto mand-la matar para findar com ela, que j velha de mais!

Mas tem segredos! Mas sabe muito! repliquei eu.

Sabe sobretudo o segredo dos Silenciosos volveu o rei pousando os olhos em mim com amizade e o da caverna onde os reis esto enterrados, e o lugar dos diamantes. Ora eu no esqueo a promessa que te fiz, Macumazan. Tu e os teus amigos ireis aos diamantes, guiados por Gagula: e s por isso a poupo.

Est bem, Ignosi, registo as tuas palavras.

Mas no foi possvel, durante essa semana, pensar nos diamantes, porque atravs de toda ela a vida do nosso pobre John esteve em risco e os nossos coraes em ansiedade. Realmente, creio que teria morrido se no fossem os desvelos, a adorvel dedicao de Fulata. Dias amargos esses para ns! O baro, j ento restabelecido, e eu, nada mais fizemos durante essa crise atroz do que entrar, sair, rondar em pontas de ps a senzala onde ele delirava. Remdios no tnhamos para lhe dar, alm de uma bebida refrescante feita por Fulata com leite e o suco extrado da raiz de uma espcie de tlipa. S podamos contar com a forte natureza dele e a boa merc de Deus.

Em toda a aringa real havia um grande silncio, porque Ignosi, para manter perfeito sossego em torno ao doente, ordenara que todos os que l viviam passassem a outras cubatas remotas. Fulata estava permanentemente ao lado dele, sentada no cho, dando-lhe a bebida refrescante, arranjando-lhe as travesseiras feitas das folhas secas de uma planta que faz dormir, enxotando-lhe as moscas do rosto.

No nono dia da doena, noite, antes de recolher, o baro e eu entrmos, segundo o costume, na senzala. A lmpada colocada no escabelo dava uma luz fnebre. No havia um rumor. E o meu pobre amigo jazia perfeitamente imvel. Pensei que chegara o seu fim, tive um soluo que me sufocou. Mas uma voz, na sombra, murmurou chut!.

E, mais de perto, descobrimos que o nosso amigo no estava morto, mas tranquilamente adormecido, sob a carcia das mos de Fulata, que lhe cobriam a testa, onde um suor fresco comeava. Era a crise do nono dia, o sono reparador. O nosso John estava salvo! Dormiu assim dezoito horas. E (mal me atrevo a cont-lo, porque no serei acreditado) Fulata, a admirvel, a santa rapariga, dezoito horas se conservou tambm assim, com as mos pousadas sobre a testa dele, sem comer, sem se erguer, sem se mexer, com receio de que o menor movimento acordasse o seu doente. Quando ele afinal despertou tivemos de a erguer em braos, porque a herica enfermeira estava quase desmaiada de debilidade e fadiga.

A convalescena de John foi rpida. Ao fim de outra semana, j passeava pelos arredores da cidade, entre os pomares, beira do rio, acompanhado por Fulata, que o salvara, e a quem ele votara (segundo dizia) um reconhecimento eterno. Mas eu no agourava bem daquele reconhecimento, daqueles passeios buclicos... Nos olhos de Fulata havia muita meiguice, muita languidez. E John, como marinheiro, era indiscretamente ardente. Depois de uma aventura de guerra, amos ter, mais perigosa ainda, alguma aventura de amor!

Apenas John se considerou a si prprio escorreito e pronto para outra Ignosi comeou as festas da sua proclamao. Todos os indunas (chefes supremos) das provncias do reino vieram a Lu prestar vassalagem. Houve revistas de tropas, danas, formidveis banquetes. Os homens que restavam do regimento dos Pardos foram todos doados com terras e rebanhos, e promovidos a oficiais. Ignosi promulgou na Grande Assembleia que, de ora em diante, no haveria mais caa aos feitios, nem morte sem julgamento. Depois ordenou que, enquanto ns residssemos no seu reino, gozssemos de honras reais, e recebssemos sempre, como ele, a saudao de crum!

No ltimo dia deste grande festival, eu e os amigos dirigimo-nos ao rei, em grupo, e declarmos-lhe que o momento chegara, de realizar a sua promessa e de nos mandar conduzir ao lugar onde deviam estar as pedras brancas que reluzem.

Ignosi abraou-nos com grande afecto.

No me esqueci, amigos! J indaguei a verdade, e eis o que sei. Aquela estrada branca que trilhmos acaba alm junto das montanhas chamadas as Trs Feiticeiras, onde esto as figuras de pedra, os Silenciosos. Jaz a uma grande cova, de onde se diz que homens muito antigos, em outras idades, tiravam as pedras que reluzem. Para alm dessa cova h uma funda caverna na rocha, terrvel, maravilhosa, onde vive a Morte, onde jazem os nossos reis mortos, e para onde Tuala j foi conduzido. E por trs dessa caverna fica uma cmara secreta, de que s Gagula conhece o segredo. Corre tambm a histria de que, h muitas geraes; um branco veio aqui, e foi conduzido por uma mulher a essa cmara secreta, onde viu riquezas sem conta, mas dessas que para os Cacuanas nada valem; o branco, porm, no teve tempo de arrecadar essas riquezas, porque a mulher o traiu, e o rei desses tempos o escorraou outra vez para alm das montanhas...

A histria verdadeira acudi eu. No te lembras, Ignosi, que nas montanhas, na caverna de gelo, encontrmos ns, petrificado, esse homem branco?

Muito bem me lembro. Por isso vou mandar chamar Gagula, e ordenar-lhe, sob pena de morrer, que vos leve cmara secreta, meus amigos... e as riquezas que encontrardes, meus amigos, so vossas!

Nesse instante, dois guardas apareceram, trazendo agarrada pelos braos a hedionda Gagula, que gania e os amaldioava. Mal a largaram, toda ela se abateu e achatou sobre o cho como um monto de trapos, onde dois olhos ferozes viviam e refulgiam.

Que me queres tu, Ignosi? uivou ela. No me toques, que te destruo. Treme das minhas artes!

O rei encolheu os ombros.

As tuas artes no salvaram Tuala. Que me importam as tuas artes? Aqui est o que de ti quero: que mostres aos meus amigos a cmara secreta onde esto as pedras que reluzem.

S eu o sei, e nunca o direi! bradou ela. Os brancos malditos voltaro levando vazias as mos malditas!

Bem volveu tranquilamente o rei. Ento, Gagula, vais morrer lentamente.

Morrer! gritou ela, cheia de terror e de fria. Tu no te atrevers, Ignosi! Ningum me pode matar. Que idade pensas tu que eu tenho? O teu pai conheceu-me; e o pai do teu pai; e o pai que gerou a esse. Ningum ousar tocar-me, porque sobre esse cairo as desgraas sem fim.

Em silncio, tranquilamente, Ignosi baixou sobre ela a ponta da sua azagaia:

Dizes?

No!

Ignosi baixou mais o ferro, picou de leve o monto de trapos onde reluziam os dois olhos ferozes.

Com um uivo dilacerante, a horrenda bruxa ps-se em p, de salto. Depois tornou a cair, e rolou no cho esperneando.

De novo a lana de Ignosi a procurava.

Dizes?

Digo, digo, rei! ganiu ela. Mas deixa-me viver, e sentar-me ao sol, e respirar o ar doce, e ter um osso para chupar!...

Bem; amanh irs com meu tio Infands e com meus irmos brancos a esse lugar, mostrars a cmara secreta e o esconderijo das pedras que reluzem. Mas tem cautela! Que se em ti houver traio, morrers devagar, e em tormentos.

No, Ignosi! Irei com eles, e tudo mostrarei. Mas a desgraa vem a quem penetra nesse lugar. Outrora veio um homem, encheu um saco dessas pedras brilhantes, e uma grande desgraa caiu sobre ele! E foi uma mulher que o levou, e que se chamava Gagula. Talvez fosse eu! Talvez fosse minha me! Ou a me de minha me! Quem sabe? Ser uma alegre jornada... Eu hei-de ir, e hei-de rir! Vinde, homens brancos, vinde! Vereis, ao passar, os que morreram na batalha, com os olhos vazios, as costelas ocas. A morte vive l, e est espera. Ser uma alegre jornada!

 

 

XIII

A GRANDE CAVERNA

 

Trs dias depois, ao escurecer, estvamos acampados num casebre desmantelado, em frente das Trs Feiticeiras, as trs montanhas que tantas vezes de longe avistramos, desde a nossa chegada a Lu, e onde deviam jazer, segundo a tradio dos Cacuanas e o roteiro do velho D. Jos da Silveira, as minas das pedras que reluzem as Minas de Salomo! Tnhamos partido de Lu doze dias antes, acompanhados por Infands, por Fulata (que no deixara mais o seu doente, o bom John), por Gagula, que vinha numa liteira, e por uma forte escolta de serviais e soldados. E foi s no dia seguinte, ao amanhecer, que examinmos aquele estranho stio, to cheio de terror para os Cacuanas e para ns de maravilhosas promessas.

Nunca eu esquecerei o momento em que, saindo a porta das cubatas, na primeira e fresca luz da manh, vimos os trs montes isolados, em tringulo, um nossa direita, outro nossa esquerda, o terceiro ao fundo, em face de ns, erguendo magnificamente ao cu os seus cimos resplandecentes de neve. Um tojo em flor, de um escarlate ardente, cobria as poderosas faldas dos trs montes e seguia ainda, como um tapete igual e contnuo, pelos grandes descampados que os cercavam. A fita branca da estrada de Salomo cortava a direito at Feiticeira central, a que formava a ponta do tringulo, onde findava brusca e misteriosamente. A, junto desse monte, estavam as fabulosas minas, que tinham sido o fim de tantos mseros destinos o do velho fidalgo portugus, o do seu descendente, e decerto o daqueles que ns vnhamos procurando desde o Sul e por quem corrramos tanto perigo e tanta aventura! Todo o que buscar essas minas fabulosas (dizia Gagula) encontrar desiluso e desastre. Seria essa a nossa sorte? Ns chegvamos sob a proteco do rei, cercados de serviais e de guardas... E apesar disso sentamos pesar-nos sobre o corao, tristemente, a profecia da horrenda mulher.

No entanto, quando nos pusemos a caminho, era to viva a ansiedade de chegar e de ver que os carregadores da liteira de Gagula mal podiam acompanhar a nossa carreira. A cada instante a velha bruxa gritava, estendendo para ns, por entre os panos da liteira, os braos descarnados, as mos em garra:

No vos apresseis, homens brancos! A morte est vossa espera e no foge! Para que vos esfalfar, correndo para ela? Certa e segura a tendes!

Dava ento uma risadinha que nos arrepiava. Insensivelmente abrandvamos o passo... Depois bem cedo o estugvamos de novo, sob o impulso irresistvel da curiosidade e da esperana!

Gastramos assim hora e meia, trilhando a estrada de Salomo, e tendo j deixado nossa direita e nossa esquerda as duas Feiticeiras que formam a base do tringulo quando chegmos junto de uma imensa cova circular, em funil, oferecendo talvez trezentos ps de profundidade e meia milha de circunferncia. Entre a erva e o tojo que interiormente a forravam surgiam grandes pedaos de greda azulada; quase ao fundo corria um canal para gua, talhado na rocha viva; e abaixo do nvel dessa obra estavam alinhadas umas poucas de mesas de pedra, polidas e gastas pelo tempo. A cova, as mesas, a disposio do canal, a natureza da greda azulada, tudo era semelhante ao que eu muitas vezes vira no Sul, nas minas de diamantes de Kimberley. Assim o disse aos amigos e para mim ficou certo que ali houvera, em tempos, fosse nos de Salomo, fosse noutros mais recentes, uma mina de diamantes.

A estrada, ao abeirar-se da cova, dividia-se em dois ramos que a circundavam; e a espaos, esta via circular era feita de enormes lajes de pedra, com o fim certamente de solidificar as bordas da mina e impedir que se esboroassem. Mas o que mais nos surpreendia era, do outro lado da vasta cova, um grupo de trs objectos, que se destacavam como trs pequenas torres ou trs marcos colossais. A curiosidade quase nos fez correr, deixando atrs Gagula e Infands; e bem depressa percebemos que o grupo era formado por trs imensas esttuas. Conjecturmos logo que deviam ser os Silenciosos, esses dolos to temidos pelos Cacuanas e a quem ofereciam os sacrifcios sangrentos. Mas s ao chegar junto deles pudemos apreciar a estranha e terrvel majestade dessas vetustas figuras.

Separadas por uma distncia de vinte passos, erguidas sobre imensos pedestais de pedra negra, onde corriam caracteres desconhecidos, e olhando a direito para a estrada de Salomo, que atravs de sessenta milhas de plancie seguia at Lu enchiam um grande espao as trs gigantescas formas, duas de homem, uma de mulher, todas trs sentadas, medindo talvez cada uma a altura de vinte ps.

A figura de mulher, toda nua, com dois cornos, como os de um crescente de luz, sobre a testa, era de uma maravilhosa beleza infelizmente estragada pelas injrias do tempo durante longos sculos. As duas figuras de homem, talvez por estarem vestidas em longas roupagens, pareciam mais bem conservadas. Um deles tinha uma face medonha, feita para inspirar terror, como a de um demnio malfico; mas a do outro parecia talvez mais assustadora ainda, na sua fria expresso de dura indiferena, de uma indiferena de rocha, que nenhuma prece pode abrandar, ou nenhum sofrimento apiedar. Todos trs juntos formavam na realidade uma trindade pavorosa, assim sentados, imveis, com os olhos vaga e perpetuamente estendidos para a plancie sem fim. Que imagens seriam estas? Deuses? Demnios? Reis de povos cujo nome esqueceu? Eu por mim, das minhas reminiscncias da Bblia, coligia que deviam ser talvez os falsos deuses que adorou Salomo Asthoreth, deusa dos Sidnios, Chenosh, deus dos Moabitas, e Milcolm, deus dos filhos de Amnon. Assim diz o Livro Santo.

Que lhe parece, baro?

Talvez concordou o nosso amigo, que recebera grau em Literaturas Clssicas.

A Asthoreth, de que falam os Hebreus, a Astarte dos Fencios, os grandes comerciantes do tempo de Salomo. De Astarte fizeram os Gregos a sua Afrodite, que se representava com o crescente da meia-lua na cabea... Se Salomo tinha aqui as suas minas, era natural que fossem dirigidas por engenheiros fencios. De sorte que provavelmente esses homens ergueram, como padroeira da mina, a esttua da sua deusa.

Quem pode saber?

Quando estvamos assim contemplando estas extraordinrias relquias de uma remota antiguidade, Infands, que caminhara sem se apressar, chegou junto de ns, e saudou reverentemente com a lana os Silenciosos. Vinha saber se queramos penetrar imediatamente na caverna, ou tomar primeiro a refeio da manh. Como no eram ainda onze horas, e a nossa curiosidade flamejava, decidimos desvendar logo os mistrios, levando connosco provises, para se l dentro a fome, excitada pelas emoes, nos assaltasse. Infands fez ento sinal aos carregadores para que se acercassem com a liteira de Gagula; e Fulata preparou dentro de um cesto, para levarmos, uma poro de caa fria e duas cabaas de gua. Ns, entretanto, dramos uma volta em torno s trs figuras de pedra. Por trs delas, a uns cinquenta passos, erguia-se aquela das Feiticeiras que formava o bico do tringulo; na sua base, como incrustada nela, corria uma muralha de pedra; e a, ao centro, podamos distinguir um arco escuro, como a entrada de uma galeria subterrnea. Espermos que os carregadores tirassem Gagula da liteira. Apenas no cho, a horrenda criatura agarrou o cajado, e do-brada em duas, com passos trmulos e vivos, largou em silncio para o arco escuro. Ns seguimos, calados tambm. entrada, o monstro parou, voltado para ns, com um riso lvido na caveira.

Homens das estrelas, estais decididos? Quereis realmente penetrar na cova onde as pedras reluzem?

Estamos prontos, Gagul disse eu, alegremente.

Bem, bem! Entrai! E pedi fora aos coraes para afrontar as coisas que ides ver! E tu, Infands, que traste teu amo, vens tu tambm?

O velho guerreiro franziu terrivelmente o sobrolho:

No me compete a mim entrar nos stios sagrados. Mas tu, Gagula, tem cautela, e treme! Os homens que vo contigo so os amigos do rei! Por eles me respondes tu. E se tanto como a perda de um s cabelo lhes suceder em mal, nem todos os teus feitios te livraro de morrer em tormentos. Compreendeste?

Compreendi, compreendi, Infands! ganiu ela, com um risinho gelado e lento.

No receies! Eu vivo s para fazer a vontade do rei! Tenho feito a vontade de muitos reis, em muitas geraes! E os reis findaram sempre por cumprir a minha vontade! Todos passaram, todos morreram. E eu aqui estou, para os ir visitar agora no palcio da morte, e para lhes falar dos tempos que foram! Vinde! Vinde! A lmpada est acesa! Tinha tirado de baixo do manto de peles que a cobria uma cabaa cheia de leo com uma grossa torcida de vime e a luz que ela aproximou do arco negro pareceu desmaiar e tremer.

Vens tu tambm, Fulata? exclamou John, volvendo os olhos em redor, inquieto.

Tenho medo, meu senhor murmurou a rapariga.

Bem. Ento d c o cesto!

No, meu senhor, para onde fordes, vou eu tambm! Bem!, pensei eu comigo a levamos tambm o trambolho da rapariga para dentro da mina!

No entanto Gagula mergulhara na galeria, que dava apenas lugar para dois caminharem de frente. As trevas eram absolutas. Asas de morcegos batiam-nos nas faces. E seguamos menos a luz bruxuleante da lmpada que a voz de Gagula, que repetia num tom lgubre:

Avanai, avanai! A morte est perto!

De repente distinguimos uma vaga claridade. E, momentos depois, parvamos no mais maravilhoso stio que os olhos humanos tm contemplado.

A nada o posso comparar melhor do que ao interior de uma imensa catedral, uma catedral de sonho ou de lenda, sem janelas, alumiada por uma luz difusa e misteriosa, que parecia cair das alturas da abbada. Ao comprido desta nave, como na nave de um verdadeiro templo, corriam renques de gigantescas colunas, de uma cor lgida de gelo e de magnfica beleza. Alguns destes nobres pilares estavam, por assim dizer, interrompidos no meio um pedao erguendo-se do solo, como a coluna quebrada de uma runa grega, outro pedao pendente da remota abbada. Aos lados da nave abriam-se, com dimenses diversas, cavernas semelhana de capelas, tendo tambm as suas filas de colunas, algumas to pequeninas e finas como feitas para um brinquedo de criana. Aqui e alm havia construes estranhas, da mesma substncia lgida que parecia gelo uma da forma de uma vasta taa, outra oferecendo a vaga aparncia de um plpito com lavores pendentes. Um ar de indescritvel frescura circulava dentro da vasta nave e por toda a parte sentamos, na penumbra, o rudo lento de gotas de gua caindo.

No tardmos em perceber que estvamos simplesmente numa caverna de estalactites, de inigualvel beleza. Cada uma daquelas gotas de gua que caa, com um som hmido e triste, era mais uma coluna que se estava formando. H quantos sculos andava a Natureza trabalhando naquela obra maravilhosa? Sobre uma das colunas incompletas, notei eu uma rude inscrio entalhada decerto por algum obreiro fencio das minas, que ali escrevera o seu nome, ou talvez alguma faccia fencia. Pois, desde esse dia, em trs mil anos pelo menos, a coluna apenas crescera para cima da inscrio uns trs ps e meio. E ainda estava em via de formao, porque eu distintamente senti, enquanto a examinava, cair sobre ela, das profundidades da abbada, uma lenta gota de gua! Quantos centos de milhares de anos levaram pois a crescer, a formar-se, assim largas, macias, altas como torres, as colunas inumerveis que se enfileiravam na nave? Nunca, como ali, eu compreendi a espantosa velhice da Terra.

Gagula, porm, no nos deixou muito tempo nesta curiosa contemplao. Inquieta, batendo no cho com o cajado, a lmpada erguida sobre a cabea, a cada instante nos apressava, com ganidos sinistros.

Vamos, vamos, que a Morte est nossa espera!

O capito John ainda tentava gracejar com a atroz criatura. Mas quando ela nos conduziu ao fundo da nave, diante de uma pequena porta semelhante s dos templos egpcios, e nos perguntou se estvamos bem preparados a entrar a morada da Morte todos estacmos, inquietos, mudos, sem ousar o primeiro passo.

Isto est-se tornando sinistro murmurou o baro.

Os mais velhos adiante, passe l, Quartelmar.

Entrei a porta egpcia e achei-me num corredor inclinado, todo de abbada, horrivelmente negro. A lmpada de Gagula esmorecia. O bater do seu cajado dava um eco lgubre. E a meu pesar parei, dominado por um pressentimento de desastre e de morte.

Para diante! Para diante! murmurou John, que trazia Fulata agarrada pela mo. Com um esforo desesperado venci o receio, alarguei o passo. E, quase colados uns aos outros, desembocmos numa sala subterrnea, evidentemente escavada outrora por poderosos obreiros no interior da montanha.

Esta sala no tinha uma luz to clara como a catedral de estalactites; e tudo o que eu pude descobrir, a princpio, foi uma enorme e macia mesa de pedra, tendo no topo uma colossal figura, que parecia presidir outras figuras abancadas em tomo. Depois, sobre a mesa, no. centro, distingui uma forma encruzada. E quando enfim, acostumado penumbra, percebi o que eram aquelas formas, voltei costas, e largaria a fugir como uma lebre se o baro no me agarrasse pelo brao fortemente. Cedi, tremendo todo. Mas a esse tempo o baro tambm se habituara luz difusa, compreendera tambm, e largando-me o brao, com uma exclamao, ficou a meu lado, quedo, arrepiado, limpando o suor que lhe cobrira a testa. A pobre Fulata, essa, dava gritos, agarrada ao pescoo de John. E Gagula triunfava, com sinistra zombaria.

O que tnhamos, com efeito, ante os olhos apavorados, era terrvel. Ali, no topo da longa mesa de pedra, estava a Morte a prpria Morte, um medonho e gigantesco esqueleto, de p, todo debruado para diante, com um dos braos apoiado ao rebordo da pedra como se acabasse de se erguer do seu assento, e com o outro levantando no ar uma enorme lana, que parecia arremessar sobre ns; o crnio da caveira alvejava lugubremente; das covas das rbitas saa um fulgor negro; e as maxilas estavam entreabertas, como se fosse falar, e desvendar o seu segredo.

Santo Deus! murmurei eu, transido. Que pode isto ser?

E estas figuras, em redor? balbuciava John.

E alm, aquela coisa, no meio? exclamou o baro, apontando para a inexplicvel figura encruzada sobre a mesa.

Ento Gagula pousou a lmpada e agarrando o brao do baro, com o dedo estendido para a forma encruzada:

Avana, Incubu, homem forte na guerra! Avana, e contempla aquele que tu mataste e que est agora junto aos seus avs!

O baro deu um passo, e recuou abafando um grito. Sobre a mesa, inteiramente nu, com as pernas encruzadas, e a cabea que o baro cortara pousada em cima dos joelhos, estava Tuala, ltimo rei dos Cacuanas!... Sim, Tuala, sustentando solenemente sobre os joelhos a sua hedionda cabea decepada e com as vrtebras a sarem-lhe para fora do pescoo encolhido e como ressequido! Sobre todo o corpo negro tinha j uma espcie de pelcula gelatinosa e vidrada, que o tornava mais pavoroso, e cuja natureza eu no podia compreender at que senti, tique, tique, tique, um fio de gotas de gua, que, caindo da abbada, lhe escorria pelo pescoo, e dali pelo corpo, para se escoar depois por um buraco cavado na mesa. Ento percebi tudo o corpo de Tuala estava sendo convertido numa estalactite!

E as outras figuras sentadas em torno da mesa eram igualmente reis dos Cacuanas, j transformados em estalactites! Havia trinta e sete sendo o ltimo o pai de Ignosi. esta, desde tempos imemorveis, a maneira por que os Cacuanas conservam os seus reis mortos. Petrificam-nos, expondo-os, durante um longo perodo de anos, a uma queda de gua siliciosa que, lentamente e gota a gota, os transforma em esttuas geladas.

Estvamos assim diante do mais maravilhoso e extico panteo real que existe decerto na Terra. E nada pode igualar a terrfica impresso que causava aquela srie de reis, pertencendo a muitas dinastias, amortalhados numa camada de gelo que mal lhes deixava j distinguir as feies, ali sentados, volta da imensa mesa, em espectral e pavoroso conclio, presididos pela Morte!.

E a Morte, o maravilhoso esqueleto, quem o esculpira? No decerto os Cacuanas. A sua composio, o seu trabalho revelavam uma arte perfeita. Era obra dos artistas fencios? Fora colocada ali em tempo de Salomo, para guardar, pelo terror da sua lana, a entrada dos tesouros? No sei. Nem sei mesmo contar, com verdade, as estranhas sensaes por que passei naquela cmara sinistra.

 

 

XIV

O TESOURO DE SALOMO

 

No entanto Gagula (que era por vezes extremamente leve e gil) trepara para cima da mesa e acercara-se do cadver de Tuala, a quem pareceu falar misteriosamente; depois seguiu por entre as filas dos reis, dirigindo, ora a um, ora a outro, como a velhos amigos, palavras lentas e graves que no compreendamos. Por fim, tendo chegado em frente da Morte, caiu de bruos, com os braos estendidos, e ficou mergulhada em orao.

Era um espectculo to arrepiador, naquela penumbra de sepulcro, a hedionda criatura, mais velha que todas as criaturas,- fazendo splicas ao enorme esqueleto que eu, j enervado, lhe gritei que viesse, nos levasse ao lugar dos tesouros. Imediatamente, a horrvel bruxa saltou da mesa, como um gato, e, passando por trs das costas da Morte, ergueu a lmpada, mostrou a parede da rocha:

Entrai, homens brancos, entrai, se no tendes medo! Olhmos, procurando a entrada. S vimos a rocha slida e negra.

Gagula disse eu com os dentes cerrados no zombes de ns, que te mato!

Mas a porta aqui, homens brancos, a porta aqui! gania ela, com as costas apoiadas muralha, onde roava de leve uma das suas mos descamadas.

E ento, luz bruxuleante da lmpada, vimos que um bocado da muralha, de feitio e tamanho de uma porta, se ia erguendo lentamente do solo, e desaparecendo em cima na rocha, onde devia existir uma cavidade para a receber. No pesava menos, aquela massa de pedra, de vinte a trinta toneladas e era certamente movida por algum maquinismo, fundado num equilbrio de peso, que uma mola, colocada num lugar secreto da muralha, punha em movimento. Nem nos lembrou, nesse momento, arrancar a Gagula o segredo da mola que erguia a pedra! Pasmados, vamos a imensa massa subir, devagar, muito devagar, at que desapareceu, deixando diante de ns um grande buraco negro.

Estava enfim aberto, para ns nele penetrarmos, o caminho que levava aos tesouros de Salomo. A emoo foi to intensa, que eu, por mim, comecei a tremer. Era pois verdade o que dizia, no seu pedao de papel, o velho D. Jos da Silveira? Estavam pois ao nosso alcance, destinadas a ns, as maiores riquezas que jamais um rei acumulou na Terra? Poderamos ns ver, tocar, agarrar e levar em sacos o tesouro que fora de Salomo, maravilha dos livros santos? Assim parecia e para isso bastava dar um passo.

Dei esse passo e com explicvel sofreguido. Mas Gagula defendia ainda com os braos o buraco negro:

Escutai, homens das estrelas! Escutai o que necessrio saber! As pedras que brilham, que vs ides ver, foram tiradas da cova circular no sei por quem, e guardadas aqui no sei por quem. A gente que, de gerao em gerao, tem vivido nesta terra, sabia da existncia do tesouro, mas ningum conhecia o segredo para abrir a porta de pedra! Por fim aconteceu vir aqui um homem branco, talvez tambm das estrelas, que foi bem recebido e bem agasalhado pelo rei de ento, que era o quinto, alm, sentado mesa de pedra. Com ele vinha uma rapariga cacuana; ambos percorreram estas cavernas; e sucedeu que, por acaso, essa mulher, que talvez fosse eu ou que talvez fosse outra como eu, descobriu o segredo da porta. O homem e a mulher entraram, e encheram de pedras um saco pequeno de couro, onde ela levava de comer. Ao sarem, o homem agarrou na mo outra pedra, maior que todas...

E aqui a bruxa parou, com os olhos coruscantes cravados em ns.

Continua! exclamei eu, que escutara sem respirar. O homem era D. Jos da Silveira. Que se passou mais?

A velha feiticeira recuou espantada.

Como lhe sabeis o nome? Ah! sabeis-lhe o nome!... Pois bem, ningum pode dizer o que sucedeu. Mas o homem teve medo de repente, atirou para o cho o saco cheio de pedras, e fugiu, levando s agarrada a pedra maior que tinha na mo. a que Tuala trazia no diadema. a que tu deste a Ignosi!

E ningum mais entrou aqui?

Ningum. Mas os reis ficaram sabendo o segredo da porta... Nenhum, porm, entrou, porque dizem profecias j muito antigas que aquele que aqui entrar morrer antes de uma Lua nova. Esta a verdade, homens das estrelas. Entrai agora! Se eu no menti a respeito do homem que se chamava Silveira, vs encontrareis no cho, entrada da porta, cado, o saco de couro cheio de pedras... E se as profecias mentem ou no, sobre a morte que espera a quem aqui penetrar, vs mais tarde o sabereis...

E sem mais, a hedionda criatura mergulhou no corredor tenebroso, erguendo ao lado a plida lmpada. Ns, no entanto, olhvamos uns para os outros com hesitao, quase com medo bem natural, de resto, em nervos abalados por tantas emoes estranhas. Foi John o mais corajoso:

Acabou-se! C vou! Era ridculo ficarmos apavorados com as tontarias de uma velha macaca. Adiante!

E avanou seguido por Fulata e por ns dois, em silncio. Mas, dados alguns passos, ouvimos uma medonha praga. Era John que tropeara, quase cara sobre um bloco de cantaria atravessado no corredor. Gagula erguera mais a lmpada:

No receeis!... So pedras que a gente de outrora tinha a acumulado para tapar o corredor para sempre... Mas fugiram, ao que parece, no tiveram tempo!

E, com efeito, havia ali como umas obras interrompidas pedras serradas e esquadradas, um monte de cimento, e uma picareta e uma trolha, semelhantes s que ainda hoje usam os pedreiros. Contemplei com reverncia estas antiqussimas ferramentas. No entanto Fulata, que desde a nossa entrada na caverna no cessara de tremer de medo, sentou-se sobre uma pedra, e declarou que desmaiava, no podia mais caminhar... Ali a deixmos, com o cesto de provises ao lado, at que ela ganhasse alento. E seguimos.

Uns quinze passos diante, demos de repente com uma porta de pau, curiosamente pintada a cores, e toda aberta para trs. E no limiar da porta, l estava, cado no cho um pequeno saco de couro que parecia cheio de seixos!

Ento, brancos, que vos disse eu? ganiu Gagula em triunfo, brandindo a lmpada. Olhai bem! A tendes o saco que o homem deixou cair. A est ainda, desde geraes! Que vos disse eu?

John ergueu o saco. Era pesado e tinia.

Santo Deus! Est cheio de diamantes! balbuciou ele quase com medo.

E com efeito, meus amigos! A ideia de um saco de couro repleto de diamantes de causar medo!

Para diante, para diante! exclamou o baro, com sbita impacincia. D c tu a lmpada, bruxa!

Arrancou a luz das mos de Gagula. E de tropel com ele, sem sequer pensar mais no saco que John atirara outra vez para o cho, transpusemos a porta. Estvamos dentro do tesouro de Salomo.

Durante um momento, olhmos vagamente em redor, num silncio apavorado. luz dbil e mortia da lmpada s percebemos, ao princpio, que o quarto ou cmara era  escavado na rocha viva. Depois, a um dos lados, vimos distintamente alvejar, sobrepostos em camadas at abbada, uma poro imensa de dentes de elefante, de inigualvel riqueza. Haveria talvez uns quinhentos ou seiscentos dentes. S aquele marfim nos poderia tornar a todos ricos para sempre. Era desse espantoso depsito que Salomo fizera talvez o grande trono de marfim de que falam os livros santos! Toquei um dente de leve, depois outro, com venerao, como relquias sagradas! E o suor caa-me em bagas.

Ali esto os diamantes gritou John. Trazei a luz!

Corremos para o recanto que ele indicava. E a lmpada que o baro baixara mostrou umas dez ou doze caixas de madeira, estreitas e muito compridas, pintadas de escarlate. A tampa de uma, to antiga que mesmo naquele ar seco de caverna tinha apodrecido, apresentava vestgios de arrombamento. Pelo menos no meio havia um buraco. Enterrei a mo atravs, e tirei-a cheia, no de diamantes, mas de moedas de ouro, como ns nunca vramos, com letras hebraicas (ou que julgmos hebraicas) e palmeiras e torres em relevo no cunho.

Justos Cus! murmurei sufocado. Aqui devem estar milhes! Isto nem se acredita!... Naturalmente era o dinheiro para pagar as frias aos mineiros... Estaremos ns a sonhar?

Mas os diamantes exclamava John, percorrendo sofregamente o quarto. Onde esto, por fim, os diamantes? S se o portugus os meteu todos no saco!

Gagula, decerto, compreendeu os nossos olhares, que buscavam avidamente:

Alm, alm, onde mais escuro! L esto os trs cofres de pedra, dois selados, um aberto!

A sua aguda voz tomara um som cavo e sinistro. Mas qu! Onde ia agora, diante de to inverosmeis riquezas, o medo das profecias mortais? Era alm no recanto escuro? Para l corremos, sondando com a lmpada.

Aqui, rapazes! gritou John, na maior excitao.

Aqui. Oh meu Deus! So trs arcas de pedra!

E eram! Eram trs arcas de pedra que nos davam pela cintura, ocupando os trs lados de uma espcie de alcova tenebrosa. Duas estavam fechadas com imensas tampas de pedra. A tampa da terceira estava encostada muralha. Baixmos a lmpada para dentro. No pudemos distinguir nada ao princpio, deslumbrados por uma vaga refraco prateada que faiscava e tremia. Quando os olhos se habituaram quele brilho estranho, vimos que a arca imensa estava cheia at ao meio de diamantes brutos! Mergulhei as mos neles. Com efeito! Eram diamantes. Uma arca cheia de diamantes! No havia dvida! Bem lhes sentia eu entre os dedos aquele macio especial que em Kimberley, nas minas, chamam sabonceo! Era uma arca cheia de diamantes!

Ficmos, mudos, olhando uns para os outros. A frouxa luz da lmpada eu via as faces dos meus amigos perfeitamente lvidas. E no havia em ns nenhuma alegria. Era um torpor, como se a alma nos ficasse bruscamente esmagada sob a fabulosa infinidade daquela riqueza.

Eu murmurei, com um suspiro de criana:

Somos os homens mais ricos deste mundo!

John passava os dedos pelo queixo, numa distraco quase melanclica:

Eu sei l!... Os diamantes agora perdem de valor; ficam como vidro!

E transport-los? E transport-los? dizia o baro, abanando a cabea.

De repente sentimos por trs uma risada que nos estarreceu. Era Gagula. Gagula que ia, vinha, s - voltas, na sala escura, como um morcego, de brao estendido para ns.

Ih! ih! ih! A est satisfeito o desejo vil dos vossos coraes, homens das estrelas! Ih! ih! ih! Quantas pedras brancas! Milhares delas! E todas vossas! Agarrai nelas! Rolai por cima delas! Ih! ih! ih! Comei as pedras! Ih! ih! ih! Bebei as pedras! Havia alguma coisa de to grotesco naquela ideia de beber diamantes e comer diamantes, que larguei a rir estridentemente, desbragadamente. E, por contgio, os meus companheiros desataram tambm a rir, a rir, s gargalhadas. E ali ficmos todos, de mo nas ilhargas, perdidos a rir, a rir, a rir! Ramos de qu? Nem sei. Ramos dos diamantes daqueles diamantes que, milhares de anos antes, os mineiros de Salomo tinham escavado para ns. Pertenciam a Salomo... Mas onde ia Salomo? Eram nossos, agora, os seus diamantes! No tinham sido para Salomo, nem para David, seu pai, nem para nenhum rei de Jud! No tinham sido para o atrevido e velho fidalgo portugus, nem para nenhum dos portugueses que vinham singrando de leste em caravelas armadas! Tinham sido para ns! S para ns! Para ns aqueles milhes e milhes de libras, que, neste sculo, em que o dinheiro tudo domina, nos tornavam to poderosos como outrora Salomo. De facto ramos Salomes!

De repente o acesso de riso findou. E ficmos a olhar uns para os outros, estupidamente.

Abri as outras arcas! gania no entanto Gagula. Esto tambm cheias! Todas as pedras so vossas! Fartai-vos, fartai-vos!

Em silncio, com uma sofreguido brutal, arremessamo-nos sobre as outras arcas, quebrando os selos, empuxando as tampas, num desesperado esforo! Hurra! Cheias tambm! Cheias at cima!... No, a terceira estava quase vazia. Mas todas as pedras que continha eram escolhidas, de um peso, de um tamanho inacreditveis. Havia-as como ovos pequenos. As maiores, todavia, postas contra a luz, apresentavam um vago tom amarelo. Eram diamantes de cor, como eles dizem em Kimberley, nas minas. Tinha eu um destes na mo, enorme, quando, de repente, ouvimos gritos aflitos do lado do corredor. Era a voz de Fulata:

Acudam! Acudam! Que a porta de pedra est a cair!

Uma outra voz, desesperada, a de Gagula, rugia sinistramente:

Larga-me, rapariga, larga-me!

Acudam! Acudam! Ai Gagula que me matou!

Como contar o brusco, pavoroso lance? Corremos. luz frouxa da lmpada vimos a porta de pedra descendo, e, junto dela, Gagula e Fulata enlaadas numa luta furiosa. De repente Fulata cai, coberta de sangue. Gagula atira-se ao cho, para fugir como uma cobra atravs da fenda que havia ainda entre o cho e a porta. Mete a cabea e os ombros!... Justos Cus! Era tarde. A pedra imensa apanha-a, e a criatura uiva de agonia! A pedra desce, desce com as suas trinta toneladas, sobre o corpo j preso. Vm dele gritos e gritos, como eu jamais ouvira at que h um som horrvel de coisa esborrachada, e a porta imensa fica imvel, fechada, justamente quando ns, correndo sempre, esbarrmos de roldo contra ela!

Isto durara quatro segundos quatro sculos. Voltmos ento para Fulata. A pobre rapariga tinha uma grande facada e estava a morrer.

Ah Boguan! (era assim que os Cacuanas chamavam a John). Ah Boguan! exclamou, sufocada, a bela criatura. Gagula saiu fora. Eu no a vi, estava meio desmaiada. Ento a porta comeou a descer... Ela ainda entrou, foi olhar para vs... Depois tomava a sair, quando eu a agarrei, e ela me deu uma facada, e agora morro!

Pobre rapariga! Minha pobre rapariga! gritava John.

E como no podia fazer outra coisa, comeou a dar-lhe beijos, longos beijos.

Ela sorria, arfando, com as plpebras cerradas. Depois:

Macumazan, ests a?... J mal vejo... Ests a?...

Estou, Fulata. Que queres?

Fala por mim, Macumazan. Diz a Boguan que no me compreende bem. Diz-lhe que o amei sempre, desde o primeiro dia, que o amo... Mas que morro contente, porque ele no se podia prender a uma rapariga como eu... O Sol no se casa com a noite. Teve um suspiro. A sua mo errante procurava em redor.

Macumazan, ests a? Diz-lhe que me aperte mais contra o peito, para eu sentir os seus braos. Assim, assim... Diz-lhe que um dia hei-de tornar a v-lo nas estrelas... Que hei-de ir de estrela em estrela, procura dele. Macumazan, diz-lhe ainda que o amo, diz-lhe ainda...

Os lbios sorriam, sem falar. Estava morta.

As lgrimas caam, quatro a quatro, pela face do meu pobre John.

Morta! murmurava ele, agarrando ainda as mos de Fulata. J me no ouve! E no a tornar a ver, no a tornar a ver!

O baro disse ento, devagar, e numa estranha voz:

No tardar, amigo, que a tornes a ver.

Como assim?

Oh homens, pois no percebestes ainda que estamos enterrados vivos?

Foi ento, s ento, que, pela primeira vez, compreendi o indizvel horror do que nos sucedia! Sim, com efeito! A enorme massa de pedra estava fechada. O nico ser que lhe conhecia o segredo jazia esborrachado por ela, sob ela. For-la, s se tivssemos ali massas de dinamite! Estava fechada para sempre! E ns ali fechados, detrs dela! Durante momentos ficmos mudos, com os cabelos em p, junto do cadver de Fulata. Toda a fora de homens, a coragem de homens, fugia de ns bruscamente. ramos seres inertes. E compreendamos agora todo o plano monstruoso de Gagula as suas ameaas, as suas ironias, o seu sinistro convite para bebermos e comermos os diamantes. Sim, era o que tnhamos para beber e comer! Desde Lu, decerto, ela viera planeando a traio e s nos trouxera caverna para nos deixar l dentro, morrendo junto dos tesouros que apetecramos!

necessrio fazer alguma coisa exclamou o baro, numa voz rouca. nimo, rapazes! A lmpada vai findar. Vejamos se, por acaso, podemos achar o segredo, a mola que move a rocha.

Recobrmos um momento de energia, e, escorregando no sangue da pobre Fulata, rompemos a apalpar ansiosamente a porta e as paredes do corredor. No achmos nada, em mais de uma hora de desesperada busca, que nos esfolou as mos.

A mola, se tal mola h, est do lado de fora disse eu. Foi por isso que Gagula saiu, como disse Fulata. Depois, se voltou, porque se queria certificar que estvamos bem entretidos com os diamantes... Malditos sejam eles, e maldita seja ela!

De resto lembrou o baro se a infame bruxa tentou fugir pela fenda, que sabia bem que, pelo lado de dentro, no podia levantar a rocha. No h nada a fazer com a porta. Vamos ver outra vez na cmara.

Levantmos ento, com respeito e cuidado, o corpo de Fulata, fomo-lo colocar dentro, no cho, com os braos em cruz, junto das arcas de dinheiro. Depois vim buscar o cesto de provises. E sentados junto dos cofres de pedra, atulhados de riquezas que nos no podiam salvar, dividimos as provises em doze pequenos lotes, que, a dois repastos por dia, nos poderiam sustentar a vida por dois dias. Alm da caa fria e das carnes secas, tnhamos duas cabaas de gua.

Bem, jantemos disse o baro que talvez o nosso penltimo jantar neste mundo.

Pouco era o apetite, naturalmente. Mas havia horas que estvamos em jejum, e aquela parca comida, molhada com avaros goles de gua, reconfortou-nos e deu-nos um vago alento de esperana. Comemos ento a examinar sistematicamente as paredes da nossa priso, contando com a remota possibilidade de que existisse, alm da porta da rocha, outra sada. Esquadrinhmos todos os recantos, arredmos todas as arcas, batemos as muralhas, sondmos o solo, explormos a abbada. Ficmos exaustos, sem achar nada. A lmpada espirrava e amortecia. Quase todo o leo estava chupado.

Que horas so, Quartelmar? perguntou o baro.

Tirei o relgio. Eram seis horas. Tnhamos entrado s onze na caverna.

Infands h-de dar pela nossa falta lembrei eu. Se nos no vir voltar esta noite, decerto nos vem procurar...

E ento? exclamou o baro. De que serve? Infands no conhece o segredo da porta, ningum o conhecia seno Gagula. Ainda que conhecesse a porta, no a podia arrombar. Nem todo o exrcito dos Cacuanas, com as suas azagaias, pode furar cinco ps de rocha viva. Ningum nos pode salvar seno Deus!

Houve entre ns um longo, grave silncio. De repente a luz flamejou, mostrando, num relevo forte, todo o interior da cmara, o grande monte dos marfins brancos, as arcas de dinheiro pintadas de vermelho, o corpo da pobre Fulata estirado diante delas, o saco de couro cheio de diamantes, a vaga refraco que saa dos cofres de pedra abertos, e as lvidas faces de ns trs, ali sentados a um canto, espera da morte. Depois a luz bruxuleou e morreu.

 

 

XV

NAS ENTRANHAS DA TERRA

 

No me possvel descrever, com exactido, as agonias daquela noite. E ainda assim a divina misericrdia permitiu que dormssemos a espaos. Mas o brusco acordar, a cada instante, era pungente. Por mim, o que mais me torturava era o silncio. Um silncio tenebroso, tangvel, absoluto o silncio de uma sepultura cavada nas profundidades rcheas do globo, e onde todas as artilharias troando, e as trovoadas do cu estalando, no poderiam fazer chegar a menor vibrao de som, fosse ele ao menos to leve como um leve zumbir de mosca... E ento, acordado, a monstruosa ironia da nossa situao ainda mais me acabrunhava. Em tomo de ns jaziam riquezas incontveis, bastantes para pagar as dvidas de muitos estados, construir frotas de couraados, erguer palcios todos feitos de ouro, saciar todas as fomes, satisfazer todas as imaginaes... E de que nos serviam? Uma pouca de pedra bruta sem valor, mas que ns no podamos quebrar com as nossas mos, tomavam-nas inteis, to sem valor como a prpria pedra! Uma arca inteira de diamantes daramos ns com infinito prazer por um pouco de po, ou por outra cabaa de gua. Mais! Daramos todas as arcas de diamantes pelo privilgio de morrer de repente, sem sentir, sem sofrer! Na verdade, o que a riqueza? Sonho, estpida iluso!

John disse o baro, do seu canto, num dos momentos em que eu assim pensava

quantos fsforos te restam?

Oito.

Acende um, v as horas.

A chama quase nos deslumbrou depois da intensa treva. Eram cinco horas no meu relgio. A alvorada estaria agora clareando as alturas da serra! A brisa espalharia o aroma do rosmaninho em flor! Os soldados de Infands comeariam agora a mexer-se nas suas mantas, junto das fogueiras apagadas e as nascentes de gua, junto deles, cantariam de rocha em rocha. De assim pensar, as lgrimas humedeceram-me os olhos.

Era melhor comermos alguma coisa sugeriu o baro.

Para qu? exclamou John. Quanto mais. depressa acabarmos com isto, melhor!

Enquanto Deus permite a vida, que permite a esperana! respondeu o baro gravemente.

Repartimos uma pouca de carne seca e de gua. Enquanto comamos, um de ns lembrou que nos avizinhssemos da porta, e gritssemos com toda a fora, porque talvez Infands, andando j na caverna nossa procura, ouvisse o remoto som das nossas vozes. John, que, como marinheiro, tinha o hbito de gritar, desceu o corredor s apalpadelas, e comeou a berrar furiosamente. Nunca, decerto, ouvi uivos iguais: mas foram to ineficazes como um murmrio de insecto. O resultado nico foi que John voltou com a garganta ressequida, e teve de chupar um trago da pouca gua que restava. Gritar s nos fazia sede. Desistimos desse esforo intil.

De sorte que nos agachmos de novo junto dos cofres cheios de diamantes, naquela horrvel inaco que era um dos nossos maiores tormentos. E eu, ento, cedi ao desespero. Deixei cair a cabea no ombro do baro, e desatei a chorar. Do outro lado o pobre John soluava tambm.

Grande alma, e corajosa, e doce, era a do baro. Se ns fssemos duas criancinhas assustadas, e ele a nossa me, no nos teria animado e consolado com maior carinho. Esquecendo a sua prpria sorte, fez tudo para nos serenar, contando casos de homens que se tinham encontrado em lances terrivelmente iguais, e que milagrosamente tinham escapado. Depois levava-nos a considerar que, no fim de tudo, ns estvamos simplesmente chegando quele fim a que todos tm de chegar, que tudo em breve acabaria, e que a morte por inanio suave (o que no verdade). E enfim, com um modo diferente, pedia-nos que nos abandonssemos misericrdia de Deus, e lhe rogssemos, na nossa misria, um olhar dos seus olhos piedosos. Natureza adorvel, a deste homem! Quanta serenidade, e quanta fora! Eu, por mim, acolhia-me a ele como a um grande refgio. E, por sua exortao, rezei e serenei.

Assim passou o dia (se tal treva se pode chamar dia), at que acendi outro fsforo, olhei o relgio. Eram sete horas! Pensmos ento em comer.

E quando estvamos dividindo a carne seca, ocorreu-nos, de repente, uma ideia estranha.

Porque disse eu que o ar aqui se conserva to fresco? um pouco espesso, mas fresco.

Santo Deus! exclamou John erguendo-se com um pulo. Nunca pensei nisso!

Com efeito, fresco... No pode vir de fora pela porta de pedra, porque reparei perfeitamente que ela desliza dentro de quelhas... Tem de vir de outro stio. Se no houvesse uma corrente de ar, devamos ficar sufocados, quando aqui entrmos ontem... Agora mesmo devamo-nos sentir abafados. Evidentemente, o ar renovado. Vamos a ver!

Ainda ele no findara, j ns andvamos, de gatas, s apalpadelas, na escurido, procurando sofregamente qualquer indicao de buraco ou fenda por onde entrasse ar. Houve um momento em que pousei a mo no quer que fosse de gelado. Era a face da pobre Fulata, j rgida.

Durante uma hora, ou mais, passmos assim apalpando todos os cantos, at que o baro e eu desistimos, esfalfados, e todos pisados de ter constantemente batido com a cabea nos muros, nos dentes de elefante e nas esquinas das arcas. Mas John continuou, sem perder a esperana, declarando que era melhor aquilo que pensar na morte, de braos cruzados.

De repente, teve uma exclamao:

Oh rapazes! Aqui! Vinde c.

Com que precipitao corremos para o canto donde ele falara!

Quartelmar, ponha aqui a mo, onde est a minha. A. Que sente?

Parece-me que sinto um fio de ar.

Agora oua!

Ergueu-se, e bateu com o p no cho. Uma imensa esperana relampejou-nos na alma. A laje soava oco.

Com as mos a tremer acendi um fsforo. Estvamos num recanto, de que ainda no suspeitramos e aos nossos ps, na laje que pisvamos, e como incrustada nela, havia uma grossa argola de pedra. No tivemos uma palavra, na imensa excitao que de ns se apoderou. John tinha uma navalha, com um desses ganchos que servem para extrair pedras pequenas das ferraduras dos cavalos. Ajoelhou e comeou a raspar com o gancho em tomo da argola. Raspou, raspou at que conseguiu introduzir a ponta do gancho sob a argola, levant-la pouco a pouco, p-la a prumo. Depois deitou-lhe as mos, e puxou desesperadamente. Nada se moveu.

Deixai-me ver a mim! exclamei com impacincia.

Agarrei, pondo toda a minha fora no puxo contnuo e intenso. Escalavrei as mos. A pedra no se moveu. Depois foi o baro. Sentamo-lo gemer. A pedra no se moveu.

De novo John se atirou de joelhos, e com o gancho da navalha raspou em redor a frincha por onde ns sentamos como um dbil hlito de ar. Em seguida tirou um grosso leno de seda que lhe envolvia o pescoo e passou-o na argola.

Agora, baro! Mos ao leno, e puxar at rebentar! Quartelmar, agarre o baro pela cinta, e puxem ambos quando eu disser... Um, dois, v!

Em silncio, com os dentes rilhados, puxmos, puxmos at que eu senti rangerem os ossos do baro. Era ele que fazia o esforo maior, com os seus enormes braos de ferro. E foi ele que sentiu a pedra mexer...

Agora! agora! Est cedendo! Mais! Ala, ala! Eh!

Um estalo, uma rajada brusca de ar, e rolmos estatelados no cho, com a pedra por cima de ns. Fora a imensa fora do baro que fizera o prodgio. Que grande coisa, a fora!

Um fsforo, Quartelmar! exclamou ele, erguendo-se, ainda arquejante.

Acendi o fsforo. E, louvado Deus! vimos diante de ns os primeiros degraus de uma escada de pedra!

E agora? perguntou John.

Descer! E confiar em Deus!

Esperai! gritou o baro. Quartelmar, veja se apalpa e acha o resto da comida e da gua. Quem sabe onde iremos parar?

Achei logo as provises, que estavam junto da arca de pedra, cheia de diamantes.

E j enfiara o cesto no brao, quando pensei nos diamantes... Porque no? Quem sabe? Talvez, por merc divina, achssemos uma sada! No fazia mal nenhum, cautela, meter um punhado de diamantes na algibeira!... Se chegssemos a sair daquela horrvel cova, no teriam sido ao menos inteis todas as nossas angstias. Um punhado de diamantes nada pesava! E, ao acaso, mergulhei a mo na arca e comecei a encher todos os bolsos da minha rabona. Depois atulhei as algibeiras das pantalonas. J abalava, quando voltei ainda, com uma ideia, arca onde estavam as pedras mais gradas. E encafuei uma enorme mo-cheia delas para dentro da algibeira do peito. O contacto vivo daquelas riquezas fez-me pensar nos outros.

rapazes! No quereis levar uns poucos de diamantes? Eu enchi as algibeiras.

Diabos levem os diamantes disse do canto o baro, impaciente. At me faz nuseas a ideia de diamantes! marchar, marchar!

Enquanto ao amigo John, esse nem respondeu. Creio que estava de joelhos, junto do corpo de Fulata, dando o ltimo adeus quela que por ele morrera! Quando nos achmos junto do alapo, j o baro descera o primeiro degrau.

Eu vou adiante, segui devagar.

Cuidado! gritei eu. Pode haver por baixo algum medonho buraco. V tenteando... Mo encostada sempre parede...

O baro desceu, contando os degraus. Quando chegara a quinze, parou.

um corredor gritou ele de baixo. Descei!

Quando chegmos ao fundo, acendi um dos dois fsforos que nos restavam. luz que ele deu, vimos um pequeno espao, onde se encontravam, em ngulo recto, dois tneis muito estreitos. O fsforo morreu, queimando-me os dedos. E ficmos numa horrvel hesitao! Qual dos tneis seguir? John, ento, lembrou-se que a chama do fsforo se inclinara para a banda do tnel da esquerda. Portanto o ar vinha pelo tnel da direita. Era por esse que devamos caminhar, demandando o lado do ar.

Aceitmos a ideia. E apalpando sempre a parede, no arriscando um passo sem tentear o solo, seguimos nesta nova e incerta aventura. Ao fim de um quarto de hora de marcha lenta, esbarrmos num muro. Era outro tnel transversal, por onde continumos cosidos com o muro. Depois desse topmos outro, que o cruzava em ngulo agudo. Depois havia outro, mais largo. E assim durante horas. Estvamos num labirinto de rocha viva. Para que tivessem servido outrora estas inumerveis passagens subterrneas, no sei dizer mas tinham a aparncia de galerias de mina.

Finalmente parmos, esfalfados, com a esperana meio perdida. Comemos os restos das provises, bebemos os derradeiros goles de gua. Tnhamos escapado de morrer nas trevas de uma cova de diamantes para vir talvez morrer nas trevas de uma mina vazia...

Quando assim estvamos sentados no cho, encostados ao muro, num infinito desalento eu julguei ouvir um som, dbil e vago, com a distncia. Avisei os outros, escutmos sem respirar. E todos muito claramente distinguimos um som. Era muito tnue, muito remoto mas era um som, um som murmurante e contnuo.

Santo Deus! exclamou John. gua a correr!

Num instante estvamos de p, caminhando para o som. A cada passo o sentamos mais distinto, mais claro, na imensa mudez do tnel. Sempre para diante, sempre para diante! O som ia crescendo. Por fim era um rudo forte, o rudo de uma corrente de gua. Mas como podia haver gua corrente nestas entranhas da Terra?... E todavia, com certeza, ali perto corria gua com fora. John, marchando adiante, jurava que lhe percebia j a humidade e o cheiro.

Devagar, John, devagar! gritou o baro. Devemos estar perto...

De repente um baque na gua, um grito de John! Tinha cado.

John! John! Onde ests? berrmos, perdidos de terror. Fala! Fala!

Que alvio, quando a voz dele nos veio de longe, sufocada.

Salvo. Agarrei-me a uma pedra! Acendei um fsforo para eu ver onde estais! Raspei o meu ltimo fsforo. sua luz trmula vimos aos nossos ps uma imensa massa de gua, correndo com grande fora. Que largura tinha no percebemos... Mas, a distncia, distinguimos a forma vaga do nosso companheiro, pendurado de um penedo agudo.

Preparai-vos para me agarrar gritou ele de l. Vou nadar para a!

Outro baque, uma grande luta de braos batendo a gua. Depois, junto de ns, um resfolegar ansioso. E, por fim, uma exclamao do baro, que agarrara o nosso amigo pelas mos, o puxara para dentro do tnel, a escorrer.

Irra! balbuciava John, ofegando. Estive por um fio. uma corrente furiosa e parece-me que no tem fundo.

Evidentemente, deste lado nada conseguamos. De sorte que, depois de John descansar, de bebermos farta daquela gua, que era deliciosa, e de lavarmos a cara, deixmos as margens daquele tenebroso rio, e retrocedemos ao comprido do tnel, com John adiante, tiritando e pingando. Depois de andarmos um quarto de hora chegmos a outro tnel, que se inclinava para a direita e parecia mais largo.

Seguimos este disse o baro, inteiramente desalentado. Todos eles so iguais. O melhor andarmos, andarmos, at cair a para um canto, sem poder mais, espera da morte.

Durante muito, muito tempo, mudos, em fila, arrastmos os passos na treva, atrs do baro, cujas fortes pernas j frouxeavam.

De repente esbarrmos com ele que estacara, como atnito.

Quartelmar! exclamou ele, agarrando-me convulsivamente o brao. Eu estou a delirar ou aquilo alm luz?

Arregalmos desesperadamente os olhos. E com efeito, l ao longe, ao fundo do tnel, vimos uma plida, vaga mancha de claridade, pouco maior do que um vidro de janela! Com outro alento de esperana, estugmos o passo. Momentos depois toda a dvida cessara, deliciosamente. Era luz uma desmaiada mancha de luz! Tropevamos uns contra os outros na nossa ansiedade. Mais viva, cada vez mais viva a luz! Por fim, um ar fresco bateu-nos a face!... Mas, de repente, o tnel estreitou. Caminhmos curvados. Depois estreitou mais. Gatinhmos, de mos no cho. E estreitou ainda, como uma toca de raposa. Fomos de rastos. Mas a rocha findara. Era terra, terra frivel, que se esboroava... Um empuxo, um gemido, e o baro furou, e John furou, e eu furei e sobre as nossas cabeas luziam as benditas estrelas, e na nossa face batia uma aragem doce!

De repente faltou-nos o cho, e todos trs, uma, rolmos de escantilho por um declive abaixo, de terra mole e hmida, entre capim e tojo... Agarrei uma coisa e parei. Estonteado, coberto de lodo, berrei pelos outros, desesperadamente. Um brado em resposta veio de baixo, de uma terra ch onde o baro fora parar. Resvalei at l e fui encontrar o nosso amigo atordoado, sem flego, mas intacto. Gritmos ento por John. E uns ols arquejantes guiaram-nos ao stio onde uma raiz de rvore, em que ainda estava acavalado, o detivera no desesperado tombo.

Sentmo-nos ento todos trs na relva e vendo-nos fora da fnebre caverna, salvos, sos, a respirar outra vez o ar da terra, a emoo foi to forte que comemos a chorar de alegria. Seguramente fora Deus misericordioso que nos guiara por aquele tnel, para aquele buraco, que era a porta da Vida. E agora, a manh que julgvamos nunca mais ver estava roseando o topo dos montes. sua luz bendita vimos ento que nos achvamos no fundo, ou quase no fundo, daquela imensa cova circular que fora outrora a mina de diamantes. L no alto, j podamos distinguir as confusas formas dos trs colossos. Sem dvida aqueles corredores por onde tnhamos vagueado, to angustiosamente, comunicavam outrora com as diamanteiras. E enquanto ao tenebroso rio... Mas que nos importava agora o rio? A luz do dia clareava. Estvamos envolvidos na luz do dia! S isto era essencial e doce de saber!

No podamos deixar, todavia, de pasmar para as nossas figuras. Escaveirados, esgazeados, rotos, cheios de pisaduras, com camadas de p e de lama, sangue nas mos e sangue nas faces ramos, na verdade, trs espantalhos medonhos. Mas no havia a pensar em nos sacudirmos ou nos ajeitarmos. Aquele fundo da cova, hmido e regelado, era perigoso para corpos como os nossos to exaustos. De sorte que comemos, com lentos e custosos passos, a trepar as ladeiras ngremes, atravs da greda azulada, agarrando-nos s razes, e agarrando-nos ao tojo, num esforo ltimo que nos esvaa. Ao fim de uma hora estava terminada a faanha e os nossos ps, trmulos, pisavam outra vez a estrada de Salomo. A umas cem jardas adiante brilhava uma fogueira junto de cabanas, e em volta dela estavam homens. Para l caminhmos, amparando-nos uns aos outros, e parando, meio desmaiados, a cada passo incerto. De repente um dos homens que se aquecia ao lume ergueu-se, avistou-nos e atirou-se de bruos ao cho, tremendo, gritando de medo.

Infands, Infands, somos ns, teus amigos!

Ele levantou a cabea, depois o corpo. Por fim correu para ns, com os olhos esbugalhados, e ainda tremendo todo.

Oh meus senhores! Sois vs! Sois vs! Voltais do fundo dos mortos!... Voltais do fundo dos mortos!...

E o velho guerreiro, abraando-se ao baro pelos joelhos, rompeu a soluar de alegria.

 

XVI

A PARTIDA DE LU

 

Dez dias depois estvamos de novo em Lu nas nossas confortveis cubatas de Lu, sombra dos machabeles. E poucos vestgios nos restavam daquela atroz aventura, alm dos muitos cabelos brancos que eu trazia, e da melancolia em que cara o nosso pobre John, com o corao ainda cheio de Fulata.

E intil acrescentar que no tommos a penetrar no tesouro de Salomo apesar de sagazes e metdicas tentativas. Naquele dia em que Infands nos acolheu como a ressuscitados, nada fizemos seno comer, dormir, descansar, gozar o sol. Logo no dia seguinte, porm, descemos com uma escolta grande cova, na esperana de encontrar o buraco por onde tnhamos furado para a luz e para a vida. Foi debalde. Em primeiro lugar, chovera copiosamente de noite, e todas as nossas pegadas tinham desaparecido; mas, alm disso, os declives em funil da enorme cova estavam por todos os lados cheios de buracos, uns naturais, outros feitos por bichos. Qual deles nos salvara, entre tantos milhares? Impossvel descobrir!

Depois disso voltmos caverna de estalactites, afrontmos os horrores da cmara dos reis mortos; e durante muito tempo rondmos diante da muralha de pedra, para alm da qual jaziam, inacessveis para sempre, os maiores tesouros da Terra, para sempre guardados funebremente pelo esqueleto da pobre Fulata. Mas, apesar de examinarmos a muralha durante horas, de a apalpar, de martelar sobre ela, no nos foi possvel achar o segredo da porta sob a qual jaziam pulverizados os fragmentos da hedionda bruxa que, com a sua traio, s ganhara a sua perda. Enquanto a forar aqueles cinco ps de rocha viva, quem podia pensar em tal feito? Nem todo o exrcito dos Cacuanas, trabalhando anos, lograria passar atravs. S com dinamite ou trazendo pelo deserto poderosas ma-quinas.

E assim, l esto ainda, nesse remoto canto de frica, os tesouros que desde os tempos bblicos tanto tm fascinado a imaginao dos homens. Um dia talvez, quando a frica toda estiver civilizada, cortada de estradas, coberta de cidades, algum mais feliz que ns, e com os incalculveis recursos da cincia de ento, penetrara no vedado tesouro, e ser rico alm de toda a fantasia! Esse, se jamais existir, encontrar l, como vestgio da nossa passagem, as arcas abertas e os ossos da pobre Fulata, e uma lmpada apagada. A esse tempo j estar perdida a memria deste livro, contando a estranha aventura. E esse explorador futuro mal suspeitar ento, ao dar com o p nesses ossos, ao remexer essas riquezas, que trs homens do sculo XIX passaram ali um dos mais trgicos lances que jamais foi dado a homem passar...

Devo, todavia, acrescentar que, materialmente, a nossa estada na caverna no foi de todo intil. Como contei, ao abandonarmos o tesouro, eu tive a esplndida precauo de atulhar as algibeiras de diamantes. Muitos destes, e sobretudo os maiores, caram, ficaram perdidos, quando eu rolei pelos declives da cova. Mas ainda me restou nos bolsos uma enorme quantidade. No lhe posso calcular o valor. Deve ser imenso!

Suponho que trouxemos ainda diamantes bastantes para sermos todos trs milionrios, e possuirmos os trs mais ricos adereos de jias que existam no mundo. Em resumo, no ponto de vista econmico, a aventura no gorou.

Em Lu, fomos acolhidos pelo rei Ignosi com grande amizade e regozijo. Apesar de fundamente absorvido nos cuidados de um reinado que comea (e sobretudo na reorganizao do exrcito), estivera em grande inquietao durante a nossa longa demora nas minas. E foi com ardente curiosidade que escutou a nossa maravilhosa histria.

A notcia da morte de Gagula foi para ele um alvio imenso.

Quem sabe murmurou ele se depois de vos deixar morrer no stio escuro, no acharia ainda artes de me matar a mim tambm!

Para comemorar a nossa volta, Ignosi deu um banquete e uma dana. E foi nessa noite, ao fim da festa, no terreiro real, onde brilhava o luar, que ns anuncimos ao rei o nosso desejo de deixarmos enfim o seu reino, e regressar nossa ptria.

Ignosi, primeiramente, pareceu espantado. Depois cobriu a face com as mos.

O que vs anunciais exclamou ele por fim retalha o meu corao! Sempre pensei que de todo ficareis comigo. Para que foi ento, valentes, que me ajudastes a ser rei? O que quereis? O que vos falta? Mulheres? Campos? Gados? Toda a terra que minha, vossa. Escolhei! uma casa como as que os brancos habitam no Natal que vos falta? Os meus homens, ensinados por vs, edificaro uma entre jardins... Dizei! E cada um dos vossos desejos tem j a minha promessa de rei.

No, Ignosi, no! acudi eu. O que ns simplesmente desejamos voltar para as nossas terras.

Ele, ento, sorriu com amargura. Sim, bem percebia! Nos nossos coraes nunca houvera amor por ele, mas s cobia das pedras que brilham. Agora tnhamos as pedras para vender, para recolher dinheiro... Estava satisfeito o vil desejo do branco. Que importava pois o amigo que ficava chorando? Malditas fossem as pedras, e idos fssemos ns bem cedo!

Eu pousei-lhe a mo no brao:

Escuta, Ignosi! As tuas palavras no vm do teu corao. Quando tu andavas exilado na Zululndia, e depois entre os homens brancos do Natal, no sentias tu o desejo da terra donde vieras, e de que tua me te falava? No se te voltavam os olhos para o Norte, para onde estavam os campos e as senzalas onde tu nasceras, onde brincaras com as ovelhas, onde os velhos que passavam no caminho tinham conhecido teu pai?

Assim era, Macumazan, assim era! exclamou o rei, comovido.

Pois do mesmo modo o nosso corao deseja a terra em que nascemos. Ignosi baixou a cabea.

As tuas palavras, como sempre, Macumazan, vem cheias de verdade e razo. Sim, tendes de partir. E eu ficarei triste, porque no mais me chegaro notcias vossas, e vs sereis para mim como mortos!

Esteve um momento pensando, com o dedo pousado na testa. Depois chamou os chefes mais idosos, anunciou a nossa partida, ordenou que fssemos acompanhados pelo regimento dos Pardos at s montanhas, e da, com uma escolta e com guias, levados pelo caminho do osis (de que ele s recentemente tivera notcia) e que nos pouparia todos os trabalhos da passagem das serras. Em seguida, erguendo a mo, jurou ante os chefes que no permitiria jamais que nenhum branco entrasse no seu reino a procurar as pedras que brilham mas que ns poderamos voltar sempre, porque ramos os irmos do seu corao! E, por fim, decretou que os nossos nomes fossem considerados sagrados como os nomes dos reis mortos e que assim se proclamasse por todo o reino, de montanha em montanha.

E agora ide! Ide antes que os meus olhos vertam lgrimas como os de uma mulher. Quando estiverdes longe, nas vossas casas, junto das vossas lareiras, pensai por vezes em mim... Adeus! Adeus para sempre, Incubu, Macumazan, Boguan, grandes homens e meus amigos!

Ergueu-se; esteve um momento olhando fixamente para ns, um por um; depois escondeu a cabea no seu manto de pele de leopardo, e fugiu para dentro da senzala real.

Ns afastmo-nos em silncio, e com o corao pesado.

Na madrugada seguinte partimos de Lu, acompanhados por Infands e pelo regimento dos Pardos. Apesar de to cedo, as ruas estavam apinhadas de gente que nos lanava a saudao Crum e nos desejava boa jornada! As mulheres atiravam-nos flores ao passar. Todos os tants ressoavam. Era como uma grande cerimnia real.

Pelo caminho, Infands foi-nos explicando que havia, com efeito, uma passagem nas montanhas mais fcil do que aquela por onde viramos ou antes, que era possvel descer por aquela alta escarpa que separa os dois seios de Sab como um muro separa duas torres. Havia um ano, um bando de caadores cacuanas, indo ao deserto procura do avestruz, tinham achado e seguido este caminho. Ao fim dele encontraram o deserto; e ao fundo, no horizonte, avistaram macios de rvores. Levados pela sede, caminharam para l, e acharam um largo e frtil osis, cheio de fruta, de caa e de gua. E da, diziam os caadores, podiam-se distinguir no horizonte outros lugares frteis, formando como uma continuao do osis. Deste modo era talvez possvel diminuir os horrores de uma nova travessia do deserto.

Ao fim de quatro dias de marcha chegmos, com efeito, ao alto da escarpa donde avistmos, por lguas e lguas, outra vez, o medonho deserto amarelo em que tanto sofrramos. Foi de madrugada que comemos a descida e foi ento que nos separmos do nosso amigo Infands.

O excelente homem quase chorou de mgoa.

Nunca os meus olhos exclamava ele vero homens como vs. Aquele golpe de machado, Incubu! Que beleza! Sois os fortes dos fortes! E o meu corao fica cheio da vossa lembrana. Adeus!

Tivemos realmente saudade do velho Infands; e John, como lembrana, deu-lhe adivinhem o qu? um monculo! Tinha um de sobresselente, e presenteou com ele o herico e leal selvagem! Infands, entusiasmado, procurou logo ental-lo no olho, certo de que essa pupila resplandecente aumentaria o seu prestgio entre as tropas. E foi esta a derradeira impresso que me ficou dos nossos amigos da Cacunia um velho guerreiro, nu, com uma pele de leopardo ao ombro, grandes plumas negras na cabea, franzindo a face, de monculo no olho!

Da a pouco, tendo apertado afectuosamente a mo a esse honrado Infands, comevamos a nossa descida pela escarpa que liga os seios de Sab, entre as trovejantes aclamaes do regimento dos Pardos.

Fizemos essa descida em doze horas. A noite estvamos acampados orla do deserto, conversando em tomo das fogueiras acerca desses dois estranhos meses que passramos entre os Cacuanas!

H stios piores para se viver dizia o baro.

Quase desejava ter l ficado acrescentava John, com saudade.

Eu no dizia nada. Tnhamos l passado temerosos momentos. Mas, por vezes, a vida fora doce. E no alforge trazamos um saco de diamantes!

Na madrugada seguinte encetmos a marcha para esse osis que os nossos guias conheciam. Trilhmos trs dias o deserto mas sem desconsolo, graas ao bando de carregadores que nos dera Ignosi, e que nos permitia levar provises fartas e gua farta. Pelo comeo da tarde do terceiro dia avistmos um bosque e o nosso jantar j foi regaladamente servido debaixo de copadas rvores e junto de frescas guas correntes.

 

XVII

ENFIM!

 

Agora resta-me contar a maior maravilha desta maravilhosa jornada. To estranha, quase inverosmil , que, para no lhe aumentar o ar de romance que ela j de per si tem, preciso narr-la com a mxima brevidade e mxima simplicidade.

Foi isto. Na manh seguinte, no osis, andava eu passeando ao comprido de uma fresca ribeira que o banha, quando de repente, num frondoso outeiro sombra de figueiras, com a fachada voltada para a corrente vejo uma confortvel cabana, construda maneira cafre, mas com uma porta, uma porta de madeira, em vez do costumado buraco redondo. E quando eu estava pasmando para esta casota humana perdida num osis do deserto, eis que a porta se abre, e aparece, coxeando, encostado a um pau, todo vestido de peles, e com uma imensa barba branca at cintura, um homem branco!

Ficmos a olhar esgazeadamente um para o outro. Justamente nesse momento o baro e John apareceram. O homem crava os olhos em ns, com um ar quase aflito. De repente larga a correr, como um coxo pode correr, aos tropees. Esbarra, rola no cho. O baro acode. Ergue o homem. E grita:

Santo Deus! meu irmo Jorge!

Quase tenho vergonha de narrar este lance. Parece banalmente inventado pelos moldes do teatro antigo. Mas foi assim.

E ainda mais! Ao alvoroo do baro, s exclamaes que seguiram, outro homem saiu da cabana, tambm vestido de peles, com uma espingarda na mo. Ao dar com os olhos em mim, larga a arma, leva as mos carapinha...

Oh Macumazan! Oh Macumazan!... No me conheces? Sou Jim! Sou Jim! Aquele papel que tu me deste para o patro, perdi-o... Estamos aqui h dois anos. E o pobre Jim rojava-se no cho diante de mim, chorando e rindo, numa alegria furiosa.

Com efeito, havia dois anos que o irmo do baro e o seu servo Jim viviam naquele osis. Foi no nosso acampamento, nessa tarde, que Jorge Curtis nos contou, lentamente, toda a sua histria. Dois anos antes partira da aringa de Sitanda, como ns, para atravessar o deserto, e procurar as minas de diamantes para alm das montanhas. Por informao, porm, que lhe deram uns caadores de avestruzes que felizmente encontrara, tomou um caminho diverso, e bem melhor do que aquele que seguira outrora o velho D. Jos da Silveira, e que ns seguramos guiados pelo seu roteiro. Esse caminho era atravs do deserto, mas entremeado de osis. Assim tinha chegado a este, o maior de todos, e estava junto das Montanhas de Salomo, quando lhe aconteceu uma grande desgraa. No dia mesmo em que aqui parara, estava sentado junto do rio, por baixo de umas penedias, onde Jim, o servo, andava procurando o mel de abelhas mansas. De repente, a um esforo qualquer que Jim fez em cima, um dos penedos rola e vem cair sobre uma perna do pobre Jorge, esmigalhando-lha horrivelmente! Desde esse dia no pde mais andar. E, muito naturalmente, preferiu ficar ali no osis, onde tinha gua, caa e fruta do que tentar atravessar de novo o deserto, onde inevitavelmente morreria.

E ali ficou dois anos, como um Robinson Cruso. Havia justamente dias que decidira mandar Jim para trs, aringa de Sitanda, a buscar socorro. Mas quase tinha a certeza que Jim no voltaria...

E sois vs agora que apareceis de repente. Justamente tu, irmo! E tu, meu bom John!... E o sr. Quartelmar, muito bem me lembro de o ter encontrado em Bamaguato! extraordinrio! E foi tudo a misericrdia de Deus!

Nessa noite tambm lhe contmos as nossas aventuras. Quando eu lhe mostrei um punhado de diamantes, o homem empalideceu de espanto.

Santo Deus! Ao menos o que sofrestes no foi em vo! Enquanto que eu!...

Esta triste exclamao tornou-me pensativo. E desde logo decidi partilhar com ele um lote daquelas pedras, que a ele tinham trazido uma to longa desgraa.

E aqui acaba esta histria. A nossa travessia do deserto foi extremamente trabalhosa. No sofremos tanto da sede, porque, segundo o novo roteiro indicado pelos caadores de avestruzes, encontrmos a espaos pequenos e frescos osis. Mas o pobre Jorge Curtis, que mal podia ainda usar a perna, necessitava constante amparo e, por assim dizer, tivemos de o transportar atravs do deserto. Enfim, atingimos a aringa de Sitanda, onde o velho sacripanta a quem deixramos as nossas armas e bagagens ficou indignado de nos ver voltar, vivos e sos, para as reclamar. E seis meses depois estvamos jantando confortavelmente aqui na minha casa em Durban, sombra das laranjeiras.

Quando eu acabava justamente de escrever esta ltima pgina das nossas aventuras, vejo um cafre entrar pelo meu jardim, com cartas e jornais na mo. o correio da Inglaterra. E eis aqui uma carta do baro, que eu transcrevo, porque d exactamente a concluso da minha histria:

 

Solar de Braley Yorkshire

Meu caro Quartelmar

S algumas breves linhas para lhe dizer que meu irmo Jorge, John e eu chegmos a Inglaterra todos trs perfeitamente. Apenas deixmos o paquete, em Southampton, partimos logo para Londres pelo primeiro trem. No imagina o Quartelmar que elegante nos apareceu logo na manh seguinte o nosso John! Mas parece-me que ainda pensa muito, coitado, na pobre Fulata.

E agora enquanto a negcios. Levmos os diamantes aos melhores joalheiros de Londres, aos Streeter. Quase tenho vergonha de dizer em quanto eles os avaliaram. uma soma descomunal. Est claro que eles no podem dizer com exactido, porque nunca apareceram no mercado pedras deste tamanho em tal quantidade. Enquanto a compr-los eles, est fora de questo. Apesar de ser uma forte casa, no poderia nunca reunir semelhantes somas. Aconselharam-me que os vendesse em pequenos lotes, a diferentes joalheiros, e devagar, para no inundar o mercado. Um desses lotes, o que o Quartelmar to generosamente reservou para meu irmo, esto eles todavia resolvidos a comprar por cento e oitenta mil libras.

O que o Quartelmar deve fazer, agora que est to rico, vir para Inglaterra, e comprar uma propriedade ao p da minha. O melhor seria vir imediatamente para passar comigo este Natal. Tenho c por essa ocasio o nosso John. A respeito de seu filho Henrique, posso dizer que est bom. Esteve aqui uns dias comigo a caar. Gosto dele. Pregou-me uma carga de chumbo numa perna, extraiu ele prprio os chumbos, e provou-me depois a vantagem de haver sempre, em todas as partidas de caa, um estudante de medicina.

Venha pois, velho amigo, e creia-me sempre seu

 

HENRIQUE CURTIS

 

Hoje sbado. H um paquete para Inglaterra alm de amanh. Creio, na realidade, que vou partir nele... J tenho saudades do meu rapaz. E, depois, quero vigiar eu prprio a publicao destas memrias.