As Minas de
Salomo
de Rider
Haggard
(traduo de Ea de Queirs)
INTRODUO
Agora
que este livro est impresso, e em vsperas de correr o
mundo largo, comea a pesar fortemente sobre mim a desconfiana de que,
para
ele ser aceitvel, muito lhe falta corno estilo e como histria.
Enquanto
histria,
realmente, no pretendi nem tentei meter nestas pginas tudo o que
fizemos e
tudo o que vimos na nossa viagem terra dos Cacuanas. H, todavia,
nesse
estranho povo, coisas que mereciam exame detalhado e lento: a sua
fauna, a sua
flora, os seus costumes, o seu dialecto (to aparentado com a lngua
dos
Zulus), o magnifico sistema da sua organizao militar, a sua arte
subtil em
trabalhar os metais... Que interessante estudo se faria, alm disso,
com as lendas
que ouvi e coleccionei acerca das armaduras de malha que nos salvaram
na
batalha de Lu! Que curiosa, tambm, a tradio que entre eles se tem
perpetuado
sobre os Silenciosos, os dois colossos que jazem entrada das
cavernas de
Salomo! No entanto pareceu-me (e assim pensaram o baro Curtis e o
capito
John) que seria mais eficaz contar a histria a direito, e secamente,
deixando
todas estas particularidades sobre a regio e sobre os homens para
serem
tratadas mais tarde, num tomo especial, com minudncia e largueza.
Resta-me,
pois, implorar a
benevolncia para a minha tosca maneira de escrever. Estou mais
habituado a
manejar a carabina do que a pena e sempre me foi alheia a fina arte
dos
arrebiques e floreios literrios. Talvez os livros necessitem esses
floreios e
ornatos: no sei nem possuo autoridade para o decidir; mas, na minha
brbara
ideia, as coisas simples so as mais impressionadoras e mais
facilmente
se deve acreditar e estimar o livro que venha escrito com sria e
honesta
singeleza. Lana aguda no precisa brilho, diz um provrbio dos
Cacuanas; e,
movido por este conselho da sabedoria negra, arrisco-me a apresentar a
minha
histria, nua, lisa, nas suas linhas verdadeiras, sem lhe pendurar por
cima,
para a tornar mais vistosa, os dourados gales da eloquncia.
ALO
QUARTELMAR
I
ENCONTRO COM OS MEUS CAMARADAS
bem
estranho que nesta
minha idade, aos cinquenta e seis anos feitos, esteja eu aqui, de pena
na mo,
preparando-me a redigir uma histria!
Nunca
imaginei que to
prodigiosa ocorrncia se pudesse dar na minha vida vida que me parece
bem cheia, e vida que me parece bem longa... Sem dvida, por a ter
comeado to
cedo! Com efeito, na idade em que os outros rapazes ainda soletram nos
bancos
da escola, j eu andava agenciando o meu po por esta velha colnia do
Cabo. E
por aqui fiquei desde ento, metido em negcios, em servios, em
travessias, em
guerras, em trabalhos e nessa dura profisso, que a minha, a caa
ao
elefante e ao marfim. Pois, com toda esta diligncia, s ultimamente,
h oito
meses, arredondei o meu saco.
um bom saco! um saco grado, louvado Deus. Creio mesmo que um
tremendo
saco! E apesar disso, juro que para o sentir assim, redondo e soante
entre as
mos, no me arriscava a passar outra vez os transes deste terrvel ano
que l
vai. No! Nem tendo a certeza de chegar ao fim com a pele intacta e com
o saco
cheio. Mas eu no fundo sou um tmido, detesto violncias, e ando farto,
refarto
de aventuras!
Como
dizia, pois, coisa
estranhssima que assim me lance a escrever um livro. No est nada no
meu
feitio ser homem de prosa e de letras ainda que, como outro qualquer,
aprecio as belezas da Santa Bblia e gozo com a Histria do Rei
Artur e da
Sua Tvola Redonda. No entanto,
tenho razes, e razes considerveis, para tomar a pena com esta mo
inbil que
h quase cinquenta anos maneja a carabina. Em primeiro lugar, os meus
companheiros, o baro Curtis e o digno capito da Armada Real, John
Good (a
quem chamo, por hbito, o capito John), pediram-me para relatar e
publicar a
nossa jornada ao reino dos Cacuanas. Em segundo lugar, estou aqui em
Durban,
estirado numa cadeira, inutilizado para umas semanas, com os meus
achaques nas
pernas. (Desde que aquele infernal leo me traou a coxa de lado a
lado, fiquei
sujeito a estas crises, todos os anos, ordinariamente pelos fins do
Outono. Foi
em fins de Outono que apanhei a trincadela. duro que depois de um
homem
matar, no decurso da sua honrada carreira, quarenta e cinco lees, seja
justamente o ltimo, o quadragsimo sexto, que o file e use dele como
de tabaco
que se masca. duro! Quebra a rotina, a estimvel rotina e para mim,
pessoa de ordem, qualquer surpresa me sabe pior do que fel.) Em
terceiro lugar,
alm de encher os meus cios, componho esta histria para meu filho
Henrique,
que est em Londres, interno no Hospital de S. Bartolomeu, estudando
Medicina.
uma maneira de lhe mandar uma longussima carta que o entretenha e
que o
prenda. Servio de doentes, numa enfermaria abafada e lbrega, deve
pesar
intoleravelmente.
Mesmo o
retalhar cadveres
termina por ser uma rotina, rica em monotonia e tdio e assim esta
histria, onde tudo h menos tdio, vai, por uns dias, levar ao meu
rapaz uma
saudvel e alegre sensao de aventuras, de viagens, de fora e de vida
livre.
E enfim, como ltima razo, escrevo esta crnica, por ser, sem dvida,
a mais
extraordinria que conheo na realidade ou na fbula. Digo
extraordinria mesmo para os leitores profissionais de romances
apesar de nela no haver mulheres, alm da pobre Fulata. H Gagula,
sim. Mas
esse monstro tinha cem anos, pouca forma humana, e no sensibiliza. Em
todas
estas duzentas pginas, realmente, no passa uma saia. E todavia, assim escasso como
nas graas do
feminino, no creio que exista um caso mais raro e mais cativante.
A nica
vez que tive de
fazer publicamente uma narrao foi diante dos magistrados, no Natal,
quando
depus como testemunha sobre a morte dos nossos serviais Quiva e
Venvogel. Por
essa ocasio comecei assim, muito dignamente, com aprovao de todos,
com
louvores do peridico de Durban: Eu, Alo Quartelmar, residente em
Durban, no Natal, gentleman, declaro
e juro que... No me parece, porm, que seja esta a adequada maneira
de principiar um livro. Alm disso, posso eu afirmar, em tipo de
imprensa, que
sou um gentleman? O que
um gentleman? O que ser gentleman?
Conheo aqui
cafres nus que o so;
e conheo
cavalheiros chegados
de Inglaterra, com grandiosas malas e anis de armas nos dedos, que o no
so. Eu, pelo
menos, nasci gentleman
apesar de me
ter volvido
depois num pobre e simples caador de elefantes. Ora, se nessa carreira
e nos
acasos que ela me trouxe, permaneci sempre gentleman, no me compete a mim avaliar.
Deus sabe que, com
valente esforo, procurei conservar-me gentleman como nascera. Tenho morto,
certo, muito homem;
mas estas duas mos, bem haja a minha fortuna, esto puras de sangue
intil.
Matei para que me no matassem. O Senhor deu-nos as nossas vidas, como
sagrados
depsitos que lhe pertencem e que devemos defender. Guiei-me sempre por
este
princpio; e conto que o bom Deus, um dia, me dir l em cima: Fizeste
bem,
Quartelmar! Este
mundo, meus
amigos, spero de atravessar; e os destinos violentos impem-se por
vezes com
uma lgica inexorvel. Aqui estou eu, homem ordeiro, tmido,
bonacheiro, que,
constantemente, desde criana, me acho envolvido em carnificinas!
Felizmente
nunca roubei. Uma ocasio, e verdade, abalei com quatro vacas que
pertenciam a
um cafre. Mas o cafre tinha-me rapinado sordidamente e desde ento
essas quatro vacas trago-as sempre na conscincia. S quatro vacas.
Pois tm-me
pesado mais que uma manada de gado!
Foi h
dezoito meses,
pouco mais ou menos, que encontrei os dois homens que deviam ser meus
companheiros nesta aventura singular terra dos Cacuanas. Nesse
Outono, eu
andara numa grande batida aos elefantes, para l do distrito de
Bamanguato.
Tudo nessa expedio me correu mal, e por fim apanhei as febres. Mal me
pude
ter nas pernas, larguei para as minas de diamantes (as diamanteiras),
vendi o
marfim que trazia, passei o carro e o gado, debandei os caadores, e
tomei a
diligncia para o Cabo. Ao fim de uma semana, no Cabo, descobri que o
hotel me
roubava infamemente: alm disso, j vira todas as curiosidades, desde o
novo Jardim
Botnico que h-de certamente conferir grandes benefcios cidade, at
ao novo
Palcio do Parlamento que, tenho a certeza, no h-de conferir
benefcios
nenhuns; de sorte que decidi, voltar para o Natal pelo Dunkeld, pequeno vapor costeiro que
estava nas docas
espera do paquete de Inglaterra, o Edimburgh Castle. Tomei passagem, e fui para
bordo. Nessa tarde
chegou o Edimburgh Castle: os
passageiros que trazia para o Natal transbordaram para o Dunkeld, e levantmos ferro ao
pr-do-sol.
Entre
os passageiros de
Inglaterra que mudaram para o Dunkeld havia dois que me despertaram
logo certo interesse. Um
deles, um homenzarro de perto de trinta e cinco anos, tinha os ombros
mais
cheios e os braos mais musculosos que eu at a encontrara, mesmo em
esttuas.
Alm disso, cabelos ondeados e cor de ouro; barbas ondeadas e cor de
ouro;
feies aquilinas e de corte altivo; olhos pardos, cheios de firmeza e
de
honestidade. Varo esplndido que me fez pensar nos antigos
dinamarqueses. Para
dizer a verdade, dinamarqueses s conheci um, moderno, horrivelmente
moderno,
que me estafou dez libras; mas lembro-me de ter admirado um quadro, Os
Antigos Dinamarqueses, em que
havia homens assim, de grandes barbas amarelas e olhos claros, bebendo
num
bosque de carvalhos por grandes cornos que empinavam boca. Este
cavalheiro
(vim a saber depois) era um ingls, um fidalgo, um baronet. Chamava-se Curtis o baro
Curtis. E o que
me feriu mais foi ele parecer-se extremamente com algum que eu
encontrara no
interior, para alm de Bamanguato. Quem?... No me podia lembrar.
O
sujeito que vinha com
ele pertencia a um tipo absolutamente diferente, baixo, reforado,
trigueiro, e
todo rapado. Calculei logo pelas suas maneiras que tnhamos ali um
oficial de
marinha; e verifiquei depois, com efeito, que era um primeiro-tenente
da Armada
Real, reformado em capito-tenente, e por nome John Good. Este
impressionou-me
pelo apuro. Nunca conheci ningum mais escarolado, mais escanhoado,
mais
engomado, mais envernizado! Usava no olho direito um vidro, sem aro,
sem
cordel, e to fixo que parecia natural como a plpebra. Nem um s
momento o
surpreendi sem aquele vidro, e cheguei mesmo a pensar que dormia com
ele
cravado na rbita. S muito tarde descobri que noite o metia no bolso
das
calas no mesmo bolso em que guardava a dentadura postia, a mais
bela,
a mais perfeita dentadura que me recordo de ter contemplado, mesmo em
anncios
de dentistas. E o capito, destas, possua duas!
Apenas
nos fizemos ao
largo, comeou o mau tempo. Brisa forte, nvoa hmida e fria. Depois
cada
solavanco (o Dunkeld, barco
de fundo chato, no levava carga) que no se podia arriscar uma passada
confortvel na tolda. De sorte que me recolhi para junto da mquina,
onde fazia
um calorzinho sereno, e ali fiquei olhando para o pndulo, que marcava,
com
desvios largos, o ngulo de balano do Dunkeld.
Pndulo
errado rosnou de repente uma voz ao meu lado,
na sombra da noite que caa.
Olhei.
Era o oficial de
marinha.
Errado, hem?... Acha?
perguntei.
Acho o qu?... Se o vapor se inclinasse
quanto marca o pndulo, no se tornava mais a levantar... Aqui est o
que eu
acho. Mas sempre assim, com estes capites de marinha mercante...
Felizmente,
nesse
instante, tocou a sineta do jantar, com imenso alvio meu porque se
h,
sob a cpula dos cus, uma coisa temerosa, a loquacidade de um
oficial da
marinha de guerra desabafando sobre a inpcia dos oficiais da marinha
mercante.
Pior do que essa coisa temerosa s a coisa inversa!
O
capito John e eu
descemos juntos para o salo. O baro Curtis j l estava, no topo da
mesa,
direita do comandante do Dunkeld. John acomodou-se ao lado do seu
companheiro; eu defronte, onde havia
dois talheres desocupados. Logo depois da sopa o comandante, com a
lamentvel
mania dos homens de mar, comeou a falar de caa. Primeiramente de caa
mida,
de condores e de abutres. Depois passou a elefantes.
Ah!
comandante
exclamou ao lado um patrcio meu, de Durban para elefantes
temos presente uma grande autoridade... Se h homem em frica que
entenda de
elefantes, aqui o nosso companheiro e amigo Alo Quartelmar.
Por
acaso, nesse momento,
eu pousara os olhos no baro Curtis; e notei que o meu nome, assim
pregoado com
a minha profisso, lhe causara emoo e surpresa. John cravou tambm em
mim o
seu vidro, com uma curiosidade que faiscava. Por fim o baro
inclinou-se,
atravs da mesa, e numa voz grave e funda, bem prpria do robusto peito
donde
saa:
Peo
perdo
disse mas porventura ao sr. Alo Quartelmar que me estou
agora dirigindo?
A ele
prprio.
O
homenzarro passou a mo
pelas barbas, e distintamente, muito distintamente, o ouvi murmurar:
Ainda
bem!
No se
passou mais nada
at ao doce. Mas fiquei ruminando aquele espanto e aquele ainda bem.
Depois
do caf, enchia o
meu cachimbo para subir tolda, quando o baro, com os seus modos
srios e
lentos, se adiantou para mim, e me convidou a passar ao seu beliche,
tomar um
grogue, e conversar... Aceitei. O baro ocupava um camarote de tolda,
o melhor
do Dunkeld, espaoso,
arejado,
com um sof, espelhos, e duas largas cadeiras de verga. O capito John
viera
tambm. Todos trs nos sentmos, acendendo os cachimbos, enquanto o
moo corria
pelos grogues.
Houve
primeiramente um
silncio. Outro criado entrou, a acender o candeeiro. Por fim,
apareceram os
grogues.
O baro
Curtis, ento,
passou a mo pelas barbas, nesse jeito que lhe era costumado, e
voltando-se
bruscamente:
Diga-me uma coisa,
sr. Quartelmar... Aqui h dois anos, por este tempo, esteve num stio
chamado
Bamanguato, ao norte do Transval. No verdade?
Perfeitamente
respondi eu, pasmado de que aquele cavalheiro se achasse, no seu
condado, em Inglaterra, to bem informado das jornadas que eu fazia no
Sul de
frica!
A
negcio, hem?
acudiu o capito John.
Sim,
senhor, a
negcio. Levei uma carregao de fazendas, acampei, fora da feitoria, e
l
fiquei at liquidar.
O baro
conservou, durante
um momento, pregados em mim os seus olhos cinzentos e largos.
Pareceu-me que
havia neles ansiedade e temor.
E
diga-me,
encontrou a, em Bamanguato, um homem chamado Neville?
Encontrei. Esteve
acampado ao meu lado durante uns quinze dias, a descansar o gado antes
de meter
para o Norte. Aqui h meses recebi eu uma carta de um procurador,
perguntando-me se sabia o que era feito desse sujeito... Respondi como
pude...
Bem
sei!
atalhou o baro. Li a sua resposta. Dizia o sr. Quartelmar que esse
sujeito Neville partira de Bamanguato, no princpio de Maio, num
carro, com um
servial e um caador cafre chamado Jim, tencionando puxar at Iniati,
ltima
estao na terra dos Matabeles, para de l seguir a p, depois de
vender o
carro. O sr. Quartelmar acrescentava que o carro decerto o vendera
ele,
porque seis meses depois vira-o em poder de um portugus. Esse
portugus no se
lembrava bem do nome do homem a quem o comprara. Sabia s que era um
branco, e
que se metera para o mato com um cafre...
verdade
murmurei eu.
Houve
outro silncio, que
eu enchi com um sorvo ao grogue. Por fim o baro prosseguiu, com os
olhos
sempre cravados em mim, insistentes e ansiosos:
O sr.
Quartelmar
no sabe quais fossem as razes que levaram assim esse sujeito Neville
para o
Norte?... No sabe qual era o fim da jornada?
Ouvi
alguma coisa
a esse respeito murmurei.
E
calei-me prudentemente,
porque nos amos avizinhando de um ponto em que, por motivos antigos e
graves,
eu no desejava bulir.
O baro
voltou-se para o
seu companheiro, como para o consultar. O outro, por entre a fumaraa
do
cachimbo, baixou a cabea num sim mudo. Ento o meu homenzarro,
decidido, abriu os braos, desabafou:
Sr.
Quartelmar,
vou-lhe fazer uma confidncia! Vou-lhe mesmo pedir o seu conselho, e
talvez o
seu auxlio... O agente que me remeteu a sua carta afianou-me que eu
podia
confiar absolutamente no Sr. Quartelmar, que um homem de bem,
discreto como
poucos, e respeitado como nenhum em toda a colnia do Natal.
Dei um
sorvo tremendo ao
conhaque, para esconder o meu embarao porque sou extremamente
modesto.
Sr.
Quartelmar
concluiu o baro esse sujeito chamado Neville era meu irmo.
Ah!
exclamei.
Com
efeito! Agora, agora
recordava eu bem com quem o baro se parecia! Era com esse Neville.
Somente o
outro tinha menos corpo, e a barba escura. Mas nos olhos havia a mesma
franqueza, e havia a mesma deciso.
Era
meu irmo
continuou o baro. Meu irmo mais novo, e nico. At aqui h
cinco anos, vivemos sempre juntos. Depois um dia, desgraadamente,
tivemos uma
questo, uma terrvel questo. E para lhe dizer a verdade toda, sr.
Quartelmar,
eu comportei-me para com meu irmo da maneira mais injusta! Foi sob o
impulso
do despeito, da clera, certo... Mas, em suma, comportei-me
injustamente.
Cruelmente
murmurou do lado o capito John, que fumava com os olhos cerrados.
Cruelmente, com
efeito. Como o sr. Quartelmar sabe, em Inglaterra, quando um homem
morre sem
testamento e no tem seno bens de raiz, tudo passa para o filho mais
velho.
Ora sucedeu que meu pai morreu exactamente quando meu irmo Jorge e eu
estvamos assim de mal. Herdei tudo; e meu irmo, que no tinha
profisso, nem
habilitaes, ficou sem real. O meu dever, est claro, era criar-lhe
uma
situao independente. o que todos os dias se faz em Inglaterra,
nesses
casos. Mas por esse tempo, a nossa questo estava em carne viva. Eu no
lhe
ofereci nada. Ele tambm, orgulhoso, sobretudo brioso, nada pediu.
Assim
ficmos, de longe, eu rico e ele pobre... Peo perdo de o fatigar com
estes
detalhes, sr. Quartelmar, mas preciso pr as coisas bem claras... No
verdade, John?
Escrupulosamente
claras! acudiu o outro. De resto, o nosso amigo Quartelmar
guarda para si esta histria...
Pudera!
exclamei.
Pois
bem
continuou o baro meu irmo possua de seu, nessa poca, umas
duzentas
libras. Um belo dia, agarra nesta misria, toma o nome de Neville, e
abala para
frica a tentar fortuna! Eu s o soube mais tarde, meses depois de ele
ter
embarcado.
Passaram
trs anos.
Notcias dele, nenhumas. Comecei a andar inquieto. Escrevi-lhe.
Naturalmente as
minhas cartas no lhe chegaram. E eu cada dia mais aflito! Para o sr.
Quartelmar compreender tudo bem, deve saber que, desde pequeno, desde o
bero,
meu irmo foi a forte e grande afeio da minha vida. E, por outro
lado, a
nossa questo, assim amarga e spera por sermos ambos muito novos e
muito
exaltados, nasceu de qu? De uma mulher cujo nome j quase me esqueceu.
E meu
pobre irmo, coitado, se ainda vivo, no se lembrar mais do que eu.
Ora aqui
tem! E j por isto o sr. Quartelmar compreende...
Perfeitamente,
perfeitamente...
Pois
bem,
descobrir meu irmo passou a ser a minha ideia constante, dia e noite.
Mandei
fazer aqui, no Cabo, toda a sorte de pesquisas. Um dos resultados, o
mais
importante, foi a sua carta, sr. Quartelmar. Importante porque me dava
a
certeza que, meses antes, meu irmo estava na frica, e vivo. Desde
esse
momento decidi vir eu mesmo, pessoalmente, continuar as pesquisas.
Agentes, por
mais dedicados, mais bem pagos, no tm o interesse de corao: com o
corao
justamente que eu conto, com a perspiccia, a inspirao especial que
ele s
vezes possui. De resto, sempre tencionei visitar as nossas colnias de
frica... E aqui tem o sr. Quartelmar a minha histria. O mais
extraordinrio,
que o tivssemos encontrado logo, a si, a pessoa justamente que viu
meu irmo
vivo, a pessoa justamente a quem eu me ia dirigir apenas chegasse ao
Natal.
Quer que lhe diga? Acho bom agouro. Em todo o caso, aqui estou, pronto
para
tudo, com o meu velho amigo, o capito John, companheiro fiel de muitos
anos,
que teve a dedicao de me acompanhar.
O outro
encolheu os
ombros, sorrindo, com a sua esplndida dentadura.
No
havia neste
momento nada interessante a fazer na velha Europa!... Gasta,
insipidssima, a
velha Europa!
Depois,
reenchendo o
cachimbo, acrescentou muito srio:
E
agora que o
nosso amigo Quartelmar conhece os motivos que nos trazem frica, e o
interesse que nos prende a esse homem chamado Neville, espero da sua
lealdade
que no ter dvida em nos dizer tudo o que sabe, ou tudo o que ouviu,
a
respeito dele. Hem?
Impressionado,
respondi:
No
tenho dvida,
por ser questo de sentimento.
II
PRIMEIRA NOTCIA DAS MINAS DE SALOMO
Sacudi
a cinza do cachimbo
na palma da mo, e comecei, muito devagar, para tudo pr bem claro e
exacto:
Aqui
est o que
ouvi a respeito desse cavalheiro Neville.. E isto, que me lembre,
nunca, at ao
dia de hoje, o disse a ningum. Ouvi que esse cavalheiro fora para o
interior
busca das minas de Salomo.
Os dois
homens olharam
para mim, com assombro:
As
minas de
Salomo!? Que minas?... Onde so?
Onde
so, no sei.
Sei apenas onde dizem que esto. Aqui
h anos vi de longe os dois picos dos montes que, segundo corre, lhes
servem de
muralha. Mas entre mim e os montes, meus senhores, havia duzentas
milhas de
deserto. E esse deserto, meus senhores, nunca houve ningum (quero
dizer, homem
branco) que o atravessasse, a no ser um, noutras eras. Porque toda
esta
histria vem muito de trs, de h sculos! Eu no tenho dvida em a
contar, mas
com uma condio: que os cavalheiros no a ho-de transmitir sem
minha
autorizao. Tenho para isso razes, e fortes. Esto os cavalheiros de
acordo?
Com
certeza!
Narrei
ento, longamente,
tudo o que sabia, histria ou fbula, sobre as minas de Salomo. Foi h
trinta
anos que pela primeira vez ouvi falar destas minas a um caador de
elefantes,
um homem muito srio, muito indagador, que recolhera assim, nas suas
jornadas
atravs de frica, tradies e lendas singularmente curiosas. Tinha-me
eu
encontrado com ele na terra dos Matabeles, numa das minhas primeiras
expedies
ao interior, busca do elefante e do marfim. Chamava-se Evans. Era um
dos
melhores caadores de frica. Foi estupidamente morto por um bfalo, e
est
enterrado junto s quedas do Zambeze.
Pois
uma noite, sentados
fogueira, no mato, sucedeu mencionar eu a esse Evans umas construes
extraordinrias com que casualmente dera, andando caa do koodoo por aquela. regio que forma
hoje o distrito de
Lidemburgo, no Transval. Essas obras foram depois encontradas, e
aproveitadas
at, pela gente que veio trabalhar as minas de ouro. Mas ningum (quero
dizer,
nenhum branco) as tinha visto antes de mim. Era uma estrada enorme,
magnfica,
cortada na rocha viva, levando a uma galeria sem fim, metida pela terra
dentro,
toda de tijolo, e com grandes pedregulhos de minrio de ouro empilhados
entrada. Obra extraordinria! E a raa que a fizera desaparecera, sem
deixar um
nome, nem outro vestgio de si, alm daquela galeria, que revelava um
grande
saber, uma grande indstria e uma grande fora.
Curioso!
murmurou Evans. Mas conheo melhor!
E
contou-me ento que no
interior, muito no interior, descobrira ele uma cidade antiqussima,
toda em
runas, que tinha a certeza de ser Ofir, a famosa Ofir da Bblia.
Lembro-me bem
a impresso e o assombro com que eu escutei a histria dessa cidade
fencia
perdida no serto de frica, com os seus restos de palcios, de
piscinas, de
templos, de colunas derrocadas!...
Mas
depois Evans ficara
calado, cismando. De repente diz:
Tu j
ouviste falar das
serras de Suliman, umas grandes serras que ficam para alm do
territrio de
Machuculumbe, a noroeste?
No,
nunca ouvi.
Pois,
meu rapaz,
a que Salomo verdadeiramente tinha as suas minas, as suas minas de
diamantes!
Como
se sabe?
Como
se sabe!? Tem
graa! Sabe-se perfeitamente. O que Suliman seno uma corrupo de Salomo?
O nome das
serras, realmente, sempre foi serras
de Salomo.
Alm disso, uma
feiticeira do distrito de Manica, uma velha de mais de cem anos,
contou-me
tudo... Isto , contou-me que para l das serras vive um povo que da
raa dos
Zulus, e fala um dialecto zulu: mas como fora, e corpulncia, e
coragem, vale
mais que os Zulus. Pois nesse povo h videntes, grandes feiticeiros,
que de
gerao em gerao tm trazido o segredo de uma mina prodigiosa, que
foi de um
rei branco, muito antigo, e que ainda hoje est cheia de pedras brancas
que
reluzem... De sorte que no h dvida nenhuma.
Para
mim havia toda a
dvida. As runas de Ofir interessavam-me, como da nossa crena e da
Bblia:
mas das minas de pedras brancas que reluzem, conhecidas em segredo por
feiticeiros zulus, teria
certamente rido se no fora o respeito devido a um caador to digno
como
Evans. De madrugada Evans partiu a acabar tristemente nas pontas de um
bfalo.
E no pensei mais em Salomo, nem nas suas minas de diamantes.
Aqui h
vinte anos, porm,
num encontro muito singular que tive no distrito de Manica, de novo
ouvi falar
das minas de Salomo, e de um modo que para sempre me devia
impressionar. Era
num stio chamado a aringa de Sitanda. No h pior em toda a frica.
Fruta
nenhuma, caa nenhuma, tudo seco, tudo triste e os pretos vendem os
ossos de um frango por fazenda que vale uma vaca.
Apanhei
l um ataque de
febre, e estava fraqussimo, enfastiadssimo, quando me apareceu um dia
um
portugus de Loureno Marques, acompanhado por um servial mestio.
Entre os
portugueses de Loureno Marques h sofrvel e h pssimo. Mas este
era
dos melhores que eu vira um homem muito alto e muito magro, de belos
olhos negros, os bigodes j grisalhos todos retorcidos, e umas maneiras
graves
que me fizeram pensar nos velhos fidalgos portugueses que aqui vieram
h
sculos e de que tanto se l nas histrias. Conversmos bastante nessa
noite,
porque ele falava um bocado de mau ingls, eu um bocado de mau
portugus; e
soube que se chamava Jos Silveira, e que possua uma fazenda ao p da
cidade,
em Loureno Marques.
Na
manh seguinte, cedo,
antes de partir com o mestio, acordou-me para se despedir, de chapu
na mo,
corts e grave como os antigos, os que tinham Dom.
At mais ver, camarada!
Boa
viagem! At
mais ver!
O homem
conservava
pregados em mim os grandes olhos negros, que rebrilhavam. Depois
acrescentou
muito srio:
Se
nos tornarmos
outra vez a encontrar, hei-de ser a pessoa mais rica deste mundo! E
pode contar,
camarada, que no me hei-de esquecer de si! Nem ri. Estava debilitado
para rir.
Fiquei estirado na manta, olhando para o estranho homem que, a grandes
passadas, com a cabea alta e cheia de esperana, se metia pelo mato
dentro.
Passou
uma semana, e melhorei
da febre. Uma tarde achava-me sentado no cho defronte da barraca,
rilhando a
ltima perna de um desses frangos que os pretos me vendiam por chita do
valor
de uma vaca, e pasmando para o enorme disco de Sol que descia ao fundo
do
deserto quando de repente avistei, escura sobre a vermelhido do
poente,
numa elevao do terreno, a figura de um homem que era certamente
europeu
porque trazia um casaco comprido. No mesmo momento em que eu dera com
os olhos
nele, o homem oscila, cai de bruos e comea a arrastar-se pelo cho,
lentamente! Com um esforo desesperado, ainda se ergueu, e tentou pelo
cmoro
abaixo alguns passos que cambaleavam. Por fim tombou de novo, e ficou
estirado,
como morto, contra um tufo de tojo alto. Gritei a um dos meus caadores
que
acudisse. E quando ele voltou, amparando o homem nos braos quem
hei-de
eu ver? O Jos Silveira! Jos Silveira ou antes o seu miservel
esqueleto, com todos os ossos rompendo para fora da pele, mais seca que
pergaminho e amarela como gema de ovos. Os olhos saltavam-lhe da cara,
maneira de dois bugalhos de sangue. E o cabelo, que eu lhe vira
grisalho, vinha
branco, todo branco como uma bela estriga de linho.
gua!
gemeu ele. gua, pelas cinco chagas de Cristo!
O
infeliz tinha os beios
horrivelmente estalados, e entre eles a lngua pendia-lhe, toda inchada
e toda
negra! Dei-lhe gua com leite, de que bebeu talvez dois quartilhos, a
grandes
sorvos, e sem parar. Foi necessrio arrancar-lhe a vasilha. Depois caiu
de
costas, rompeu a delirar. Ora gemia, ora gritava. E era sempre sobre as
serras
de Suliman, os diamantes e o deserto!
Levei-o
para dentro da
tenda: e, com o pouco que tinha, fiz o pouco que podia. O homem estava
perdido.
Rente da meia-noite sossegou. Eu, esfalfado, adormeci. Acordei de
madrugada; e,
ao primeiro alvor da luz, dou com ele (forma sinistra!) de joelhos,
porta da
barraca, de olhos cravados para o longe, para o deserto! Nesse
instante, um
raio de sol que nascia frechou atravs do vasto descampado, e foi bater
ao
fundo, a cem milhas de ns, o pico mais alto das serras de Suliman. O
homem
soltou um grito, atirou desesperadamente para diante os dois braos de
esqueleto:
L
esto elas,
Santo Deus, l esto elas!... E dizer que no pude l chegar! Parecem
to
perto! Logo ali, uns passos mais... E agora acabou-se, estou perdido,
ningum
mais pode l ir!
De
repente, emudeceu.
Depois virou para mim, muito devagar, a face lvida e como esgazeada
por uma
ideia brusca.
camarada, onde
est voc?... J o no distingo, vai-me a fugir a vista!
Estou
aqui;
sossegue, homem.
Tenho
tempo para
sossegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou a morrer. Voc tem
sido bom
comigo, camarada... E para que havia eu de levar o segredo para debaixo
da
terra? Ao menos algum se aproveita! Talvez voc l possa chegar, se
conseguir
atravessar esse deserto que matou o meu pobre criado, que me est a
matar a
mim...
Comeou
ento a procurar
tremulamente dentro do peito da camisa. Tirou por fim uma espcie de
bolsa de
tabaco j velha, apertada com uma correia. Estava to fraco que as suas
pobres
mos nem puderam desfazer o n. Fez-me um gesto, um gesto exausto, para
que eu
o desatasse. Dentro havia um farrapo de linho amarelado, com linhas
escritas,
num tom antiqussimo, de cor de ferrugem. E dentro do farrapo estava um
papel
dobrado.
O
papel
murmurou ele numa voz que se extinguia a cpia do que est escrito
no
trapo. Levou-me anos a decifrar, a entender... Foi um antepassado meu,
um dos
primeiros portugueses que vieram a Loureno Marques, que escreveu isso,
quando
estava para morrer acol naquelas serras. Chamava-se D. Jos da
Silveira, e j
l vo trezentos anos... Um escravo que ia com ele, e que ficara a
esperar, do
lado de c do monte, vendo que o amo no voltava, procurou-o, foi dar
com ele morto,
e trouxe para Loureno Marques o bocado de linho que tinha letras.
Desde ento
ficou guardado na nossa famlia. H trezentos anos! E ningum pensou em
o
decifrar at que eu me meti nisso... Custou-me a vida. Mas talvez outro
consiga. Talvez outro chegue l, s malditas serras! Ser ento o homem
mais
rico deste mundo! O mais rico, o mais rico! Tente voc, camarada... No
d o
papel a ningum! V voc!
As
ltimas palavras saram
como um dbil sopro. Caiu de costas, recomeou a delirar. Da a uma
hora tudo
acabou. Deus tenha a sua alma em descanso! Morreu serenamente, sem
esforo e
sem dor. Por minhas mos o enterrei, bem fundo na terra, com fortes
pedregulhos
por cima do peito. Ao menos assim no daro com ele os chacais.
Foi ao
p da cova onde o
desgraado jazia que examinei o documento. Era, como disse, um farrapo
de
linho, rasgado de uma fralda de camisa e do tamanho de um palmo. No
topo tinha
os traos de um mapa, ou de um roteiro, rapidamente e toscamente
lanados.
Era
pouco mais ou menos
isto:
Por
baixo vinham linhas
escritas, numa letra muito antiga e cor de ferrugem. Para mim eram
ininteligveis. Mas o papel continha a decifrao, e dizia assim:
Estou
morrendo de fome,
numa cova da banda norte de um destes montes a que dei o nome de Seios
de Sab,
no que fica mais a sul. Sou D. Jos da Silveira, e escrevo isto no ano
de 1590,
com um pedao de osso, num farrapo da camisa, tendo por tinta o meu
sangue. Se
o meu escravo aqui voltar, reparar neste escrito, e o levar para
Loureno
Marques, que o meu amigo (aqui um nome ilegvel) logo pela primeira nau
que
passar para o reino mande estas coisas ao conhecimento de el-rei, para
que Ele
remeta uma armada a Loureno Marques, com um troo de gente, que se
conseguir
atravessar o deserto, vencer os Cacuanas, que so valentes, e desfazer
os seus
feitios (devem vir muitos missionrios) tornaro Sua Alteza o mais
rico Rei da
Cristandade. Com meus prprios olhos vi os diamantes sem conta
amontoados num
subterrneo que era o depsito dos tesouros de Salomo, e que fica por
trs de
uma figura da Morte. Mas por traio de Gagula, a feiticeira dos
Cacuanas, nada
pude trazer, apenas a vida!
Quem vier,
siga o mapa que
tracei, e trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sab, o esquerdo, at
chegar
ao cimo, donde ver logo, para o lado norte, a grande calada feita por
Salomo. Da siga sempre, e em trs dias de marcha encontrar a aringa
do rei.
Quem quer que venha que mate Gagula. Rezem pelo descanso da minha alma.
Que
El-Rei Nosso Senhor seja logo avisado. Adeus a todos nesta vida!
Tal
era o extraordinrio documento que textualmente li ao baro Curtis e ao
capito, porque trazia sempre comigo (e ainda trago) uma traduo dele,
em
ingls, na carteira.
Quando
acabei, os dois
amigos olhavam para mim, mudos de espanto. Por fim o capito, com o
leve
suspiro de quem repousa de uma prolongada emoo, bebeu um trago de
grogue
e mais sereno:
O
nosso amigo, o
sr. Quartelmar, no nos tem estado a intrujar?
Meti
com fora o papel na
algibeira, e, erguendo-me, repliquei secamente:
Se os
cavalheiros
assim pensam, no me resta mais nada seno desejar-lhes muito boas
noites!
O baro
acudiu,
pousando-me no ombro a sua larga mo:
Pelo
amor de Deus,
sr. Quartelmar! Nem John, nem eu duvidamos da sua veracidade. Mas,
enfim, tenho
ouvido dizer que aqui na colnia coisa corrente e bem aceita troar
um pouco
os que chegam, os novatos de
frica... E depois essa histria to extraordinria!
Insisti,
ainda ofendido:
O
original escrito
pelo velho fidalgo no farrapo de camisa, tenho-o em Durban! Ser a
primeira
coisa que lhes hei-de mostrar em chegando!... No h uma palavra... O
baro
atalhou, gravemente:
Toda
a palavra do
sr. Quartelmar coisa sria, e como tal a tomamos.
Durante
um momento ficmos
calados. Eu serenei. Por fim o baro, que dera sobre
o tapete do beliche alguns passos pensativos, parou
diante de mim:
E meu
irmo? Como
soube o sr. Quartelmar que meu irmo tentou tambm essa jornada s
minas?
Narrei
ento o que me
sucedera com esse sujeito Neville, quando estvamos acampando, lado a
lado, em
Bamanguato. Eu no o conhecia; nem ento comemos relaes, apesar de
termos o
gado junto. Mas conhecia perfeitamente o servial que o acompanhava, um
chamado
Jim. Era um bexuana, excelente caador e, para bexuana, esperto,
consideravelmente
esperto! Na manh em que Neville devia meter-se para o serto, vi Jim,
ao p do
meu carro, cortando folhas de tabaco.
Para
onde essa
jornada, Jim? perguntei eu, sem curiosidade, s para mostrar
interesse
ao rapaz. Ides a elefantes?
Jim
mostrou os dentes
todos, num riso vivo:
No,
patro. Vamos
a coisa melhor que marfim.
Melhor que
marfim!? Ouro?
Melhor que ouro!
murmurou ele, arreganhando mais a dentua.
Calei-me,
porque no
convinha minha dignidade de patro e de branco revelar curiosidade
diante de
um bexuana. Confesso, porm, que fiquei intrigado. Da a pouco Jim
acabou de
cortar o tabaco. Mas por ali se quedou, rondando, coando devagar os
cotovelos,
espera, com os olhos em mim. No dei ateno.
patro!
murmurou ele, numa nsia de desabafar.
Permaneci
indiferente, por
dignidade. Ele tornou:
patro!
Que
, homem?
Vamos
procura de
diamantes, patro! atirou-me ele ao ouvido.
Diamantes!? Boa!
Ento ides para o lado oposto. Deveis meter direito ao Sul, para as
diamanteiras.
O
bexuana baixou mais a
voz:
patro! J ouviu
falar das serras de Suliman? Pois l que esto os diamantes. O patro
nunca
ouviu?
Tenho
ouvido muita
tolice na minha vida, Jim.
No
tolice,
patro. Eu conheci uma mulher que veio de l, com um filho, e que vivia
no
Natal. Morreu h anos, o filho por l anda. E foi ela que me disse
tudo. H l
diamantes!
Olha,
Jim, o que
te digo que teu amo vai dar de comer aos abutres, que andam por l
esfomeados. E tu, essa pouca carne que tens nos ossos, tambm vai daqui
direitinha aos abutres.
O homem
teve outro riso
fino:
A
gente tem de
morrer, e eu no desgosto de experimentar terras novas. O elefante por
aqui j
no rende. O bexuana c vai para os diamantes, e o bexuana vai cantando!
Pois
quando a
morte te agarrar pelas goelas, veremos ento se ainda canta o bexuana!
Jim
abalou. Da a meia
hora o carro do sr. Neville ps-se em marcha para o Norte. Mas no
rodara
ainda dez jardas, quando Jim voltou para trs, a correr.
Adeus, patro!
exclamou. No me quis ir de todo sem lhe dizer adeus, porque me
parece que o patro tem razo e que nunca mais c voltamos!
Ouve
c, Jim, teu
amo vai com efeito s serras de Suliman, ou tudo isso patranha?
O
bexuana jurou que no
contava patranhas. O amo ia realmente em demanda das serras e das minas
que
estavam para alm. Ainda na vspera o amo dissera que, para tentar
fortuna na
frica, tanto montava ir em cata de diamantes, como de ouro ou de
ferro. Tudo
dependia da sorte, porque no torro tudo havia. Assim ele ia aos
diamantes, que
era o mais rpido para enriquecer ou para morrer.
Reflecti
um momento.
Escuta, Jim. Vou
escrever umas palavras a teu amo. Mas hs-de prometer que no lhas
entregas
seno em chegando a Iniati!
Iniati
ficava da a umas quarenta
lguas. O bexuana prometeu.
Rasguei
um bocado de papel
da carteira, escrevi a lpis estas linhas: Quem vier.., trepe pelas
neves que
cobrem o Seio de Sab, o esquerdo, at chegar ao cimo, donde ver logo,
para o
lado norte, a grande calada feita por Salomo.
Bem!
Ora agora,
Jim, quando deres este papel a teu amo, diz-lhe que lho manda quem
sabe, e que
siga bem a indicao! Mas ouviste? S lho ds quando chegares a Iniati;
que eu
no quero que ele me volte para trs e me venha fazer perguntas!
Entendeste?
Ento abala, madrao, que o carro come caminho!
Jim
agarrou o bilhete e
largou a correr. Da a pouco o carro sumiu-se por trs das colinas. E
isto, em
verdade, era tudo o que eu sabia a respeito desse sujeito Neville. Mal
eu
acabara, o baro, sem hesitar, e com perfeita simplicidade, disse:
Sr.
Quartelmar,
vim frica procurar meu irmo. Desde que algum o viu pondo-se em
marcha para
as serras de Suliman, o que devo a mim mesmo marchar tambm para esse
lado.
Pode ser que o encontre; ou que venha a saber que morreu; ou que volte
sem nada
saber, na antiga incerteza; ou que no volte, como o velho fidalgo. Em
todo o
caso o meu dever, desde que me impus esta tarefa, tomar o caminho que
meu
irmo tomou. E agora pergunto eu: quer o sr. Quartelmar vir comigo?
Tambm
no hesitei. Foi
logo, de golpe:
Muitssimo
obrigado, senhor baro! Se tentssemos atravessar as cordilheiras de
Suliman,
ficvamos l como os dois Silveiras. Eis a minha cndida convico. Ora
h em
Londres um pobre rapaz que anda nos seus estudos, que meu filho, e
que me no
tem seno a mim neste mundo. E por ele, se no j por mim, no me
convm por
ora morrer. Em todo o caso agradeo a sua lembrana. de amigo!
O baro
voltou-se para o
seu companheiro, com um ar profundamente desconsolado, e que quase
comovia
naquele homem to robusto e to nobre. O outro murmurou: ǃ pena,
grande pena!
Sr.
Quartelmar!
exclamou ento o baro. Quando me meto numa empresa, tudo
sacrifico para a levar a cabo. Eu tenho fortuna, uma grande fortuna, e
necessito do seu auxlio. O sr. Quartelmar pode, portanto, pedir-me o
que
quiser pelos seus servios, j no digo dentro do razovel, mas dentro
do
possvel. Alm disso, apenas chegarmos a Durban, vamos a um tabelio, e
eu
obrigo-me, por uma escritura, a continuar a educao de seu filho, no
caso de
lhe acontecer a si um desastre, ou a deixar-lhe uma independncia, no
caso de
eu estourar tambm. V que estou pronto a tudo. Ainda mais. Se, por
acaso,
descobrssemos os diamantes, metade deles ficariam pertencendo ao sr.
Quartelmar, outra metade ao capito John. verdade que nenhum de ns
acredita
nos diamantes, e, portanto, esta vantagem conta como zero. Mas podemos
aplicar
a mesma regra a ouro ou marfim, qualquer fazenda que encontrarmos.
Finalmente,
escuso de dizer que todas as despesas da expedio correm por minha
conta.
Creio que no posso fazer mais.
Eu
olhava para ele,
deslumbrado:
Baro, essa
proposta a mais generosa que tenho recebido na minha vida! Mas
tambm, que
diabo, a empresa seria a mais arriscada em que me tenho metido...
Preciso
pensar. E antes de chegar a Durban eu lhe darei a resposta. Por hoje,
ficamos
aqui.
Ficamos aqui por
hoje! acudiu o capito, erguendo-se e respirando com alvio.
Com
efeito, era tarde. Dei
as boas-noites aos dois cavalheiros; e no meu beliche, at de
madrugada, sonhei
com o antigo D. Jos da Silveira, com el-rei Salomo, e com montes de
pedras
que reluziam no fundo de uma caverna.
III
O HOMEM CHAMADO UMBOPA
Durante
o resto da
jornada, pensei constantemente na proposta do baro. Mas nem eu nem ele
voltmos a falar de Neville, ou da travessia para as minas. Na tolda e
no
beliche as nossas conversas rolavam todas sobre caa, sobre aventuras
de caa
na frica. Os dois, homens de grande sport, no se fartavam de escutar. E
eu, velho palrador, cheio
de memrias e j anedtico, no me fartava de contar.
Finalmente,
numa
esplndida tarde de Janeiro (que aqui o ms mais quente do ano)
avistmos a
costa de Natal com a esperana de dobrar a ponta de Durban ao
sol-posto.
Toda
esta costa
adorvel, com as suas longas dunas avermelhadas, os ricos tapetes de
verdura
clara, as alegres aringas dos cafres espalhadas aqui e alm, e a orla
espumosa
e alva do mar que rebenta nas rochas. Mas, justamente perto de Durban,
a regio
toma uma incomparvel riqueza de tons. Nas ravinas, cavadas pelas
enxurradas de
sculos, fascam riachos inumerveis; o verde do mato mais intenso;
os outros
verdes de jardins entremeiam-se com as plantaes de acar; e a
espaos uma
casa muito branca, sorrindo para a azul placidez do mar, pe uma linda
nota,
humana e domstica; na vastido da paisagem.
Como
disse, contvamos
dobrar antes do sol-posto a ponta de Durban. Mas quando deitmos ncora
j era
crepsculo cerrado, tarde de mais para entrar a barra. Tnhamos ainda
essa
noite a bordo; e descemos ao salo, para um jantar quieto em guas
serenas,
depois de ver o salva-vidas remar para terra com as malas do correio.
Quando
voltmos tolda, a Lua ia alta, e to brilhante sobre mar e praia, que
quase
ofuscava os lampejos largos do farol. De terra vinham, atravs do ar
calmo,
aqueles picantes e doces aromas de especiarias, que, no sei porqu, me
fazem
sempre lembrar hinos de igreja e missionrios. O bairro de Berea
parecia em
festa, com todas as varandas alumiadas. Num grande brigue, ancorado ao
lado, os
marinheiros estavam cantando, ao som do banjo. Era uma noite de encanto
como s
as h neste abenoado Sul de frica, que lanava sobre a alma uma
infinita paz,
infinita e suave como a luz que derramava a Lua cheia. At o bull-dog
de um
passageiro irlands, que no cessara de
rosnar ferozmente durante toda a jornada, cedera enfim s pacificadoras
influncias do Sul, e dormia, estirado no convs, com um ar de trguas
e de
perdo aos homens. O baro, o capito John e eu estvamos sentados
junto roda
do leme, olhando e fumando em silncio.
Ento, sr.
Quartelmar? exclamou de repente o baro, sorrindo. Aqui estamos
em Durban... Pensou nas nossas propostas?
Vamos
ou no vamos
de companhia busca do sr. Neville? ecoou do lado o amigo John.
No
tugi. Mas ergui-me, e
fui, devagar, sacudir para fora da amurada a cinza do meu cachimbo. A
verdade
que, depois de muito matutar, eu ainda no tomara uma resoluo ou
antes, a minha resoluo permanecia vaga, informe, mal assente,
necessitando um
pequeno impulso exterior que a definisse e a fixasse. E foi justamente
aquela
exclamao risonha dos dois, o movimento de me erguer e de me abeirar
da
amurada, que tudo fixou e definiu no meu nimo. Ainda a cinza no cara
na gua
e j eu estava resolvido a partir.
Pensei e vou!
declarei, voltando a sentar-me. E se os cavalheiros me do
licena, direi as razes por qu, e as condies com que. Expus logo as
condies, muito claramente:
O
baro, em primeiro
lugar, corria com todas as despesas; e qualquer achado de valor,
diamantes,
ouro ou marfim, feito durante a expedio, seria irmmente dividido
entre mim e
o capito John. Em segundo lugar, o baro pagar-me-ia em dinheiro de
contado,
antes de partirmos, quinhentas libras, comprometendo-me, eu a
acompanh-lo e
fielmente servi-lo at que a jornada terminasse ou por um triunfo, ou
por um
desastre, ou simplesmente por se reconhecer a sua inutilidade. Em
terceiro
lugar, o baro obrigar-se- ia, por uma escritura, a dar anualmente a
meu filho,
enquanto durassem os seus estudos, uma penso de duzentas libras, no
caso de eu
morrer ou ficar inutilizado... Ainda eu no findara, j o baro
aceitara tudo,
largamente, alegremente!
O que
eu quero,
seja por que preo for dizia ele a sua companhia, sr.
Quartelmar, o socorro da sua experincia!
Muito
bem. Pois
agora, depois de dizer as condies em que vou, quero dizer as razes
por que
vou. porque se ns tentarmos atravessar as serras de Suliman, no
voltamos de
l vivos! O que sucedeu ao velho Silveira, ao que tinha Dom, h trezentos anos; o que
sucedeu ao outro, ao que
no tinha Dom, aqui h vinte;
o que sucedeu naturalmente ao sr. Neville, o que nos vai acontecer a
ns! No
samos de l vivos. Olhei atentamente para os dois homens. O amigo John
arrepiou um bocado a face. O baro ficou impassvel, murmurando apenas:
Corremos-lhe o
risco!
Eu
prossegui:
Agora
diro os
cavalheiros. Se julgas que no saias de l vivo, para que vais l? Em
primeiro lugar, porque sou fatalista. Se Deus j decidiu que eu hei-de
morrer
nas montanhas de Suliman, nas montanhas de Suliman hei-de morrer ainda
que l
no v. E se Deus decidiu j o contrrio, posso l ir impunemente e de
cara
alegre. Isto claro. Em segundo lugar, estou velho, e j vivi trs
vezes mais
do que costuma viver na frica um caador de elefantes. De sorte que,
continuando nesta carreira, e, desgraadamente, no tenho outra, que
posso eu
durar ainda? Uns anos. Ora se morresse agora, com as dvidas que me
pesam em
cima, o meu pobre rapaz ficava numa situao m, coitado dele! Enquanto
que
assim, com quinhentas libras sonantes, saldo as dvidas; e se estourar,
o meu
rapaz tem diante de si duzentas libras por ano para acabar o curso e
para se
estabelecer. Ora aqui tm os cavalheiros a coisa em duas palavras. O
baro
ergueu-se, excelente homem!, e apertou-me as mos com efuso.
Essas
razes, a
ltima sobretudo, fazem-lhe imensa honra! Enquanto a sairmos vivos ou
no da
aventura, o tempo dir. Eu, por mim, estou decidido a ir at ao cabo,
seja qual
for, triunfo ou morte! Em todo o caso, se temos assim de morrer to
cedo, no
me parecia mau que antes disso, pelo caminho, arranjssemos uma batida
aos
elefantes. Sempre desejei caar o elefante, e com a perspectiva de
deixar assim
os ossos nas serras de Suliman, prudente que me apresse... No
verdade,
John?
Com
certeza!... De
resto, todos ns vimos j muitas vezes a morte diante dos olhos. um
detalhe;
para que se h-de insistir nele? Viemos frica com um certo fim. H
perigos?
Acabou-se. Deus grande.
Est
tudo,
portanto, decidido conclu eu e parece-me que chegou a ocasio
de um grogue.
Fomos
ao grogue.
No dia
seguinte
desembarcmos. Alojei os meus amigos numa barraca que possuo na
Berea, e a
que chamo, em dias de orgulho, a minha casa. construda de tijolo,
com um
telhado de zinco que abriga trs quartos e uma cozinha. Em redor,
porm, est
plantado um bom jardim, com esplndidas rvores e flores, que um dos
meus
caadores, chamado Jack, traz lindamente tratadas. um pobre homem a
quem um
bfalo esmigalhou a perna na terra dos Sicucunes. J no pode seguir a
caa;
mas, na sua qualidade de Griqua, jardina bem coisa que um zulu nunca
faria decentemente. O zulu tem horror s artes da paz.
O baro
e o seu amigo
dormiram numa tenda que lhes armei no jardim (dentro de casa no havia
espao)
no meio do laranjal. Aqui, em Durban, as laranjeiras tm ao mesmo tempo
a flor
e o fruto; de sorte que, com o perfume todo em torno, e o brilho das
laranjas cor
de ouro, e o murmrio de guas correntes, o stio era aprazvel e
grato. H
pior na Europa.
Logo no
dia seguinte, sem
mais tardana, comemos os preparativos. Antes de tudo fomos ao
tabelio
lavrar a escritura, em que o baro se obrigava a pensionar o meu rapaz;
houve
dificuldade, por jazerem em Inglaterra as propriedades do baro; mas
arranjou-se uma tangente, e segura, graas s artes de um advogado
que pelos
seus servios apresentou a conta infame de vinte libras! Depois recebi
o meu
cheque de quinhentas libras. Satisfeita assim a prudncia, passmos a
comprar o
carro e as juntas de bois. Descobrimos um carro excelente, com eixo
de ferro,
slido e leve, que j fizera uma excurso a Loureno Marques o que
garantia a firmeza e resistncia das madeiras. Era um carro dos que
chamamos
de meia-tenda isto , toldado somente at ao meio, e aberto em
frente
para as bagagens. Sob o toldo tinha almofades onde podiam dormir bem
duas
pessoas; alm disso, suspenses para as espingardas e bolsas de guardar
roupa.
Custou-nos cento e vinte e cinco libras, e saiu barato. As juntas de
bois eram
dez, magnficas. Ordinariamente para uma jornada atrelam-se oito
juntas; mas
para uma aventura destas, vinte bois no vo de mais. Todos eram de
raa zulu,
a mais pequena de frica, mas a melhor; e todos eles salgados. Chamamos
aqui
salgados aos bois j muito jornadeados pelo Sul de frica, e prova,
portanto, da LJgua vermelha que destri s vezes todas as juntas de
um
carro. Alm disso, todos tinham sido vacinados contra a maleita de
pulmes,
forma horrvel de pneumonia, que nestas terras um flagelo para o gado.
Em
seguida organizmos
provises e remdios. Este detalhe demandava cincia e cuidado, porque
convinha, numa empresa to acidentada, que nem faltasse o necessrio,
nem o
carro partisse abarrotado e carregado em demasia. Para os remdios
foi-nos de
grande utilidade o capito John, que em tempos estudara para mdico da
Armada e
que (alm de possuir, muito a propsito para ns, um estojo de
cirurgia e uma
farmcia de viagem) conservara conhecimentos genricos e uma tolervel
prtica.
Durante a nossa estada em Durban cortou ele o dedo polegar a um cafre
com uma
maestria que fazia apetite ver! O que o perturbou foi o cafre (que
observava a
operao em perfeita impassibilidade) pedir-lhe depois para lhe pr outro
dedo novo.
Restava, enfim, a importante
questo de criados e
armas. Armas tnhamos por onde as escolher entre as que eu possua e a
coleco esplndida que o baro trouxera de Inglaterra. Sete
espingardas de
dois canos para diferentes caas, trs carabinas Winchester, trs revlveres Colt assim ficou constitudo o
nosso armamento.
Enquanto
a criados, depois
de muita consulta e reflexo, decidimos limitar o nmero a cinco um
guia, um boieiro e trs serviais. Boieiro e guia achmos ns
facilmente em
dois zulus, que se chamavam um Goza e outro Tom. Mas os serviais
eram
de mais difcil e delicada escolha. Da pacincia, da fidelidade, da
coragem dos
serviais poderiam muitas vezes depender as nossas pobres vidas nesta
aventura
sem igual.
Finalmente,
arranjei dois,
um hotentote, chamado Venvogel, e um rapazito zulu, de nome Quiva, que
tinha o
mrito (considervel para os meus companheiros) de falar ingls com
fluncia. O
hotentote j eu conhecia. Era um dos melhores farejadores de caa de
toda a
frica. Ningum mais rijo nem mais resistente. O seu defeito srio
consistia na
bebida. Mas
como amos para
regio onde no h LJguas-ardentes, nem quase guas correntes, pouco
importava
esta fragilidade do digno Venvogel. Tnhamos, pois, dois serviais. O
terceiro
parecia impossvel descortinar. Tentei, tentei at que resolvemos
partir sem ele, esperando encontrar, antes de metermos para o deserto,
algum
homem aproveitvel entre Iniati e Zucanga. Na vspera, porm, da nossa
partida
estvamos jantando, quando Quiva, o rapaz zulu, veio anunciar que um
homem se
viera sentar no meu portal, minha espera. Mandei entrar. Apareceu um
rapago
muito esbelto, robusto, magnfico, aparentando trinta anos, e claro de
mais
para zulu. Floreou no ar o cajado maneira de saudao, encruzou-se
sobre o
soalho, a um canto, e ficou calado com singular dignidade. No lhe dei
logo
ateno. Assim se deve proceder com os zulus. Se o branco lhes fala com
prontido e agrado, o Zulu conclui imediatamente que est tratando com
pessoa de
pouco comando. Observei,
no
entanto, que este homem era um queslha, um homem-de-anel isto , que trazia na cabea
aquela espcie de
rodilha, feita de goma, e toda lustrosa de sebo, que eles entremeiam na
grenha
e usam quando chegam a uma idade de respeito ou atingem nas suas aringas uma
posio superior. Tambm
me pareceu reconhecer aquela cara realmente bela.
Bem
disse
por fim como te chamas?
Umbopa
respondeu o homem numa voz lenta e grave.
Estou
a pensar que
j te vi algures.
J,
Macumazan!
Macumazan
o meu nome
cafre e significa aquele que
se levanta pelo meio da noite para vigiar; ou antes, aquele que
conserva sempre
os olhos bem abertos.
Macumazan
continuou o zulu viu-me em Izand-Luana, na vspera da batalha...
Lembrei-me
ento
completamente. Eu fui um dos guias de Lord Chelmsford, na desgraada
guerra com
os Zulus. Por acaso, na vspera da batalha de Izand-Luana, que consumou
o
desastre das tropas inglesas, fui mandando levar para fora do
acampamento uns
poucos de carres de bagagens. Quando se estava atrelando o gado, este
homem
(que comandava um troo de cafres, dos indgenas auxiliares) veio para
mim,
dizendo que o acampamento no estava seguro, que era certa uma
surpresa, e que
o vento trazia cheiro de inimigo. Respondi-lhe que dobrasse a
lngua, e deixasse a segurana do
acampamento a melhores cabeas que a dele. Pois grande razo tinha o
zulu! Logo
nessa noite o acampamento foi terrivelmente assaltado... Tudo isso,
porm, vem
na Histria.
Que
queres tu?
perguntei. Lembro-me perfeitamente de ti. Diz o que queres.
Quero
isto. Correu
aqui voz que Macumazan vai para o Norte, numa grande expedio, com os
chefes
brancos que vieram de alm do mar. verdadeira a voz?
Verdadeira.
Correu aqui tambm
voz que Macumazan e os chefes iam para o lado do rio Lucanga, que fica
a um bom
quarto de lua de jornada do distrito de Manica. verdade? Franzi o
sobrolho,
descontente de ver assim to conhecido o roteiro da nossa expedio.
Para
que queres tu
saber? Que tens com isso?
Tenho
isto,
brancos! Que se ides assim para to longe, eu quereria ir convosco.
Havia
uma altivez nas
maneiras deste homem, e especialmente no seu emprego da expresso Ǘ
brancos e
em lugar de Ǘ incosis (chefes), que me surpreendeu grandemente.
Ests
esquecendo a
quem falas! repliquei. As palavras saem-te demasiadas e
imprudentes. Como o teu nome? Onde a tua aringa? necessrio saber
quem
temos diante de ns!
O meu
nome
Umbopa. Sou da raa dos Zulus, mas no sou zulu. O stio da minha tribo
muito
longe, para o norte; os meus ficaram l quando os Zulus desceram para
aqui, h
muito, h mais de mil anos, antes de Chaca ser rei. No tenho aringa.
Muitos
anos vo que ando errante. Quando vim do Norte era criana. Depois fui
dos
homens de Cetevaio no regimento de Nomabacosi. Por fim fugi dos Zulus e
vim
para o Natal para ver as artes dos brancos. Foi ento que servi na
guerra
contra Cetevaio, e que te encontrei, Macumazan! Agora tenho trabalhado
no
Natal. Mas estou farto, quero ir para o Norte. O meu lugar no aqui.
No peo
soldada, mas sou valente, e valho bem o po que comer. Eis as palavras
que
tinha a dizer.
Este
homem e a sua grande
maneira de falar intrigavam-me singularmente. Era certo para mim que s
dissera
a verdade; mas na cor, nos modos, diferia muito do zulu ordinrio; e a
sua
oferta de vir connosco sem soldada, extraordinria num africano,
enchia-me de
desconfiana.
Na
dvida, traduzi as
estranhas falas aos meus amigos, solicitei-lhes conselho. O baro
pediu-me que
mandasse pr o homem de p. Umbopa ergueu-se, deixando escorregar ao
mesmo
tempo o vasto casaco militar que o envolvia, e ficou diante de ns,
mudo,
erecto, soberbo, todo nu, com um simples pedao de pano em torno dos
rins e um
fio de garras de leo enrolado ao pescoo. Era, realmente, um
esplndido homem!
Tinha mais de dois metros de altura, e largo em proporo, gil,
admirvel de
formas. Na luz da sala em que estvamos, a pele parecia apenas muito
trigueira,
como a de um rabe. Aqui e alm, pelo corpo, conservava cicatrizes
terrveis de
antigos golpes de azagaia. O baro foi direito a ele, e cravou-lhe os
olhos nos
olhos, que se no baixaram, e que rebrilharam.
Gosto
de ti,
Umbopa disse em ingls e tomo-te ao meu servio.
Umbopa
evidentemente
compreendeu, porque murmurou em zulu:
Est
bem.
Depois,
atirando um olhar
para a grande estatura e fora do branco, acrescentou:
Somos
dois homens,
tu e eu!
IV
OS ELEFANTES
Samos
de Durban no fim de
Janeiro, e andadas quase as trezentas lguas que vo daqui ao stio em
que se
juntam os rios Lucanga e Caluque, chegmos, pelos meados de Maio, a
Iniati, no
longe da aringa de Sitanda, onde acampmos. Durante a jornada tivemos
aventuras
vrias, mas daquelas que so usuais em todas as travessias de frica e
j muito
contadas nos livros. Em Iniati, ltima estao mercante da terra dos
Matabeles,
onde Lobengula (esse atroz velhaco!) rei, separmo-nos, com fundas
saudades,
do nosso confortvel carro. Dos vinte bois que trouxramos de Durban,
s doze
restavam. Um morrera da mordedura da cobra, trs da falta de gua; um
perdeu-se; os outros trs comeram uma erva venenosa, chamada tlipa.
Os
restantes deixmo-los com o vago ao cuidado de Goza e de Tom (o
boieiro e o guia),
pedindo a um digno missionrio escocs que habita aquele desterro que
caridosamente nos vigiasse o carro, o gado e os homens. E no dia
seguinte,
acompanhados por Umbopa, Quiva, Venvogel e meia dzia de carregadores
que
arranjmos em Iniati, largmos para o deserto, a p, em seguimento da
nossa
temerria aventura.
Era de
madrugada: e
lembrei-me que no momento de nos pormos em marcha estvamos todos trs
bem
comovidos! Cada um perguntava a si mesmo, decerto, se jamais tornaria a
ver o
carro, os bois e o missionrio. Eu, por mim, levava a certeza que
no. Os
primeiros passos foram lentos, dados em grave
silncio. Mas, de repente, Umbopa, que marchava na frente, rompeu num
grande
canto
uma
cano zulu,
dizendo de uns homens que, cansados da vida e da monotonia das coisas,
se
tinham metido ao deserto, para achar ocupao ou morrer, e que, para
alm dos
sertes, subitamente, encontravam um paraso cheio de raparigas moas,
de gado,
de caa, de inimigos para matar! Esta cano pareceu-nos de boa
promessa. A
quinze dias de marcha de Iniati comemos a atravessar uma regio
arborizada e
farta em guas. As colinas estavam espessamente cobertas de mato que os
indgenas chamam idaro e por toda a parte se estendiam bosques de
machabeles,
rvores que do um fruto amarelo, enorme, quase todo caroo, mas
deliciosamente
fresco e doce. As folhas e frutos destas rvores so o alimento querido
dos
elefantes; e decerto os imensos animais andavam perto, porque a cada
passo
topvamos arbustos quebrados e desarraigados. O elefante por onde vai
comendo,
vai assolando.
Uma
tarde, depois de uma
caminhada fatigante, chegmos a um stio particularmente pitoresco e de
amvel
repouso. Era junto de um outeiro todo vestido de arvoredo. Ao p
serpeava o
leito seco de um rio, conservando aqui e alm poas de gua cristalina
e fria,
espezinhadas em redor pelas largas pegadas de feras. Em frente
verde-java um
belo parque de mimosas, machabeles e outras rvores ainda, raras e
cheias de
flor e em torno era o mato, o mato silencioso, denso, impenetrvel.
Decidimos
ficar ali e
construir um scherm, a pouca
distncia de uma das poas de gua. O scherm uma espcie de acampamento
entrincheirado, que se faz
cortando grande quantidade de mato espinhoso e armando-o circularmente
numa
vasta e rude sebe que forma defesa. Todo o espao interior se aplaina
como uma
arena: ao centro amontoa-se erva seca, um capim chamado tambouki, que serve de div e de cama;
aqui e alm, em
volta, acendem-se alegres fogueiras.
Quando
acabmos de
arranjar o scherm vinha
nascendo a Lua. O jantar estava pronto. Bem parco era ele, composto dos
tutanos
e lombos de uma girafa, que nessa tarde, ao fim da sesta, fora morta
pelo
capito John com um tiro providencial. Mas depois de corao de
elefante (a
mais fina delcia que se pode ter), tutano e lombo de girafa so os
petiscos
superiores de frica, e grandemente os saboremos sob o esplendor da
Lua cheia,
que ia alta nos cus. Depois acendemos os cachimbos, e conversmos no
vasto
silncio em roda do lume.
Os meus
companheiros no
se fartavam de contemplar aquela cena de serto, familiar para mim, com
os meus
quarenta anos de frica, mas que a eles s oferecia estranhezas at
na
maneira por que as claridades alumiam, at na maneira por que a noite
silenciosa. Eu por mim, confesso, admirava sobretudo o nosso excelente
capito
John. Ali estava ele, no interior da Terra Negra, em pleno deserto,
estirado em
cima de um saco de couro to apurado, to correcto, to bem pregado,
como se viesse de passear num parque luxuoso de castelo ingls, em dia
de caa
ao faiso. Tinha um fato completo de cheviote castanho, com chapu da
mesma
fazenda, polainas irrepreensveis, luvas amarelas de pele de co, a
face
escanhoada, monculo no olho, os dentes postios rebrilhando em glria!
Nunca o
serto africano vira decerto um homem mais catita. At trazia
colarinhos altos
(colarinhos de guta-percha), de que emalara na mochila uma escandalosa
poro
por serem leves (dizia ele), fceis de lavar, e dar logo gente um
ar
de asseio e distino.
Pois
assim estivemos muito
tempo, sob o magnfico luar, conversando e observando os cafres, que
chupavam a
dacca nos
seus longos
cachimbos feitos de cornos de eland, e que, um por um, se iam
enrolando nas mantas e estirando
beira do lume. S Umbopa por fim ficou acordado, longe dos cafres (a
quem
geralmente no admitia familiaridades), com o queixo encostado ao
punho, os
olhos perdidos na Lua, numa daquelas abstraces em que por vezes eu o
surpreendera desde o comeo da nossa jornada.
De
repente, da profundidade
do mato, por trs de ns, subiu no ar um longo e rouco rugido. ǃ um
leo!,
exclamei. Todos nos erguemos, a escutar. Quase imediatamente, junto
poa de
gua pura vizinha do nosso scherm, ressoou, como em resposta, a
estridente trompa de um elefante.
Uncungunlovo! Uncungunlovo1 , murmuraram uma os cafres,
levantando as cabeas das
mantas e momentos depois avistmos uma fila de enormes e escuras
formas, movendo-se devagar da beira da gua para o mato. O capito, com
um
salto, agarra a espingarda. Tive de o segurar pelo brao:
intil, no se
faz nada. Nada de barulho. Deix-los ir.
Em
todo o caso
disse o baro excitado este stio para um caador um
verdadeiro paraso! Se aqui ficssemos um dia ou dois?...
Estranhei:
porque at a o
baro, impaciente, viera-nos sempre apressando para diante sobretudo
desde que soubera em Iniati, pelo missionrio, que dois anos antes um
ingls,
chamado Neville, vendera ali o carro em que viera de Bamanguato e se
internara
no serto com um cafre por servial. Mas ouvira o leo, ouvira o
elefante
e os seus instintos de caador dominavam, irresistivelmente.
Pois
muito bem,
filhos meus disse eu uma vez que se quer um bocado de
divertimento, ter-se-; mas amanh. Por agora tratar de dormir, e
erguer com
o primeiro luzir do dia, para apanhar esse rico gado antes que ele v
aos seus
negcios. Toca pois a acomodar..
O
capito John
(extraordinrio homem!) tirou o fato, sacudiu-o, meteu o monculo e os
dentes
postios dentro do bolso das calas, dobrou tudo cuidadosamente,
guardou tudo
ao abrigo do orvalho debaixo do seu makintosh, alisou o cabelo, tomou um
bochecho de gua, e estirou-se
de lado para dormir, com correco e conforto. O baro e eu, depois de
contemplar, rindo, estes requintes, embrulhmo-nos simplesmente num
cobertor
e da a pouco envolvia-nos aquele sono profundo, absoluto, sem
sonhos,
sem movimentos, que a recompensa e a consolao de quem moureja por
estas
terras negras.
Com o
primeiro alvor da
madrugada estvamos a p, preparando para a aco. Tommos as
carabinas,
munies abundantes, cantis cheios de ch frio (que a melhor bebida,
a nica,
quando se caa), e partimos, depois de engolir de p um almoo breve,
acompanhados de Umbopa, de Quiva e de Venvogel.
No
tivemos dificuldade em
achar o carreiro aberto e pisado pelos elefantes que, segundo Venvogel
declarou, deviam ser uns vinte ou trinta, a maior parte machos e todos
crescidos. Mas o bando afastara-se durante a noite; e eram quase nove
horas, o
calor ardia em cu e terra, quando pelos arbustos quebrados, pelas
cascas e
folhas de rvores esmagadas, e pelos montes de bosta fumegante,
percebemos que
os bichos andavam cerca e seguros. Da a instantes, efectivamente,
avistmos o rebanho todo, uns vinte a trinta elefantes (como Venvogel
calculara), parados numa cova de terreno, quietos, tendo decerto
acabado o
primeiro repasto, e sacudindo com lentido e majestade as suas imensas
orelhas.
Era uma vista soberba! S as h assim na frica! Estvamos separados
deles por
umas cem jardas. Agarrei um punhado de capim e atirei-o ao ar para
tomar a
direco do vento porque, se um elefante nos farejasse, bem sabia eu
que, antes de podermos pr as carabinas cara, o rebanho inteiro
abalava. A
aragem, se alguma corria, soprava para ns do lado dos bichos; de sorte
que
rastejmos cuidadosamente atravs do mato, mudos, sem respirar, at nos
aproximarmos umas quarenta jardas mal medidas. Justamente diante de
ns,
estacionavam trs magnficos elefantes machos, um deles com enormes
dentes e o ar
supremo de um patriarca. Avisei, baixinho, os companheiros que me
encarregava
do animal do meio; o baro apontou ao mais pequeno, ao da esquerda; o
capito
ao <(patriarca.
Agora!
murmurei.
Bum!
bum! bum! O elefante
do baro tombou redondo, varado no corao. O meu caiu pesadamente
sobre os
joelhos; mas quando pensei que ia desabar para o lado, morto, vejo a
enorme
massa que se ergue e larga galopando por diante de mim. Meti-lhe
segunda bala
na ilharga, que o abateu. pressa, com dois cartuchos mais na
carabina, corri
para ele e findei-lhe misericordiosamente a agonia.
Voltei-me
ento para ver o
que se passara com o elefante do capito, o patriarca, que eu ouvira
por trs
de mim bramando de dor e fria. Encontrei John excitadssimo. Ao que
parece, o elefante
rompera contra ele (que meramente teve tempo de se desviar com um
salto), e
seguira, furioso e sem ver, para a banda do nosso acampamento.
O resto
do rebanho no
entanto, espavorido, rompera para o outro lado, atravs da espessura.
Durante
um momento ficmos
indecisos entre seguir o patriarca ferido ou o resto da manada. Por
fim
resolvemos bater atrs do bando. Segui-los era fcil, porque tinham
aberto um
caminho, mais largo e liso que uma estrada real, esmagando o mato
espesso como
se fosse relva de Primavera. Ach-los, porm, era mais complicado: e
tivemos,
durante duas infindveis horas, de marchar sob um sol faiscante, antes
de os
avistarmos. L estavam todos outra vez muito juntos, excepto um dos
machos; e
pela inquietao com que se mexiam, pelo constante erguer das trombas
desconfiadas, farejando O ar era claro que esperavam temiam outro
ataque. Um dos machos, afastado, laia de sentinela, vigiava para o
nosso
lado, de tromba ameaadora e alta. Entre ele e ns mediavam umas
sessenta
jardas. Se este cavalheiro nos pressentisse, dava o sinal e o rebanho
abalava,
tanto mais facilmente quanto nos achvamos, bichos e homens, em terreno
descoberto. De sorte que todos trs lhe apontmos, todos trs lhe
atirmos.
Bum! bum! bum! Morto! Mas os outros partiram, numa desfilada, como
colinas
rolando.
Infelizmente
para eles,
logo adiante havia um nullah, isto
, uma ribeira seca com as bordas abarrancadas do nosso lado e quase a
pique do
lado fronteiro (stio parecido quele em que o prncipe imperial foi
morto na
Zululndia). Para a justamente se atiraram os elefantes em tropel.
Quando
chegmos borda, demos com eles em medonha confuso, esforando-se por
trepar
a outra ribanceira (escarpada e hirta), empurrando-se uns aos outros,
num furor
e egosmo verdadeiramente humanos, e atroando os ares de bramidos. A
nossa
oportunidade era escandalosamente brilhante. Sem outra demora,
disparando to
depressa como carregvamos, demos cabo de cinco elefantes; e teramos
dizimado
o rebanho inteiro se eles de repente, abandonando a teima estpida de
galgar a
ribanceira, no largassem a fugir ao comprido do leito seco que se
perdia ao
longe na espessura. Estvamos cansados de mais para os perseguir,
enjoados
tambm desta vasta mortandade. Oito elefantes numa manh, antes do
almoo,
decente.
De
sorte que, depois de
descansarmos e vermos os cafres cortar os coraes a dois dos elefantes
para
servir ceia, voltmos vagarosamente os passos para o acampamento,
devagar,
satisfeitos com a proeza, e calculando o valor do marfim, que no dia
seguinte,
cedo, os carregadores viriam serrar.
Ao
passar no stio em que
o capito tinha ferido o patriarca, encontrmos um rebanho de elands.
No lhe
atirmos, porque no h nada no eland que valha dinheiro, e
mantimentos j trazamos, deliciosos
e abundantes. O bando passou ao nosso lado, ligeiro e trotando; depois,
adiante, onde se erguia um tufo de arbustos em flor, parou; e todos a
um tempo
se voltaram, a olhar para ns, espantados.
O
capito nunca vira um eland.
Quis aproveitar
a ocasio, deu a
carabina a Umbopa, e seguido de Quiva adiantou-se, de monculo fito,
para o
tufo de arbustos em flor. O baro e eu sentmo-nos espera, numa pedra.
O Sol
ia justamente
descendo, num grande esplendor de vermelho e ouro. O baro e eu
contemplvamos,
calados, aquela beleza de cu e luz, quando, de repente, ouvimos o
bramido de
um elefante e vimos, escura sobre a vermelhido do poente, uma vasta
forma
avanando a galope, de tromba erguida e cauda espetada. Logo
imediatamente
vimos outra coisa horrvel: o capito e Quiva, o servial zulu, fugindo
para
ns numa carreira perdida, perseguidos pelo elefante! Era o grande
bicho
ferido, o patriarca, que ali ficara errando. Agarrmos num mpeto as
carabinas. Mas qu! Fera e homens, correndo para ns, vinham juntos! Se
disparssemos, a bala podia varar Jonh ou Quiva... E assim ficmos
nesta
indeciso, com o corao a tremer, quando o pobre capito escorrega
naqueles
infames botins de bezerro com que teimava em trilhar o serto e cai,
estatelado, de face na terra, diante mesmo do enorme elefante que
chegava
bramindo!
Fugiu-nos
a respirao! O
pobre camarada estava perdido! Largmos ainda a correr para ele,
desesperadamente. E o desastre veio, com efeito mas de um modo bem
diferente. Quiva, o zulu (valente, herico rapaz que era!) vendo o amo
por
terra, volta-se e arremessa a azagaia a toda a fora contra a tromba do
elefante. A fera lana um uivo de dor, arrebata o desgraado zulu, bate
com ele
no cho, pe-lhe uma imensa pata sobre as pernas, e, enrodilhando-lhe a
tromba
no peito, rasga-o literalmente o rasga em dois.
Corremos, cheios de horror,
fizemos fogo uma vez,
outra vez, furiosamente at que o elefante se abateu como um monte
sobre os pedaos sangrentos do zulu. Foi um instante de indizvel
consternao.
Apesar de endurecido por quarenta anos de caa e carnificinas, eu
prprio
sentia um n na garganta, e creio que me fiz plido. O baro tremia
todo. E o
pobre capito torcia as mos, na dor de ver assim despedaado o servo
valente
que dera a vida por ele.
S
Umbopa teve a palavra
serena que convinha disciplina. Veio, com os seus passos altivos e
leves,
contemplar os restos de Quiva, numa poa de sangue, junto massa
enorme do
elefante, moveu a mo no ar e disse:
Morreu. Bem dele,
que morreu como um homem!
V
A NOSSA ENTRADA NO DESERTO
Tnhamos
morto nove
elefantes. Dois longos dias levmos a serrar-lhes os dentes e a
enterr-los com
cuidado debaixo de uma enorme rvore, que destacava isoladamente na
vasta
plancie e formava um sinal inesquecvel. Era um esplndido lote de
marfim!
S os dentes do patriarca pesavam (tanto quanto pude avaliar) uns
cento e
setenta arrteis!
O pobre
Quiva, esse,
sepultmo-lo ao p da colina, com uma azagaia ao lado, para se defender
dos
espritos malignos na sua difcil jornada para o Paraso zulu. Ao
romper do
terceiro dia levantmos o acampamento todos ns fazendo votos, no
silncio da nossa alma, para que nos fosse dado voltar um dia! Eu,
mentalmente,
acrescentava: Voltar e desenterrar este rico marfim!
Depois
de uma fatigante
marcha, cortada desses episdios africanos que todos os africanistas
experimentam, chegmos enfim aringa de Sitanda, ao p do rio Lucanga.
A era
verdadeiramente o nosso ponto de partida. A comeariam as nossas
misrias.
Perfeitamente
me lembro do
stio, e da nossa chegada. Para a direita descia, tresmalhada, uma
pequena
povoao de negros, com currais de gado murados de pedra solta, e
leiras de
terra cultivada ao comprido da gua clara. Por trs da aldeia ondulavam
grandes
pradarias de erva alta, onde a caa abundante esvoaava. E para a
esquerda era
o escuro, silencioso, infindvel deserto.
O nosso
acampamento ficou
junto desse riacho alegre, que corria entre arbustos em flor. Defronte
erguia-se um outeiro pedregoso. Apenas erguemos as tendas, subi l com
o baro.
Era aquele o stio, aquele o outeiro onde eu vira, havia vinte anos,
numa tarde
como esta, a figura do pobre Silveira, com o seu grande casaco
comprido,
aparecer cambaleando, toda escura na vermelhido do poente. Como ento,
o globo
do Sol, afogueado, descia j rente da terra e os seus raios
frechavam,
obliquamente, aquele deserto coberto de tojo, sombrio, sem gua, sem
vida,
terrivelmente mudo, que matara o pobre portugus, que nos ia talvez
matar a
ns. Ficmos olhando para ele em silncio. O ar era de uma admirvel
finura e
transparncia; e longe, muito ao longe, podamos distinguir, recortada
no
horizonte, palidamente azulada e com laivos brancos de neve, a
cordilheira de
Suliman. Mostrei-a ao meu companheiro:
A
entrada das
minas de Salomo l est... Chegaremos ns l?
Nesse
instante senti
algum por trs de ns respirando: era Umbopa, que trepara tambm ao
cmoro, e
considerava o deserto com pensativa gravidade. Vendo que eu reparara
nele, deu
um passo lento, depois outro mais lento. E dirigindo-se ao baro (a
quem
parecia ter-se afeioado), apontando com a sua grande azagaia para o
lado dos
montes:
para aquela
terra alm que tu vais, Incubu?
Incubu
uma palavra
do dialecto zulu que significa
elefante e que servia, entre os cafres, para designar o nosso chefe.
Estranhei a audcia de Umbopa, e perguntei-lhe asperamente que tosca
maneira
era essa de falar a seu amo... Que o negro d uma alcunha negra ao
patro, por
lhe ser mais facilmente pronuncivel que o nome v! Que a um como eu,
pobre caador que ganha o seu po, o negro se dirija sempre pela
alcunha negra
v ainda!
Mas que
a atire face de
um senhor, de um fidalgo isso no!
Fala
assim aos
teus iguais gritei eu. Fala assim aos que contigo comem da
mesma gamela!
O zulu
teve uma risadinha
doce que me enfureceu.
Que
sabes tu
acrescentou ele se eu no sou igual ao amo que sirvo? Ele
pertence a uma grande casta, pelo olhar se v logo; mas talvez eu
pertena a
uma casta maior! Pelo menos sou to forte como ele, e posso com ele
repartir o
que tenho no corao. S pois a minha boca, Macumazan! Diz as minhas
palavras
ao Incubu meu amo! E entende-as tu tambm, porque em mim s h verdade!
Fiquei
perfeitamente
indignado. Nunca um cafre me falara naquele tremendo tom!
Mas,
no sei porqu, o
maldito zulu tinha a arte de me impressionar. Alm disso, sentia uma
viva
curiosidade... De sorte que lhe traduzi as palavras, acrescentando que
a
criatura me parecia imprudente e ousada.
O
baro, porm, homem de excelente
pacincia, voltou-se sorrindo para o zulu:
para as
montanhas que vou com efeito, Umbopa! Vou em procura de um homem da
minha raa,
de um irmo meu, que atravessou este deserto, e que eu suponho estar
alm!
O zulu
moveu lentamente a
cabea:
Assim
, assim
... Encontrei um homem no caminho que me disse: H dois anos que um
branco se
meteu tambm ao deserto como ns, levando um s servial...
Nunca
mais voltaram...
Quem
te disse?
perguntei, vivamente. Porque te saem s agora essas palavras?
Onde te disseram?
Antes
de Iniati, um homem
que ele encontrara no caminho. Contara-lhe que o branco se parecia com
o chefe
Incubu, mas tinha a barba escura; e que ia seguido por um caador
bexuana
chamado Jim.
So
eles!
exclamei. No h dvida! So eles! Jim conhecia eu bem.
O baro
ficou pensativo.
Se
meu irmo tinha
decidido atravessar o deserto murmurou por fim ou o atravessou,
ou morreu. Recuar ou mudar de fito no era da tmpera dele. Ou no
vive, ou
est para l das serras.
O zulu,
que lhe seguira as
palavras com os grandes olhos brilhantes, tornou muito gravemente:
uma
longa
jornada, Incubu.
Quartelmar,
diga-lhe que no h jornada que o homem no possa empreender replicou
o
baro (que evidentemente estimava e considerava aquele singular zulu).
Nada h que o homem no possa fazer, nem desertos que no possa
atravessar, nem
montanhas que no possa subir, se puser nisso alma e vontade. O
essencial
contarmos a vida por coisa nenhuma, alegremente prontos a conserv-la
ou a
perd-la, segundo Deus ordenar.
Quando
o zulu compreendeu,
toda a face se lhe iluminou:
Grandes palavras,
meu pai Incubu! Grandes, soberbas palavras que enchem bem a boca de um
forte!
Que a vida, na verdade? a semente da erva que o vento sopra aqui e
alm. As
vezes cai em boa terra e frutifica; outras vezes, na rocha dura, e
definha... O
homem nasce para morrer. Mais tarde ou mais cedo, que importa? sempre
a
morte. Eu por mim irei contigo, Incubu! Irei por montanha e deserto, e
ser-te-ei sempre fiel...
Parou.
E subitamente
rompeu numa dessas rajadas de poesia, frequentes nos zulus, que tanto
surpreendem os que pela primeira vez as testemunham, e que, apesar de
nevoentas, redundantes e decoradas de gerao em gerao, mostram que
se a raa
no inteligente, pelo menos imaginativa.
Que
a vida
exclamava Umbopa, abrindo os braos, naquele tom cantado que os zulus
tomam nesses momentos de exaltao. Que a vida? Dizei-me,
brancos,
vs que sabeis os segredos deste mundo, e do mundo das estrelas que
brilha por
cima, e do outro mundo que est para alm das estrelas! Dizei-me,
brancos,
dizei-me o segredo da vida! Donde vem ela, para onde vai?... No
podeis, no
sabeis! Escutai ento! Ns samos da treva, e para a treva marchamos.
Como um
Pssaro acossado pela tormenta, ns samos do fundo da escurido;
durante um
momento passamos, e as asas brilham-nos luz das fogueiras; depois, de
novo e
para sempre, mergulhamos na treva! A vida o pirilampo que fulgura de
noite e
de dia negro! o hlito dos rebanhos no ar de Inverno! a sombra
que corre
sobre a relva, e que desaparece ao poente!... Calara-se, com os braos
ainda
abertos, o olhar perdido nas alturas.
s um
homem bem
singular, Umbopa! exclamou o baro, que o escutara assombrado.
O outro
pareceu acordar,
sorriu:
Creio
que nos
assemelhamos, Incubu. Talvez eu tambm v procurando um irmo entre as
gentes
que esto para l das montanhas.
Olhei
para Umbopa, com o
sobrolho franzido.
Que
gentes? Que
sabes tu das gentes que vivem para l das montanhas?
Pouco, Macumazan,
muito pouco. H para alm uma terra de feitios, de jardins, de gente
valente... H tambm uma grande estrada branca, toda de pedra. Assim
ouvi. Mas
de que vale dizer? Quem l chegar, l ver!
Aquele
homem,
evidentemente, sabia alguma coisa que no queria revelar. Ele decerto
percebeu
a minha desconfiana porque acudiu, espalmando as mos:
No
te arreceies,
Macumazan! No te arreceies! No abro covas, para que tu caias dentro.
Se
chegarmos a atravessar o deserto, eu te contarei o que sei. Mas a morte
est l
com uma lana, nossa espera. Melhor te fora, Macumazan, voltar aos
teus
elefantes... Falei o que tinha a falar.
E
meneando a azagaia
maneira de saudao, desceu o cmoro, recolheu ao acampamento onde
da
a instantes o encontrmos limpando uma carabina, atento, calado, como
qualquer
servo cafre vazio de pensamento e vontade.
Homem
extraordinrio! murmurou o baro.
Extraordinrio de
mais! No gosto nada daqueles mistrios... Mas, enfim, ns estamos
metidos numa
aventura fantstica, e um zulu misterioso de mais ou de menos no tira
nem pe.
Na
manh seguinte
comemos os preparativos para a marcha. Era impossvel naturalmente
levar
connosco, atravs do deserto, todo o pesado armamento, e as cantinas.
Fomos
portanto forados (depois de abandonar os carregadores) a confiar tudo
a um
velho cafre, um atroz sacripanta, que possua ali uma aringa
considervel. Bem
penoso me era abandonar as nossas magnficas armas merc daquele
velho
malandro cujos olhos se fixavam j nos nossos bens com um fulgor de
cobia e rapina. Tomei por isso as minhas precaues.
Comecei
por carregar as
espingardas. Depois declarei ao bandido, num tom cavo, que aqueles
canos
estavam enfeitiados e que se ele lhes tocasse ali (mostrei o
gatilho)
os demnios fugiriam de dentro despedindo um raio! Imediatamente (como eu
calculara) o cafre puxou o gatilho
a uma carabina Express. E o raio
partiu. Partiu,
com tanta
felicidade, que matou uma vaca que pastava pacificamente a distncia,
beira
de gua e atirou o velho de pernas ao ar, com a inesperada fora do
recuo. O pavor do malandro foi indizvel. Tremia todo, dava pulos em
volta da
vaca morta (que depois, mais tranquilo e com toda a impudncia, queria
que lha
pagasse), olhava para o cu, olhava para o cho... Por fim rompeu aos
berros:
Tirem
esses
demnios que estoiram! Ponham-nos l em cima, sobre o colmo!.... Ai,
que no
fica vivo nenhum de ns!
Apenas
ele serenou,
continuei a minha prdica. Afirmei-lhe, com olhares esgazeados, que, se
ao voltarmos,
uma s arma daquelas faltasse, eu, que possua as artes dos brancos, o
mataria
a ele e a toda a sua gente por meio de bruxarias sangrentas; e que se
ns
morrssemos e ele tentasse apoderar-se do que era nosso, eu voltaria em
esprito persegui-lo, puxar-lhe de noite pelos ps, tornar-lhe o gado
bravo,
dessorar-lhe o leite fresco, secar-lhe a semente da terra e fazer a
vida na aringa to dura e terrvel que seus prprios filhos o
amaldioariam...
Enfim, dei-lhe uma ideia razovel do Inferno, como horrores inditos. O
velho
malandro, espavorido, jurou que olharia pelas nossas armas como se
fossem os
ossos de seu pai! Era um patife infinitamente supersticioso.
Em
seguida combinmos o
que ns cinco o baro, o capito John, eu, Umbopa e Venvogel
devamos levar connosco atravs do deserto. Muito calculmos, muito
experimentmos. No logrmos chegar a um peso menor de quarenta
arrteis por
homem. E havia escassamente o necessrio! Eis aqui o que conduzamos:
Cinco
espingardas
com a competente munio (quatrocentas cargas);
Trs
revlveres;
Cinco
cantis de gua, de
cinco quartilhos cada um;
Cinco
mantas;
Vinte e
cinco arrteis de biltong
que uma
espcie de
carne seca;
Dez
arrteis de contas de
vidro para presentes aos indgenas; Navalhas, fsforos, um compasso, um
filtro
de algibeira, uma enx, uma garrafa de conhaque, tabaco e os fatos
que
tnhamos no corpo.
Era
tudo: e era pouco,
como necessidade e conforto, numa semelhante empresa! Ainda assim peso
considervel para cinco homens acarretarem, por um sol terrvel,
atravs de um
deserto estril!
Depois,
com imensas
dificuldades, persuadimos trs negros da aldeola a acompanharem-nos
durante
vinte milhas, levando cada um s costas uma larga cabaa de gua
fresca. O meu
fim era podermos encher de novo os cantis, depois da primeira noite de
marcha
(porque decidramos partir na frescura da noite). Os negros, a quem eu
contara
que amos caar o avestruz, no acreditaram: tinham por certo que
morreramos
de sede e de fome no grande serto; eles prprios temiam a morte e os
demnios
que vagam no deserto; e s consentiram em nos seguir a troco de trs
facas de
mato e de uma manta vermelha.
Durante
todo esse dia
descansmos e dormimos. Ao pr-do-sol celebrmos um grandioso jantar,
de caa,
de carne fresca e de ch o ltimo ch, observou John com
melancolia,
que naturalmente beberamos por longos meses. Depois, apetrechadas as
mochilas, espermos que nascesse a Lua. Perto das nove horas subiu ela,
em toda
a sua serena e pensativa glria, inundando de luz branca e vaga todo o
imenso
deserto, que parecia to mudo, solene, impenetrvel e virgem de pegadas
humanas
como o claro firmamento que por cima resplandecia. Com a Lua que se
erguia nos
erguemos ns tambm. Tudo estava pronto, os negros de cajado na mo e
todavia,
hesitvamos ainda, como o fraco homem hesita sempre. perante o
irrevogvel.
Lembro-me bem. Adiante de ns alguns passos, Umbopa, de azagaia na mo,
com a
carabina a tiracolo, olhava fixamente para o deserto; atrs de ns, num
grupo,
Venvogel, com os trs negros que levavam as cabaas de gua, esperavam,
direitos e mudos; e ns trs, os homens brancos, muito juntos,
sentamos bater
forte o corao.
De
repente, o baro tirou
devagar o chapu. E com profunda emoo:
Amigos, vamos
comear uma das mais estranhas jornadas que homens tm ousado tentar. O
que
ser de ns, no sei; mas, para bem ou para mal, juntos estamos, juntos
nos
encontraremos sempre! E agora, antes de partir, ergamos o pensamento
para
Aquele que tudo pode!
Escondeu
a face entre as
mos, ficou imvel. O capito John e eu baixmos tambm a cabea, com
reverncia, com humildade. Eu, por mim, confesso, nunca fui homem de
oraes.
Caadores de elefantes, na dura vida de frica, raro se lembram de
falar a
Deus. Em todo o caso, naquele momento, rezei. Rezei com fervor; e
senti-me
depois mais alegre e mais leve. Creio que o capito (religioso no
fundo, apesar
de praguejar medonhamente) tambm rezou. O baro, esse, era homem de
piedade e
crena... Quando destapou o rosto, olhou em redor, ergueu o brao e
com
um belo ar de resoluo e de esperana
Pronto?... Larga!
Os
bordes ressoaram na
terra dura e largmos.
Para
nos guiar no deserto
tnhamos apenas as distantes montanhas de Suliman e o roteiro que o
velho D.
Jos da Silveira traara no pedao de camisa. Cada um de ns trazia na
algibeira uma cpia desse mapa rude. Mas, considerando que essas linhas
tinham
sido riscadas por um homem meio morto, h trezentos anos era bem
certa
a sua utilidade? A nossa salvao, naquela jornada, seria encontrar a
lagoa, ou
poa de gua salobra que o velho fidalgo portugus marcara a meio
caminho entre
a aldeia donde partramos e as serras de Suliman. Se a no achssemos,
tnhamos
certa a morte, uma morte terrvel, a morte pela sede. E, para mim, a
probabilidade
de descobrir uma lagoa de trs ou quatro metros naquela vastido de
areia e
tojo, parecia-me mnima, infinitsima. Mesmo supondo que o portugus a
marcara
com exactido quem nos afianava que, nesses trezentos anos, ela no
secara ou no fora coberta pelas areias movedias?
Era
nisto que eu pensava
enquanto silenciosamente, como sombras, amos marchando sob o luar
silencioso. O caminho no era fcil: o tojo denso e espinhoso
retardava-nos o
passo; a areia metia-se nos sapatos, e cada meia hora devamos parar
para os
esvaziar; e, apesar de a noite no estar quente, havia alguma coisa de
pesado e
de espesso, que amolentava. Mas o que sobretudo nos oprimia era a
solido, o
silncio o infinito, terrvel silncio. John ainda tentou assobiar
uma
cantiga galante de bordo. Mas a toada jovial, o estribilho de teus
doces
olhos, parecia
lgubre naquela
severa imensidade. O engraado homem emudeceu. E seguimos numa fila
muda
atravs do mato mudo.
Perto
da meia-noite,
sobreveio uma aventura que nos assustou e depois nos divertiu
imensamente. John, como marinheiro, levava a bssola, e marchava
adiante,
guiando. De repente ouvimos um berro John desaparece! Ao mesmo tempo
rompia, em torno de ns, uma balbrdia medonha de roncos, bufos,
grunhidos,
sons de patas fugindo e vemos formas, como garupas, galopando atravs
do tojo, entre rolos de areia. Os negros atiraram-se ao cho, gritando
que eram
demnios acordados! Eu prprio e o baro ficmos surpresos e o
nosso
assombro cresceu quando avistmos John, aparentemente montado num
potro,
fugindo aos gales para o lado dos montes, e ganindo como um
desesperado. Um
momento mais e vemo-lo sacudir os braos no ar, e de novo
desaparecer,
no mato baixo, com um baque tremendo. Corremos para ele e percebemos o
caso estranho:
tnhamos ido cair no meio de um rebanho de zebras adormecidas; John
estatelara-se exactamente sobre as costas de uma enorme; e o bicho,
pulando
espavorido, abalara com o nosso amigo nas ancas. Felizmente no se
magoara no
tombo final: fomos dar com ele sentado na areia, de monculo firmemente
cravado
no olho, aturdido, indignado mas intacto de pele e osso.
Depois
disto marchmos
sossegadamente at perto das duas horas da noite.
Fizemos
ento uma paragem,
bebemos uns goles de gua (no muitos, nem largos, porque a gua
passava a ser
preciosa) e ao fim de trinta minutos de descanso recomemos a caminhar
para
diante, para diante sempre, at que o nascente se tingiu de laivos de
rosa.
Vimos as estrelas desmaiar, vivas barras alaranjadas alongarem-se ao
rs do
horizonte, a Lua declinar mais lvida que um crio, longos raios de luz
varar e
colorir de fogos os nevoeiros, todo o deserto cobrir-se de uma trmula
refraco de ouro e ser dia!
No
parmos, apesar de j
cansados pela certeza de que bem cedo o Sol, nado e alto, nos
impediria
de dar um passo nico, sob o seu trrido esplendor. Com efeito, s seis
horas
j ardia! Por felicidade avistmos ento na plancie um monto de
rochas. Para
l nos arrastmos, exaustos. E por felicidade maior, uma enorme lasca
de pedra,
pousada sobre grossos blocos, fazia como um telheiro, cuja sombra caa
sobre um
pedao de areia fina. Abrigo providencial! Ali nos aninhmos; e, depois
de
beber alguns goles de gua bem contados e de comer uma lasca de biltong,
adormecemos
deliciosamente. s trs horas
acordmos. Os carregadores que tinham trazido as cabaas j se
preparavam para
voltar sua aringa. De sorte que absorvemos uma farta tarraada de
gua,
enchemos de novo os cantis, e distribumos pelos homens as facas de
mato prometidas.
Da a instantes vimo-los (no sem uma vaga melancolia) voltar costas ao
deserto
e romper a marcha para o lado da sua aldeia, para o lado da frescura e
da gua!
s quatro e meia metemos de novo a caminho. A cada passo, tudo de redor
se
parecia alargar em silncio e desolao. Ao princpio ainda avistmos,
aqui e
alm, entre o mato, um avestruz. Depois, nem mesmo rpteis topvamos na
plancie arenosa. A nossa nica companhia era a mosca, a mosca
ordinria e
caseira... Digno e venervel animal! Em qualquer lugar em que o homem
penetre,
deserto, montanha, caverna a mosca l est. Foi este decerto o
primeiro
dos seres vivos que surgiu sobre a Terra. J havia moscas para pousar
no nariz
de Ado. O derradeiro homem h-de morrer com uma mosca a zumbir-lhe em
torno da
face. E talvez haja moscas no Paraso.
Ao
sol-posto parmos,
esperando que nascesse a Lua. Mais bela e serena que nunca surgiu ela
s dez
horas e toda a noite, sob o seu calmo e pensativo brilho, na mudez da
vastido, caminhmos, caminhmos... O Sol nado ps um termo valente
marcha.
Sorvemos por conta uns goles de gua dos cantis, atirmo-nos para cima
da
areia, e ali nos tomou o sono a todos quatro simultaneamente. No havia
necessidade que um velasse. Nada tnhamos a recear, nem de homem nem de
fera,
naquela imensidade despovoada. Desta vez, porm, nenhuma rocha nos
abrigava
e s sete horas acordmos sob o Sol faiscante, com a sensao que
deve
experimentar um bife de lombo achatado sobre a grelha. Estvamos sendo fritos!
O Sol por cima,
a areia por
baixo, secavam-nos o sangue nas veias. Todos nos erguemos, de salto,
quase sem
respirao.
Santo
Deus!
murmurou o baro, sacudindo os enxames de moscas.
Pode-se chamar a
isto calor! gemeu do lado o capito, que arquejava. Podia chamar, na
verdade. E eram apenas sete horas! Em toda a vasta extenso nem um
abrigo! S
mato rasteiro e por cima uma vibrao radiante, to viva e intensa
que
vamos tremer o ar.
Que
se h-de
fazer? exclamou o baro. impossvel aguentar isto!
Olhmos
uns para os
outros, estupidamente.
Se
abrssemos uma
cova? lembrou John. Podamos meter-nos dentro e cobrir-nos com
tojo... uma ideia.
No
brilhante! Mas era a
nica de modo que, j com a enx, j com as mos, passmos a abrir
uma
cova do tamanho aproximado de uma larga cama. Cortmos uma
poro de mato; e ali nos sepultmos,
colados como sardinhas numa caixa, todos quatro, o baro, John, eu e
Umbopa
porque Venvogel, como hotentote, no sentia os ardores do sol. Foi
ele
que nos cobriu de mato. Realmente, assim, estvamos ao abrigo dos raios
perpendiculares do Sol mas que pavorosa ardncia a daquela fossa, em
que cada torro, junto do corpo, era como uma brasa viva! No
compreendo como
nos desenterrmos vivos. Dormir, impossvel! Jazamos estendidos,
hirtos, sem
ter j que suar, quase curtidos, arquejando ansiosamente. S possuamos
o
consolo de humedecer, de vez em quando, os beios com uma gota de gua
muito
medida! Esta avara medio da gua era o tormento maior. A cada
instante
necessitvamos recalcar a furiosa tentao de sorver de um s trago os
quatro
cantis. Mas qu! se a gua faltasse breve viria a morte!
Tudo
tem um fim neste
mundo, diz a sabedoria oriental, contando que se possa esperar.
Espermos: a
horrvel, interminvel manh passou; e pelas trs horas preferimos
encontrar a
morte, andando (se a morte tinha de vir) a ser por ela lentamente
envolvidos
naquele infame buraco. Reconfortmo-nos com um curto sorvo nossa gua
que diminua terrivelmente, e subira j temperatura do sangue. E com
um
esforo rompemos de novo atravs da plancie flamejante.
Tnhamos
transposto umas
dezassete lguas de ermo. Ora no roteiro do velho D. Jos da Silveira,
a total
extenso do deserto estava fixada em quarenta lguas; e a famosa poa
de gua salobra
vinha marcada a meio do deserto. A esse tempo, portanto, devamos estar
a umas
trs lguas da gua se a gua existia! Em toda a tarde, porm,
fizemos
pouco mais de uma milha por hora. Ao pr-do-sol parmos espera da Lua.
Deixei-me
cair para o cho,
como um morto, cerrei os olhos. Mas da a um instante Umbopa fez-me
erguer e
notar, distncia de oito ou nove milhas, uma espcie de outeiro
redondo e
liso que se erguia, abruptamente, na plancie rasa. No parecia uma
elevao
natural de terreno, na sua semelhana estranha com uma metade de
laranja.
Quando me tornei a deitar adormeci logo, murmurando: Que ser?...
Ao
romper da Lua de novo
partimos, j alquebrados de cansao e de sede. O andar franco e firme
acabara
para ns. Era agora um arrastar de passos quase cambaleante, com
paragens
bruscas de meia em meia hora, em que caamos para cima da areia, sem
fora, de
corao desmaiado. Nem nimo nos restava para conversar. At a ainda
gracejvamos, heroicamente. John sobretudo jovial camarada! Mas agora!
Nem voz tnhamos para gemer!
Finalmente,
perto das duas
horas, vencidos de corpo e de alma, chegmos ao p do cmoro estranho.
Era uma
espcie de duna de areia, escura, lisa, atarracada, da altura de uns
trinta
metros, e cobrindo na base duas jeiras de terreno. Parmos. E
desesperados com
a sede, sorvemos o resto da gua. Tnhamos meio quartilho por boca!
Podamos
ter emborcado um almude!
Cada um
em silncio se
estendeu para dormir. Eu fechava os olhos, resvalava j docemente no
esquecimento e no sonho, quando ouvi Umbopa ao meu lado murmurar para
si
prprio em zulu:
O que
a vida! Se
amanh no achamos gua, a Lua, ao nascer, encontra aqui quatro
mortos... Vida,
sombra que passa! Vida, murmrio que finda!
Apesar
do calor senti um
arrepio. Pois tanta era a fadiga, que confortado por esta probabilidade
(uma
agonia de sede num deserto de areia) adormeci profundamente. Eram
quatro da
manh quando acordei. E, bruscamente, entrou comigo a tortura da sede.
Estivera
todo o tempo
sonhando que passeava beira de um regato de gua, muito puro e muito
frio,
bordado de relvas e de grandes rvores de frutas... Quando me ergui,
esfreguei
a face com ambas as mos; mos e faces pareceram-me mais secas e duras
do que
couro; e as plpebras e os beios estavam to pegados, to colados, que
tive de
os descerrar fora com os dedos, como se os unisse uma cola forte. A
madrugada ainda vinha longe; mas no reinava no ar a natural frescura
matutina,
antes uma espessura mole e morna intoleravelmente pesada. Os outros
dormiam...
Fiquei calado, olhando em redor a desolada solido. E pouco a pouco
comecei a
sentir de novo, junto de mim, o murmrio fresco do regato que corria, o
ramalhar da verdura, pios de aves, e toda uma sensao de paz, de
sombra, de
abundncia, que me fazia sorrir sozinho num imenso contentamento... Ao
mesmo
tempo tinha a certeza do deserto e da aridez que me envolvia. Creio na
verdade
que delirei!
Voltei
a mim, quando os
outros em redor se comearam a mexer, erguendo-se devagar sobre o
cotovelo,
esfregando como eu as faces ressequidas, separando fora, como eu, os
lbios
sem saliva e mirrados. J rompia a claridade. Apenas acordados todos, e
conscientes, comemos a falar da nossa situao que era sombriamente
desesperada. No nos restava uma gota de gua! Voltmos os cantis para
baixo,
chupmos-lhes os gargalos. Mais secos que ossos! O capito John, que
guardara a
garrafa de conhaque, sacou-a da mochila, consultou-nos com um sedento
olhar.
Mas o baro arrancou-lha das mos. Beber lcool, naquele estado?... Era
a
morte.
Mortos estamos ns
murmurou o capito encolhendo os ombros se daqui noite no
achamos gua!
Se o
roteiro do
portugus estivesse exacto disse eu suspirando a poa de gua
devia aparecer por aqui algures... Foi nesta altura exactamente que ele
a
achou...
Os
outros nem responderam.
Realmente, nenhum de ns tinha j confiana no roteiro do velho
fidalgo. Mesmo
que a poa existisse como encontrar nessa imensido o stio exacto e
preciso onde ela estaria, mais pequena e perdida do que uma moeda de
prata numa
praia de areia? S por um bambrrio! Ou s se ela jazesse junto de
acidente do
terreno, que pela sua especial salincia, na vasta plancie,
inevitavelmente
atrasse os olhares e os passos.
A
claridade ia crescendo;
e quando assim estvamos, lanando conjecturas, nesta terrvel
ansiedade
reparei que o nosso hotentote Venvogel andava a distncia, com os
olhos
no cho, lentamente, como quem procura um rasto... De repente parou,
soltou um
grito, com o brao espetado para a terra.
Que
?
exclammos todos.
E
corremos
alvoroadamente.
Pegadas de coro!
bradou ele em triunfo, apontando para o cho.
E
ento?
Coros nunca andam
longe de gua!
verdade!
gritei eu. E louvado por isso seja Deus!
Foi
como se renascssemos
vida. No era ainda a gua mas a esperana dela, para breve! E numa
crise aflitiva como a nossa, uma esperana, por mais vaga e tnue, vale
sobretudo pela coragem de que enche logo a alma.
Venvogel,
no entanto,
comeara a andar em redor, com o nariz erguido (o seu largo nariz mais
chato
que o de um bull-dog), sorvendo
o ar quente, farejando.
Cheiro gua!
dizia ele cheiro gua!
E ns
todos atrs dele,
farejando tambm, quase j vamos a gua sabendo bem que estes
hotentotes, como todos os
selvagens, possuem um faro maravilhoso. Mas nesse instante, os grandes
raios do
Sol que nascia bateram-nos o rosto. E olhando, descobrimos uma to
grandiosa
paisagem, que por um momento esquecemos a gua e os tormentos da sede!
Diante
de ns, a umas dez
ou doze lguas, rebrilhando como prata nos primeiros raios do dia,
erguiam-se
os dois enormes montes que o portugus chamara os Seios de Sab; e de
cada
lado deles, estendendo-se sem fim, durante centenas de milhas, a vasta
cordilheira de Suliman! No possvel transmitir, no verbo humano, a
incomparvel grandeza e beleza daquele quadro de montanha!
Ali
estavam as duas
enormes serras que no tm iguais na frica, nem creio que no resto do
mundo,
medindo pelo menos mais de quinze mil ps de altura, emergindo da
cordilheira
infinita brancas, mudas, de portentosa solenidade, enchendo o cu at
acima das nuvens. E o que esmagava a alma, era a assombrosa estrutura.
A
cordilheira estendia-se como um muro disforme de granito, da altura de
mil ps:
as duas serras formavam como os dois torrees de uma porta, perdidos
nas
profundidades; a parte da serra que separava os dois montes, sendo
talhada a
pique, lisa e rigorosamente horizontal no alto, reproduzia a
configurao de
uma porta prodigiosa e o aspecto todo era como o de uma muralha
cercando uma cidade fabulosa de sonho ou de lenda! Bem justamente
chamara o
velho fidalgo portugus aos dois montes Selos de Sab! Tinham, com
efeito, a
forma perfeita de dois peitos de mulher: as suas vastas faldas iam
subindo da
plancie, numa curva doce e tmida, parecendo quela distncia
formosamente
redondas e lisas; e no cimo de cada uma, um imenso outeiro sobreposto,
todo
coberto de neve, semelhava exactissimamente a ponta, o bico de um peito.
Prodigiosa
estrutura! Se a
Terra, como pretendia a antiga mitologia, uma mulher, a enorme Cibele
a estavam decerto os seus peitos ubrrimos! Mas minha imaginao
(nunca
muito inventiva, mas perturbada e excitada nesse momento pela fraqueza)
aquilo
tudo se afigurava uma muralha estupenda, cercando e defendendo uma
regio de
infinito mistrio; e a cada instante me parecia que a porta de granito
ia
rolar, abrir-se com fragor, e desvendar algum segredo secular o
segredo
talvez da Terra de frica! E o mais extraordinrio foi que, enquanto
assim
contemplvamos assombrados, comearam a subir, a aglomerar-se em torno
aos dois
montes, lentas e estranhas nvoas e nuvens, como para esconder aos
nossos olhos
mortais a majestade daquele dito, que uma vontade divina nos deixara
por um
momento entrever. Da a pouco, os Selos de Sab estavam envolvidos de
todo, sob
o mstico vu atravs do qual s podamos distinguir agora as suas
linhas, formidavelmente espectrais!... Depois, mais tarde,
descobrimos que esses montes, em
tudo singulares, estavam ordinariamente velados por esta curiosa nvoa,
como
por uma cortina de sacrrio. S a certas horas, ao romper do Sol, a
cortina se
descerrava, como numa celebrao, desvendando aos homens a maravilha
sem par.
Passada
a violenta
surpresa, de novo nos considermos com a mesma ansiosa interrogao:
Que
fazer? Venvogel insistia, convencido, que lhe cheirava a gua mas debalde buscvamos,
trilhvamos o
terreno em redor, esquadrinhvamos atravs do mato. Nada! S a areia
ondulando,
com manchas de matagal. Demos a volta toda ao singular outeiro onde
parramos
de noite. Avanmos para os lados, em todas as direces do vento, com
atentos
e lentos passos, e olhos sfregos que furavam a terra. Nada! Nenhum
vestgio de
uma nascente, de uma poa, de um charco. S areia, rido tojo.
Idiota!
gritei eu desesperado com o hotentote. No h, nunca houve aqui gua!
Naquela
spera, rida
imensidade no parecia, com efeito, haver possibilidade, nem sequer
verosimilhana de gua... E quanto tempo de resto poderia durar ali uma
poa
salobra, como a que encontrara o velho fidalgo, sem ser chupada pelo
sol
ardente ou atulhada pelas areias movedias?
No
entanto Venvogel, o
hotentote, continuava a farejar, com as ventas erguidas e abertas:
Eu
sinto o cheiro
de gua,
patro. Sinto-a no ar!
No ar
no duvido.
H gua que farte nas nuvens! Tambm no duvido que venha a cair. Mas
h-de ser
para nos lavar os esqueletos!
O
baro, no entanto,
cofiava a barba pensativamente.
E
todavia
murmurava ele por aqui a encontrou o velho portugus! O stio este.
Foi aqui, em volta. A meio caminho exacto, na linha direita de norte a
sul, da
aringa de Sitanda s serras. aqui. Aqui esteve gua!
Sim,
mas h trezentos
anos! Em trs sculos muita gua brota e seca! Quem nos afianava de
resto a
exactido do portugus, esvado de fome, meio delirando, no comeo da
sua
agonia! J no era pequena estranheza que ele a tivesse encontrado
nesta
deserta imensidade, justamente quando dela lhe dependia a vida!... A
no ser
que para ela fosse atrado insensivelmente e naturalmente por algum
acidente de
terreno, muito saliente e muito visvel de longe como um bosque, uma
colina... Uma colina! E quando eu assim pensava, eis que o baro grita,
como
ecoando o meu pensamento:
No
alto da colina!
Talvez a gua esteja no alto da colina!
Tolice!
acudiu o capito encolhendo os ombros.
gua
no topo de
uma colina! Onde se viu isso?
Procuremos!
disse eu, com um bater de corao que era todo de esperana. Trepmos
ansiosamente pelo outeiro. Umbopa corria adiante. De repente estaca,
com os
braos no ar:
Nanzie
manzie!
Pulmos
para junto dele e com efeito, mesmo no topo da colina, numa cova
redonda como uma taa, l estava gua, gua escura, lbrega mas gua!
Agua! gua! Gritvamos de puro gozo. E num momento, estirados de
barriga no
cho, com as faces na poa, sorvamos deliciosamente, a grandes e
rpidos
sorvos, aquele lquido desapetitoso, que to bem imitava gua. Cus! O
que
bebemos! E mal findmos de beber, arrancmos o fato, saltmos para o
charco, e,
sentados nele, ficmos horas a embeber-nos de frescura atravs da pele
da nossa pobre pele mais dura e mais seca que um pergaminho secular.
Quando
nos erguemos,
refrigerados e saciados, camos sobre a carne seca. Comemos a fartar.
Uma longa
cachimbada por cima completou aquela hora de consolao. E o sono que
nos tomou
at ao meio-dia, deitados junto da poa e da sua humidade, foi profundo
e
bendito!
Todo
aquele dia tardmos
junto da gua bebendo dela, mergulhando nela, olhando para ela e
dando
louvores sem conta ao velho fidalgo, que to exactamente a marcara no
mapa. Por
fim, tendo enchido de gua os estmagos e os cantis, continumos a.
marcha, mais
animados e geis, ao erguer da Lua
cheia. Fizemos vinte e cinco milhas nessa noite. No tornmos a
encontrar gua.
Mas seguamos confiados, com a certeza de a achar, abundante e fresca,
nas
faldas das serras. Quando o Sol se ergueu e desfez as nvoas, avistmos
de novo
a cordilheira e os dois Seios de Sab (agora afastados de ns apenas
vinte
milhas), tomando o cu com a sua majestade sublime. Essas vinte milhas
cobrimo-las durante a noite. E ao outro alvorecer pismos enfim as
primeiras
ladeiras do seio esquerdo de Sab!
Com
amargo espanto no
encontrmos gua e a nossa j ia findando! No havia agora esperana de
topar
nascentes antes de chegarmos linha de neve, que branquejava l longe,
no alto
da serra; e j a sede nos comeava outra vez a torturar.
Desconsoladamente,
fomos
arrastando os passos por sobre o trrido cho de lava que formava a
base do monte.
Caminhada atroz! Pelas onze horas da manh, apesar de curtos repousos,
estvamos exaustos por causa sobretudo dos ladrilhos de lava, speros
e
rugosos, que nos magoavam horrivelmente os ps. De sorte que,
descobrindo a
umas trezentas jardas acima grossos pedregulhos de lava, decidimos
descansar
umas fartas horas sua sombra providencial. Para l nos empurrmos,
por l nos
abrigmos. E no foi pequena surpresa (se ainda nos restava a faculdade
de
experimentar surpresa!) avistar a pequena distncia, num planalto
formando
terrao sobre um barranco, uma extensa e fresca tira de verduras.
Evidentemente
a lava, decompondo-se, formara ali um cho de terra, onde as sementes
trazidas
por pssaros tinham alastrado e verdejado...
Demos,
porm, pouca
ateno a essas ervagens, porque no havia l nem fruto nem gua e de
relva s Nabucodonosor se conseguiu alimentar. Ali ficmos, pois,
estirados
sombra dos pedregulhos, sem fora no corpo e sem esperana na alma,
pensando
que nunca homens de senso se tinham arriscado a mais estril, mais
absurda
aventura! Umbopa, no entanto, depois de considerar algum tempo em
silncio a
leira de verduras, caminhara para l lentamente. E qual no o meu
assombro ao
ver aquele indivduo, ordinariamente to composto e grave, romper em
pulos
frenticos, brandindo na mo o quer que fosse de verde! Arremetemos
para ele,
na esperana ansiosa de gua descoberta.
gua, Umbopa?
gritava eu pulando por sobre a lava.
Agua
e sustento,
Macumazan! exclamava ele agitando no ar a coisa verde, com efusivo
triunfo.
Percebi
enfim o que era.
Era um melo! Tnhamos dado num meloal, um enorme meloal bravo, com
milhares de
meles, a cair de maduros!
Meles!
uivei eu para os companheiros que corriam atrs.
Meles! meles!
foi o berro vitorioso que ressoou nas quebradas.
Num
momento, cada um de
ns tinha os dentes cravados num melo, sofregamente. Comemos ali,
entre todos,
uns trinta meles; e apesar de medocres, creio que nunca nada na vida
me soube
to deliciosamente. Mas o melo no alimenta e refrescada a sede no
tardou a fome, mais intensa e aguda. Conservvamos ainda o biltong,
a carne seca;
mas j nos enjoava atrozmente; e
alm disso devamos poup-la com avaro cuidado, pela incerteza de
encontrar
outras provises na longa ascenso da serra.
Nesse
dia, porm,
estvamos em sorte, decididamente, como disse John. Lanando os olhos
para o
deserto, enquanto conversvamos sobre esta terrvel evi-dncia, a fome
vi de repente
uns oito ou dez grandes
pssaros voando em direco a ns, lentamente.
Atire, patro,
atire! exclamou baixo o nosso servo hotentote, acaapando-se
imediatamente no cho.
Os
outros agacharam-se
tambm, para que, confundidos com a cor da lava, no fssemos avistados
pelos
pssaros. Era um bando de enormes abetardas, que, no seu voo direito e
alto,
deviam passar a umas cinquenta jardas por cima das nossas cabeas.
Tomei uma
carabina Winchester, e
esperei acocorado. Quando o bando vinha perto, ergui-me, com um grito e
um
salto. Assustados, os pssaros juntaram- se todos precipitadamente em
monto; e
atirando massa escura, pude facilmente abater um soberbo bicho, que
pesava
pelo menos vinte arrteis. Dentro de meia hora ardia uma fogueira de
talos
secos de melo, e o bicho alourava em cima. Foi um banquete! Comemos
aquela
abetarda toda, fora carcaa e bico!
Nessa
noite continumos a
ascenso do monte, luz da Lua, carregados de meles para a sede. A
maneira
que subamos, o ar esfriava consoladoramente. Ao clarear do dia
estvamos a
umas doze milhas da linha de neve. Encontrmos mais meles; e a gua
enfim,
louvado Deus, j no nos inquietava, porque bem cedo penetraramos nas
regies
do gelo. No entanto, era imenso o nosso pasmo de no encontrar
nascentes,
quedas de gua, um riacho corrente; porque no Vero as neves,
derretendo,
deviam encher de gua aquelas encostas. Por onde corria a gua, pois,
para onde
se sumia a gua? S mais tarde descobrimos que (por uma causa ainda
hoje para
mim incompreensvel) toda a gua, em riacho ou em queda, descia pela
vertente
norte da serra.
A
subida cada vez se
tornava mais spera e custosa. Apenas fazamos uma milha por hora. A
carne seca
acabara. Meles, nenhuns mais encontrmos. O frio aumentava quase a
cada
passada, o que nos permitia certamente caminhar de dia, mas nos
regelava de
noite, terrivelmente! Havia agora muitas horas que no comamos. A
serra subia,
subia diante de ns, cada vez mais desolada, mais nua de verdura ou
vida. Os
nossos momentos de repouso passavam num silncio sombrio e cheio de
desesperana. Eu, por mim, ia j to debilitado e confuso que, desses
trs dias
que nos levou a ascenso da serra, no me recordo com bastante nitidez
e s poderia reconstru-los pelos apontamentos do meu Dirio. Na nota com data de 22 de Maio
encontro isto:
Partimos ao nascer do Sol. Vamos meio desmaiados de fraqueza. S
quatro milhas
andadas.
Comemos
os pedaos de neve
que comemos a encontrar. Frio intenso. Cada um de ns bebe uma gota
de
conhaque. Para dormir, amontomo-nos uns sobre os outros: nem assim
conservmos
calor. Estamos verdadeiramente sofrendo de fome. Julguei que Venvogel, o nosso
hotentote, ia morrer esta
noite. Tudo isto j terrvel. Mas o seguinte apontamento, datado
de
23 de Maio, recorda sofrimentos mais vivos: Estamos numa situao
medonha. A
no ser que encontremos que comer hoje, o nosso fim est prximo. O
conhaque
acabou. Venvogel que, como todos os hotentotes, no pode aguentar frio,
parece
perdido. As nsias agudas da fome passaram. O que eu sinto ( e os
outros dizem
que sentem o mesmo) uma espcie de adormecimento, de torpor no
estmago.
Estamos ao nvel da grande escarpa, que eu chamo a porta, o colossal muro de terra, lava
e rocha, que liga
os dois Seios de Sab. Para trs de ns estende-se o deserto que
atravessmos... Para que o atravessmos ns? Logo abaixo destas linhas
h
outra, escrita decerto num dos momentos em que parvamos: Deus se
amerceie de
ns, que chegou o nosso fim!
Esta
linha no tem data,
mas Sem dvida foi traada no dia 24. Depois, os apontamentos falham;
mas eu
muito bem me recordo dos sucessos nesse estranho dia. amos ento
caminhando
atravs da neve, com paragens incessantes, impostas pela incomparvel
fadiga.
Tudo em redor era radiantemente, indescritivelmente branco. E esta
absoluta
brancura, sob o absoluto silncio, tornava-se tanto mais desoladora,
quanto
evidenciava a ausncia de vida e a impossibilidade de achar que
comer,
fosse animal ou planta. Quase ao pr-do-sol chegmos junto da ponta do
seio,
dessa enorme colina de neve dura, que, pousada no topo da montanha (da
montanha
que reproduzia a forma perfeita de um seio), parecia ela prpria o bico
desse
peito descomunal. Apesar de exaustos, prendemo-nos um instante na
admirao
daquele esplndido cume de monte mais esplndido ainda pela luz
vermelha e cor-de-rosa em que os raios do Sol poente o envolviam,
dando-lhe um
tom de carne, de uma carne sobrenatural que de si irradiasse luz. Mas a
admirao no podia durar em homens colocados, como ns, a to extrema
vizinhana da morte. O nosso mal era sobretudo o frio. Bem comidos,
estimulados
por um vinho generoso, ainda poderamos aguentar a pavorosa temperatura
daquelas neves eternas. Mas assim, moribundos de fome como resistir
noite que vinha caindo? Quando o sol nos faltasse, como viveramos, a
menos de
encontrar um abrigo? Abrigo!... Onde estava ele, nessa branca e lisa
vastido
de neve?
A
cova de que fala
o portugus, no papel, deve ser por aqui murmurou o capito John.
Pobre
John! Tinha os olhos (como os outros, como eu decerto) encovados,
esgazeados,
rebrilhantes de febre, sobre a lividez da face hirsuta. Considerei um
momento o
pobre amigo, encolhendo os ombros.
Cova!
Se tal cova
existe... Na cova estamos ns, ou beira dela.
O
baro, porm agora
acreditava firmemente na escrupulosa exactido do velho D. Jos da
Silveira.
Se ele a achou (argumentava o baro, e com razo) que essa cova est
situada
de tal sorte, to saliente e to visvel, que no pode deixar de atrair
os
olhos, e logo os passos de quem for trepando a serra.
Ainda
a encontramos,
e antes do sol-posto! afirmou ele, com um grande gesto de esperana.
Se a
no
encontramos foi a minha consoladora rplica e a noite vier
sobre ns, assim desabrigados, o fim da nossa aventura. Em todo o
caso, real
ou metaforicamente, a cova!
Durante
dez ou doze minutos arrastmos os passos num silncio mortal. Umbopa ia
adiante, com os ombros abafados na manta curta, e um cinto de couro
muito
apertado, arrochado em volta da cinta para encolher a fome. Eu seguia
atrs,
quase vergado em dois. De repente tropecei nele, que parara, e que me
agarrou
pelo brao:
Macumazan, acol!
exclamou surdamente, apontando com o cajado.
O que
ele apontava era a
linha abrupta onde comeava, subindo, a primeira encosta do bico do
peito. E
a, na brancura da neve, destacava uma mancha preta.
a caverna! exclamou Umbopa.
Talvez
fosse! Parecia, com
efeito, a abertura negra de um buraco. Para l endireitmos os passos.
E na
realidade encontrmos uma gruta, de entrada baixa e lbrega, que bem
podia ser
a que o velho D. Jos da Silveira marcara no seu roteiro. Em todo o
caso ali
estava um abrigo. E bendito era o seu encontro porque (como sucede
nestas latitudes) o Sol sumiu-se subitamente, e logo atrs dele, de
golpe, sem
crepsculo, sem gradao, a noite caiu, gelada e negra. Enfimos bem
depressa
para dentro da caverna, como animais acossados. Aconchegmo-nos uns
contra os
outros, sentados no cho, costas com costas. E ali ficmos na treva,
mudos,
tiritando e procurando esquecer no sono a nossa extrema misria. Mas o
frio,
intenso de mais, no nos consentia dormir. Estou convencido que,
naquela
altura, o termmetro marcaria regularmente catorze ou quinze graus
abaixo de
zero! E era esta temperatura que tnhamos de afrontar, de todo
alquebrados de
fadiga, meio inanimados de fome!
Pois
ali estivemos em
monto, encolhidos uns nos outros, durante a infindvel noite, sentindo
a cada
instante, atravs do corpo, comeos de congelao ora num p, ora nos
dedos,
ora na orelha. Debalde nos apertvamos! Para qu! Nenhum tinha em si
calor
bastante para comunicar carcaa alheia. s vezes um conseguia
dormitar
durante momentos, mas para acordar logo em sobressalto, recomear a
tremer. De
resto, naquelas condies, o sono que se prolongasse decerto se
tornaria eterno. Foi uma noite angustiosa! Eu, por mim, creio que me
conservei
vivo por um violentssimo e teimosssimo esforo da vontade.
Um
pouco antes da
madrugada, Venvogel, o nosso pobre hotentote, cujos dentes toda a noite
tinham
batido como castanholas, chamou baixo por mim, deu um pequeno suspiro,
e ficou
profundamente sossegado, como se tivesse adormecido. As costas dele
pousavam
contra as minhas costas. Pareceu-me que as sentia pouco a pouco
arrefecer. Por
fim tomaram-se, positivamente, como uma grande pedra de gelo que me
regelava.
Duas vezes as repeli. Duas vezes a pedra se abateu sobre mim, mais fria.
O ar, no entanto,
clareava. A entrada da cova foi aparecendo como uma nvoa luminosa,
feita de
refraco do sol sobre a neve. Uma luz mais viva e fixa estendeu para
dentro a
sua brancura e olhando ento para trs, descobri que o pobre
hotentote
estava morto!
Decerto
morrera quando o
ouvi suspirar. Pobre Venvogel! No admirava que lhe tivesse sentido as
costas
cada vez mais frias, mais frias... A sua misria findara. Ali estava
agora, na
mesma postura, com as mos apertadas em torno dos joelhos, a cabea
cada para
baixo, gelado. Todos nos
erguemos de salto, com horror. J a esse tempo o dia penetrara na
caverna, numa
luz mortia e vaga. De repente, ao meu lado, ressoou um grito. Volto a
cabea
vivamente. E vejo vejo ao fundo da gruta, que no tinha mais de
quatro
metros, uma forma, uma figura humana, sentada numa pedra, com a cabea
toda
descada sobre o peito, os braos hirtos e pendentes para o cho.
Aproximei-me
mais, aterrado. E percebi que era tambm um morto. Pior ainda, percebi que era um branco!
Os nossos nervos, desorganizados
j, no puderam
com esta nova e brusca emoo. Tropeando uns nos outros, largmos
desesperadamente a fugir para fora da caverna.
Mas
depois, fora, na plena
luz, olhmos uns para os outros envergonhados.
Vou
ver outra vez
exclamou o baro, terrivelmente plido. Talvez a figura que
vimos seja a de meu irmo.
Era
possvel. E um por um,
num silncio apavorado, atrs do baro, tornmos a penetrar na gruta.
Ao
princpio, deslumbrados pela grande luz exterior e pela alvura da neve,
nada
distinguamos na penumbra cncava. Por fim a estranha, horrvel figura
destacou, surgiu na sombra. Avanmos para ela. O baro ajoelhou,
espreitou a face
morta, teve um suspiro de alvio:
No,
graas a
Deus, no ele!
Fui
tambm olhar. No, nem
remotamente se parecia com esse sujeito chamado Neville, que eu
encontrara em
Bamanguato. O cadver era o de um homem alto, de meia-idade, com
feies
aquilinas, cabelo j grisalho, e longos bigodes negros. A pele,
perfeitamente
amarela, estava toda esticada sobre os ossos. No tinha fato, a no ser
uns
restos de meias altas, de l, at aos joelhos. Do pescoo, preso por
uma
correntezinha, pendia-lhe um crucifixo de marfim. Todos os membros
hirtos se
lhe tinham petrificado.
Quem
poder ser?
murmurei, assombrado.
O
capito John contemplava
a figura, pensativamente.
Tenho
uma ideia...
No pode ser seno ele! o velho fidalgo! D. Jos da Silveira!
Eu e o
baro soltmos o
mesmo grito de incredulidade:
Impossvel! H
trezentos anos!
Mas o
capito tinha as
suas razes, e decisivas. Numa temperatura como a da cova, que a de
uma
geleira, um corpo morto pode perfeitamente conservar-se trezentos anos
mesmo trs mil... Essa temperatura, de quinze a dezassete graus abaixo
de zero,
nunca ali mudava; nenhum raio de sol entrara jamais naquela cova
voltada para
noroeste; no havia animais que ali penetrassem e que destrussem o
corpo. Que
importavam trs sculos? A carne de aougue, que vem de Nova Zelndia
para
Londres dentro das geleiras artificiais, est fresca ao fim de trinta
dias; e
conservada em iguais condies, no se deterioraria ao fim de trinta
sculos.
Naturalmente o escravo (de quem ele fala no papel), quando o encontrou
morto,
tirou-lhe o fato, no se deu ao trabalho de o enterrar, e abalou...
E
olhai!
acrescentou o capito apanhando uma espcie de osso da forma de um
lpis, e
aguado, que jazia no cho, ao lado. Aqui est com que ele desenhou o
mapa!
Tirou sangue do brao, escreveu com esta ponta de osso!
Passmos
o osso de mo em
mo, em silncio, esquecendo as nossas prprias misrias no espanto
daquele
encontro. J no podia haver dvida. Ali estava ele, pois, sentado numa
pedra,
frio e duro como ela, o homem cujo derradeiro escrito, traado havia
mais de
trezentos anos, nos trouxera ao lugar mesmo onde ele o escrevera para
o
encontrar a ele prprio, na mesma atitude em que, com o seu sangue,
riscara o
roteiro que de alm-tmulo nos guiava! Incomparvel maravilha! Ali
tinha eu na
mo a rude pena com que ele traara essas linhas! E parecia que ante
mim, pouco
a pouco, ressurgiam visveis, redivivos, os momentos passados h trs
sculos
o herico fidalgo, morto de frio e de fome, procurando revelar ao seu
rei o segredo imenso que descobrira; a camisa rasgada, a veia aberta;
as linhas
trmulas ansiosamente lanadas; a pena informe, escorregando-lhe da
mo; a
treva da noite enchendo a cova; o derradeiro beijo pousado no
crucifixo; um
pensamento dado ainda aos seus, terra donde partira num galeo, ao
rei que
servia com indomada f; por fim a morte, o lento e sereno resvalar para
a
morte, naquele imenso silncio e na imensa solido!
Por
vezes mesmo, olhando
para ele, parecia-me reconhecer as aquilinas e enrgicas feies do seu
descendente, o pobre Silveira que me morrera nos braos. Talvez a
imaginao.
Em todo o caso ele ali
estava, o primeiro, o antepassado, esse de quem o seu remoto neto me
falara,
estendendo os olhos j embaciados para os distantes Seios de Sab. Ali
estava;
e provavelmente l est ainda, l estar, atravs dos sculos que
ho-de vir,
para espantar outros aventurosos homens como ns, se jamais houver
outros que
cheguem a penetrar na sua espantosa e solitria tumba!
Vamos
embora!
exclamou o baro, muito plido.
Mas
parou. E apontando o
corpo de Venvogel, que ficara na mesma postura, com os joelhos boca,
os
braos apertados em volta dos joelhos:
Demos
uma
companhia ao pobre morto, para dormir neste esquecimento.
Erguemos
ento o cadver
de Venvogel e colocmo-lo sentado na pedra, junto do do velho fidalgo
portugus. Depois o baro quebrou a corrente que pendia do pescoo de
D. Jos
da Silveira, e guardou o crucifixo no seio. Eu prprio tomei o osso em
forma de
lpis. Aqui o tenho ao meu lado, enquanto estas linhas escrevo. s
vezes assino
com ele o meu nome.
Finalmente,
tendo-os
deixado lado a lado, o altivo fidalgo de outras eras e o pobre servo
hotentote,
a passar a sua eterna viglia entre essas eternas neves, samos da
caverna para
a luz esplndida e retommos em fila o nosso triste caminho, pensando
que bem cedo estaramos como eles, gelados e hirtos, num barranco da
serra.
Andada
uma milha, que nos
levou muito tempo, chegmos enfim extremidade do planalto do monte,
sobre o
qual assentava o bico do peito. E foi uma grande emoo. Por baixo de
ns,
adiante de ns, estava (devia estar) enfim essa regio misteriosa para
alm das
serras, que ns vnhamos demandando mas toda ela se ocultava sob um
denso nevoeiro. Ali ficmos pois repousando, esperando. Pouco a pouco,
as
camadas mais altas da nvoa foram-se desfazendo. Avistmos ento um
pendor da
serra, muito doce e todo coberto de neve. Depois outras camadas de
nevoeiro
mais abaixo clarearam; e apareceu aos nossos olhos famintos uma campina
de erva
verde, um regato correndo atravs, e beira da gua, deitados ou
pastando, uns
dez ou doze animais que nos pareceram antlopes.
A nossa
alegria
foi como a de uma ressurreio. Caa! Ali estava caa para comer, e
deliciosa!
Era a salvao, era a vida! A dificuldade era caar essa caa!...
Lembro-me
que, no nosso
imenso alvoroo, tivemos uma rpida e atarantada discusso, em voz
baixa e
trmula se devamos aproximar-nos da caa ou fazer fogo dali, se
devamos usar as carabinas Winchester ou a Express! Indeciso terrvel porque de
acertar ou falhar
dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentssemos
atravessar o pendor da neve, podamos espantar o rebanho. E a carabina Express,
apesar de um
alcance inferior,
era prefervel porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum
dos antlopes.
Enfim,
fizemos fogo, todos
a um tempo, com um estampido que rolou tremendamente nas quebradas dos
montes.
O fumo clareou. E eis que, alegria sem par, vemos um dos animais por
terra
esperneando furiosamente. Berrmos de puro gozo. Estvamos salvos!
Salvos! De
fome j no morramos! Corremos aos trambolhes pela neve abaixo e em
poucos momentos tnhamos nas mos os fgados e o corao do animal,
quentes e
fumegando!
Mas
surgia uma
dificuldade. Sem lenha, sem lume, como assar a caa?
Gente
faminta no
tem exigncias gritou excitadamente o capito John. A ela, e
crua!
No
restava outra soluo
e no nos pareceu repugnante. Arrefecemos as vsceras na neve,
lavmo-las na gua corrente e devormo-las com voracidade! Parece
horrvel mas confesso que aquela carne crua me soube divinalmente!
Da
a um quarto de hora, que mudana! Voltara-nos a vida, o vigor! O pulso
batia
outra vez forte e regular. Eu, por mim, sentia positivamente o sangue
degelar-se, correr-me dentro das
veias!
O baro
apertou as mos, e
disse simplesmente:
Louvado seja Deus
por isto!
Ficmos
olhando uns para
os outros, muito tempo, sem fala, num sorriso mudo. E no havia em ns
outra
sensao seno a de estarmos salvos, de estarmos vivos! Por fim
adormecemos, envoltos docemente no sol, que subia macio e tpido.
Quando
acordmos, e esfregmos os olhos, o nevoeiro desaparecera. Toda a vasta
regio
em baixo nos apareceu num relance. Demos um grande ah, lento e maravilhado! Nunca eu
vira (nem outra vez
verei!) terra mais deslumbrante! Mudo ainda, tonto da fadiga e da fome
passada,
parecia-me que morrera, que chegara ao Paraso, e que o Senhor nos ia
aparecer!
Estvamos
no planalto de
um dos Seios de Sab, com um dos bicos do peito erguendo-se por trs
de ns
at s nuvens, sublime e brilhante de neve. Logo por baixo desciam os
vastos
pendores da serra, numa profundidade de cinco mil ps; e para alm das
derradeiras faldas, a perder de vista, eram lguas e lguas de uma
terra
esplendidamente frtil, de adorvel beleza. Vamo-la desdobrada ante
ns, como
um imenso mapa em relevo; e os seus encantos diferentes, assim
abrangidos num
relance, davam a impresso de um Paraso resumido, onde Deus
prodigamente
tivesse reunido as suas obras melhores. Escassamente se pode detalhar
uma
paisagem to formosa e vria.
Aqui
alastrava-se uma
vasta mancha de floresta; alm um rio ondulava com vivos brilhos de ao
novo;
para diante longas pradarias tapetavam o solo de verde tenro e claro;
mais
longe era um lago que brilhava, grandes rebanhos que pastavam, ou uma
colina
onde a gua viva borbulhava e faiscava entre as rochas. As culturas
abundavam,
ricamente coloridas. A cada instante entre pomares e regatos
avistvamos
aldeias graciosas, com as cabanas coroadas por um tecto de colmo agudo.
De tudo
se elevava uma sensao prodigiosa de vida e de fartura, de paz. No
horizonte
surgiam picos de serras remotas, cobertas de neves. E um sol radiante
derramava
ilimitadamente a alegria do seu fulgor de ouro.
Duas
coisas nos
impressionaram. Primeiramente, que aquela regio to rica estivesse
pelo menos
cinco mil ps acima do nvel do deserto. E depois que toda aquela gua
da serra
corresse de sul para norte, do lado oposto ao serto, indo unir-se ao
magnfico
rio que se perdia no horizonte azulado.
Nenhum
de ns falava,
arroubados na contemplao daquela incomparvel Natureza. Por fim o
baro
estendeu o brao:
H
uma estrada
marcada no mapa, com o nome de estrada de Salomo, no verdade? Pois
l est,
alm, para a direita...
E com
efeito, para a
direita, nos primeiros declives da serra, abaixo dos nossos ps,
branquejava
uma grande estrada! Tnhamos j perdido toda a faculdade de admirar. E
a nenhum
de ns pareceu estranho que, no topo de uma montanha, no centro de
frica, a
centos de lguas de toda a cincia e civilizao, houvesse uma estrada,
com as
propores e grandeza de uma velha via romana, branca como neve,
talhada sobre
os abismos.
O
melhor
descermos disse simplesmente o capito John.
A
estrada ficava (como
disse) nossa direita, surgindo por trs de grossas penedias que se
amontoavam
no primeiro pendor da serra. Cortmos para l devagar, ora atravs de
grandes
espaos de neve, ora por sobre montes de lava. Quando dobrmos por fim
as
penedias, avistmo-la de repente, em baixo, a algumas jardas. Era
magnfica,
toda cortada na rocha viva, e admiravelmente conservada! Mas, coisa
extraordinria, parecia comear ali, ao meio da serra, bruscamente.
Continumos
a descida alvoroados, pusemos enfim os ps sobre as suas fortes lajes.
Olhmos, explormos em redor. A estranha via findava com efeito ali,
entre umas
rochas de lava entremeadas na neve!
Extraordinrio!
exclamou o baro. Porque comea esta estrada assim, ou porque
acaba assim, de repente, no meio da serra?
Abanei
a cabea, em
perfeita ignorncia.
Parece-me que
percebo disse o capito, coando o queixo. Esta estrada
simplesmente maravilhosa! No acaba aqui. Antigamente galgava a
cordilheira e
seguia pelo deserto. Mas a parte que galgava a serra para alm foi
coberta por
montes de lava, nalguma erupo; e a parte que cortava o deserto foi
invadida
pelas areias movedias. No pode ser seno isto.
Talvez
fosse. Em todo o
caso, largmos os passos por sobre essa surpreendente estrada, que
tinha o nome
de Salomo. Esta suave descida por uma magnfica calada, com as foras
restauradas, e a abundncia a esperar-nos em baixo, nos frteis campos
cheios
de gado, era bem diferente da subida pela neve acima, extenuados de
fome e de
fadiga, e com a aflitiva incerteza do que estaria para alm. Na
verdade, se no
fosse a triste lembrana do pobre Venvogel e da sinistra cova, onde ele
espectralmente ficara ao lado do velho de outras eras, poderamos
cantar de
pura alegria. A cada milha que andvamos, o ar cada vez se tornava mais
macio e
tpido e a regio em tomo parecia crescer para ns, a transbordar de
abundncia e beleza. A estrada, essa, era positivamente portentosa.
Afirmava o
baro que tinha semelhanas com a estrada do Saint-Gothard sobre os
Alpes. Eu,
por mim, no vira maravilha maior! Num certo stio abria-se uma ravina
medonha,
de uns trezentos ps de largura, de uma profundidade de mais de cem mil
ps;
pois este abismo estava vadeado por um colossal aqueduto, com arcos
para a
passagem das torrentes, sobre o qual a estrada seguia com soberba
segurana.
Noutros stios, cortada em zigue-zague na rocha, contornava pavorosos
precipcios, com parapeitos que a defendiam e formavam balces sobre o
abismo.
Mais adiante, perfurava um monte de rocha, com um tnel de trinta
jardas.
Nas
paredes deste tnel
corriam singulares relevos, representando guerreiros com cotas de
malha, que
retesavam arcos, guiavam carros de combate. Havia mesmo uma grande cena
de
batalha, com lanas em confuso, e cativos acorrentados.
Tudo
isto obra
egpcia dizia a baro, parando a cada instante. Tudo isto eu vi
nos templos do Alto Egipto. O nome da estrada vir de Salomo. Mas
estas
esculturas so das mos de egpcios.
Pela
uma hora da tarde
tnhamos descido a montanha at s faldas baixas onde comeava o
arvoredo. Ao
princpio eram apenas raros arbustos silvestres. Depois a estrada
penetrava num
bosque de olmos, uns olmos cujas folhas brilham como prata, e que eu
supunha s
existirem no Cabo.
Estamos ao menos
em terra de lenha! exclamou entusiasmado o capito John.
Vamos
parar, e
cozinhar um jantar. Eu, por mim, j digeri aquela carne crua...
Reentremos
solenemente na civilizao!
Todos,
com efeito,
tnhamos fome; e deixando a estrada, fomos em direco a um regato que
brilhava
a distncia entre rvores e relvas. Bem depressa fizemos um fogo de
ramos
secos; e, cortando suculentos bifes do lombo do antlope que
trouxramos
connosco, assmo-los na ponta de espetos de pau, velha maneira dos
cafres. Ao
fim do delicioso repasto acendemos os cachimbos e, estirados sombra
das frescas rvores, gozmos enfim, depois de to longos e duros dias,
um
repouso perfeito.
O lugar
era adorvel. O
regato, muito frio e muito puro, cantava sobre seixos que reluziam. As
margens
verdejavam, cobertas de fetos esplndidos, entremeados com plumas de
espargos
silvestres. Aqui e alm cresciam tufos de flores. Uma brisa, tpida e
macia
como veludo, sussurrava nas folhas dos olmos. Bandos de rolas
arrulhavam
meigamente. E, de ramo em ramo, faiscavam as asas de pssaros mais
brilhantes
que jias.
Nenhum
falava, no enlevo
daquela paz e daquela doura. E por muito tempo nenhum de ns se moveu
at que o capito John, surgindo de repente nu do leito. espesso de
fetos onde se enterrara, correu para o riacho, e mergulhou num longo e
ruidoso
banho. Deitado de costas, num bem-estar indizvel, ocupei-me ento a
observar
aquele homem admirvel, que, apenas se achava numa regio de ordem,
retomava os
seus complicados hbitos de asseio e de elegncia. Depois do banho, o
nosso
excelente amigo revestiu a camisa de flanela; e, sentando-se beira do
regato,
rompeu a lavar os seus colarinhos de guta-percha. Finda esta barrela
sacudiu,
escovou, esticou as calas, o colete, o jaqueto, dobrou tudo
cuidadosamente, e
ps-lhe por cima pedras para acamar e desfazer os vincos. Em seguida,
profundamente concentrado, passou s botas, que esfregou com uma
mo-cheia de
feto, e depois besuntou com gordura de antlope (que pusera de lado)
at lhes
dar uma aparncia comparativamente lustrosa e decente. Tendo-as
examinado com
cuidado, de monculo fixo e cabea banda, encetou outras e mais
delicadas
operaes. De um pequeno saco que trazia na mochila, tirou um
espelhinho e
examinou cuidadosamente dentes, olhos, cabelos, barba a barba j
grossa
de oito dias. Este exame parecia humilh-lo, porque abanava a cabea
com
desconsolao e tdio.
Comeou
ento pelas unhas,
que aparou e poliu; depois seguiu ao cabelo, que acamou e apartou...
Mas de repente,
com uma ideia, calou as botas que pusera ao lado; e assim, de botas,
com as
pernas fluas, e em camisa de flanela, ergueu-se para ir pendurar o
espelhinho
num ramo de rvore, O arranjo no provou satisfatoriamente, porque
voltou para
a beira do regato, e com custo e arte equilibrou o espelho numa folha
grossa de
feto. Tornou logo a meter a mo no saco e tirou uma navalha de barba...
Santo
Deus!, pensei eu, erguendo-me no cotovelo, o homem ir fazer a
barba? Ia.
Tomando outra vez o pedao de gordura de antlope com que ensebara as
botas,
lavou-a escrupulosamente no regato, esfregou com ela desesperadamente a
face e
o queixo, e principiou a rapar o plo spero de oito dias. Era porm
uma
operao difcil, porque cada movimento da navalha vinha acompanhado de
um
angustioso gemido. Por fim conseguiu escanhoar a face esquerda e metade
do
queixo. Grande suspiro de alvio! E ia atacar a outra face quando, de
repente, vi uma coisa passar e lampejar por cima da cabea.
John
deu um pulo, com uma
praga. Ergui-me tambm de salto e na mesma margem do regato, a
distncia de uns trinta passos, dei com os olhos num bando de homens.
Era uma
gente de grande estatura, imensamente robusta, e cor de cobre. Alguns
deles
traziam aos ombros peles de leopardo, e na cabea umas coroas de altas
penas,
negras, direitas, que ondulavam na brisa. Em frente do bando, um rapaz
de uns
dezassete anos conservava ainda o brao erguido e o corpo inclinado, na
atitude
graciosa de uma esttua que eu vira no Cabo, um efebo grego que lana
um dardo.
Evidentemente a coisa que
passara e brilhara era um dardo e fora o moo airoso que o
arremessara.
Quase
imediatamente, um
velho, de ar erecto e marcial, saiu de entre o grupo, e, agarrando o
brao do
rapaz, falou-lhe baixo como se o avisasse. Em seguida todos avanaram
para ns.
O
baro, John e Umbopa
tinham logo agarrado e apontado as carabinas. Os homens todavia
continuavam
avanando, devagar, em grupo. Percebi logo que nunca tinha visto
espingardas,
pelo modo como afrontavam assim tranquilamente os trs canos erguidos.
Baixem as armas!
gritei aos outros.
Tinha
compreendido tambm
que a nossa segurana entre essa gente selvagem dependia toda de
conciliao e
de ardil. Apenas pois os companheiros baixaram as armas, caminhei
lentamente para
o velho.
Bem-vindo!
exclamei em zulu, ao acaso, sem saber que idioma entenderiam aqueles
homens.
Com
surpresa minha, o
velho compreendeu. E respondeu logo, no em zulu, mas num outro
dialecto, to
parecido com o zulu, que Umbopa e eu o percebemos perfeitamente:
Bem-vindo!
Como
viemos a saber
depois, a lngua deste povo era uma forma antiquada da lngua zulu e
estando para o zulu do Sul como o ingls do tempo dos Tudores est para
o
ingls polido do sculo XIX. No entanto o velho avanara outro passo,
erguendo
a mo.
Donde
vindes?
continuou ele. Quem sois? Porque tendes trs de vs as faces
brancas, e o outro a pele como ns e como os filhos de nossas mes?
E
apontava para Umbopa
que na realidade, pela figura, pela cor, pelas feies, era muito
semelhante queles homens formidveis. Eu ento repeti a saudao ao
velho. E,
muito espaadamente, para que ele apanhasse bem o meu zulu:
Somos
gente de
outros stios, vimos em boa paz, e este homem nosso servo. O velho
abanou
lentamente a cabea, ornada de imensas plumas negras que ondulavam.
Mentes! A gente de
outros stios no pode atravessar as montanhas, nem o deserto sem gua
onde
toda a vida acaba. Mas no importa que mintas... Se sois estranhos e
vindes de
outros stios, tendes de morrer, porque no e permitido a ningum
entrar na
terra dos Cacuanas. a vontade do nosso rei. Preparai-vos pois para
morrer,
gentes!
Fiquei
um pouco perturbado
tanto mais que vi alguns selvagens levarem logo a mo ao cinto donde
lhes pendiam umas armas em forma de pesadas navalhas.
Que
diz esse
malandro? perguntou o capito, percebendo o meu embarao.
Diz
simplesmente
que nos vai retalhar faca.
Santo
Deus!
murmurou o nosso amigo.
E, como
era seu costume em
frente de um perigo ou de uma crise, passou nervosamente a mo pelo
queixo e
pelos beios. Alguma coisa decerto lhe sucedeu ento dentadura
postia (que
momentos antes tirara para lavar e que tornara a pr), porque num
relance lhe
vi os dentes todos de fora, e logo sumidos para dentro! No percebi bem
o caso.
Mas qual o meu espanto quando os cacuanas soltam um grito de terror,
e recuam
em tropel!
Que
foi?
exclamei.
Foram
os dentes!
acudiu o baro, excitadamente.
Os
selvagens
viram-lhe os dentes a mover-se... Tira-os de todo, John, tira-os de
todo.
Talvez os assustes.
O
capito prontamente
compreendeu, passou a mo devagar por sobre a boca, e escamoteou a
dentadura.
Os cacuanas, no entanto, numa nsia de curiosidade, avanavam de novo,
com os
olhos arregalados para John. E foi o velho (evidentemente um chefe) que
ergueu
a voz e a mo, com solenidade:
Quem
este homem,
gentes, que tem o corpo coberto, as pernas fluas, cabelo s em metade
da
cara, e um grande olho que reluz? Quem ele que faz mexer assim
vontade os
dentes para dentro e para fora da boca?
Abra
a boca, John!
murmurei eu baixo para o capito.
John
arreganhou os beios,
e exibiu duas gengivas muito vermelhas, desdentadas como as de um
recm-nascido. Entre os selvagens passou um sussurro de espanto.
Onde
esto os
dentes? Ainda agora tinha dentes! exclamavam eles, entre si, com
gestos
apavorados.
Ento
John deu um
movimento vagaroso cabea, passou a mo pela boca com soberana
indiferena, e
desfranzindo de novo os beios mostrou duas esplndidas filas de
dentes,
muito fortes, muito sos, que rebrilhavam.
No
mesmo instante o rapaz
que despedira o dardo arremessou-se para o cho, com gritos
espavoridos. Todo o
bando tapava as faces com as mos, num terror. E o velho, que parecia o
mais
resoluto, tremia tanto, e to encolhido, que lhe batiam os joelhos um
contra o
outro.
S quem
conhece selvagens
e a mobilidade daquelas imaginaes infantis pode compreender como
subitamente,
em cada um deles, ao desejo de nos matar ia j sucedendo o impulso de
nos
adorar... Quando o velho tornou a levantar a voz, foi muito
humildemente e numa
postura de splica:
Vs
sois
espritos! Bem vejo que sois espritos, gentes! Nunca houve homem
nascido de
mulher que tivesse s cabelo num lado da cara, e um olho redondo e
transparente, e dentes que se derretem e de repente crescem outra
vez... Vs
sois espritos. Perdoai-nos, senhores, perdoai-nos!
Aproveitei
logo esta
esplndida ocasio. E estendendo o brao, com soberba magnanimidade:
Estais perdoados.
Era
porm necessrio, para
nossa salvao, que deslumbrssemos e inteiramente nos apoderssemos
daquelas
almas ferozes e simples. E para isso, na frica (como noutras partes) o
mais
pronto instrumento o sobrenatural. No hesitei portanto (com vergonha
o
confesso) em me atribuir, a mim e aos meus companheiros, uma origem
divina! De
resto, com o negro da frica Central, que pela primeira vez v o branco, e assiste a alguns
dos milagres que o branco pode realizar com os pequenos
recursos da sua pequena civilizao, este procedimento o mais seguro
e o mais
humano. O selvagem fica desde logo (pelo menos por algum tempo) contido
dentro
do respeito, absolutamente razovel e tratvel; e assim, poupando ao
negro as
traies, os brancos poupam a si prprios as represlias.
Ergui
pois a mo, e disse,
com vagar e majestade:
J
que vos
perdoei, porque sois ignorantes, condescendo tambm em vos dizer quem
somos.
Somos espritos. Vivemos alm, por cima das nuvens, numa daquelas
estrelas que
vs vedes de noite brilhar. E viemos visitar esta terra, mas em paz e
para
alegria de todos!
Entre
os indgenas
correram grandes ah! ah! lentos
e maravilhados.
Eu
prossegui, mais grave:
Ns
conhecemos
todos os reis e todas as gentes. E eu, que sou a voz dos outros,
conheo todas
as lnguas.
A
nossa bem mal!
arriscou com timidez o velho guerreiro.
Dardejei-lhe
um olhar
chamejante que o estarreceu. E gritei logo, para fazer uma diverso
brusca
quela observao to justa e perigosa:
Viemos em paz,
certo! Mas fomos recebidos em guerra. E talvez devssemos castigar j o
ultraje
feito por esse moo, que sem provocao atirou uma faca ao esprito
divino
cujos dentes de repente nascem e caem.
Oh!
no! meu
senhor! gritou numa ansiosa splica o velho guerreiro.
Poupai-o! Poupai-o, que o filho do nosso rei! Eu sou seu tio, que o
ajudei a
criar. S eu respondo por cada gota do sangue que lhe gira nas
veias!... meu
senhor, a demncia vai bem aos espritos!
Afectei
no compreender a
angustiosa prece, e tornei com superior indiferena:
As
nossas maneiras
de castigar so simples e terrveis. Num instante ides ver... Tu,
escravo que
nos segues (e aqui encarei para Umbopa), d-me a arma de feitios que
troveja.
Umbopa,
que assistira
absolutamente impassvel e srio a todas as minhas afirmaes de
divindade e que
(zulu inteligente, afeito aos brancos e s suas manhas) lhe percebera o alcance
estendeu-me uma
carabina Winchester, com
humilssima reverncia.
Justamente
nesse instante
avistei, para alm do riacho, a umas setenta jardas de distncia, um
pequeno
antlope, imvel sobre um monto de rochas.
Vedes
aquele gamo?
exclamei eu para os selvagens. Julgais possvel que um simples
homem, nascido do ventre da mulher, o mate daqui donde estou, s com
fazer
estalar um pequeno trovo?
No
possvel!
murmurou, recuando, o velho guerreiro. No possvel para
homem nascido do ventre da mulher!
Ides
ver.
Apontei.
Bum! E
subitamente o gamo, dando um pulo furioso no ar, tombou morto, imvel,
estatelado nas pedras.
Um
fundo murmrio de
assombro, de terror, passou entre os cacuanas... Eu acrescentei
simplesmente:
A
est. E se
tendes fome, podeis ir buscar aquele gamo!
O velho
fez um sinal. Dois
homens, correndo, trouxeram a caa. E amontoados em volta dela, todos
em
silncio (num silncio que era religioso pelo pavor que continha),
ficaram
contemplando boquiabertos o buraco da bala que lhe acertara entre os
ombros.
Se
no estais
satisfeitos volvi eu ainda se em vez de um gamo me quereis ver
matar um homem, que um de vs se coloque alm sobre as pedras ou mais
longe, e
o raio ir ter com ele.
Houve
um movimento geral
dos cacuanas, recuando e protestando.
No!
No!
gritaram alguns. Acreditmos, acreditmos... No vale a pena gastar
feitios com ns outros, que acreditmos e que somos amigos!
O velho
guerreiro
interveio, com alacridade:
Assim
! Ns somos
amigos. E para que nos conheais bem, almas das estrelas, que
trovejais e
matais to de longe, sabei que eu sou Infands, filho de Cafa, antigo
rei dos
Cacuanas. Este moo Scragga, filho de Tuala, nosso rei! Tuala, o
homem de mil
mulheres, senhor dos Cacuanas, terror dos seus inimigos, sentinela da
Grande
Estrada, sabedor das artes negras, chefe de cem mil guerreiros, Tuala o
supremo, Tuala o de um s olho...
Basta
interrompi sobranceiramente. Leva-nos ento ao rei Tuala. Porque, nas
nossas jornadas pelo mundo, ns s falamos a reis!
Certamente, meu
senhor, certamente... Mas ns andvamos caando nestes stios, e
estamos a trs
dias de jornada da aringa do rei. So trs dias que tendes de caminhar.
Caminharemos.
Escuta tu, porm, Infands, e tu, Scragga, filho de Tuala! Se por acaso
tentardes no caminho armar-nos uma traio, ou se essa ideia vos
atravessar
sequer a cabea, ns, que tudo adivinhamos, tomaremos de vs tal
vingana, que
far ainda estremecer os filhos de vossos filhos. Aquele cujo olho
reluz, e
cujos dentes vo e vm, incendiar todas as vossas searas com a chama
do seu
olho, e despedaar todas as vossas carnes com as pontas das suas
presas! E ns
faremos ressoar os canos que trovejam de uma maneira que ser pavorosa!
Toda a
gua secar. Todo o gado morrer. E os espritos maus viro, nossa
voz,
dispersar os vossos ossos... E agora a caminho. Esta tremenda fala era
quase
suprflua porque os nossos novos amigos acreditavam,
superabundantemente, nos nossos poderes sobrenaturais. Ainda assim, o
velho
Infands saudou-nos com uma reverncia mais funda e mais servil,
repetindo trs
vezes estas palavras: Crum! Crum! Crum! Como depois soubemos, esta a
maneira cacuana de saudar o
rei. Corresponde ao Baiete! dos
Zulus.
Depois
o velho atirou um
gesto aos seus, que imediatamente carregaram s costas as nossas
mochilas,
cantinas, mantas e outras miudezas excepto as espingardas, de que
eles
se afastavam em grandes voltas e com olhares de terror.
Um
deles lanou mo ao
fato do capito John, ainda cuidadosamente dobrado beira da gua. O
excelente
John deu logo um pulo para as calas. E rompeu ento uma imensa
altercao.
No,
meu senhor
gritava Infands no consentirei que o meu senhor carregue com
essas coisas!
Mas
que eu quero
pr as calas! berrava John.
Todos
somos aqui
seus escravos para servir e carregar...
Mas
as calas...
Meu
senhor!
Larga
as calas,
malandro!
Tive de
intervir, sufocado
de riso.
Escute, John. O
caso mais srio do que parece. Um dos motivos do terror que estamos
inspirando a sua luneta, a sua cara meio barbada e meio rapada, os
seus
dentes postios, e essas pernas brancas mostra... Tudo isso espanta
as
imaginaes de selvagens. E se o amigo quer que no nos percam o medo,
necessrio continuar a aparecer-lhes nessa figura. Se o amigo lhes
surgir
amanh de outro modo, tomam-nos por impostores, e a nossa vida no vale
mais um
pataco. Assim o viram nesta terra, assim nela tem de ficar.
John,
inquieto, hesitante,
voltou os olhos para o baro.
O
amigo Quartelmar
tem razo afirmou o baro. E d graas a Deus que j estavas de
botas, e que a temperatura to doce.
John
teve um suspiro de
furiosa resignao. E, durante a nossa estada na terra dos Cacuanas,
foi assim
que John se mostrou e sempre praticou notveis feitos de botas, de
pernas nuas, com uma metade da cara rapada, outra coberta de barba, e a
fralda
voando ao vento!
VI
PENETRMOS NO REINO DOS CACUANAS
Toda
essa tarde trilhmos
a larga, magnfica estrada que seguia infindavelmente para o lado de
noroeste.
Alguns dos negros marchavam adiante (uns cem passos), como vedetas.
Outros
seguiam levando as nossas bagagens. Ns amos no meio entre Infands e
Scragga.
Pouco a
pouco, Infands e
eu descamos numa palestra familiar e amigvel. O velho era esperto e
loquaz.
Quem
fez esta
estrada, Infands?
Foi
feita h muito
tempo, meu senhor. Ningum sabe quando; nem mesmo uma mulher que tudo
sabe,
Gagula, que tem vivido atravs de geraes... J ningum pode fazer
estradas
assim... Mas o rei no consente que se desmanche, nem que lhe cresa a
erva por
cima.
E h
quanto tempo
vivem aqui os Cacuanas, Infands?
A
nossa gente, meu
senhor, veio para aqui de grandes terras que esto para alm (indicava
o Norte)
h mais de dez mil milhares de luas. Para baixo no puderam seguir,
segundo
diziam nossos avs, que o disseram a nossos pais, e segundo conta
Gagula, a
mulher que tudo sabe. No puderam por causa das altas montanhas que
esto em redor,
e do deserto onde tudo morre. De modo que, como a terra era frtil,
aqui
assentaram; e tantos e to fortes se tornaram que, agora, quando Tuala,
nosso
rei, chama os seus regimentos, o cho treme todo com o seu peso, e at
onde a
vista alcana s se vem plumas de guerreiros e lanas.
Mas
se a terra
est murada de montanhas e se no tendes vizinhos, para que so tantos
soldados?
A
terra est
aberta para alm (e indicava o Norte). E s vezes descem de l
multides, que
no sabemos quem so e que ns destrumos. J correu a tera parte de
uma vida
de homem desde a ltima guerra. Depois houve outra guerra, mas, foi
entre ns,
irmo contra irmo.
Como
foi isso,
Infands?
Infands
comeou ento uma
dessas histrias de pretendentes e de guerras dinsticas, que abundam
em todos
os continentes. O pai dele, Capa, que era o rei dos Cacuanas, tivera
por
primeiros filhos, da primeira mulher (ele, Infands, era filho de uma
concubina) dois gmeos. Ora a lei dos Cacuanas manda que, de dois
gmeos reais,
o mais fraco seja sempre destrudo. Mas a me, por piedade e amor,
escondeu o
gmeo mais fraco, que se chamava Tuala, e, ajudada por Gagula, educou-o
em
Segredo numa caverna. Quando Capa morreu, o gmeo mais velho, que se
chamava
Imotu, foi portanto rei; e logo depois teve da sua mulher favorita um
filho por
nome Ignosi. Ora por esse tempo passara a guerra com os povos do Norte:
os
campos no tinham sido semeados; veio uma fome; e havia grande misria
e dor
entre o povo, que, como uma fera esfaimada, rosnava, procurando com os
olhos
sangrentos alguma coisa em redor para despedaar. Foi ento que Gagula,
a
mulher que tudo sabe e que no morre, rompeu a dizer que os males todos
provinham de que Imotu reinava sem ser rei. Imotu, a esse tempo, estava
doente
na sua cubata, com uma ferida. Comeou a correr um clamor entre o povo.
Por fim
Gagula, um dia, rene os soldados, vai buscar Tuala, o gmeo mais novo
que ela
e a me tinham escondido nas cavernas, apresenta-o ao povo,
descobre-lhe a
cinta, e mostra a marca real com que entre os Cacuanas os reis so
marcados ao
nascer uma tatuagem representando uma cobra, que se enrosca em torno
de
um ventre real, e vem reunir, sobre o umbigo real, a cabea e o rabo.
E, ao
mesmo tempo, Gagula gritava: Eis o vosso verdadeiro rei, que eu salvei
e que
escondi, para ele vos vir salvar agora! O povo, tonto de fome,
ignorando a
verdade, espantado com a evidncia da marca real, largou a bradar:
Este o
rei! Este o rei! Alguns sabiam bem que no e que neste s havia
impostura. Mas nesse momento, ouvindo os alaridos, o rei Imotu sai
doente e
trpego da sua cubata, com a mulher e o filho que tinha trs anos, a
saber por
que vinham tantos brados e porque pediam eles o rei. Imediatamente
Tuala, o
irmo, corre para ele e crava-lhe uma faca no corao! E o povo, que as
aces
decididas e bruscas sempre fascinam, gritou logo: Tuala rei! Tuala
provou
que rei! Diante disto a pobre mulher de Imotu agarrou o filho, o seu
Ignosi,
e fugiu. Ainda apareceu, passados dias, numa aringa, pedindo de comer.
Depois
viram-na seguir para os lados dos montes e nunca mais voltou.
De
modo
observei eu, interessado por esta pgina de histria negra que Tuala
no o verdadeiro rei.
O velho
respondeu com
prudncia:
Tuala, o grande,
rei. Mas se Ignosi vivesse ainda, s esse tinha o legtimo direito de
reinar
sobre os Cacuanas. A cobra sagrada foi-lhe marcada em torno da cinta. O
rei
ele. Somente decerto h muito que Ignosi morreu...
Casualmente,
nesse
instante, voltando-me para falar aos camaradas que marchavam atrs,
esbarrei
com Umbopa que quase me pisava os calcanhares, absorto naquela histria
de
Imotu e de Ignosi, com uma curiosidade, um interesse que lhe punham nos
olhos
um brilhar desusado, lhe davam a expresso de quem de repente lembra
coisas
vagas, remotas, semiesquecidas, perturbadoras. Nessa ocasio permaneci
indiferente. Mas depois, atravs da jornada, muitas vezes pensei
naquela
ansiosa, esgazeada curiosidade do zulu.
No
entanto j trilhramos
algumas fortes milhas de estrada. As montanhas de Sab ficavam para
trs,
envoltas nos seus msticos vus de nvoa. E o pas cada vez se oferecia
mais
famoso e mais rico.
Ao
comeo da tarde
avistmos enfim uma grande povoao que, segundo Infarids nos
declarou,
pertencia ao seu comando militar e continha uma vasta guarnio. O
velho
guerreiro mandara mensageiros adiante, correndo, num passo de gazela, a
anunciar a nossa vinda. E quando nos aproximmos da aldeia,
descobrimos, com
efeito, saindo das portas e marchando ao nosso encontro densas
companhias de
soldados.
O baro
tocou-me no brao,
com receio que as coisas se apresentassem desagradavelmente. Infands
decerto
compreendeu, pelo tom, pelo franzir de sobrancelhas do baro, o
sobressalto que
o tomara (e a mim), porque acudiu ansiosamente, com redobrada
reverncia:
Que
os meus
senhores no suspeitem de mim! Aquele um dos regimentos que eu
comando!
Mandei-o sair e desfilar, para prestar as honras aos que vm do mundo
das
estrelas...
Esbocei
um gesto e um
sorriso de soberana indiferena. Realmente estava bem inquieto!
A
povoao ficava
direita da estrada, separada dela por um declive de terreno areado e
bem
pisado, onde o regimento se formara em parada. Havia ali talvez uns
trs mil
homens. E quando nos acercmos, pudemos ver, com admirao e assombro,
de que
esplndida, de que formidvel raa eram estes guerreiros cacuanas!
Nenhum media
menos de seis ps de altura; e todos veteranos de quarenta anos, geis,
experientes, prodigiosamente robustos, endurecidos por exerccios
perptuos.
Sobre a cabea todos traziam a coroa de altas e pesadas plumas negras,
sempre
tremendo ao vento. Em volta da cinta pendia-lhes um saio feito de
rabos de
boi, muito juntos uns aos outros e brancos; e no brao esquerdo
sustentavam
escudos redondos de ferro, recobertos de couro pintado de branco. Por
armas
tinham uma azagaia semelhante dos Zulus e trs facas (uma no cinto,
duas em presilhas no escudo), facas enormes que eles chamam tolas e que arremessam a distncias
de cinquenta jardas
e mais, com uma certeza terrvel.
As
companhias
conservavam-se mais imveis que esttuas de bronze. Mas, medida que
amos
passando em frente delas, cada oficial (que se distinguia por uma capa
de pele
de leopardo) dava um sinal; e os homens, brandindo a azagaia no ar,
soltavam a
saudao real, a grande voz: Crum! Crum! Crum!
Assim
penetrmos na
povoao ao rumor de aclamaes. A aldeia devia ter uma milha de
circunferncia
e era defendida por um largo fosso e por uma alta estacada feita de
troncos de
rvores. Na porta central, do lado da estrada, havia uma ponte
levadia.
Parecia uma aldeia admiravelmente bem ordenada. Ao centro, entre
rvores,
corria uma ampla, extensa rua, cortada em ngulos rectos por outras
mais
estreitas, formando sries de quarteires, cada um dos quais alojava
uma
companhia. As cubatas redondas, feitas de uma grossa verga entrelaada,
findavam, maneira das dos Zulus, por tectos de colmo em forma de
zimbrio
agudo; mas, diferentes nisto das dos Zulus, tinham uma porta larga e
fcil, e
eram cercadas por uma varanda, cujo cho de cal dura rebrilhava ao sol.
Os dois
lados da grande rua apinhavam-se de mulheres que tinham corrido de
todas as
cubatas para nos admirar. Era uma bela raa de mulheres altas,
airosas,
esplendidamente feitas, com o cabelo mais ondeado que encarapinhado, as
feies
por vezes aquilinas, e os beios sempre finos. Mas o que mais nos
impressionou
foi o seu ar grave e srio. Nem pasmo selvagem, nem risos, nem
injrias, ao
verem-nos desfilar, to estranhos e diferentes de todos os homens que
at a
tinham encontrado. Nem mesmo a singular figura de John lhes arrancou
uma
exclamao; apenas os largos olhos negros se lhes arregalavam para as
pernas
nveas do pobre amigo, que, rodo de vergonha, praguejava baixo.
Quando
chegmos ao centro
da aldeia, Infands parou em frente de uma espaosa e rica cubata
cercada de
dependncias menores, entre arvoredo. E com palavras grandiosas
maneira dos
Zulus, ofereceu-nos a hospitalidade:
Aqui
habitareis,
meus senhores. E no tereis de apertar o ventre com fome! Em breve vos
traremos
mel, leite, uma ou duas vacas, alguns carneiros. No muito,
espritos! Mas
dado por coraes que se regozijam de vos ver.
Bem,
bem, Infands
murmurei eu. O que precisamos, sobretudo. descansar,
fatigados da nossa descida atravs dos espaos e dos reinos do ar.
A
cubata era muito
confortvel, com erva aromtica espalhada no cho, grandes peles
servindo de
leitos, e vistosos cntaros para a gua. Da a pouco entre cantos e
risos
apareceu porta um bando de raparigas trazendo leite, mel em
covilhetes,
frutas em cestos e atrs dois rapazes seguiam, arrastando um vitelo
pelos cornos. Um dos rapazes tirando a faca do cinto, matou o vitelo de
um
golpe; e logo o outro gil e destramente, o esfolou e retalhou.
Ajudado
por uma das
raparigas (que era extremamente bonita), Umbopa passou a cozer a carne
numa
panela de barro sobre uma alegre fogueira acesa porta da cubata; e
ns
mandmos convidar Infands e Scragga para partilharem do nosso repasto.
Quando
entraram, notei que, para comer, se no encruzavam no cho maneira
dos Zulus
mas se sentavam em pequenos bancos que abundavam na cubata encostados
s paredes. O jantar foi longo e afvel. O velho guerreiro todo ele
exibia
doura e respeito. Mas o rapaz Scragga parecia olhar para ns, e para
cada um
dos nossos gestos, com singular desconfiana. Talvez ao ver que ns
comamos,
bebamos, e tnhamos as necessidades de qualquer cacuana, comeava a
suspeitar
da nossa origem divina. No me agradou este sentimento, to real e
lgico. Que
nos poderia assegurar as vidas perdidos entre aquelas turbas negras,
seno o
terror supersticioso?
Depois
de jantar acendemos
os cachimbos o que encheu os nossos amigos de espanto. Na terra dos
Cacuanas, como na dos Zulus, a planta do tabaco cresce em abundncia
mas eles s a sabem usar torrada e seca, pulverizada. S conhecem o
rap. No
entanto conversmos a respeito da nossa jornada. Infands j tudo
organizara
para que ela continuasse na madrugada seguinte, mandando adiante
emissrios a
prevenir Tuala da nossa chegada ao seu reino. Tuala estava ento na sua
grande
cidade de Lu, preparando-se para a revista de tropas, a dana das
flores e a
caa aos feitios, que constituem a maior solenidade religiosa e
militar dos
Cacuanas, na primeira semana de Junho. E segundo afirmava Infands, ns
devamos (a no ser que nos detivessem os rios transbordados) entrar as
portas
de Lu ao fim de dois dias de marcha.
Depois,
como comeavam a
luzir as estrelas e a aldeia ia caindo em silncio, os nossos amigos
deixaram a
cubata. E trs de ns atiraram-se logo para cima dos leitos de peles,
enquanto
outro, com as carabinas carregadas, velava, no seu turno de sentinela,
para
prevenir as traies.
Mas
essa primeira noite na
terra dos Cacuanas foi muito calma e segura.
VII
O REI TUALA
No me
dilatarei nos
incidentes da nossa jornada at Lu, que nem foram considerveis nem
pitorescos.
Durante dois longos dias trilhmos a estrada de Salomo, por entre
ricas terras
cultivadas e alegres povoaes que nos encantavam pelo seu ar
florescente e
calmo. A cada instante passavam por ns troos de gente armada,
regimentos
emplumados marchando tambm para a cidade, para o grande festival
sagrado. No
segundo dia, ao pr-do-sol, parmos numa colina, que a estrada galgava
por entre
dois renques de rvores em flor e em baixo, numa plancie
deliciosamente frtil, avistmos enfim Lu, a capital dos Cacuanas.
Para
cidade de frica era
enorme com seis milhas talvez de circunferncia, toda ela defendida
por
estacadas, e rodeada de pomares e de vastas aringas, onde se
aquartelavam
tropas. Pelo centro corria um largo e claro rio, vadeado por pontes.
Para o
norte, a duas milhas, erguia-se uma colina, que oferecia a forma
singular de
uma ferradura; e, mais longe, a umas sessenta milhas, surgiam
bruscamente da
plancie, em tringulo, trs serras isoladas, escarpadas, todas
cobertas de
neve.
A
estrada
explicou Infands, vendo que contemplvamos com estranheza os trs
montes
acaba alm nessas serras, que se chamam as Trs Feiticeiras.
E
porque acaba
alm, Infands?
Quem
sabe!
murmurou o velho, encolhendo os ombros. As trs montanhas esto todas
furadas por cavernas. H no meio delas uma cova imensa. l que se
sepultam
agora os nossos reis. E era ali que os homens antigos, que sabiam tudo,
vinham
buscar certas coisas...
Que
coisas,
Infands? exclamei eu, cravando nele um olhar que sondava. O velho
sorriu, com uma grossa malcia de negro:
Os
espritos que
vm das estrelas sabem decerto mais do que um cacuana...
Com
efeito!
acudi eu, num tom ciente e profundo. E por isso te posso dizer,
Infands, que esses homens antigamente vinham procurar um feno amarelo
que
rebrilha, e umas pedras brancas que fascam.
Talvez fosse,
talvez fosse! balbuciou Infands, embaraado, afastando-se
bruscamente
para lanar uma ordem aos carregadores da bagagem.
Acol
disse eu aos meus companheiros, mostrando as Trs Feiticeiras esto a
minas de Salomo.
Todos
trs, comovidos,
ficmos a olhar aqueles montes to prximos, onde jaziam ainda talvez
(se o
velho D. Jos da Silveira contara a verdade) os mais ricos tesouros da
Terra...
A que prodigioso momento chegara a nossa aventura!
De
repente, quando assim
pasmvamos, o Sol desapareceu e a noite caiu, sem transio,
visivelmente, como uma coisa tangvel. Naquelas latitudes no h
crepsculo. A
luz acaba como a chama de um bico de gs que se fecha; e, num instante,
a terra
toda fica envolta numa cortina de treva.
Nessa
ocasio, porm,
durou pouco a escurido, porque bem cedo a mais larga e esplndida lua
que me
lembro de ter visto subiu majestosamente n cu, derramando uma to
sublime
refulgncia, to divinamente serena, que, sem saber porqu, cada um de
ns
tirou o chapu, como num templo, ante uma imagem sagrada. Infands,
porm,
quebrou a nossa contemplao, dando o sinal de descer para a cidade,
que,
agora, batida de luar, cheia de lumes, parecia infindvel atravs da
plancie.
E da a uma hora, tendo passado a ponte levadia, entre piquetes de
sentinelas
a quem Infands deu baixo o santo-e-senha, seguamos calados pela rua
central
de Lu, toda ladeada de sombras de rvores e de senzalas onde se
cozinhava.
Levou uma hora antes de chegarmos grade de um ptio redondo, com o
cho muito
batido e duro, todo caiado de branco. Em volta erguiam-se cubatas
espaosas,
cobertas de colmo. Eram ali (segundo declarou Infands) os nossos
humildes
pousos.
Cada um
de ns tinha, s
para si, uma cubata. Havia dentro um grande asseio. Os leitos eram
feitos com
peles estendidas sobre enxerges de erva aromtica. Uma esteira
tapetava o
solo. Tripeas pintadas alternavam com frescas vasilhas de gua. No
podamos
esperar mais cuidadosa hospedagem! E apenas nos lavmos, sacudimos o
p,
apareceu logo um bando de raparigas, das mais belas que at a
encontrramos no
pas, trazendo leite, carnes assadas e bolos de milho, em vistosos
pratos de
madeira.
Depois
da ceia fizemos
reunir todas as quatro camas na maior das cubatas (precauo que encheu
de riso
as raparigas), e no tardmos em adormecer com grata tranquilidade.
Acordmos
quando o Sol ia nado e a primeira e aprazvel impresso que recebemos
foi a do bando das raparigas, acocoradas no cho, a um canto, espera
que
despertssemos para nos ajudar a lavar e a vestir.
Quando
uma delas, a mais
alta (e que figura! que braos!) fez esta amvel oferta, o capito John
teve
uma exclamao, um gesto de atroz desespero:
Vestir! bom de
dizer! Quando uma pessoa no tem seno uma camisa e um par de botas!... E
com estas raparigas
todas, bonitas raparigas, a por essa cidade. No! Isto no pode
continuar! Eu
no arredo p daqui da cubata, seno de calas! Quero as calas!
Vi o
meu amigo to
decidido, que reclamei as calas. Mas uma das raparigas voltou da a
momentos,
declarando que essas sagradas e maravilhosas relquias tinham sido j
mandadas
ao rei!
O furor
do nosso John foi
imenso. Teve de se contentar em barbear a face direita; porque na
esquerda no
consentimos que ele eliminasse um s plo farta sua que j lhe
crescera.
Aquela cara espantosa, rapada de um lado, barbuda do outro, era uma das
evidncias da nossa raa sobrenatural. Todos ns, de resto, tnhamos
aspectos
estranhos. Os cabelos do baro, amarelos e sempre longos, desciam-lhe
agora at
aos ombros, numa juba rude, que lhe dava o ar de um brbaro dos tempos
do rei
Olof. O almoo j esperava, fora, no terreiro, em caoulas que
fumegavam. Mas,
primeiramente, quisemos tomar o nosso tub, atirar pelas costas alguns
frios baldes de gua. E o
assombro, a desconsolao das raparigas foi considervel, quando lhes
pedimos
pudicamente que se retirassem cerrando a porta de vime...
Logo
depois do almoo,
Infands apareceu anunciando que el-rei Tuala nos mandava saudar, e
esperava a
nossa comparncia em palcio. Declarei imediatamente, com indiferena e
altivez, que ainda nos achvamos cansados, tnhamos ainda um cachimbo a
fumar,
etc., etc.
Convm
sempre, tratando
com potentados negros, no mostrar pressa nem respeito. Tomam
invariavelmente a
polidez por pavor. De sorte que, apesar da nossa ansiedade em ver o
terrvel
Tuala, retardmos nas cubatas uma farta hora, preparando, ao mesmo
tempo, os
escassos presentes que destinvamos ao rei e corte: a espingarda do
pobre
Venvogel, um bocado de seda, alguns fios de contas de vidro.
Afinal
partimos, guiados
por Infands e seguidos por Umbopa, que levava as ddivas.
Ao fim
de um curto
quilmetro, chegmos a um imenso terreiro, com cho duro e caiado de
branco
como o das nossas moradas, e cercado por uma estacada baixa. Em redor,
fora da
estacada, corria uma fileira de cubatas, que (segundo nos informou
Infands)
pertenciam s mulheres do rei; e ao fundo, fronteira porta por onde
entrramos, estendia-se uma construo, uma cubata enorme, com varas e
plumas
espetadas no tecto de colmo, que era o palcio real. No recinto no
crescia uma
rvore; e todo ele estava nesse dia cheio de regimentos em forma,
perfilados,
imveis, verdadeiramente magnficos, com os seus altos penachos, os
escudos
brancos, as lanas a rebrilhar.
Em
frente cubata real
ficava um espao vazio, com uns poucos de escabelos de madeira. A
convite do
bom Infands, ocupmos trs desses assentos privilegiados, tendo Umbopa
por
trs, de p; e assim ficmos espera, no meio de um silncio absoluto,
sentindo cravados sobre ns oito mil pares de olhos sfregos.
Finalmente a
porta da cubata rangeu e surgiu dela uma figura gigantesca, com um
esplndido manto de peles de tigre lanado sobre o ombro, e uma azagaia
na mo.
Atrs dele vinha Scragga e uma outra criatura estranha, equvoca, que
nos
pareceu uma macaca uma macaca velhssima e friorenta, toda embrulhada
em peles. A figura gigantesca abateu-se pesadamente sobre uma das
tripeas de
pau. Scragga permaneceu de p, por trs, apoiado lana. A velha
macaca
arrastou-se para a sombra que lanava a cubata real, e ali se acocorou
lentamente.
O mesmo
silncio
continuava no entanto opressivo, aflitivo.
Ento a
figura gigantesca
arrojou o manto que a envolvia, e ergueu-se, oferecendo s vistas a sua
real
pessoa, verdadeiramente terrfica! Nunca em minha longa vida encarei um
homem
mais repulsivo. E ainda s vezes revejo, ante mim, aquela face horrvel
com os
beios muito grossos, ressudando sensualidade, as ventas enormes e
chatas de
fera, e o olho nico (porque o outro era apenas um buraco negro)
atrozmente
brilhante, de um brilho frio e cruel. Uma cota de malha reluzente
cobria-lhe o
corpo formidvel. Da cinta pendia-lhe o saio do uniforme, feito de
rabos
brancos de boi. Ao pescoo trazia uma gargaleira de ouro; e da testa,
onde
luzia um enorme diamante bruto, subia-lhe, ondeando no ar, um tufo
esplndido
de plumas de avestruz.
O
silncio ainda pesou,
mais profundo, diante daquela presena assustadora! Mas de repente o
monstro
(que logo compreendemos ser Tuala, o rei) levantou a lana no ar. Oito
mil
lanas faiscaram ao sol. E de oito mil peitos rompeu, atroando o cu, a
grande
aclamao real:
Crum!
Crum! Crum!
Depois,
no silncio que
recara, vibrou uma voz, agudssima, estrdula, horripilante, e que
parecia vir
da macaca agachada sombra:
Treme
e adora,
povo! o rei!
E oito
mil peitos de novo
atroaram o cu, bradando:
E o
rei! o rei!
Treme e adora, povo!
E tudo
de novo emudeceu.
Mas quase imediatamente, ao nosso lado, houve um rudo de ferro batendo
sobre
pedra. Era um soldado que deixara cair o escudo. Tuala dardejou logo o
olho
cruel para o stio onde o som retinira.
Avana tu!
berrou, num tom trovejante.
Um
soberbo rapago saiu da
fileira, ficou perfilado.
Co
infernal!
rugiu o rei. Foste tu que deixaste cair o escudo? Queres que
eu, teu chefe, seja escarnecido pelas gentes que vm das estrelas!
Foi
sem querer,
mestre das artes negras! acudiu o rapaz, cuja pele fusca parecia
empalidecer.
Pois,
tambm sem
querer, vais morrer!
O
soldado baixou a cabea
e murmurou simplesmente:
Eu
sou a rs do
rei!
Scragga!
bramiu Tuala. Mostra como sabes usar bem a lana. Vara-me aquele co!
O
odioso Scragga deu um
passo para diante, com um sorrisinho feroz, e levantou o dardo. O
desgraado
tapou a face, e esperou, imvel. Ns nem respirvamos, petrificados.
Um, dois,
trs! Scragga soltou a lana. O soldado atirou os braos ao ar, caiu
morto.
De
entre os regimentos
saiu ento um longo murmrio que rolou, ondulou, se esvaiu por fim no
silncio.
O
baro, lvido de
indignao, agarrara a espingarda das mos de Umbopa. E eu, aflito,
tive de o
agarrar a ele, lembrar que as nossas vidas estavam merc do rei, e
que ramos
quatro contra todo um reino.
Tuala,
no entanto, sorria
sinistramente:
O
golpe foi bom.
Arrastem para fora o co morto.
Quatro
homens saram da
fileira, levaram o corpo.
E ento
a mesma voz
esganiada, sibilante, horrvel (que evidentemente era da macaca)
cortou o ar:
A
palavra do rei
foi dita! A vontade do rei foi feita! Treme e adora, povo! E cobri
bem
depressa as manchas de sangue. A palavra foi dita, a vontade foi feita!
Uma
rapariga saiu de trs
da cubata real com um vaso de loua, e, atirando dele cal s
mos-cheias,
escondeu as ndoas horrveis. Tuala permanecia imvel, como um dolo.
Por
fim, lentamente,
voltou para ns a face medonha.
Gente
branca!
disse ele. Gente branca, que vindes no sei donde, nem sei a
qu, sede bem-vinda!
Bem
estejas, rei
dos Cacuanas! respondi eu, com dignidade.
Houve
um silncio, atravs
do qual ficmos imveis, sentados, com os olhos cravados no monstro.
Gente
branca
volveu ele que vindes vs procurar aqui?
Vimos
do mundo das
estrelas, rei! No indagues como, nem para qu. So coisas muito
altas para
ti, Tuala.
O rei
franziu a face, de
um modo inquietador:
Altas
me parecem
as vossas palavras, gentes das estrelas!... No esqueais que as
estrelas esto
longe e a minha vontade est perto... Pode bem ser que saiais como
aquele que
agora levaram.
Era
necessrio ostentar um
soberbo desdm da ameaa. Comecei por lanar uma risada, muito cantada
(e na
verdade muito forada):
rei, tem
cautela! No caminhes sobre brasas, que podes escaldar os ps! Toca num
s dos
nossos cabelos e a tua destruio est certa.. No te disseram estes (e
apontei
para Infands e Scragga) que espcie de homens ns somos, e que grandes
artes
temos? Viste tu algum como ns, entre os filhos dos homens?
Nunca
vi
murmurou ele.
No
te contaram
esses como ns damos a morte de longe, atravs de um trovo?
No
creio!
exclamou Tuala, batendo fortemente o joelho. Mostrai-me primeiro, vs
mesmos, a vossa arte. Matai um desses homens que esto alm (apontava
uma
companhia de soldados magnficos, junto porta da aringa) e eu prometo
acreditar! Repliquei que no derramvamos nunca sangue de homem, seno
em justo
castigo. Mas que o rei soltasse um boi para dentro do ptio, atravs
dos
soldados, e antes de ele correr vinte passos, cairia morto, de chofre.
O rei
rompeu a rir.
Um
boi! Um boi!...
No, matai um homem para eu acreditar!
Perfeitamente!
exclamei eu, com tranquilidade.
Ergue-te tu,
rei, caminha atravs do ptio, e antes de chegares ao portal da aringa
rolars
morto no cho. Ou, se no queres ir tu mesmo, manda teu filho Scragga.
A isto,
Scragga deu um grito, lanou um pulo, e fugiu para dentro da aringa
real.
Perante a estranha audcia com que lhe propnhamos, para mostrar as
nossas
artes mgicas, matar um prncipe ou um boi, sua escolha Tuala ficou
esgazeadamente perplexo. O seu olho coruscante ora se pousava em ns,
ora no
cho. Depois, num tom surdo:
Bem,
que enxotem
uma vaca para dentro do ptio!
Dois
homens,
imediatamente, largaram correndo.
Baro
disse eu ao nosso amigo chegou a sua vez. Mate a vaca. No quero que
imaginem que s eu sei fazer as maravilhas.
O baro
tomou a carabina Express,
e esperou, no
fundo silncio que
se alargara. Por fim, porta da aringa, houve um rudo; e vimos entrar
por
ela, correndo, enxotada, uma grande vaca rua. Ao avistar a multido, o
animal
estacou, olhou estupidamente, deu uma volta lenta, e mugiu.
Agora!
gritei ao baro, vendo a vaca de lado e em bom alvo.
Bum! O
tiro partiu, a vaca
tombou, varada no corao. De toda a enorme soldadesca se exalou um
murmrio de
admirao e terror.
Ento
menti, rei
Tuala? exclamei eu, fitando o monstro com altivez.
No,
verdade
rosnou ele.
Baixara
o olho cruel,
parecia atemorizado. Eu continuei, com soberana confiana:
Escuta, Tuala! Na
arte mgica de destruir, ningum nos vence. Destrumos de longe a vida
dos
homens, e a vida dos animais... E as prprias armas, os ferros mais
duros,
reduzimo-los de longe a estilhaos. Escuta! Manda cravar alm no cho,
com a
ponta do ferro voltada para cima, essa lana que tens na mo, a tua
prpria
lana, que nunca foi vencida, Tuala! Manda, e eu te mostrarei!
Espantado,
o rei cedeu. Um
soldado cravou no cho, ao fundo da aringa, a lana real, com a ponta
faiscando
no ar, sob um raio de sol.
Bem
disse
eu. Agora, v em que estilhas vai ficar a tua lana invencvel.
Apontei,
disparei
a bala bateu na folha da lana e separou-a em bocados. Um sussurro
maior, de
assombro, rolou atravs do terreiro.
Dei
ento um passo para o
rei, com a carabina na mo.
Tuala, este tubo
mgico que troveja e destri um presente que te fazemos. Se te
mostrares leal
connosco, ensinar-te-emos o segredo de o usar e de vencer com ele. Mas
se
descobrirmos traio em ti, esse prprio tubo se voltar contra o teu
peito, e
sers como a vaca morta ou como a lana partida. Aqui tens. E
estendi-lhe a
arma. Ele tomou-a com desconfiana, com uma seca antipatia, e p-la no
cho,
aos ps, devagar.
Nesse
instante, aquela
figura estranha que o acompanhara e que me parecera uma velha macaca,
deu um
guincho e surgiu da sombra da cubata real, onde permanecera agachada.
Muito
devagar, muito devagar, vinha caminhando nas quatro patas mas quando
chegou defronte do rei, ergueu-se subitamente, arrojou de si a longa
cobertura
de peles que a envolvia, e mostrou, aos nossos olhos atnitos, um vulto
extraordinariamente sinistro e quase fantstico. Era uma mulher,
evidentemente,
uma mulher velhssima, tendo passado todos os limites conhecidos da
vida
humana. A face que voltou para ns estava reduzida ao tamanho de uma
facezinha
de criana, de uma criana de um ano, toda em rugas profundas,
ressequidas,
duras e amarelas, como se fossem entalhadas em marfim. A boca j no se
via, de
sumida, entre o queixo sado para fora e extremamente agudo e a testa
proeminente, lvida, com duas sobrancelhas ainda espessas e todas
brancas. A
cabea, de facto, pareceria a de um cadver curtido ao sol, se os olhos
grandes
no refulgissem com intenso fogo e vida. Mas a hediondez principal
daquele
semblante estava no crnio, todo nu, pelado, liso como uma bola, e a
que ela
fazia mover e enrugar a pele, como as cobras contraem e movem o capelo.
No se
podia contemplar aquela criatura sem um arrepio de honor. Durante um
momento, o
estranho monstro permaneceu imvel depois estendeu lentamente um
brao
descarnado, a mo seca de Parca, verdadeira garra armada de unhas
longas a
recurvas, e comeou, numa voz silvante que regelava:
Rei
Tuala, escuta!
Povo, escuta! Montes, rios, cus, coisas vivas e coisas mortas,
escutai!
Escutai, escutai, que o Esprito desceu dentro de mim e eu vou
profetizar!
As
slabas findaram num
uivo longo e triste. Toda a multido, que enchia a aringa, parecia
gelada de
terror. E eu mesmo, que vira tantas vezes na frica os esgares e as
declamaes
das feiticeiras, senti no sei que peso no corao. A velha era decerto
terrfica.
Som
de passos, som
de passos que vem! prosseguiu ela, com a garra trmula no ar.
So os passos da gente branca que vem de longe! a terra que treme sob
os
passos dos brancos. Cheiro a sangue, cheiro a sangue! So rios de
sangue que
vo correr. Eu j os vejo, j os sinto. Toda a terra est vermelha,
todo o cu
fica vermelho! Os lees lambem sangue por toda a parte! Os abutres
batem as
asas de alegria! Parou um momento. Os olhos rebrilhavam-lhe como lumes.
Depois
soltou um grito longo, como uma ululao sepulcral.
Sou
velha! Velha!
Velha! Tenho visto correr muito sangue. E hei-de ver correr muito
ainda, e
danar de gozo! Que idade pensais vs que eu tenho? Os vossos pais j
me
conheceram; e os pais dos vossos pais; e os outros pais que geraram a
esses.
Tenho visto muitas coisas, aprendi muitas coisas. J vi o branco, e sei
o
desejo que ele tem no corao. Quem fez a grande estrada que desce dos
montes?
Quem gravou as figuras nas rochas? No sabeis. Mas eu sei! Foi um povo
branco,
que estava aqui antes de vs virdes, que voltar e vos destruir e
ficar aqui
quando vs fordes como, a nuvem de p que passou!
E de
repente, deu um
passo, com os dois braos, as duas garras recurvas estendidas para ns:
Que
vindes aqui
fazer, gente branca? Vindes das estrelas? Das estrelas! Ah! ah! Vindes
procurar
um como vs? No est aqui. E o que veio, h muito, h muito, veio s
para
morrer. So as pedras que brilham que vs procurais? Eu conheo o vil
desejo do
corao do branco. procurai, procurai! Talvez as acheis quando o sangue
secar.
Mas voltareis vs s estrelas, ou ficareis aqui comigo?
Depois,
com arremesso
terrvel, voltando-se para Umbopa, que as suas garras estendidas
pareciam
querer despedaar:
E tu,
tu que tens
a pele escura, quem s, que procuras aqui? No as pedras que brilham,
nem o metal
que reluz! Ah, parece-me bem que te conheo! Oh cus! oh montes! Sers
tu?...
Eu conheo, eu conheo pelo cheiro o sangue que tens nas veias!
Desaperta essa
cintura...
Um
momento, ficou como
esgazeada em face de Umbopa. E subitamente, batendo os braos no ar,
caiu no
cho, como morta.
Um
bando de raparigas
surdiu da cubata, levou nos braos a feiticeira. Tuala erguera-se
sombriamente.
Todo ele tremia. Lanou um gesto . uns aps outros os regimentos
comearam a desfilar, at que todo o ptio ficou vazio e rebrilhando ao
sol.
Ento Tuala voltou-se para ns, com a face pavorosamente franzida:
Gente
branca!
Gagula anunciou males estranhos! Est-me a parecer que vos devo matar.
Eu
sorri, com
superioridade.
rei, tu viste a
vaca. Queres tu ser como a vaca?
gentes, vs
ameaais o rei! volveu ele, cerrando os punhos.
No
ameao. Digo
s que to fcil s nossas artes matar uma vaca, como matar um rei.
Pensa e
treme, Iuala!
O
enorme bruto levou os
dedos testa, reflectindo.
Ide
em paz!
disse por fim. Esta noite a Grande Dana. Vireis e vereis.
No tenhais medo que eu vos arme ciladas. E amanh decidirei.
Est
bem, Tuala
gritei eu, com um grande gesto.
E,
acompanhados por
Infands, recolhemos nossa aringa.
Quando
chegmos s
cubatas, depus num escabelo o revlver, e voltando-me para Infands,
que
entrara connosco:
O teu
rei Tuala
um monstro, Infands!
O velho
guerreiro teve um
suspiro.
Ai de
mim! Toda a
nao geme com as suas crueldades, meu senhor! Vereis esta noite. a
grande caa
aos feitios; vem Gagula e as suas farejadoras farejar, adivinhar
quem so,
de entre os guerreiros e o povo, os que meditam ou j cometeram
feitios e
malefcios. Se o rei apetece o gado de um vizinho, ou o detesta, ou
teme que
ele se lhe torne infiel, Gagula ou uma das farejadoras aponta para
esse
homem, e o homem logo morto... Quem sabe? Talvez hoje mesmo me chegue
a minha
vez. At aqui Tuala tem-me poupado em respeito minha experincia das
armas, e
porque os soldados me amam. Mas quem sabe? Tuala cruel, a terra toda
sofre e
est cansada dele!
Mas,
pela luz das
estrelas, porque no depondes vs ou matais essa fera? Infands
encolheu os
ombros:
o
rei!... E o
filho que lhe sucederia, Scragga, tem ainda o corao mais negro,
pesaria sobre
ns com mais furor. Se Imotu no tivesse sido morto, e se Ignosi, o
filhinho
dele, no tivesse acabado tambm no deserto com a me, ento havia uma
esperana no reino! Mas assim...
De
repente (e ainda me
parece incrvel que eu tivesse assistido a lance to romanesco, to
semelhante
aos que se lem nos contos de grande enredo), de repente ergueu-se uma
voz da
sombra da cubata:
E
quem te diz a ti
que Ignosi morreu?
Todos
nos voltmos,
espantados. Era Umbopa.
Que
queres tu
dizer? Que tens tu a falar, rapaz? gritou Infands, que, como velho
chefe de sangue real, detestava familiaridades.
Umbopa
deu para ns um
passo lento:
Escuta, Infands.
No verdade que o rei Imotu foi morto, e que a mulher e o filho
desapareceram? No verdade que correu ento voz de ambos se terem
perdido e
morrido nas montanhas?
Com um
gesto, Infands
concordou.
Escuta! Nem a me
nem o filho morreram. Galgaram as montanhas, atravessaram as grandes
areias
guiados por uma turba errante, entraram de novo em terras de relva e
gua,
viajaram durante muitas luas, e foram ter a um povo dos Amazulos, que
da raa
dos Cacuanas. Escuta ainda! O filho cresceu, a me morreu. O filho
cresceu, e
serviu nas guerras dos Amazulos. Depois foi ao pas dos brancos e
aprendeu as
artes dos brancos; trabalhou com as suas mos,- meditou dentro do seu
corao;
e sabendo que homens fortes vinham para o Norte, tomou servio com
eles,
atravessou outra vez as grandes areias, galgou de novo as serras de
neve, pisou
terra dos Cacuanas e est na tua presena, Infands!
E
subitamente, arrancando
a tanga que o cobria, ficou nu diante de ns, com os braos abertos,
gritando:
Sou
Ignosi,
legtimo rei das Cacuanas!
Infands
precipitara-se
sobre ele, com os olhos fora das rbitas, a examinar-lhe o ventre onde
corria,
numa tatuagem azul, o desenho de uma cobra que lhe dava volta cinta e
juntava
a boca com o rabo, logo debaixo do umbigo. Esta tatuagem a marca, o
emblema
real, que se grava a tinta azul, logo ao nascer, no legtimo herdeiro
do reino.
E a evidncia l estava, certamente irrecusvel, porque Infands caiu
sobre os
joelhos, bradando:
Crum!
Crum! o
filho de Imotu! o rei! o rei!
Umbopa
acudiu:
Ergue-te, meu tio
Infands, que ainda no sou rei! Mas com a tua ajuda, e a destes homens
fortes
com quem vim, posso ser rei! Diz, pois. Queres pr a tua mo na minha e
ser o
meu homem? Queres correr comigo os perigos que haja a correr para
derrubar
Tuala, o usurpador, o corao de fera? Diz.
O velho
Infands pousou
dois dedos na testa e pensou. Depois tornou a ajoelhar diante de
Ignosi, ps a
sua larga mo na mo dele, e murmurou, lentamente, como na frmula de
um
cerimonial:
Ignosi, legtimo
rei dos Cacuanas, ponho a minha mo na tua mo, e at morrer sou teu
homem!
Ns, de
p, em redor,
ficramos verdadeiramente atnitos! O baro e o capito John s muito
vagamente
compreendiam o maravilhoso lance. Tive de lhes traduzir, desenrolar os
detalhes. E ambos exalavam o seu assombro em exclamaes, contemplando
Umbopa
quando ele nos interpelou, com um gesto que comeava a ser rgio:
E
vs, homens
brancos de quem comi o po? Quereis vs ajudar-me tambm?
Nada
tenho que vos
oferecer em troco do vosso brao forte. Mas essas pedras brancas que
reluzem, e
que vs amais, se, como rei, eu as vier a possuir, podereis lev-las
tantas
quantas quiserdes. Basta isto?
Traduzi
de novo aos meus
amigos esta deslumbrante oferta. O baro franziu o sobrolho:
Quartelmar,
diga-lhe que um ingls no se vende por diamantes. Mas de graa, porque
sempre
o achei leal, porque gosto dele, e porque me apetece derrubar esse
monstro de
Tuala, estou pronto a ajudar Umbopa com o pouco que posso, que o meu
brao. E
tu, John?
O
capito encolheu os
ombros:
Que
lhe havemos
ns de fazer? Alm disso, homem que no briga enferruja. Em todo o
caso, ponho
uma condio: quero as calas.
Comuniquei
estas adeses a
Umbopa que apertou ardentemente as mos dos meus dois amigos.
E tu,
Macumazan,
mestre da caa, olho vigilante, mais fino que o bfalo, estars tu
tambm por
mim?
Cocei a
cabea, pensativamente:
Eu te
digo,
Umbopa, ou Ignosi, ou o que s; eu no gosto de revolues... Sou um
homem de
ordem e de mais a mais um cobarde. Escusas de te rir, sei perfeitamente
o que
digo, sou um cobarde. Por outro lado, tenho por costume ser fiel a quem
me foi
fiel; e tu, nesta jornada, andaste sempre como um servo dedicado e
bravo.
Portanto, s ordens! Mas h uma coisa. Eu sou um pobre caador de
elefantes e
tenho de ganhar a minha vida. Tu falaste a nos diamantes. Eu aceito os
diamantes. Se lhes pudermos lanar mo, aceito-os, quantos mais e mais
grados,
melhor! No que eu acredite muito neles. Mas, se aparecerem, desde j
te
prometo que, com licena tua, hei-de abarrotar as algibeiras...
Tantos quantos
puderes levar! exclamou Umbopa radiante.
E j se
voltava para
Infands, naquele triunfal entusiasmo de pretendente a quem as adeses
afluem
quando eu o interrompi vivamente:
Alto!
Temos ainda
outra, Ignosi. Ns viemos, como tu sabes perfeitamente, procura do
irmo do
Incubu (era a alcunha do baro, em zulu). Quero que me prometas que
hs-de
fazer tudo o que puderes, como rei, para nos ajudar a encontr-lo...
Comea por
te informar agora com teu tio Infands.
Ignosi
pousou os olhos em
Infands, com singular majestade:
Meu
tio Infands,
em nome do emblema sagrado que me envolve a cinta, e como teu rei
legtimo,
intimo-te a que me digas a verdade. Houve j algum homem branco que,
antes
destes, tivesse vindo terra dos Cacuanas?
Nunca, meu senhor!
E
poderia algum
ter vindo, sem que tu o soubesses?
Nenhum poderia ter
vindo sem que eu o soubesse.
O baro
deu um longo
suspiro.
Bem!
Bem!
exclamei logo, para lhe no matar de todo a esperana, e cortar os
tristes
pensamentos. Quando Ignosi for rei, teremos ento mais facilidade de
procurar o irmo do Incubu, at aos confins do reino, e nas terras que
esto
alm! Agora vamos ao que urge. Que plano tens tu, Ignosi, para
recuperar a
coroa? Porque enfim, meu rapaz, bom ser rei de direito divino, mas...
No
tenho plano. E
tu, meu tio Infands?
Infands
pensou um
instante, com a barba sobre o peito.
Esta
noite
disse ele por fim a caa aos feitios. Muitos vo morrer, e em
muitos
outros mais recrescer o dio contra Tuala. Depois da dana, falarei a
alguns
dos grandes chefes que podem dispor de regimentos. necessrio que os
chefes
te venham ver, Ignosi, se convenam com seus olhos que s o rei. E se
eles
puserem as mos nas tuas, amanh tens vinte mil lanas para combater
por ti.
Porque a guerra certa. Depois da dana, se eu viver, se todos
vivermos, virei
aqui, para combinar na escurido. Mas a guerra certa!
Neste
momento houve fora
do terreiro um brado, anunciando que se avizinhavam mensageiros do rei.
E trs
homens entraram, cada um deles trazendo erguida nas mos uma cota de
malha, que
rebrilhava como prata, e uma magnfica acha de batalha.
Um
arauto que os precedia
exclamou, batendo no cho com o conto da lana:
Presentes de
Tuala, o rei, aos homens que vm das estrelas!
Agradecemos ao rei
volvi eu secamente. Ide!
Apenas
os homens partiram,
examinmos as cotas com grande interesse. Eram maravilhosas, de uma
malha to
fina, to cerrada, to elstica e macia, que uma armadura toda podia
caber no
cncavo das suas mos. Perguntei a Infands se eram fabricadas no pas.
No,
meu senhor,
so coisas que existem h muito, e que herdmos de pais para filhos. J
muito
poucas restam. S os de sangue real as podem usar. E o rei que as
mandou, que
est muito contente ou que est muito assustado. Em todo o caso no h
feno que
as atravesse, e bom ser, meus senhores, que as useis esta noite na
dana.
Quando
Infands saiu,
ficmos conversando neste estranho incidente que transformava a nossa
pacfica jornada numa aventura poltica. Como notou o baro, fora este,
decerto, desde a nossa partida do Natal, um dos dias mais ricos de
emoes e
surpresas.
Extraordinrio
disse o capito. Tem de ser registado no livro de bordo.
Chamava
ele livro de
bordo a um almanaque do ano, com folhas brancas intercaladas, onde
costumava
assentar os episdios da nossa espantosa empresa.
Que
dia hoje?
perguntou ele, sentando-se, com o almanaque sobre o joelho.
Trs
de Julho.
O baro
e eu voltramos a
examinar as ddivas de Tuala quando, da a instantes, o capito
exclamou com os olhos no almanaque:
curioso! Amanh,
quatro de Julho, h um eclipse total, visvel em toda a frica! Deve
comear s
duas e quarenta minutos... Bom terror vo ter os pretos!
Escassamente
demos ateno
quela notcia; e como o capito findara de escrever, preparmo-nos
para partir
para a grande dana, porque o Sol j descia, e j ia fora um rumor de
regimentos passando. Pelo prudente conselho de Infands envergmos as
cotas de
malha, que achmos confortveis e leves. A do baro, homem de forte
estatura,
vestia-o como uma pelica; a do capito e a minha danavam-nos sobre as
costelas, com pregas pouco marciais.
A Lua
surgia,
magnificamente clara, quando Infands apareceu, com todas as suas
plumagens e
armas de gala, acompanhado de vinte guerreiros, para nos escoltar ao
palcio.
Afivelmos os revlveres cinta, empunhmos as achas de guerra, e
largmos
consideravelmente comovidos.
No
terreiro, onde
estivramos de manh, encontrmos a mesma formidvel parada de
regimentos,
perfazendo talvez vinte mil homens mas formados de modo que entre
cada
companhia ficava um carreiro aberto para as farejadoras de feitios
(como nos
foi explicando Infands). No havia outra luz alm da Lua, cheia e
lustrosa,
que punha longas fieiras de fascas nos ferros altos das lanas.
Daquela escura
massa de homens, do luar, do silncio, saa uma indefinvel impresso
de
majestade e tristeza.
Est
aqui todo o
exrcito? murmurei eu para Infands.
Um
tero, no
mais, meu senhor. Outro tero ficou nas guarnies. E o outro est
fora, em
torno ao palcio, para o caso de sedio, quando comear a matana...
Escuta, Infands!
Achas que corremos perigo?
No
sei, espero
que no... Mas no mostreis medo! E se escaparmos com vida esta
noite... quem
sabe? Talvez amanh Tuala seja como o raio que feriu e se apagou. amos
no
entanto caminhando, atravs dos regimentos mais imveis que bronzes,
para o
espao vazio diante da cubata real, onde havia, como de manh, uma fila
de
escabelos de honra. E ao mesmo tempo outro grupo, com um brilho e rudo
de armas,
saa da aringa real.
Tuala
disse baixo Infands e Scragga, e Gagula, e os homens que matam.
Os
homens que matavam
eram uns doze negros gigantescos, de faces hediondas, com plumagens
vermelhas,
armados de facalhes e de azagaias pesadas.
Bem-vindos, gentes
das estrelas! gritou logo Tuala, abatendo-se pesadamente sobre um
escabelo. Sentai, sentai! E no percamos o tempo, que a noite curta
para as grandes coisas que tm de ser feitas. Olhai em roda, e dizei-me
se nas
estrelas tivestes jamais tantos valentes juntos... Mas vede tambm como
eles j
tremem, os que abrigam maldade no seu corao!
Comeai! Comeai!
ganiu na sua silvante voz Gagula, que se agachara aos ps do rei.
As hienas tm fome de ossos, os abutres tm sede de sangue...
Comeai!
Comeai!
Houve
durante momentos um
silncio lgubre, que pesava horrivelmente, como um prenncio de
matana e de
horror.
O rei
ento agitou a
lana. Imediatamente vinte mil ps se ergueram, e trs vezes, em
cadncia,
bateram n cho que tremia. Depois, l ao fundo, de entre as densas e
escuras
filas de homens, subiu ao ar um canto solitrio, arrastado, plangente,
infinitamente triste, findando neste estribilho:
Qual a
sorte, sobre a
terra,
De quem teve
de nascer?
E os regimentos todos volviam,
numa nica, grande
e rolante voz:
Morrer!
Mas pouco
a pouco, as companhias, umas aps outras, foram entoando uma estrofe de
cano,
at que toda a vasta multido armada formava um coro coro brbaro,
rude, informe, onde todavia, por vezes, distinguamos como conscientes
expresses de sentimentos notas suaves e lentas de amor, brados
triunfais de guerra, cnticos solenes de orao. Depois os cantos
vrios
fundiam-se num lamento nico, contnuo, ululado, como de um povo num
funeral.
De repente tudo estacava. E de novo o lgubre estribilho gemia no ar:
Qual a
sorte, sobre a
terra,
De quem teve
de nascer?
E de novo a multido clamava,
num unssono
desolado:
Morrer!
O canto
por fim findou, um sombrio silncio caiu, o rei levantou as mos.
Imediatamente,
sentimos
como o trote ligeiro de ps de gazelas; e, de entre os profundos
renques dos
soldados, apareceram correndo para ns estranhas e medonhas figuras.
Percebi
que eram mulheres, quase todas velhas, pelos longos cabelos brancos e
soltos
que lhes batiam as costas. Traziam as faces pintadas s listras brancas
e
vermelhas; dos ombros pendiam-lhes, esvoaando, e misturadas s
madeixas,
longas peles de serpente; em torno cinta caam-lhes como berloques de
ossos
humanos, que chocalhavam sinistramente, e cada uma brandia na mo uma
curta
forquilha.
Ao
chegarem em frente a
Gagula pararam, ferindo o cho com as forquilhas. E uma, a mais alta,
alargou
os braos, gritou:
Me,
aqui estamos!
Bem,
bem
ganiu o decrpito monstro. Tendes hoje os olhos bem claros, Isanusis?
Bem
claros, me!
Tendes hoje os
ouvidos bem abertos, Isanusis?
Bem
abertos,
me!
Ide
ento!
Farejai, farejai! Entre esses todos descobri os que querem mal ao seu
vizinho,
os que possuem o gado indevido, os que tramam contra o rei, os que
devem morrer
por ordem de cima! Farejai! Vede os pensamentos que se no mostram,
ouvi as
palavras que se no dizem! Ide, meus lindos abutres! Os homens das
estrelas tm
fome e sede de ver a grande Justia! Agora!
Com
uivos horrendos, as
sinistras criaturas dispersaram correndo, para todos os lados, atravs
das
fileiras armadas. No as podamos seguir a todas, na sua obra mortal.
De sorte
que, por mim, cravei a ateno na que ficou junto de ns, uma velha,
esgalgado
feixe de ossos, que deitava lume pelos olhos. Quando esta harpia chegou
em
frente aos soldados, parou farejando. Depois rompeu a danar, girando
sobre si mesma, to
rapidamente que as longas grenhas soltas pareciam uma estrela feita de
estrigas
de linho a redemoinhar pelo ar. No entanto ia gritando por entre silvos
de
alegria: J o farejo, o homem do mal! Ali est ele, o que envenenou a
me!
Acol treme o que pensou mal do rei!
E, cada
vez mais
vertiginosamente, vinha girando, girando, at que a espuma lhe saa aos
flocos
da boca e os ossos lhe rangiam alto! De repente estacou, hirta, tesa,
como
petrificada. Depois, devagar, devagar, como uma fera que rasteja,
avanou de
forquilha estendida para a fileira de soldados, que visivelmente se
encolhiam
num indominvel terror. Parou ainda, outra vez tesa e hirta. Por fim,
com um
brado estridente, arremeteu, e bateu com a forquilha no peito de um
rapaz
soberbamente forte. Dois camaradas imediatamente o agarraram pelos
braos, o
empurraram para defronte do rei. O desgraado caminhava sem
resistncia,
inerte, j morto na alma. O bando dos executores avanara a passos
graves.
Mata!
disse o rei.
Mata!
ganiu Gagula.
Mata!
rugiu Scragga.
E antes
que as palavras se
perdessem no ar, o miservel tombara morto, com uma azagaia cravada no
peito, o
crnio aberto por uma pancada de dava.
Um
contou
Tuala, sorrindo com, satisfao.
Mal
findara o feito
horrvel, j outro soldado era arrastado como uma rs um chefe
decerto,
esse, porque lhe pendia dos ombros a capa de pele de leopardo. Dois
golpes de
facalho, vibrados com destreza, bastaram para o acabar sem um suspiro.
Dois!
contou o rei.
E assim
at cem! At cem!
E ns ali,
aterrados,
imveis, impotentes para suster a carnificina, maldizendo surdamente a
nossa
impotncia! Eu findara por fechar os olhos. A meia-noite, enfim, houve
uma
suspenso. As farejadoras, esfalfadas, em grupo defronte do rei,
limpavam
lentamente o suor. Respirei, num infinito alvio, supondo que findara
todo este
incomparvel honor. Mas de repente, com desagradvel surpresa,
descobrimos
Gagula, erguida, apoiada num cajado, dando alguns passos que tremiam e
lhe
sacudiam o crnio calvo de abutre. Coisa pavorosa, ver o velhssimo
monstro,
ordinariamente vergado em dois pela decrepitude, ganhando alento,
remoando
quase, j direito, j vibrante, medida que se acercava da fileira dos
homens,
a recomear por gosto prprio a obra sinistra das farejadoras! Mas
nela o
estilo era diferente. No danava, no uivava. Dando umas corridinhas
curtas,
aqui e alm, cantava baixinho e tristemente, como para se embalar.
Assim
trotou, assim cantarolou, at que, de repente, se precipitou sobre um
magnfico
velho, perfilado em frente a um regimento e tocou-o silenciosamente
com
o cajado. Um murmrio de dor, de contida indignao, correu entre os
soldados
que ele evidentemente comandava. Todavia dois deles, empolgando-lhe os
pulsos,
arrastaram-no como um boi para o aougue. Soubemos depois que era um
chefe de
grande riqueza e de grande influncia, primo do rei. Foi trucidado com
azagaia,
facalho e dava e Tuala contou cento e um...
Quase
imediatamente
Gagula, depois de alguns saltinhos curtos de macaca, comeou a avanar
para
ns, num movimento muito lento de valsa, que era medonho na repulsiva
bruxa.
Justos Cus!
murmurou o capito John. Querem ver que, agora, connosco!
Tolice!
acudiu o baro, plido todavia.
Eu por
mim senti um suor
frio na espinha. E Gagula, cada vez mais perto com os olhos a
saltar-lhe do crnio, um fio de baba na boca.
Por fim
estacou, como um
perdigueiro que avista a caa.
Qual
ser?
murmurou o baro.
Como se
lhe respondesse, a
velha deu um pulo, e tocou Umbopa (ou Ignosi) sobre o ombro.
Morte!
gritava ela. Morte! Cheiro-lhe o sangue! Est cheio de malefcio e de
traio. Mata-o depressa, rei, mata-o depressa antes que por ele gema
em
desgraa o reino!
Houve
um silncio, um
pasmo. E nem sei como (porque sou realmente um cobarde) achei-me diante
de
Tuala, falando com soberana firmeza:
Este
homem, rei,
o servo dos teus hspedes, e quem deseja o seu sangue como se
desejasse o
nosso! Pela lei de hospitalidade, que cumpre aos reis manter, exijo a
tua
proteco para ele!
Tuala
franziu o sobrolho:
Gagula, me das
Isanusis, sabedora das artes, cheirou-lhe a traio dentro das veias. O
homem
tem de morrer, brancos!
Quem
lhe tocar
exclamei, batendo furiosamente com o p no cho que tem de
morrer!
Agarrem-no!
bradou Tuala aos carrascos que esperavam em roda, j todos manchados
de
sangue.
Dois
brutos romperam para
ns mas hesitaram. Ignosi erguera a azagaia, decidido a morrer
combatendo.
Para
trs, ces!
berrei eu, num tom tremendo. Tocai num s cabelo do homem, e vs
mesmos, e a vossa feiticeira, e o vosso rei, no vereis mais a luz do
dia! E
bruscamente apontei o revlver a Tuala. O baro tinha j o seu erguido
contra
um dos carrascos; e John marchava sobre Gagula.
Houve
um instante de
indizvel assombro.
Decide depressa,
Tuala! gritei, tocando-lhe quase a testa com o cano do revlver.
O
monstro, visivelmente
apavorado, rosnou, num tom surdo:
Tirai
para l os
vossos canos mgicos! Invocastes as leis da hospitalidade, e s por
amor delas,
no por medo de vs, poupo a vida a esse co... Ide em paz.
Est
bem, Tuala! E
lembra-te sempre que contra os homens das estrelas nada podem os homens
da
Terra!
O rei,
ainda trmulo de
furor impotente, ergueu a lana. Os regimentos comearam logo a
desfilar.
Da a
pouco estvamos na
nossa aringa conversando luz de uma das curiosas lmpadas que usam
os
Cacuanas, em que o pavio feito de fibra de palmeira, e o azeite de
toucinho
de hipoptamo. E o que afirmvamos todos com convico, com ardor, era
a
necessidade e a justia urgente de ajudar a conspirao de Umbopa
contra um
vilo como Tuala!
VIII
A GRANDE DANA
J
muito tarde, quase de
madrugada, Infands apareceu, como prometera, com os chefes seus
amigos, todos
homens de porte marcial e decididos. A conferncia foi longa e curiosa.
Ignosi,
convidado a expor a sua romntica histria e os seus direitos ao reino
dos
Cacuanas, comeou por tirar a tanga em silncio e mostrar o emblema
sagrado, a
grande serpente tatuada na cinta. Cada chefe, um a um, tomava a
lmpada, e,
agachado, examinava o sinal com respeito; depois, em silncio, passava
a
lmpada a outro.
Em
seguida Ignosi, reatando
a tanga, contou a sua vida estranha, desde a fuga com a me atravs do
deserto.
Os chefes permaneceram calados. Infands, por seu turno, recordou os
longos
crimes de Tuala, retraou as matanas dessa noite de festa em que dois
guerreiros valentes, de casas ilustres, tinham sido trucidados, s por
possurem grandes rebanhos que Scragga apetecia. Por fim, fez um grande
apelo
razo e ao corao dos chefes, que s tinham a escolher entre o monstro
que,
por avidez e capricho, lhes arrancava a vida, ou o homem que lhes
garantia a
existncia feliz nas suas senzalas e a posse tranquila dos seus gados.
Mas, com
espanto nosso, os chefes pareciam hesitantes e desconfiados.
Finalmente,
um deles,
homenzarro possante, de carapinha branca, deu um passo, e declarou que
a terra
na verdade gemia sob a crueldade de Tuala, e que seu prprio irmo
nessa noite
estava sendo pasto das hienas... Mas aquele era um singular e confuso
caso! E
quem lhes afianava que eles no ergueriam as suas lanas por um
impostor? A
guerra era certa. Muitos ficariam fiis a Tuala, porque mais se adora o
Sol que
brilha, que o Sol que ainda no nasceu. Necessitavam, pois, uma
evidncia. E
quem melhor lha poderia dar que os homens das estrelas, senhores das
grandes
artes mgicas, que tinham trazido Ignosi ao pas, e sabiam decerto os
segredos?
Se
ele o
herdeiro legtimo, os homens que o trouxeram das estrelas que o provem
fazendo
um grande milagre. S assim o povo acreditar e tomar armas por ele!
Mas a
cobra, o
emblema sagrado! exclamei eu.
No
basta. A cobra
podia ser pintada no ventre j depois de ele ser homem...
Necessitamos
de um
milagre! O povo no se move, nem ns mesmos, sem um milagre! Um
milagre! A
situao era terrvel e grotesca. Exigir-se um
milagre a trs honestos e ingnuos mortais, que nem sequer sabiam, como
qualquer prestidigitador de feira, escamotear uma noz dentro da manga!
E terem
os honestos mortais de fazer um milagre ou de perder a vida!...
Voltei-me para os meus companheiros, a explicar rapidamente o risvel e
perigoso
lance.
Parece-me que se
pode arranjar disse John, depois de um curto silncio.. Pea a
estes amigos que nos deixem ss, Quartelmar.
Abri a
porta da cubata, os
chefes saram. E apenas os passos morreram na sombra:
Temos
o eclipse!
exclamou o nosso admirvel John.
Era o
eclipse que ele
descobrira na vspera, folheando o almanaque (o livro de bordo), e
que nesse
dia, s duas e quarenta minutos, devia ser visvel em toda a frica.
A
est o milagre!
afirmava John. anunciar aos chefes que, para lhes provar que
Ignosi o rei, e que devem pegar em armas por ele, ns faremos
desaparecer o
Sol!
A ideia
era esplndida. O
nico receio que o almanaque estivesse errado.
No!
um
almanaque martimo, no pode estar errado. Os eclipses so calculados
matematicamente. No h nada mais pontual que um eclipse... Durante
meia hora,
trs quartos de hora talvez, esta regio toda ficar em trevas.
Eu,
por mim
disse o baro parece-me que devemos arriscar o eclipse.
V
pelo eclipse!
Mandmos
Umbopa buscar os
chefes. Quando voltaram, cerrei a porta da cubata com um sombrio
aparato de
mistrio, e comecei por lhes declarar, majestosamente, que ns, os
homens das
estrelas, no gostvamos de alterar o curso natural das coisas e
mergulhar o
mundo em terror e confuso... Mas, como se tratava de uma grande e
santa causa,
estvamos decididos a fazer um milagre.
Escutai! Julgais
vs que um homem pode soprar sobre o Sol, e apag-lo?
Os chefes olharam para mim,
recuando com assombro.
No
murmurou um deles no h homem que o possa fazer! O Sol mais forte
que toda a Terra!
Perfeitamente
conclu eu. Pois amanh, depois do meio-dia, ns, homens das
estrelas, apagaremos o Sol durante
uma hora, espalharemos trevas sobre a Terra, e ser o sinal de que
Ignosi o
verdadeiro rei dos Cacuanas e que o povo deve tomar armas por ele. Ser
bastante este milagre?
O chefe
da carapinha
branca abriu os braos para ns, esgazeado:
gentes das
estrelas, senhores das grandes artes, esse milagre ser mais que
bastante!
Bem.
Tereis o
milagre. Agora Infands, que experiente, diga o momento em que mais
convm
que ns apaguemos o Sol.
Apagar o Sol!
murmuraram os chefes entre si. A grande lmpada! O pai de tudo,
que brilha eternamente!
Fala,
Infands!
Meu
senhor, na
verdade um milagre espantoso que vs prometeis! Mas enfim... O melhor
momento
o da dana das flores, que h-de logo comear ao meio-dia.
As mais
lindas raparigas
de Lu esto l, para danar. E aquela que Tuala achar mais linda de
todas ,
segundo o costume, morta por Scragga em sacrifcio aos Silenciosos, as
figuras
de pedra que esto alm na montanha vigiando. Que os meus senhores
nesse
momento apaguem o Sol, salvem a rapariga, e o povo acreditar!
O
povo na verdade
acreditar! exclamaram todos os chefes.
A
duas milhas de
Lu continuou Infands h uma colina em forma de meia-lua, que
realmente uma fortaleza, onde esto aquartelados o meu regimento e trs
outros
que estes chefes comandam. Mas podemos arranjar de modo que, ainda esta
manh
cedo, marchem para l trs ou quatro regimentos dos mais fiis minha
vontade.
E se os meus senhores apagarem com efeito o Sol, eu poderei, a favor da
escurido, faz-los sair do terreiro real e da cidade, e lev-los para
essa
fortaleza, onde ficaro a salvo e donde comearemos a guerra contra o
rei.
Est
entendido
resumi eu. Agora ide, que queremos dormir e depois combinar com
os espritos!
Com
longas reverncias,
Infands e os chefes deixaram a nossa aringa. O Sol ia nado.
Oh
meus amigos
exclamou Ignosi, apenas eles partiram. certo que podeis fazer
esse milagre, ou estveis vs ganhando tempo e soltando no ar palavras
vs?
Parece que no nos
h-de ser difcil, meu Umbopa, quero dizer, meu Ignosi declarei eu
sorrindo.
espantoso!
Apagar o Sol... E, todavia, sois ingleses, e o ingls tudo pode! Mas
ah, se vs
fizerdes isso por mim, o que no farei eu por vs?
Uma
coisa j tu
nos podes prometer, Ignosi! acudiu gravemente o baro. , se
chegares a ser rei com o nosso auxlio, acabar com as farejadoras de
feitios, com matanas como as desta noite, e no consentir que homem
algum
seja condenado sem provas de crime, e sem ter sido julgado pelos doze
mais
velhos do lugar.
Era o
jri, santssimo
Deus! Era a nobre instituio do jri que este digno baro queria
implantar no
centro selvagem da frica! No h seno um liberal ingls para estas
esplndidas imposies de civilizao e de ordem. Com razo hesitou o
astuto
Ignosi! Com razo conservou longo tempo dois dedos sobre a testa,
calculando.
Por fim, num rasgo de generosidade ou de condescendncia:
Os
costumes dos
negros no se podem moldar pelos costumes dos brancos. Contudo, uma
coisa te
prometo, Incubu! que no haver no meu reino, nem matanas de festa,
nem
execues sem julgamento. Ests contente?
O baro
apertou-lhe a mo
em silncio.
Da a
pouco estvamos
estendidos nos leitos de folhas secas, e profundamente dormimos, at
que Ignosi
nos acordou s onze horas. O nosso primeiro cuidado foi instintivamente
correr
fora da cubata, olhar para o Sol. Nunca esse divino astro me pareceu
to
brilhante e to seguro da sua luz. Nem um sinal de eclipse! Uma
radincia
firme, absoluta, que nenhum movimento dos corpos celestes parecia poder
alterar!
Pois,
meu digno
astro murmurei eu, ousando interpelar directamente a fonte de toda a
vida se continuas assim, todo o dia, acabas, sem querer, com trs
honrados homens!
Depois
de almoar, um
slido e valente almoo que nos amparasse na crise iminente, revestimos
as
cotas de malha, afivelmos os cintures de cartuchame, e de outros
modos nos
apetrechmos para a grande dana. E ao meio-dia para l voltmos os
passos
que a inquietao interior e a certeza do perigo no permitiam que
fossem nem bem alegres nem bem ligeiros!
O
terreiro real oferecia,
nessa manh, um aspecto bem diverso e onde na vspera reinara o
horror,
transbordava agora a graa. Em lugar de fuscos e duros guerreiros, todo
o
espao estava ocupado por longas filas de raparigas cacuanas, escuras
tambm,
verdade, mas lindas, pelas formas, a expresso, a viosa mocidade. Toilette,
no tinham
nenhuma nem
mesmo o pano, a tanga da
frica civilizada; mas salvavam esta encantadora deficincia pelo
franco luxo
das flores. Todas traziam na cabea uma coroa de flores; grinaldas de
flores,
grandes como festes, envolviam-lhes a cinta; e cada uma segurava nas
mos uma
palma verde e um lrio branco. Nos escabelos de honra j estava o rei
acompanhado por Infands, Scragga, guardas emplumados e a sinistra
Gagula.
Reconhecemos tambm, de p, por trs dele, alguns chefes que nessa
noite tinham
connosco conspirado.
Tuala
acolheu-nos com
muita cordialidade ostensiva dardejando ao mesmo tempo sobre Umbopa
um
olhar sangrento e mau.
Bem-vindos, homens
das estrelas, bem-vindos! Vedes hoje aqui coisas diversas; mas no to
belas,
to belas! Beijos e festas de mulheres so doces; mas mais doce o
brilho das
lanas e o cheiro do sangue. Olhai em redor, gentes das estrelas; e se
quiserdes casar nesta terra, escolhei, escolhei... Podeis levar destas
raparigas as melhores, e tantas quantas pedirem os vossos desejos.
O nosso
John, extremamente
sensvel e amoroso como todos os marinheiros, deu logo um passo, teve
um
sorriso, como se se preparasse a aceitar e a recrutar ali, para ocupar
o seu
corao na terra dos Cacuanas, um serralhozinho de donzelas escuras.
Mas eu,
homem idoso e experiente, receando as complicaes do eterno feminino,
apressei-me a recusar:
No,
Tuala,
obrigado! Os homens brancos que vm das estrelas s se ligam s
mulheres brancas
que esto nas estrelas...
Tuala
riu:
Est
bem, est
bem... Ns temos um provrbio cacuana que diz: Aproveita a que est
perto,
porque com certeza a que est longe te engana! Mas talvez seja de
outro modo
nas estrelas... Sede pois bem-vindos, e comece a dana!
Um
grande tant ressoou,
acompanhado por finas flautas de cana em que trs mocinhos sopravam
agachados
no cho. As fileiras de raparigas avanaram, cantando um canto muito
lento e
doce e fazendo ondular nas mos as palmas e os lrios. Era um grande
bailado brbaro, infinitamente pitoresco. As raparigas ora saltavam
brandamente
sobre as pontas dos ps, numa graciosa languidez de gestos; ora,
enlaadas aos
pares, redemoinhavam vivamente; ora, fileira contra fileira, simulavam
uma
batalha, tendo por armas os ramos de palmas; ora, ajoelhando em
reverncia,
ofertavam os lrios ao rei. Depois eram grandes marchas bem ordenadas
em que o
canto tomava um tom triunfal; e logo uma alegre confuso, numa grulhada
melodiosa, com um vivo saltar de corpos geis que espalhava pelo ar
as
ptalas das flores desfolhadas.
Por fim
o bailado parou; e
uma esplndida rapariga, de olhos radiantes, mais airosa que uma Diana
caadora, avanou devagar, e rompeu numa dana estranha, cheia de graa
e de
brilho, em que os movimentos tudo traduziam, desde os requebros
fugidios da
noiva tmida, at aos pulos bravos da cora ciosa... Assim danou
longamente;
os seus olhos cada vez mais rebrilhavam; a grinalda que lhe envolvia a
cinta
desfizera-se flor a flor; e todo o corpo adorvel lhe reluzia ao sol,
como um
bronze humedecido. Por fim, cansada, sorrindo, recuou at ao grupo das
bailadeiras, onde ficou de olhos baixos, a refrescar-se com o seu ramo
de
lrios. Veio ento outra, muito alta, danar; e outra depois, e muitas
ainda,
todas belas a hbeis mas nenhuma como a Diana caadora tinha beleza,
graa e consumada arte.
O rei
ergueu a mo, o
tant cessou.
Gentes das
estrelas disse ele qual delas achais mais linda?
A
primeira
respondi eu irreflectidamente.
E logo
me arrependi,
lembrando o que anunciara Infands que a mais linda tinha de perecer,
sacrificada aos dolos. Ao mesmo tempo deitei um olhar ao Sol, que
continuava a
refulgir com uma teima desesperadora.
Tuala,
no entanto, soma:
Os
vossos olhos,
gentes, das estrelas, vem ento: como os meus. A primeira a mais
bonita.
mau para ela, que tem de morrer!
Tem
de morrer!
ecoou Gagula, que parecera dormitar durante a festa, e acordava, j
interessada, desde que pressentia sangue e dor.
Morrer!
exclamei eu, sorrindo tambm, como se no acreditasse. Porqu, rei?
Ela danou bem, a todos agradou. Alm disso, moa e linda. Seria
cruel e
estranho recompens-la com a morte.
A fera
afectou uma
simpatia, que, nele, arrepiava:
Tambm o lamento,
mas o costume do meu reinado. Os Silenciosos, que esto alm na
montanha
vigiando, precisam receber o seu tributo. H uma profecia do nosso povo
que
diz: O rei que no dia da grande dana no sacrificar aos Silenciosos a
mais
linda das donzelas perecer, e com ele a sua casa. Por no ter
cumprido a
ordem de cima, caiu meu irmo e em seu lugar reino eu... Ide
(voltando-se
para os guardas), trazei a virgem! E tu, meu Scragga, agua a lana!
Dois da
guarda real
marcharam para a pobre e doce rapariga, que desfolhava nervosamente as
ptalas
do seu lrio branco. De repente, e s ento, ela pareceu compreender a
fatalidade que a perdia, por ser formosa e pura. Deu um grito, tentou
fugir.
Duas mos fortes agarraram-na e trouxeram-na, toda em lgrimas e
debatendo-se,
para diante de Tuala.
Que
nome o teu,
linda moa? ganiu a horrvel Gagula. No respondes? Queres que
o filho do rei tenha de erguer a lana, sem saber quem tu sejas?
A isto,
Scragga deu um
salto com sofreguido, alando a sua imensa azagaia.
Vendo o
ferro luzir, a
pobre rapariga cessou toda a luta entre as mos fortes dos guardas. E
com
grandes lgrimas que lhe caam, ficou toda a tremer.
O
medonho Scragga teve uma
risada bestial:
Como
ela treme,
como ela treme diante da minha fora!
Ah,
canalha, se te
apanho a jeito! rosnou o capito, apertando na mo o revlver.
No
entanto Gagula, com
atroz zombaria, animava a desgraada:
Sossega! Diz o teu
nome. Vem, filha! No temas!
me!
balbuciou a pobre criatura entre soluos, numa voz que desfalecia.
me! O meu nome Fulata, e sou da casa de Suco. Mas porque hei-de eu
morrer,
eu que no fiz mal nenhum?
Tens
de morrer
prosseguiu a hedionda velha para contentar os que vigiam alm na
montanha. Mais vale dormir de noite que trabalhar de dia. Mais vale
estar
quieta e morta que agitada e viva. E tu, filha ditosa da casa de Suco,
vais
morrer s mos reais do filho do nosso rei.
Olhei
ansiosamente para o
Sol. Nada! Um brilho impassvel, que achei quase cruel!
No
entanto a pobre Fulata,
apertando desesperadamente as mos, suplicava, com gritos de angstia:
me, rei, no
me deixeis morrer!... E eu to nova! Pois nunca mais hei-de ver a
aringa de meu
pai? nem embalar meus irmos pequeninos? nem cuidar dos cordeiros
doentes? E
porqu? Mandaram-me aqui para danar e eu dancei! O meu noivo est l
fora
minha espera! Minha me ficou sentada debaixo das machabeles at que eu
volte
para mungir as vacas... E porque hei-de eu morrer? Nunca fiz mal
nenhum; e no
terreiro da nossa casa deixava sempre cair gros de aveia, para os
pssaros
levarem aos ninhos...
Nas
prprias faces dos
guardas e dos chefes, perfilados junto a Tuala, se espalhava um ar de
piedade.
Muitas raparigas soluavam baixo. E subitamente, o capito John, sem se
poder
conter mais, arrancou o revlver da cinta e fez um movimento to
saliente, de
to clara interveno que a rapariga viu, num relance compreendeu...
Desprendendo-se dos guardas, que a seguravam frouxamente, veio
arrojar-se aos
ps de John, abraando-lhe as pernas nuas.
pai
branco, que
vens das estrelas! gritava ela. Deixa acolher-me sombra da
tua fora... Salva-me destes homens, e de Gagula, a me que to
cruel...
Tornei a olhar para o Sol... E com um alvio, uma alegria to intensa
que ainda
hoje o record-la me aquece o corao, vi uma linha de sombra, muito
fina
ainda, surgindo orla do disco radiante!
O
eclipse!
gritei eu para os outros. John, conserve a a rapariga atrs! E armas
na mo, rapazes!
Imediatamente
avancei para
o rei.
Tuala
exclamei com firmeza e arrogncia. Ns, gentes das estrelas, no
podemos consentir nesta maldade! Tal no ser! Deixa que a rapariga
volte para
a sua morada!
Tuala
ergueu-se com um
pulo brusco de surpresa e de clera. E dos chefes, das agitadas filas
de
mulheres, subiu um murmrio que era de assombro, e talvez de esperana.
No
consentis!
bramiu o rei, com o olho sangrento
dardejando lume. E quem s tu, perro branco, para vir latir contra o
leo na sua caverna? Tal no ser! E como o podes tu impedir? Vai
talvez a tua vontade
prevalecer contra a minha fora? Scragga, mata a criatura! E vs,
guardas, ol,
agarrai esses homens!
Uma
multido de soldados
surgiu, correndo, de trs da aringa real. O baro, Umbopa e o capito
(com
Fulata agarrada a ele) vieram pr-se ao meu lado, de carabinas
apontadas.
Outro
olhar meu ao Sol! A
linha de sombra, lenta e gradualmente, avanava sobre o globo
rutilante. Com
esplndida confiana, ergui a mo, bradei:
Parai! Ns, os
filhos das estrelas, decidimos que a rapariga no morrer! E se algum
ousar ir
contra a nossa vontade, ou avanar contra ns um passo, ns, os mgicos
das
grandes artes, apagaremos o Sol e
mergulharemos o mundo em trevas! O efeito foi tremendo. Os soldados
estacaram.
E Scragga ficou diante de ns, com a lana erguida no ar, como uma
figura de
pedra. Mas Gagula erguera-se, sacudindo os braos com furor:
Ouvi,
ouvi o
grande mentiroso, que diz que apaga o Sol como um lume da terra! Pois
que o
faa, e a rapariga ir livre para a sua morada! Mas se o no fizer,
rei, que
ele morra com ela, e com ele morram os ces malditos que vm latir
contra ti!
Sem mais, ergui a mo solenemente para o Sol (movimento que logo
imitaram John
e o baro) e rompi a bradar. No me lembro j das coisas absurdas que
tumultuosamente atirei ao divino astro. Recitei-lhe versos de
Shakespeare,
pedaos da Bblia, provrbios, datas, nomes de firmas comerciais que me
acudiram, as ruas da cidade do Cabo que sei eu? Tudo o que me aflua
aos lbios, e que fosse em ingls, na lngua mgica. Ousei mesmo
espantosas familiaridades
com o respeitvel centro do sistema planetrio. Gritava: Anda-me
assim,
solzinho da minha alma! Para diante, valente! Deixa avanar essa rica
sombra!
Ah! que ests um catita, meu astro! Mais, mais!...
E o Sol
obedecia! A mancha
escura, ntida e convexa, avanava, comia a luz imortal. Um grande
sussurro de
terror agitava a multido. Voltei ento a falar cacuana, livremente:
V
tu, rei! V
tu, Gagula! Vede vs, chefes! Mentem ento os homens das estrelas?
Quisestes
a treva eterna, ei-la que vos vem tragar!... Sol, pai de tudo,
reluzente e
triunfante, retira a luz, some-te nossa ordem, mata o mundo com
escurido e
frio, e que, sem ti, parem para sempre estes coraes cruis!... O Sol
vai
morrer! Gritos de terror ressoavam j no terreiro. As mulheres, cadas
de
joelhos, choravam, implorando misericrdia. E o rei, calado, tremia.
S
Gagula resistia ao
pavor.
Vai
passar, vai
passar! uivava ela. Eu j vi o Sol assim. Ningum o pode
apagar. Ficai quietos! Sossegai! A sombra vem e vai... Eu j vi, eu que
sou a
mais velha, e conheo os segredos!
Eu por
mim animava os
companheiros:
V,
rapazes! J
no sei que hei-de dizer ao Sol. Veja se se lembra de alguns versos,
baro.
Tudo serve, at pragas!
E John,
admirvel
marinheiro, rompeu ento a praguejar. Foi sublime. Teve todas as pragas
clssicas e teve-as inditas. Nem eu supunha mesmo que a humanidade
possusse, no seu vocabulrio, uma tal riqueza de blasfmias! O que o
Rei do
Dia ouviu! No entanto a mancha negra alastrava. Estranhas, sinistras
sombras
flutuavam no ar. Uma triste quietao descia sobre a terra. Todos os
pssaros
se tinham calado. Ao longe os ces uivavam.
E a
mancha crescia,
crescia... A atmosfera tornara-se espessa. J mal distinguamos as
faces cruis
da gente real. Esmagadas de temor, as mulheres nem tugiam. Por fim John
parou a
torrente de invectivas. Eo que restava do Sol parecia uma luz
agonizante.
O Sol
morreu!
berrou de repente Scragga. Os bruxos das estrelas mataram o
Sol! Tudo vai morrer nas trevas!...
E fosse
o delrio do medo
ou da raiva, ergueu a azagaia, arremessou-a a toda a fora contra o
peito do
baro. Mas a cota de malha repeliu o ferro. E antes que ele pudesse
revibrar o
golpe, o baro arrancara-lhe a lana das mos e passou-lha atravs do
corao.
Com um uivo hediondo, Scragga tombou morto.
Quase
nada restava da luz.
Era como se tudo acabasse conjuntamente, o Sol, o mundo, e a
descendncia do
rei! Num terror indizvel, a multido de raparigas largou fugindo, em
confuso
e gritos, para as portas da aringa. Foi um pnico estonteado. Os
guardas,
arrojando as armas, galgavam as estacadas. Os chefes, aos saltos por
cima dos
escabelos, desapareciam como lebres. E por fim, o prprio e ferocssimo
rei,
com Gagula atrs, arremeteram para as cubatas, ganindo num pavor vil.
Uma
debandada que nos deixou ss, eu, os amigos, a pobre Fulata ainda
agarrada a John, Infands, os chefes que conspiravam, e o cadver de
Scragga.
Chefes!
gritei eu. Eis o milagre que tnhamos prometido. Sabeis agora que
Ignosi o rei nico e forte. O feitio est trabalhando. Corramos para
a
cidadela que dissestes, enquanto a treva dura!
Vinde!
exclamou Infands, segurando-me pela mo. E vs todos segui! O dia
nosso!
Ao
chegarmos porta da
aringa, a luz findou inteiramente.
Agarrados
uns aos outros
pelas mos, com Fulata no meio, fomos tropeando atravs da escurido.
Dentro
das senzalas ouvamos gemidos de terror. E para o aumentar, lanvamos
a
espaos, atravs da treva, um lgubre brado de revolta e de guerra:
Morte
a Tuala!
IX
ANTES DA BATALHA
Durante
mais de uma hora
caminhmos, atravs da escurido, guiados por Infands e pelos chefes
at que de novo surgiu, como um fino trao luminoso, a orla do Sol. Da
a pouco
havia j luz suficiente; e achmo-nos ento longe de Lu, junto de uma
larga
colina de duas fartas milhas de circunferncia, em forma de ferradura,
e toda
ela inteiramente plana no topo. Desde tempos imemoriais, aquele
planalto fora
(segundo nos disse Infands) aproveitado como acampamento permanente, e
ordinariamente ocupado por uma guarnio de trs mil homens. Nessa
manh,
porm, maneira que amos trepando os flancos da colina, luz j viva
e
quente do Sol, descobramos sucessivos regimentos, formando uma diviso
de
dezoito ou vinte mil homens, quase todos veteranos. Estavam ainda sob o
espanto
e terror da misteriosa treva que de repente os envolvera. E foi em
silncio que
passmos atravs das suas filas cerradas, em direco a um grupo de
cabanas que
se erguia a meio do planalto. Com surpresa e grande alegria,
encontrmos l
dois servos, espera, carregados com todas as nossas bagagens,
cantinas e
munies que nessa manh deixramos nas cubatas de Lu. Numa trouxa, as
calas
de John. Com que sofreguido ele as envergou, pudico homem!
Fui
eu que mandei
vir tudo, cautela! explicou o servial Infands. Quem sabe
quantos dias estaremos neste deserto!
Como
no havia tempo a
desperdiar, o velho e activo guerreiro deu ordem para que se formassem
as
tropas imediatamente. Era necessrio antes de tudo (disse ele) aclarar
aos
regimentos os motivos da revolta j decidida pelos chefes e
apresentar-lhes
Ignosi, o legtimo rei por quem iam combater.
Meia
hora depois os
regimentos (a flor do exrcito dos Cacuanas) estavam em formatura nos
trs lados
de um imenso quadrado. Do lado aberto ficmos ns com Ignosi, o velho
Infands
e os chefes conjurados. Logo que um arauto intimou silncio Infands
avanou: e com um calor, um entusiasmo, irresistivelmente persuasivos,
narrou a
histria de Ignosi, o seu nascimento real, a serpente tatuada na cinta,
a
trgica morte de seu pai mo de Tuala, a sua fuga atravs dos montes,
o seu
exlio entre estranhos. Depois retraou o reinado cruento de Tuala, os
seus
crimes, as suas espoliaes, as frias e inteis crueldades. Em seguida
contou
como os homens brancos das estrelas, que de l de cima tudo vem, se
tinham
compadecido da grande aflio que ia no reino dos Cacuanas; como tinham
ido
ento buscar Ignosi, o rei legtimo, s terras distantes onde ele
definhava no
exlio, e o haviam trazido pela mo, atravs dos areais e dos montes,
ao pas
de seus pais; como nessa manh, para mostrar a Tuala e a todos o seu
poder
mgico, e provar aos chefes descontentes que Ignosi era rei, eles com
as suas
artes tinham apagado e depois tornado a acender o Sol; e como, enfim,
esses
mgicos que nenhuma fora vencia estavam dispostos a derrubar Tuala, o
falso
rei e pr em seu lugar Ignosi, o rei verdadeiro!
Apenas
ele findara, entre
- um longo murmrio de aprovao, Ignosi deu dois passos, e, alteando a
sua
nobre estatura, apelou para as tropas. Elas tinham ouvido Infands,
seu
tio! Cada palavra dele luzia como a verdade. Os Cacuanas agora s
podiam
escolher entre Tuala, o monstro que os roubava, os trucidava, e cobria
a terra
de horror e desordem, e ele, rei legtimo, que no permitiria mais no
reino a
caa aos feitios, nem matanas de festa, nem castigos sem julgamento,
nem a
opresso dos mais fortes... Pelo contrrio, sob ele, s haveria paz e
abundncia! A todos os que ali estavam e o ajudassem daria cubatas,
mulheres e
gados e todos, ganha a vitria sobre Tuala, iriam viver nas suas
senzalas bem providas, em descanso e alegria para sempre. De resto, os
homens
das estrelas estavam com ele, a seu lado, para manter os seus direitos.
E quem
podia ir contra a fora das suas artes mgicas? No tinham eles visto o
Sol
apagado, depois outra vez brilhante, ordem dos espritos brancos?
Um
rumor de aquiescncia,
de adeso, corria j entre as tropas. Ignosi ento recuou um passo, e
erguendo
no ar o seu formidvel machado de guerra:
Eu
sou o rei! Na
verdade vos digo que sou o rei! E se a h algum, de entre vs, que
diz que eu
no sou o rei, que saia a terreiro, se bata comigo, e bem cedo o seu
sangue,
correndo no cho, provar que na verdade sou rei. Escolhei pois entre
mim e
Tuala, chefes, soldados, vs todos! Sou eu o rei!
s o
rei!
foi a universal, aclamadora resposta, que atroou toda a colina.
Bem!
Tuala est
mandando j emissrios a reunir os seus homens, para nos combater. Os
meus
olhos esto abertos e vero aqueles que mais fiis me so, e que
merecero mais
terra, mais gado, mais riqueza. E agora ide, e preparai-vos para as
batalhas,
em defesa do vosso rei!
Houve
um silncio. Um dos
chefes ergueu a mo; e os vinte mil homens, ferindo o solo com as
azagaias,
soltaram a grande saudao real: Crum! Crum! Crum! Ignosi estava
aclamado
rei. Os batalhes imediatamente recolheram aos seus acampamentos. No
planalto
reinou silncio e ordem.
Logo
depois celebrmos um
conselho de guerra, com todos os capites. Era evidente que em breve
seramos
atacados pelas tropas fiis a Tuala. J do alto da nossa colina ns
vamos
regimentos marchando, a concentrar-se em Lu e um incessante movimento
de armas por toda a estrada de Salomo. Do nosso lado contvamos com
vinte mil
homens. Tuala, segundo o clculo dos chefes, poderia ter reunidos, na
manh
seguinte, trinta e cinco a quarenta mil soldados. Mas desses, muitos
eram
recrutas; e a flor do exrcito, os veteranos endurecidos, os capites
de
experincia, estavam felizmente connosco, sobre a colina da revolta.
O
primeiro cuidado era
fortificar a nossa posio. Comemos por obstruir, com grossos
rochedos, todos
os carreiros que subiam da plancie. Nos pontos mais acessveis
erguemos
estacadas e trincheiras. Acumulmos, orla do planalto, montes de
pedras para
arremessar sobre os assaltantes. Aqui e alm cavmos fossos. E, como
todo o
exrcito trabalhava, ao fim da tarde a colina fora convertida em
cidadela.
Justamente antes do pr-do-sol, vimos um grupo de homens que, de uma
das portas
de Lu, avanava para ns, fazendo soar um tant. Um deles trazia na mo
uma
palma verde. Era um arauto.
Ignosi,
Infands, dois ou
trs chefes, eu e os amigos, descemos ao seu encontro. Vimos um soberbo
homem,
ainda moo, com a pele de leopardo aos ombros.
Sade!
gritou ele, parando e agitando a palma. O rei envia o seu saudar
queles que lhe fazem uma guerra infiel. O leo envia o seu saudar aos
chacais.
Fala!
bradei.
Estas
so as
palavras do rei: Entregai-vos minha merc, antes que a minha forte
mo cai
sobre vs! Assim disse o rei. J foi arrancada ao touro negro a
espdua
direita! J o rei o anda enxotando, ensanguentado, em volta ao
acampamento!
Quais
so as condies de Tuala?
perguntei com curiosidade.
O
arauto declarou que as
condies eram misericordiosas e dignas de um grande rei. Muito pouco
sangue o
contentaria. De cada dez homens um seria morto, os outros perdoados;
mas o
branco Incubu que matara Scragga, o servo Ignosi que pretendia o seu
trono, e
Infands que preparara a rebelio, seriam postos a tormentos, em
sacrifcio aos
Silenciosos. Tais eram as misericordiosas condies do rei.
Consultei
um instante com
os chefes, e repliquei, num tom estridente, para que todos os soldados
ouvissem,
por sobre a colina:
Volta
para Tuala
que te mandou, co, filho de co! E diz-lhe em nome de Ignosi,
legtimo rei,
e de Infands, seu tio, e dos homens das estrelas que apagam o Sol, e
de todos
os chefes e soldados aqui juntos, diz a Tuala que antes que o Sol d
duas
voltas o cadver de Tuala jazer hirto e frio no terreiro de Tuala...
Vai e
treme, co, filho de co!
O
oficial riu, com
arrogncia:
No
se assustam
homens com palavras inchadas! Amanh se ver em que terreiro e que
corpos
jazero hirtos e frios. Adeus, pois, homens das estrelas. Para meu
prprio
regalo, espero que tenhais o brao to forte como tendes ousada a
lngua.
Com
este sarcasmo o
valente voltou costas. Quase imediatamente a noite desceu. luz da Lua
ainda
continuaram os trabalhos da defesa. Depois, j por noite alta, quando
tudo se
completara, o baro, Ignosi e eu, acompanhados por um chefe, desce-mos
a colina
a visitar os postos avanados. A maneira que caminhvamos, vamos de
repente
surgir dos stios menos esperados, de uma cova na terra, de uma moita
de
arbustos, de um monto de rochas, alguma enorme figura emplumada, com a
ponta
da azagaia rebrilhando lua, que, trocada a palavra de passe, logo se
sumia,
como dissolvida na sombra das coisas. A vigilncia era realmente
perfeita.
Demos assim toda a volta colina, que tommos a subir pela vertente
norte,
atravs das companhias de soldados adormecidos. A lua batia nas lanas
ensarilhadas. Aqui e alm uma sentinela destacava imvel, com as suas
altas
plumas ondeando brisa fria da noite. E os robustos homens escuros,
estirados
no cho, uns contra os outros, no confuso abandono da fadiga e do sono,
formavam como um vasto monto de humanidade j postada e preparada para
a
sepultura. Quantos daqueles estariam ainda vivos quando na outra noite
de novo
nascesse a Lua? Estranha fatalidade e tristeza da vida! Muitos desses
tinham
alegria e paz nas suas aringas. Um prncipe ambicioso passava. E eis
que
milhares, que ali dormiam um sono tranquilo, cairiam, varados por
lanas, seriam
frios cadveres, desapareceriam em p impalpvel, sem de si deixar mais
vestgio que folhas de rvores que um vento leva. E ns mesmos quem
sabe? tomaramos ns a ver a Lua brilhar naquela colina?
Baro
disse eu de repente, dando voz a estes pensamentos , sinto-me num
lamentvel estado de atrapalhao e de medo.
O
amigo Quartelmar
costuma sempre queixar-se...
No,
no! Desta
vez srio. Nem sinto as pernas. Ns amanh somos atacados com foras
colossalmente superiores e no escapa um de ns. estpido! E para
qu? No
temos nada com as questes dinsticas dos Cacuanas! Somos estrangeiros,
somos
neutros!
verdade. Mas j
agora, estamos envolvidos na aventura e necessrio lev-la a cabo
airosamente. E depois, que diabo, Quartelmar! Mais vale morrer de
repente, numa
batalha, que durante meses na cama!...
Eu
pensei comigo (e bem
estupidamente) que o melhor era no morrer nem numa cama, nem numa
batalha. E
da a instantes recolhamos nossa estreita senzala, a dormir algumas
horas
antes da grande aco.
Infands
veio-nos acordar
ao romper da alvorada, dizendo que se observavam j do lado da cidade
movimentos de tropas, e que j ligeiras escaramuas tinham obrigado as
nossas
sentinelas avanadas a recolher. Comemos logo, febrilmente, os nossos
preparativos. O baro, pelo princpio de que na Cacunia se deve ser
cacuano,
armou-se e enfeitou-se como um guerreiro selvagem pele de leopardo
aos
ombros, enorme pluma de avestruz presa testa, cintura de rabos de
boi, escudo
de ferro coberto de couro branco, machada de combate, facalhes de
arremessar,
azagaia, todo o complicado armamento de um chefe negro. E devo
confessar que,
assim armado e emplumado, era uma esplndida e formidvel figura! O
capito
John no causava tanta impresso. Em primeiro lugar, insistira em
conservar as
calas que Infands lhe obtivera; e um cavalheiro baixote e gordote, de
monculo, sua de um lado e a cara rapada do outro, com uma cota de
malha de
ferro metida para dentro das pantalonas, grande lana e chapu-coco,
oferece na
realidade um espectculo mais estranho que imponente. Eu por mim, ao
contrrio,
tinha tirado as calas para correr mais lesto, se tivssemos de
retirar; mas a
fralda da camisa aparecia-me por baixo da cota de malha; um facalho
que
pendurara cinta batia-me lamentavelmente nas canelas; o escudo
enfiado no
brao entanguia-me os movimentos; e sentia em geral que no apresentava
para
combate uma figura suficientemente herica. De sorte que espetei uma
imensa
pluma no meu bon de caa e procurei dar ao rosto uma expresso de
ferocidade.
Alm do arsenal de armas selvagens, tnhamos naturalmente as nossas
carabinas,
que trs soldados atrs conduziam com os sacos de munio.
Apenas
armados, engolimos
pressa o almoo, e abalmos. Numa das extremidades do planalto do
monte havia
uma espcie de casebre de pedra, que servia ao mesmo tempo de
quartel-general e
de torre de vigia. Encontrmos a Ignosi, magnificamente emplumado e
apetrechado. Com ele estava Infands; e, como guarda real, o regimento
de
Infands, decerto o mais numeroso e aguerrido de todo o exrcito. Este
regimento tinha por nome os Pardos, porque usava plumas pardas na
cabea. Era composto de
trs mil praas; e estava colocado de reserva, deitado em ordem e por
companhias sobre o capim que ali crescia. Os chefes, num grupo, junto
do
casebre, com as mos em pala sobre os olhos, observavam o movimento das
tropas
de Tuala que vinham nesse momento saindo de Lu em longas colunas
semelhantes a formigueiros. Cada uma dessas colunas tinha de onze a
doze mil
homens. Logo que saram as portas de Lu e se acharam na plancie,
pararam;
depois, formadas em batalha, marcharam uma para a direita, outra para a
esquerda, a terceira em direco nossa colina.
Bom
murmurou Infands vamos ser atacados por trs lados!
X
O ATAQUE COLINA
Devagar,
em perfeita
ordem, as trs colunas avanaram. A da direita e a da esquerda,
separadas, e
obliquando como para envolver e cercar a nossa posio; a do centro,
direita,
sobre ns, marchando por aquela lngua da plancie que entrava pela
nossa
colina dentro colina que (como disse) tinha a forma de uma meia-lua
com
as duas pontas voltadas para a cidade de Lu. A umas quinhentas jardas
esta
coluna parou dando tempo a que as outras circundassem a nossa
posio.
O plano das gentes de Tuala era evidentemente dar, por cada lado,
nossa
cidadela, um assalto simultneo e brusco.
Ah!
suspirou John, olhando aquelas multides espalhadas em baixo quem
tivera aqui uma metralhadora!
Nem
falemos nessa
delcia! exclamou o baro com igual pesar. Em todo o caso,
Quartelmar, veja se a sua carabina chega at quele magano, de pele de
leopardo, que parece comandar a fora.
Carreguei
tranquilamente a
carabina com bala, agachei-me por trs de uma pedra e apontei. O pobre
comandante
de pele de leopardo avanara das fileiras uns trinta passos, seguido
por uma
ordenana, a examinar a nossa posio; e erguia justamente o brao,
quando eu
lhe mandei uma bala. Tombou sem um movimento mais, com a face no cho.
Os
nossos regimentos, espantados, aclamaram este milagre do homem das
estrelas; e
eu (tanto a guerra nos endurece o corao) gostei destes aplausos.
Creio mesmo
que agradeci, como um actor! No entanto o baro apontara a um outro
oficial,
que correra a recolher o cadver do camarada e que, por seu turno,
bateu com os braos no ar, caiu morto. A fora inimiga, aterrada,
comeou logo
a recuar. Os nossos uivavam de deleite e de furor. John juntara-se a
ns com a
sua carabina; e antes que a diviso se tivesse retirado para fora do
nosso
fogo, abatemos uns dez ou doze homens. Como efeito moral parecia excelente.
De
repente, porm, ouvimos
um imenso clamor nossa direita, e um clamor igual nossa esquerda.
Eram as
duas colunas circundantes que nos atacavam. Imediatamente a massa de
homens em
frente - de ns rompeu, avanando por aquela lngua de plancie que
penetrava
em subida suave no interior da nossa meia-lua. Vinham num passo vivo,
certo,
elstico, que cadenciavam entoando um canto rouco. Comemos de novo a
fazer
fogo. Muitos homens caram. Mas era como se atirssemos pedras a uma
grande
vaga de equincio. A mar humana subia.
Subia
com grandes brados,
repelindo os nossos postos, colocados entre as rochas, base da
colina. A sua
marcha, porm, diminua de mpeto maneira que a subida se convertia
em
ladeira, depois em ngreme pendor de monte. A onde comeava o monte,
estacionava a nossa primeira linha de defesa. J de lado a lado, entre
as
foras, se comeavam a atirar as tolas, grande facas de arremesso que
faiscavam no ar. Os que
avanavam vinham bradando: Tuala, Tuala! Chiel, chiel! Os nossos replicavam: Ignosi,
Ignosi! Chiel,
chiel! As
primeiras azagaias
entrechocaram-se; e, com o encontro, peito a peito, das duas massas de
homens,
na vertente da colina, a batalha comeou.
As
foras que atacavam
eram esmagadoras; e a nossa primeira linha, onde os homens caam como
folhas no
Outono, cedeu e reentrou na segunda linha de defesa. A luta aqui foi
terrvel;
mas os nossos recuaram, e a terceira linha entrou em batalha orla j
do
planalto. O baro, cujos olhos se acendiam, no se conteve mais.
Brandindo a
sua machada de guerra, arremessou-se para o meio do combate, seguido do
capito
John. Ao avistar a gigantesca figura do homem das estrelas que vinha
em seu
socorro, os nossos soldados bradaram com entusiasmo: Nanzie Incubu!
Chiel,
chiel! E,
carregando com
redobrado vigor, em poucos momentos repeliram a diviso de Tuala, que
j
cansada, sem poder romper a sebe viva de lanas que a continha, voltou
a descer
a colina em confuso. Nesse instante tambm um mensageiro esbaforido
veio
anunciar a Ignosi (ao lado de quem eu ficara) que o ataque na esquerda
da
colina fora rechaado; e j eu e Ignosi nos congratulvamos, quando,
com grande
horror, vimos os nossos que estavam defendendo a direita vir correndo
pelo
planalto, acossados por multides inimigas, que evidentemente naquele
ponto
tinham rompido as nossas linhas. Ignosi bradou uma ordem. Imediatamente
o
regimento dos Pardos se
desdobrou, para reter a debandada dos nossos, rechaar a invaso. E,
sem que eu
compreendesse bem como, instantes depois achei-me envolvido numa
furiosa
carnificina. Tudo o que me lembra o estridente rudo dos escudos de
ferro
entrechocando-se e logo adiante a apario de um enorme bruto
furioso,
com os olhos sangrentos a saltarem-lhe das rbitas, que erguia sobre
mim uma
longa azagaia. O meu revlver findou-lhe os furores para todo o sempre.
Mas,
quase em seguida, senti uma pancada na cabea e quando tornei a abrir
as plpebras estava no casebre do quartel-general, deitado numa
esteira, com o
excelente John a meu lado, velando.
Ento!
exclamou ele ansiosamente, pondo no cho a cabaa de gua com que me
borrifava.
Antes
de responder,
ergui-me muito devagar, apalpei com cuidado o meu precioso corpo.
Bem,
obrigado.
Estou perfeitamente bem!
Graas a Deus!
Quando o vi, trazido numa padiola, deu-me uma volta o corao!
No,
no foi
desta! Levei s uma bordoada, suponho eu. E a batalha?
Por
hoje,
repelimos a pretalhada do rei. Mas perdemos perto de dois mil homens.
Veja
aquele horror, Quartelmar!
E o bom
John mostrava fora
o terreiro, convertido num hospital de sangue. Para transportar os seus
feridos, os Cacuanas usam um longo e esguio tabuleiro com uma argola a
cada
canto. E destes tabuleiros, postos no cho, cada um com o seu homem,
havia
longas filas por entre as quais caminhavam, curvados, os cirurgies
cacuanas. O mtodo destes clnicos simples e piedoso. Se a ferida se
apresenta curvel, o soldado besuntado com unguentos nativos, e
isolado nas
senzalas. Se a ferida incurvel ou muito grave, o cirurgio, com uma
lanceta,
corta subitamente uma artria do homem, que expira em poucos instantes
sem
sofrer.
Fugindo
a este
espectculo, John e eu seguimos para o outro lado do quartel-general,
onde
encontrmos o baro (ainda de machado na mo, todo tinto de sangue)
reunido em
conselho com Ignosi, Infands e dois chefes idosos.
Ainda
bem que
chega, Quartelmar! gritou o baro. Eu no posso compreender o
que quer esta gente... Parece que vamos ser cercados!
E assim
era, segundo
explicou lentamente Infands. Tuala, repelido, reunira reforos, e
parecia
tomar disposies para pr stio colina, e vencer-nos pela fome e
pela sede.
Os mantimentos no durariam mais de dois dias. Mas o pior era que a
nascente de
gua, sorvida a cada instante por dezasseis mil bocas sedentas, estava
prestes
a esgotar-se; e antes da manh seguinte o exrcito gemeria de sede.
Nestas
conjunturas, Ignosi queria saber o que propunham os homens das estrelas.
Dize
tu, Macumazan,
velha raposa, que tens visto muito e sabes todas as artes.
Conversei
um momento com
os amigos, e declarei em seguida ao conselho que, sem po e sem gua,
nada nos
restava seno fazer imediatamente uma tremenda surtida contra Tuala.
Todos
aprovaram com ardor a minha ideia. Mas sob que plano se tentaria esse
ataque?
Cabia a Ignosi, o rei, decidir e os olhos de cada um voltaram-se para
o
nosso antigo servo, que, agora, nas suas armas e plumagens de guerra,
tinha um
magnfico ar de rei guerreiro.
Depois
de pousar dois
dedos sobre a testa, maneira zulu, Ignosi falou e desenvolveu um
plano
excelente. Ao comeo da tarde (era ento meio-dia), os Pardos, comandados por Infands e o
baro, desceriam
aquela lngua da plancie que penetrava na meia-lua da colina, e
avanariam
sobre Tuala, enquanto ele prprio, Ignosi (que eu devia acompanhar),
ficaria de
reserva para trs com tropas frescas. Decerto Tuala, vendo os Pardos
romper numa
surtida, lanaria sobre eles toda a
sua fora para os esmagar. Enquanto na lngua de terra se estivesse
dando esse
primeiro recontro, uma tera parte das nossas foras desceria pela
ponta
direita da colina, levando consigo John, o do olho rutilante; outra
tera parte
iria de manso pela ponta esquerda; subitamente, ambas cairiam sobre os
flancos
de Tuala e nesse instante ele, Ignosi, desceria pela frente com as
tropas frescas, e, se a fortuna estivesse com ele, cearamos nessa
noite,
contentes, na cidade de Lu!
O plano
foi acolhido entre
aplausos e imediatamente entrou em preparao, com uma presteza, um
mtodo, que fez honra aos oficiais cacuanas. No espao de duas horas
foram
servidas as raes aos homens, as trs divises formadas, a ordem de
ataque bem
explicada aos chefes, e toda a fora (menos uma guarda que se deixou
aos feridos)
colocada nos seus postos.
Era,
pois, outra imensa
carnificina que se preparava e em que me veria envolvido eu, homem de ordem, de gostos
simples, que tanto
detesto violncias! Quando John, ao partir com a ala direita, nos veio
dizer
adeus, um pouco comovido eu, com a voz abalada tambm, s tive estas
palavras:
Se
escapar, amigo
John, louve a Deus, e no se meta mais com pretendentes!
XI
A BATALHA DE LU
No
contarei os pormenores
sangrentos deste grande combate, que se ficou chamando a batalha de
Lu. Todos
estes medonhos conflitos de selvagens, mesmo travados com a disciplina
dos
Cacuanas, se assemelham. sempre uma vasta confuso de corpos escuros
e
emplumados, um estridente rudo de escudos entrechocando-se, azagaias
reluzindo
no ar, saltos, guinchos, uivos, clamores imensos, onde destaca uma nota
assobiada, o sgghi! sgghi! que
solta o selvagem quando trespassa com o ferro o inimigo.
O plano
de Ignosi, de
resto, foi triunfalmente realizado. Os Pardos avanaram naquela lngua de
terra que penetrava na nossa
meia-lua, e com admirvel heroicidade sustentaram os ataques de
regimentos aps
regimentos arremessados sobre eles por Tuala.
Quando
dos Pardos restava
apenas metade, e a ateno de todo o
exrcito inimigo estava concentrada nesta luta com o herico regimento,
as duas
alas nossas, que tinham caminhado pelos dois cornos da meia-lua, caram
sobre
os flancos desprevenidos do inimigo, como um crculo de ces de fila
sobre
lobos descuidados. Comeou uma pavorosa matana. Ignosi carregou ento
de frente
com as reservas frescas e decidiu a batalha. Eu fiz parte dessa
carga:
e, no sei como, achei-me ao p do baro, que parecia o verdadeiro deus
da
guerra, com os longos cabelos de ouro a esvoaar ao vento, todo ele
vermelho de
sangue, e soltando a cada grande golpe de machado o velho grito saxnio
de
ataque: O-hoy! O-hoy! Tambm
me parece que avistei Tuala na confuso, coberto com a sua cota de
malha,
arremessando as tolas, as
facas enormes dos Cacuanas, que dois guerreiros atrs dele traziam em
sacos de
couro. Lembro-me ainda tambm de um chefe que, em vez de escudo,
erguia, para
se defender, o cadver de um Pardo, e que combatia cantando. De
resto, tudo se me confunde na
memria o sangue correndo, os corpos tombando, um grande estridor de
armas, um imenso esvoaar de plumas.
Com o
embate das duas
colunas nossas sobre os flancos do exrcito de Tuala, a batalha ficou
ganha
e dentro em breve a vasta plancie que se estendia entre a nossa
colina
e a cidade de Lu estava cheia de soldados fugindo em terrvel desordem.
O
regimento dos Pardos, no
entanto (ou o que dele restava), reunira numa pequena elevao de
terreno
onde tristemente verificmos que, dos trs mil valentes que o
compunham, ainda de manh, apenas acudiam chamada cento e noventa e
cinco
homens; Entre eles estava Infands, que combatera heroicamente, tendo
somente
um leve golpe no brao. Ignosi, com um grupo de chefes, entre os quais
vinha
John (ferido numa perna e manquejando), em breve se veio juntar a esta
gloriosa
falange dos Pardos. E foi
seguido dela, como da sua guarda de honra, que o rei, e ns com ele,
marchmos
sobre a cidade de Lu. s portas da cidade, ainda fechadas, estavam j
postados
grossos destacamentos dos nossos para as atacar. Mas dentro, os
soldados de
Tuala, inteiramente desmoraliza-dos pela derrota do seu rei, no
pareciam
dispostos resistncia. Com efeito, s primeiras intimaes dos
arautos, a
ponte levadia da porta chamada Real foi descida; e, seguindo
Ignosi, penetrmos enfim na
cidade vencida. Nas ruas, s portas das aringas, nos terreiros, por
toda a
parte se apresentavam soldados, com a cabea baixa, os escudos e as
lanas
pousadas aos ps em sinal de submisso, que saudavam Ignosi como rei.
Assim
chegmos aringa real.
No
terreiro silencioso,
porta da sua grande senzala, solitrio, abandonado, sem um soldado, sem
um
corteso, sem uma das suas mil mulheres, estava Tuala, sentado num
escabelo,
com o rosto cado sobre o peito, as mos pousadas sobre os joelhos.
Cheguei a
sentir uma vaga piedade pelo pobre rei derrotado! Um nico ser lhe
ficara fiel,
Gagula que, agachada aos seus ps, rompeu num fluxo de injrias, mal
nos viu assomar ao terreiro, seguindo o triunfante Ignosi.
Tuala,
esse, no parecia
ver, nem sentir. S quando Ignosi parou, e os soldados bateram em
cadncia com
os contos das azagaias no cho, o velho tirano ergueu a cabea
emplumada.
Depois, atirando sobre ns um olhar mais reluzente que o grande
diamante que
lhe ornava a testa:
Salve, rei!
gritou ele a Ignosi, com amargo escrnio. Tu que, por feitios
dos homens das estrelas, seduziste os meus regimentos, diz, que sorte
me
destinas?
A
sorte de meu
pai, que tu mataste! foi a fria e dura resposta.
Bem!
Saberei
morrer, para que te fique como exemplo quando a tua vez chegar. Mas
reclamo um
privilgio da famlia real dos Cacuanas. Quero morrer combatendo.
Concedo
respondeu Ignosi. Escolhe o teu homem. Eu no posso, porque o rei no
se bate em combate singular.
O
sinistro olho de Tuala
percorreu-nos lentamente a todos. E, como durante um momento se fixou
em mim,
eu senti ali o mais atroz pavor da minha vida aventurosa! Justos Cus!
Se ele
se quisesse bater comigo? Tambm,
tomei logo a minha resoluo recusar, fugir, ainda que fosse apupado
por toda a nao cacuana! Felizmente, o bruto escolheu:
Incubu!
exclamou, estendendo a mo para o baro. Tu que mataste meu filho,
querers tu lutar comigo, ou ser chamado um cobarde?
No
gritou
logo Ignosi , Incubu no se bater contigo!
Decerto no, se
tem medo.
Infelizmente
o baro
compreendera. Todo o sangue lhe subiu s faces. E avanou logo, de
machado
erguido.
Acudimos,
suplicando-lhe
que no arriscasse a vida com aquela fera, inteiramente desesperada, de
antemo
condenada morte. Provas de herico valor j ele as dera de sobra!
Para que
ir-nos despedaar o corao, se uma desgraa lhe sucedesse?
O
baro, porm, permaneceu
inabalvel.
Nenhum homem vivo,
civilizado ou selvagem, me chamar nunca cobarde.
Quero
bater-me com ele!
Ignosi,
bem a custo,
cedeu.
Seja,
pois!...
Tuala, o grande Incubu vai marchar para ti!
Tuala
riu, ferozmente; e
os dois gigantescos homens ficaram frente a frente. O primeiro ataque
foi o do
baro, que lanou sobre Tuala o machado a toda a fora. Com um salto,
Tuala
esquivou o corte, e arremessou outro, em resposta, sobre o baro, que o
aparou
no escudo. E, durante um momento, houve assim uma viva e faiscante
troca de
machadadas, que ora bruscos saltos evitavam, ora os broquis defendiam.
Ns nem
respirvamos. O regimento dos Pardos, esquecida a disciplina, fizera
crculo, e soltava gritos,
batia palmas a cada golpe vibrado. John, agarrado ao meu brao, andava
aos
saltos sobre a perna s, animando o baro com berros:
Bravo! Anda-me a!
Esse foi bom! Atira-lho de ilharga!...
Subitamente,
um brado de
horror ressoou. De uma pancada, Tuala cortara o cabo do machado do
baro, que
ficava assim desarmado e, erguendo o seu prprio machado, caa sobre
ele com um uivo furioso de triunfo. Tudo acabara, eu fechei os olhos...
Quando
os abri, Tuala e o baro, agarrados um ao outro como dois gatos bravos,
estavam
rolando no cho e o baro, com um desesperado esforo. procurava
arrancar a Tuala a machada que ele tinha presa ao pulso por uma correia
de
bfalo. Pareceu-me uma eternidade o tempo que eles assim rolaram um
sobre o
outro, nesta furiosa luta pela posse do machado. Finalmente a correia
quebrou
e com um ltimo, monstruoso arranque, o baro, desprendendo-se de
Tuala, ergueu-se de salto, com o machado na mo. Num instante Tuala
estava
tambm de p e ambos tinham as faces a escorrer sangue. Foi Tuala,
que,
mais rpido, arrancou do cinto o facalho e o vibrou contra o peito do
baro. O
valente homem cambaleou, mas a couraa de malha repeliu a facada. De
novo Tuala
arremeteu com a lmina e ento o baro, retesando-se todo num
esforo,
alou o machado, no momento mesmo em que Tuala se inclinava, e
deixou-lhe cair
uma machadada, com tremenda fora, sobre o pescoo. Houve um grito
enorme. E,
coisa pavorosa!, vimos a cabea de Tuala saltar-lhe dos ombros, dar
como uma
pla dois pulos pelo cho, e rolar at aos ps de Ignosi! Durante um
segundo o
corpo ficou erecto, com o sangue saindo em grossos borbotes e a
fumegar. De
repente tombou, com um rudo surdo. E do outro lado o baro caiu
tambm,
desmaiado.
Erguemo-lo
ansiosamente,
encharcmos-lhe o rosto em gua. Pouco a pouco, abriu os olhos. Estava
salvo!
O Sol
ia justamente
descendo. Eu baixei-me para a cabea de Tuala, que ali ficara numa poa
de
sangue, e, desapertando o grande diamante que lhe ornava a testa,
entreguei-o
solenemente a Ignosi e bradei:
Salve, rei dos
Cacuanas!
Ele
apertou o diamante
sobre a testa. Depois pousou um p sobre o peito de Tuala morto, e,
cercado dos
seus guerreiros, entoou um canto de vitria.
XII
O REI IGNOSI
Tudo
findara gloriosamente.
Chegara a hora de repousar ou, melhor, de convalescer. O baro e o
capito (cuja perna, de todo inchada, o fazia agora sofrer muito) foram
levados
em braos para a aringa palacial de Tuala. E eu para l me arrastei,
exausto de
emoes, com a cabea consideravelmente dorida da paulada dessa manh
na defesa
do planalto.
O
primeiro cuidado foi
despir as cotas de malha, tarefa difcil (pelo nosso combalido estado),
em que
nos ajudou a linda Fulata, que se constitura, desde o comeo da
revolta, nossa
vivandeira, nossa enfermeira e nosso anjo da guarda. Arrancadas as
cotas, vimos
que os nossos pobres corpos eram uma massa medonha de pisaduras negras.
No
tumulto da batalha tnhamos apanhado decerto muita facada, muita
lanada. As
pontas dos ferros eram repelidas pela malha impenetrvel; mas nem por
isso cada
um dos golpes arremessados deixava de constituir uma terrvel pontuada,
que nos
amolgava corpo e membros. Eu estava positivamente negro de pisaduras.
Mas o
pior era a ferida de John na perna, e a do baro, a quem uma das
machadadas de
Tuala cortara profundamente a face sobre a maxila. Fulata preparou-nos
uns
emplastros de ervas aromticas, que nos aliviaram as dores. E como o
capito
John tinha noes e prtica de cirurgia (segundo contei), foi ele que
fez o
tratamento da ferida do baro e da sua prpria, to bem quanto lho
permitiam os
poucos fios, o resto da pomada anti-sptica que encontrou na sua botica
porttil e a escassa luz da lmpada cacuana. Depois, Fulata
arranjou-nos um
caldo muito forte, e estendemo-nos nas magnficas peles que juncavam o
cho da
aringa do rei. Mas no pudemos dormir. De toda a cidade, em torno de
ns, subia
a triste e ululada lamentao das mulheres, chorando, maneira dos
Zulus, os
valentes mortos na batalha. Mesmo ao nosso lado, as carpideiras reais
estavam
carpindo a morte de Tuala, com estridente dor. A noite ia cheia de
prantos
e, alm disso, a cada instante sentamos os gritos agudos das
sentinelas, ou a ruidosa passagem de rondas. Foi s de madrugada que
pude
cerrar os olhos os olhos que, apesar de cerrados, continuavam a ver
os
lances da batalha, com tanta realidade que, por vezes, estremecia em
sobressalto e me erguia no cotovelo a procurar as minhas armas, ou a
lanar uma
ordem de ataque.
Quando,
enfim, acordei, com
o Sol j alto, soube que os meus dois amigos tambm no tinham dormido.
De
facto, o capito John estava com uma imensa febre e comeava a delirar.
Alm
disso, sintoma assustador, toda a noite cuspira sangue. O baro, esse,
mal
podia ainda mexer o corpo; e a ferida da face no lhe permitia comer,
escassamente falar. Eu era, ainda assim, o mais restabelecido. Tomei o
delicioso caldo de Fulata, e sa um instante ao terreiro a respirar.
Encontrei
justamente Infands que chegava, to fresco e gil como se na vspera,
em lugar
de uma batalha, tivesse celebrado uma festa. Ficou desolado ao saber a
doena
de John. Entrou um momento na cubata para o ver e o baro, que no se
podia
ainda levantar e apenas mover os membros sobre o seu fofo leito de
peles. Em
voz baixa, por causa de John, Infands contou-nos que todos os
regimentos se
tinham submetido a Ignosi, que das outras cidades chegavam ferventes
adeses, e
que o novo reinado se firmava para longas eras de prosperidade e de paz.
Quando
ele se retirava,
apareceu Ignosi, seguido de uma guarda real. No pude deixar, ao v-lo,
de
pensar nas estranhas revolues da sorte! Aquele moo, que havia meses,
na
minha casa em Durban, me pedia para entrar ao meu servio ei-lo agora
rei, potentado de frica,
comandando cinquenta mil guerreiros, senhor de povos, de rebanhos e de
terras
sem conta!
Salve, rei!
exclamei eu, erguendo-me com respeito.
Graas a ti,
Macumazan, e aos teus amigos! exclamou ele, apertando-me as mos com
carinho.
Entrou
tambm, como
Infands, na cubata para ver o baro e o pobre John, que dormia um sono
de
febre, horrivelmente agitado, sob os olhos compassivos e vigilantes da
boa
Fulata. Depois, quando samos de novo ao terreiro, conversando,
perguntei-lhe o
que contava ele fazer de Gagula.
Gagula o gnio
mau desta terra disse ele. Conto mand-la matar para findar com
ela, que j velha de mais!
Mas
tem segredos!
Mas sabe muito! repliquei eu.
Sabe
sobretudo o
segredo dos Silenciosos volveu o rei pousando os olhos em mim com
amizade e o da caverna onde os reis esto enterrados, e o lugar dos
diamantes. Ora eu no esqueo a promessa que te fiz, Macumazan. Tu e os
teus
amigos ireis aos diamantes, guiados por Gagula: e s por isso a poupo.
Est
bem, Ignosi,
registo as tuas palavras.
Mas no
foi possvel,
durante essa semana, pensar nos diamantes, porque atravs de toda ela a
vida do
nosso pobre John esteve em risco e os nossos coraes em ansiedade.
Realmente,
creio que teria morrido se no fossem os desvelos, a adorvel dedicao
de Fulata.
Dias amargos esses para ns! O baro, j ento restabelecido, e eu,
nada mais
fizemos durante essa crise atroz do que entrar, sair, rondar em pontas
de ps a
senzala onde ele delirava. Remdios no tnhamos para lhe dar, alm de
uma
bebida refrescante feita por Fulata com leite e o suco extrado da raiz
de uma
espcie de tlipa. S podamos contar com a forte natureza dele e a boa
merc
de Deus.
Em toda
a aringa real
havia um grande silncio, porque Ignosi, para manter perfeito sossego
em torno
ao doente, ordenara que todos os que l viviam passassem a outras
cubatas
remotas. Fulata estava permanentemente ao lado dele, sentada no cho,
dando-lhe
a bebida refrescante, arranjando-lhe as travesseiras feitas das folhas
secas de
uma planta que faz dormir, enxotando-lhe as moscas do rosto.
No nono
dia da doena,
noite, antes de recolher, o baro e eu entrmos, segundo o costume, na
senzala.
A lmpada colocada no escabelo dava uma luz fnebre. No havia um
rumor. E o
meu pobre amigo jazia perfeitamente imvel. Pensei que chegara o seu
fim, tive
um soluo que me sufocou. Mas uma voz, na sombra, murmurou chut!.
E, mais
de perto,
descobrimos que o nosso amigo no estava morto, mas tranquilamente
adormecido,
sob a carcia das mos de Fulata, que lhe cobriam a testa, onde um suor
fresco
comeava. Era a crise do nono dia, o sono reparador. O nosso John
estava salvo!
Dormiu assim dezoito horas. E (mal me atrevo a cont-lo, porque no
serei
acreditado) Fulata, a admirvel, a santa rapariga, dezoito horas se
conservou
tambm assim, com as mos pousadas sobre a testa dele, sem comer, sem
se
erguer, sem se mexer, com receio de que o menor movimento acordasse o
seu
doente. Quando ele afinal despertou tivemos de a erguer em braos,
porque a herica enfermeira estava quase desmaiada de debilidade e
fadiga.
A
convalescena de John
foi rpida. Ao fim de outra semana, j passeava pelos arredores da
cidade,
entre os pomares, beira do rio, acompanhado por Fulata, que o
salvara, e a
quem ele votara (segundo dizia) um reconhecimento eterno. Mas eu no
agourava
bem daquele reconhecimento, daqueles passeios buclicos... Nos olhos
de
Fulata havia muita meiguice, muita languidez. E John, como marinheiro,
era
indiscretamente ardente. Depois de uma aventura de guerra, amos ter,
mais
perigosa ainda, alguma aventura de amor!
Apenas
John se considerou
a si prprio escorreito e pronto para outra Ignosi comeou as
festas
da sua proclamao. Todos os indunas (chefes supremos) das
provncias do reino vieram a Lu
prestar vassalagem. Houve revistas de tropas, danas, formidveis
banquetes. Os
homens que restavam do regimento dos Pardos foram todos doados com terras e
rebanhos, e promovidos a
oficiais. Ignosi promulgou na Grande Assembleia que, de ora em diante,
no
haveria mais caa aos feitios, nem
morte sem julgamento. Depois ordenou que, enquanto ns residssemos no
seu
reino, gozssemos de honras reais, e recebssemos sempre, como ele, a
saudao
de crum!
No ltimo dia deste grande
festival, eu e os
amigos dirigimo-nos ao rei, em grupo, e declarmos-lhe que o momento
chegara,
de realizar a sua promessa e de nos mandar conduzir ao lugar onde
deviam estar
as pedras brancas que reluzem.
Ignosi
abraou-nos com
grande afecto.
No
me esqueci,
amigos! J indaguei a verdade, e eis o que sei. Aquela estrada branca
que
trilhmos acaba alm junto das montanhas chamadas as Trs Feiticeiras,
onde
esto as figuras de pedra, os Silenciosos. Jaz a uma grande cova, de
onde se
diz que homens muito antigos, em outras idades, tiravam as pedras que
reluzem.
Para alm dessa cova h uma funda caverna na rocha, terrvel,
maravilhosa, onde
vive a Morte, onde jazem os nossos reis mortos, e para onde Tuala j
foi
conduzido. E por trs dessa caverna fica uma cmara secreta, de que s
Gagula
conhece o segredo. Corre tambm a histria de que, h muitas geraes;
um
branco veio aqui, e foi conduzido por uma mulher a essa cmara secreta,
onde
viu riquezas sem conta, mas dessas que para os Cacuanas nada valem; o
branco,
porm, no teve tempo de arrecadar essas riquezas, porque a mulher o
traiu, e o
rei desses tempos o escorraou outra vez para alm das montanhas...
A
histria
verdadeira acudi eu. No te lembras, Ignosi, que nas montanhas,
na caverna de gelo, encontrmos ns, petrificado, esse homem branco?
Muito
bem me
lembro. Por isso vou mandar chamar Gagula, e ordenar-lhe, sob pena de
morrer,
que vos leve cmara secreta, meus amigos... e as riquezas que
encontrardes,
meus amigos, so vossas!
Nesse
instante, dois
guardas apareceram, trazendo agarrada pelos braos a hedionda Gagula,
que gania
e os amaldioava. Mal a largaram, toda ela se abateu e achatou sobre o
cho
como um monto de trapos, onde dois olhos ferozes viviam e refulgiam.
Que
me queres tu,
Ignosi? uivou ela. No me toques, que te destruo. Treme das
minhas artes!
O rei
encolheu os ombros.
As
tuas artes no
salvaram Tuala. Que me importam as tuas artes? Aqui est o que de ti
quero: que
mostres aos meus amigos a cmara secreta onde esto as pedras que
reluzem.
S eu
o sei, e
nunca o direi! bradou ela. Os brancos malditos voltaro levando
vazias as mos malditas!
Bem
volveu
tranquilamente o rei. Ento, Gagula, vais morrer lentamente.
Morrer!
gritou ela, cheia de terror e de fria. Tu no te atrevers, Ignosi!
Ningum me pode matar. Que idade pensas tu que eu tenho? O teu pai
conheceu-me;
e o pai do teu pai; e o pai que gerou a esse. Ningum ousar tocar-me,
porque
sobre esse cairo as desgraas sem fim.
Em
silncio,
tranquilamente, Ignosi baixou sobre ela a ponta da sua azagaia:
Dizes?
No!
Ignosi
baixou mais o
ferro, picou de leve o monto de trapos onde reluziam os dois olhos
ferozes.
Com um
uivo dilacerante, a
horrenda bruxa ps-se em p, de salto. Depois tornou a cair, e rolou no
cho
esperneando.
De novo
a lana de Ignosi
a procurava.
Dizes?
Digo,
digo, rei!
ganiu ela. Mas deixa-me viver, e sentar-me ao sol, e respirar o
ar doce, e ter um osso para chupar!...
Bem;
amanh irs
com meu tio Infands e com meus irmos brancos a esse lugar, mostrars
a cmara
secreta e o esconderijo das pedras que reluzem. Mas tem cautela! Que se
em ti
houver traio, morrers devagar, e em tormentos.
No,
Ignosi! Irei
com eles, e tudo mostrarei. Mas a desgraa vem a quem penetra nesse
lugar.
Outrora veio um homem, encheu um saco dessas pedras brilhantes, e uma
grande
desgraa caiu sobre ele! E foi uma mulher que o levou, e que se chamava
Gagula.
Talvez fosse eu! Talvez fosse minha me! Ou a me de minha me! Quem
sabe? Ser
uma alegre jornada... Eu hei-de ir, e hei-de rir! Vinde, homens
brancos, vinde!
Vereis, ao passar, os que morreram na batalha, com os olhos vazios, as
costelas
ocas. A morte vive l, e est espera. Ser uma alegre jornada!
XIII
A GRANDE CAVERNA
Trs
dias depois, ao
escurecer, estvamos acampados num casebre desmantelado, em frente das
Trs
Feiticeiras, as trs montanhas que tantas vezes de longe avistramos,
desde a
nossa chegada a Lu, e onde deviam jazer, segundo a tradio dos
Cacuanas e o
roteiro do velho D. Jos da Silveira, as minas das pedras que reluzem
as Minas de Salomo! Tnhamos partido de Lu doze dias antes,
acompanhados por
Infands, por Fulata (que no deixara mais o seu doente, o bom John),
por
Gagula, que vinha numa liteira, e por uma forte escolta de serviais e
soldados.
E foi s no dia seguinte, ao amanhecer, que examinmos aquele estranho
stio,
to cheio de terror para os Cacuanas e para ns de maravilhosas
promessas.
Nunca
eu esquecerei o
momento em que, saindo a porta das cubatas, na primeira e fresca luz da
manh,
vimos os trs montes isolados, em tringulo, um nossa direita, outro
nossa
esquerda, o terceiro ao fundo, em face de ns, erguendo magnificamente
ao cu
os seus cimos resplandecentes de neve. Um tojo em flor, de um escarlate
ardente, cobria as poderosas faldas dos trs montes e seguia ainda,
como um tapete igual e contnuo, pelos grandes descampados que os
cercavam. A
fita branca da estrada de Salomo cortava a direito at Feiticeira
central, a
que formava a ponta do tringulo, onde findava brusca e
misteriosamente. A,
junto desse monte, estavam as fabulosas minas, que tinham sido o fim de
tantos
mseros destinos o do velho fidalgo portugus, o do seu descendente,
e
decerto o daqueles que ns vnhamos procurando desde o Sul e por quem
corrramos tanto perigo e tanta aventura! Todo o que buscar essas minas
fabulosas (dizia Gagula) encontrar desiluso e desastre. Seria essa a
nossa
sorte? Ns chegvamos sob a proteco do rei, cercados de serviais e
de
guardas... E apesar disso sentamos pesar-nos sobre o corao,
tristemente, a
profecia da horrenda mulher.
No
entanto, quando nos
pusemos a caminho, era to viva a ansiedade de chegar e de ver que os
carregadores da liteira de Gagula mal podiam acompanhar a nossa
carreira. A
cada instante a velha bruxa gritava, estendendo para ns, por entre os
panos da
liteira, os braos descarnados, as mos em garra:
No
vos apresseis,
homens brancos! A morte est vossa espera e no foge! Para que vos
esfalfar,
correndo para ela? Certa e segura a tendes!
Dava
ento uma risadinha
que nos arrepiava. Insensivelmente abrandvamos o passo... Depois bem
cedo o
estugvamos de novo, sob o impulso irresistvel da curiosidade e da
esperana!
Gastramos
assim hora e
meia, trilhando a estrada de Salomo, e tendo j deixado nossa
direita e
nossa esquerda as duas Feiticeiras que formam a base do tringulo
quando chegmos junto de uma imensa cova circular, em funil, oferecendo
talvez
trezentos ps de profundidade e meia milha de circunferncia. Entre a
erva e o
tojo que interiormente a forravam surgiam grandes pedaos de greda
azulada;
quase ao fundo corria um canal para gua, talhado na rocha viva; e
abaixo do
nvel dessa obra estavam alinhadas umas poucas de mesas de pedra,
polidas e
gastas pelo tempo. A cova, as mesas, a disposio do canal, a natureza
da greda
azulada, tudo era semelhante ao que eu muitas vezes vira no Sul, nas
minas de
diamantes de Kimberley. Assim o disse aos amigos e para mim ficou
certo
que ali houvera, em tempos, fosse nos de Salomo, fosse noutros mais
recentes,
uma mina de diamantes.
A
estrada, ao abeirar-se
da cova, dividia-se em dois ramos que a circundavam; e a espaos, esta
via
circular era feita de enormes lajes de pedra, com o fim certamente de
solidificar as bordas da mina e impedir que se esboroassem. Mas o que
mais nos
surpreendia era, do outro lado da vasta cova, um grupo de trs
objectos, que se
destacavam como trs pequenas torres ou trs marcos colossais. A
curiosidade
quase nos fez correr, deixando atrs Gagula e Infands; e bem depressa
percebemos
que o grupo era formado por trs imensas esttuas. Conjecturmos logo
que
deviam ser os Silenciosos, esses dolos to temidos pelos Cacuanas e a
quem
ofereciam os sacrifcios sangrentos. Mas s ao chegar junto deles
pudemos
apreciar a estranha e terrvel majestade dessas vetustas figuras.
Separadas
por uma
distncia de vinte passos, erguidas sobre imensos pedestais de pedra
negra,
onde corriam caracteres desconhecidos, e olhando a direito para a
estrada de
Salomo, que atravs de sessenta milhas de plancie seguia at Lu
enchiam um grande espao as trs gigantescas formas, duas de homem, uma
de
mulher, todas trs sentadas, medindo talvez cada uma a altura de vinte
ps.
A
figura de mulher, toda
nua, com dois cornos, como os de um crescente de luz, sobre a testa,
era de uma
maravilhosa beleza infelizmente estragada pelas injrias do tempo
durante longos sculos. As duas figuras de homem, talvez por estarem
vestidas
em longas roupagens, pareciam mais bem conservadas. Um deles tinha uma
face medonha,
feita para inspirar terror, como a de um demnio malfico; mas a do
outro
parecia talvez mais assustadora ainda, na sua fria expresso de dura
indiferena, de uma indiferena de rocha, que nenhuma prece pode
abrandar, ou
nenhum sofrimento apiedar. Todos trs juntos formavam na realidade uma
trindade
pavorosa, assim sentados, imveis, com os olhos vaga e perpetuamente
estendidos
para a plancie sem fim. Que imagens seriam estas? Deuses? Demnios?
Reis de
povos cujo nome esqueceu? Eu por mim, das minhas reminiscncias da
Bblia,
coligia que deviam ser talvez os falsos deuses que adorou Salomo
Asthoreth, deusa dos Sidnios, Chenosh, deus dos Moabitas, e Milcolm,
deus dos
filhos de Amnon. Assim diz o Livro Santo.
Que
lhe parece,
baro?
Talvez
concordou o nosso amigo, que recebera grau em Literaturas Clssicas.
A
Asthoreth, de
que falam os Hebreus, a Astarte dos Fencios, os grandes comerciantes
do
tempo de Salomo. De Astarte fizeram os Gregos a sua Afrodite, que se
representava com o crescente da meia-lua na cabea... Se Salomo tinha
aqui as
suas minas, era natural que fossem dirigidas por engenheiros fencios.
De sorte
que provavelmente esses homens ergueram, como padroeira da mina, a
esttua da
sua deusa.
Quem
pode saber?
Quando
estvamos assim contemplando
estas extraordinrias relquias de uma remota antiguidade, Infands,
que
caminhara sem se apressar, chegou junto de ns, e saudou reverentemente
com a
lana os Silenciosos. Vinha saber se queramos penetrar imediatamente
na
caverna, ou tomar primeiro a refeio da manh. Como no eram ainda
onze horas,
e a nossa curiosidade flamejava, decidimos desvendar logo os mistrios,
levando
connosco provises, para se l dentro a fome, excitada pelas emoes,
nos
assaltasse. Infands fez ento sinal aos carregadores para que se
acercassem
com a liteira de Gagula; e Fulata preparou dentro de um cesto, para
levarmos,
uma poro de caa fria e duas cabaas de gua. Ns, entretanto,
dramos uma
volta em torno s trs figuras de pedra. Por trs delas, a uns
cinquenta
passos, erguia-se aquela das Feiticeiras que formava o bico do
tringulo; na
sua base, como incrustada nela, corria uma muralha de pedra; e a, ao
centro,
podamos distinguir um arco escuro, como a entrada de uma galeria
subterrnea.
Espermos que os carregadores tirassem Gagula da liteira. Apenas no
cho, a
horrenda criatura agarrou o cajado, e do-brada em duas, com passos
trmulos e
vivos, largou em silncio para o arco escuro. Ns seguimos, calados
tambm.
entrada, o monstro parou, voltado para ns, com um riso lvido na
caveira.
Homens das
estrelas, estais decididos? Quereis realmente penetrar na cova onde as
pedras
reluzem?
Estamos prontos,
Gagul disse eu, alegremente.
Bem,
bem! Entrai!
E pedi fora aos coraes para afrontar as coisas que ides ver! E tu,
Infands,
que traste teu amo, vens tu tambm?
O velho
guerreiro franziu
terrivelmente o sobrolho:
No
me compete a
mim entrar nos stios sagrados. Mas tu, Gagula, tem cautela, e treme!
Os homens
que vo contigo so os amigos do rei! Por eles me respondes tu. E se
tanto como
a perda de um s cabelo lhes suceder em mal, nem todos os teus feitios
te
livraro de morrer em tormentos. Compreendeste?
Compreendi,
compreendi, Infands! ganiu ela, com um risinho gelado e lento.
No
receies! Eu
vivo s para fazer a vontade do rei! Tenho feito a vontade de muitos
reis, em
muitas geraes! E os reis findaram sempre por cumprir a minha vontade!
Todos
passaram, todos morreram. E eu aqui estou, para os ir visitar agora no
palcio
da morte, e para lhes falar dos tempos que foram! Vinde! Vinde! A
lmpada est
acesa! Tinha tirado de baixo do manto de peles que a cobria uma cabaa
cheia de
leo com uma grossa torcida de vime e a luz que ela aproximou do arco
negro pareceu desmaiar e tremer.
Vens
tu tambm,
Fulata? exclamou John, volvendo os olhos em redor, inquieto.
Tenho
medo, meu
senhor murmurou a rapariga.
Bem.
Ento d c o
cesto!
No,
meu senhor,
para onde fordes, vou eu tambm! Bem!, pensei eu comigo a levamos
tambm o
trambolho da rapariga para dentro da mina!
No
entanto Gagula
mergulhara na galeria, que dava apenas lugar para dois caminharem de
frente. As
trevas eram absolutas. Asas de morcegos batiam-nos nas faces. E
seguamos menos
a luz bruxuleante da lmpada que a voz de Gagula, que repetia num tom
lgubre:
Avanai, avanai!
A morte est perto!
De
repente distinguimos
uma vaga claridade. E, momentos depois, parvamos no mais maravilhoso
stio que
os olhos humanos tm contemplado.
A nada
o posso comparar
melhor do que ao interior de uma imensa catedral, uma catedral de sonho
ou de
lenda, sem janelas, alumiada por uma luz difusa e misteriosa, que
parecia cair
das alturas da abbada. Ao comprido desta nave, como na nave de um
verdadeiro
templo, corriam renques de gigantescas colunas, de uma cor lgida de
gelo e de
magnfica beleza. Alguns destes nobres pilares estavam, por assim
dizer,
interrompidos no meio um pedao erguendo-se do solo, como a coluna
quebrada de uma runa grega, outro pedao pendente da remota abbada.
Aos lados
da nave abriam-se, com dimenses diversas, cavernas semelhana de
capelas,
tendo tambm as suas filas de colunas, algumas to pequeninas e finas
como
feitas para um brinquedo de criana. Aqui e alm havia construes
estranhas,
da mesma substncia lgida que parecia gelo uma da forma de uma vasta
taa, outra oferecendo a vaga aparncia de um plpito com lavores
pendentes. Um
ar de indescritvel frescura circulava dentro da vasta nave e por
toda
a parte sentamos, na penumbra, o rudo lento de gotas de gua caindo.
No
tardmos em perceber
que estvamos simplesmente numa caverna de estalactites, de inigualvel
beleza.
Cada uma daquelas gotas de gua que caa, com um som hmido e triste,
era mais
uma coluna que se estava formando. H quantos sculos andava a Natureza
trabalhando naquela obra maravilhosa? Sobre uma das colunas
incompletas, notei
eu uma rude inscrio entalhada decerto por algum obreiro fencio das
minas,
que ali escrevera o seu nome, ou talvez alguma faccia fencia. Pois,
desde esse
dia, em trs mil anos pelo menos, a coluna apenas crescera para cima da
inscrio uns trs ps e meio. E ainda estava em via de formao,
porque eu
distintamente senti, enquanto a examinava, cair sobre ela, das
profundidades da
abbada, uma lenta gota de gua! Quantos centos de milhares de anos
levaram
pois a crescer, a formar-se, assim largas, macias, altas como torres,
as
colunas inumerveis que se enfileiravam na nave? Nunca, como ali, eu
compreendi
a espantosa velhice da Terra.
Gagula,
porm, no nos
deixou muito tempo nesta curiosa contemplao. Inquieta, batendo no
cho com o
cajado, a lmpada erguida sobre a cabea, a cada instante nos
apressava, com
ganidos sinistros.
Vamos, vamos, que
a Morte est nossa espera!
O
capito John ainda
tentava gracejar com a atroz criatura. Mas quando ela nos conduziu ao
fundo da
nave, diante de uma pequena porta semelhante s dos templos egpcios, e
nos
perguntou se estvamos bem preparados a entrar a morada da Morte
todos
estacmos, inquietos, mudos, sem ousar o primeiro passo.
Isto
est-se
tornando sinistro murmurou o baro.
Os
mais velhos
adiante, passe l, Quartelmar.
Entrei
a porta egpcia e
achei-me num corredor inclinado, todo de abbada, horrivelmente negro.
A
lmpada de Gagula esmorecia. O bater do seu cajado dava um eco lgubre.
E a meu
pesar parei, dominado por um pressentimento de desastre e de morte.
Para
diante! Para
diante! murmurou John, que trazia Fulata agarrada pela mo. Com um
esforo desesperado venci o receio, alarguei o passo. E, quase colados
uns aos
outros, desembocmos numa sala subterrnea, evidentemente escavada
outrora por
poderosos obreiros no interior da montanha.
Esta
sala no tinha uma
luz to clara como a catedral de estalactites; e tudo o que eu pude
descobrir,
a princpio, foi uma enorme e macia mesa de pedra, tendo no topo uma
colossal
figura, que parecia presidir outras figuras abancadas em tomo. Depois,
sobre a
mesa, no. centro, distingui uma forma encruzada. E quando enfim,
acostumado
penumbra, percebi o que eram aquelas formas, voltei costas, e largaria
a fugir
como uma lebre se o baro no me agarrasse pelo brao fortemente.
Cedi,
tremendo todo. Mas a esse tempo o baro tambm se habituara luz
difusa,
compreendera tambm, e largando-me o brao, com uma exclamao, ficou a
meu
lado, quedo, arrepiado, limpando o suor que lhe cobrira a testa. A
pobre
Fulata, essa, dava gritos, agarrada ao pescoo de John. E Gagula
triunfava, com
sinistra zombaria.
O que
tnhamos, com
efeito, ante os olhos apavorados, era terrvel. Ali, no topo da longa
mesa de
pedra, estava a Morte a prpria Morte, um medonho e gigantesco
esqueleto, de p, todo debruado para diante, com um dos braos apoiado
ao
rebordo da pedra como se acabasse de se erguer do seu assento, e com o
outro
levantando no ar uma enorme lana, que parecia arremessar sobre ns; o
crnio
da caveira alvejava lugubremente; das covas das rbitas saa um fulgor
negro; e
as maxilas estavam entreabertas, como se fosse falar, e desvendar o seu
segredo.
Santo
Deus!
murmurei eu, transido. Que pode isto ser?
E
estas figuras,
em redor? balbuciava John.
E
alm, aquela
coisa, no meio? exclamou o baro, apontando para a inexplicvel
figura
encruzada sobre a mesa.
Ento
Gagula pousou a
lmpada e agarrando o brao do baro, com o dedo estendido para a forma
encruzada:
Avana, Incubu,
homem forte na guerra! Avana, e contempla aquele que tu mataste e que
est
agora junto aos seus avs!
O baro
deu um passo, e
recuou abafando um grito. Sobre a mesa, inteiramente nu, com as pernas
encruzadas, e a cabea que o baro cortara pousada em cima dos joelhos,
estava
Tuala, ltimo rei dos Cacuanas!... Sim, Tuala, sustentando solenemente
sobre os
joelhos a sua hedionda cabea decepada e com as vrtebras a sarem-lhe
para
fora do pescoo encolhido e como ressequido! Sobre todo o corpo negro
tinha j
uma espcie de pelcula gelatinosa e vidrada, que o tornava mais
pavoroso, e
cuja natureza eu no podia compreender at que senti, tique, tique,
tique, um fio de gotas de gua, que, caindo da abbada, lhe escorria
pelo
pescoo, e dali pelo corpo, para se escoar depois por um buraco cavado
na mesa.
Ento percebi tudo o corpo de Tuala estava sendo convertido numa
estalactite!
E as outras figuras sentadas em
torno da mesa eram
igualmente reis dos Cacuanas, j transformados em estalactites! Havia trinta e sete sendo o
ltimo o pai
de Ignosi. esta, desde tempos imemorveis, a maneira por que os
Cacuanas
conservam os seus reis mortos. Petrificam-nos, expondo-os, durante um
longo
perodo de anos, a uma queda de gua siliciosa que, lentamente e gota a
gota,
os transforma em esttuas geladas.
Estvamos
assim diante do
mais maravilhoso e extico panteo real que existe decerto na Terra. E
nada
pode igualar a terrfica impresso que causava aquela srie de reis,
pertencendo a muitas dinastias, amortalhados numa camada de gelo que
mal lhes
deixava j distinguir as feies, ali sentados, volta da imensa mesa,
em
espectral e pavoroso conclio, presididos pela Morte!.
E a
Morte, o maravilhoso
esqueleto, quem o esculpira? No decerto os Cacuanas. A sua composio,
o seu
trabalho revelavam uma arte perfeita. Era obra dos artistas fencios?
Fora
colocada ali em tempo de Salomo, para guardar, pelo terror da sua
lana, a
entrada dos tesouros? No sei. Nem sei mesmo contar, com verdade, as
estranhas
sensaes por que passei naquela cmara sinistra.
XIV
O TESOURO DE SALOMO
No
entanto Gagula (que era
por vezes extremamente leve e gil) trepara para cima da mesa e
acercara-se do
cadver de Tuala, a quem pareceu falar misteriosamente; depois seguiu
por entre
as filas dos reis, dirigindo, ora a um, ora a outro, como a velhos
amigos,
palavras lentas e graves que no compreendamos. Por fim, tendo chegado
em
frente da Morte, caiu de bruos, com os braos estendidos, e ficou
mergulhada
em orao.
Era um
espectculo to
arrepiador, naquela penumbra de sepulcro, a hedionda criatura, mais
velha que
todas as criaturas,- fazendo splicas ao enorme esqueleto que eu, j
enervado, lhe gritei que viesse, nos levasse ao lugar dos tesouros.
Imediatamente, a horrvel bruxa saltou da mesa, como um gato, e,
passando por
trs das costas da Morte, ergueu a lmpada, mostrou a parede da rocha:
Entrai, homens
brancos, entrai, se no tendes medo! Olhmos, procurando a entrada. S
vimos a
rocha slida e negra.
Gagula
disse eu com os dentes cerrados no zombes de ns, que te mato!
Mas a
porta
aqui, homens brancos, a porta aqui! gania ela, com as costas
apoiadas
muralha, onde roava de leve uma das suas mos descamadas.
E
ento, luz bruxuleante
da lmpada, vimos que um bocado da muralha, de feitio e tamanho de uma
porta,
se ia erguendo lentamente do solo, e desaparecendo em cima na rocha,
onde devia
existir uma cavidade para a receber. No pesava menos, aquela massa de
pedra,
de vinte a trinta toneladas e era certamente movida por algum
maquinismo, fundado num equilbrio de peso, que uma mola, colocada num
lugar
secreto da muralha, punha em movimento. Nem nos lembrou, nesse momento,
arrancar a Gagula o segredo da mola que erguia a pedra! Pasmados,
vamos a
imensa massa subir, devagar, muito devagar, at que desapareceu,
deixando
diante de ns um grande buraco negro.
Estava
enfim aberto, para
ns nele penetrarmos, o caminho que levava aos tesouros de Salomo. A
emoo
foi to intensa, que eu, por mim, comecei a tremer. Era pois verdade o
que
dizia, no seu pedao de papel, o velho D. Jos da Silveira? Estavam
pois ao
nosso alcance, destinadas a ns, as maiores riquezas que jamais um rei
acumulou
na Terra? Poderamos ns ver, tocar, agarrar e levar em sacos o tesouro
que
fora de Salomo, maravilha dos livros santos? Assim parecia e para
isso
bastava dar um passo.
Dei
esse passo e
com explicvel sofreguido. Mas Gagula defendia ainda com os braos o
buraco
negro:
Escutai, homens
das estrelas! Escutai o que necessrio saber! As pedras que brilham,
que vs
ides ver, foram tiradas da cova circular no sei por quem, e guardadas
aqui no
sei por quem. A gente que, de gerao em gerao, tem vivido nesta
terra, sabia
da existncia do tesouro, mas ningum conhecia o segredo para abrir a
porta de
pedra! Por fim aconteceu vir aqui um homem branco, talvez tambm das
estrelas,
que foi bem recebido e bem agasalhado pelo rei de ento, que era o
quinto,
alm, sentado mesa de pedra. Com ele vinha uma rapariga cacuana;
ambos
percorreram estas cavernas; e sucedeu que, por acaso, essa mulher, que
talvez
fosse eu ou que talvez fosse outra como eu, descobriu o segredo da
porta. O
homem e a mulher entraram, e encheram de pedras um saco pequeno de
couro, onde
ela levava de comer. Ao sarem, o homem agarrou na mo outra pedra,
maior que
todas...
E aqui
a bruxa parou, com
os olhos coruscantes cravados em ns.
Continua!
exclamei eu, que escutara sem respirar. O homem era D. Jos da
Silveira.
Que se passou mais?
A velha
feiticeira recuou
espantada.
Como
lhe sabeis o
nome? Ah! sabeis-lhe o nome!... Pois bem, ningum pode dizer o que
sucedeu. Mas
o homem teve medo de repente, atirou para o cho o saco cheio de
pedras, e
fugiu, levando s agarrada a pedra maior que tinha na mo. a que
Tuala trazia
no diadema. a que tu deste a Ignosi!
E
ningum mais
entrou aqui?
Ningum. Mas os
reis ficaram sabendo o segredo da porta... Nenhum, porm, entrou,
porque dizem
profecias j muito antigas que aquele que aqui entrar morrer antes de
uma Lua
nova. Esta a verdade, homens das estrelas. Entrai agora! Se eu no
menti a
respeito do homem que se chamava Silveira, vs encontrareis no cho,
entrada
da porta, cado, o saco de couro cheio de pedras... E se as profecias
mentem ou
no, sobre a morte que espera a quem aqui penetrar, vs mais tarde o
sabereis...
E sem
mais, a hedionda
criatura mergulhou no corredor tenebroso, erguendo ao lado a plida
lmpada.
Ns, no entanto, olhvamos uns para os outros com hesitao, quase com
medo
bem natural, de resto, em nervos abalados por tantas emoes
estranhas.
Foi John o mais corajoso:
Acabou-se! C vou!
Era ridculo ficarmos apavorados com as tontarias de uma velha macaca.
Adiante!
E
avanou seguido por
Fulata e por ns dois, em silncio. Mas, dados alguns passos, ouvimos
uma
medonha praga. Era John que tropeara, quase cara sobre um bloco de
cantaria
atravessado no corredor. Gagula erguera mais a lmpada:
No
receeis!...
So pedras que a gente de outrora tinha a acumulado para tapar o
corredor para
sempre... Mas fugiram, ao que parece, no tiveram tempo!
E, com
efeito, havia ali
como umas obras interrompidas pedras serradas e esquadradas, um monte
de cimento, e uma picareta e uma trolha, semelhantes s que ainda hoje
usam os
pedreiros. Contemplei com reverncia estas antiqussimas ferramentas.
No
entanto Fulata, que desde a nossa entrada na caverna no cessara de
tremer de
medo, sentou-se sobre uma pedra, e declarou que desmaiava, no podia
mais caminhar...
Ali a deixmos, com o cesto de provises ao lado, at que ela ganhasse
alento.
E seguimos.
Uns
quinze passos diante,
demos de repente com uma porta de pau, curiosamente pintada a cores, e
toda
aberta para trs. E no limiar da porta, l estava, cado no cho um
pequeno saco de couro que parecia cheio de seixos!
Ento, brancos, que vos disse
eu? ganiu
Gagula em triunfo, brandindo a lmpada. Olhai bem! A tendes o saco
que
o homem deixou cair. A est ainda, desde geraes! Que vos disse eu?
John
ergueu o saco. Era
pesado e tinia.
Santo
Deus! Est
cheio de diamantes! balbuciou ele quase com medo.
E com
efeito, meus amigos!
A ideia de um saco de couro repleto de diamantes de causar medo!
Para
diante, para
diante! exclamou o baro, com sbita impacincia. D c tu a
lmpada, bruxa!
Arrancou
a luz das mos de
Gagula. E de tropel com ele, sem sequer pensar mais no saco que John
atirara
outra vez para o cho, transpusemos a porta. Estvamos dentro do
tesouro de
Salomo.
Durante
um momento,
olhmos vagamente em redor, num silncio apavorado. luz dbil e
mortia da
lmpada s percebemos, ao princpio, que o quarto ou cmara era escavado na rocha viva. Depois, a um
dos lados, vimos distintamente alvejar, sobrepostos em camadas at
abbada,
uma poro imensa de dentes de elefante, de inigualvel riqueza.
Haveria talvez
uns quinhentos ou seiscentos dentes. S aquele marfim nos poderia
tornar a
todos ricos para sempre. Era desse espantoso depsito que Salomo
fizera talvez
o grande trono de marfim de que falam os livros santos! Toquei um
dente de
leve, depois outro, com venerao, como relquias sagradas! E o suor
caa-me em
bagas.
Ali
esto os
diamantes gritou John. Trazei a luz!
Corremos
para o recanto
que ele indicava. E a lmpada que o baro baixara mostrou umas dez ou
doze
caixas de madeira, estreitas e muito compridas, pintadas de escarlate.
A tampa
de uma, to antiga que mesmo naquele ar seco de caverna tinha
apodrecido,
apresentava vestgios de arrombamento. Pelo menos no meio havia um
buraco.
Enterrei a mo atravs, e tirei-a cheia, no de diamantes, mas de
moedas de
ouro, como ns nunca vramos, com letras hebraicas (ou que julgmos
hebraicas)
e palmeiras e torres em relevo no cunho.
Justos Cus!
murmurei sufocado. Aqui devem estar milhes! Isto nem se
acredita!...
Naturalmente era o dinheiro para pagar as frias aos mineiros...
Estaremos ns
a sonhar?
Mas
os diamantes
exclamava John, percorrendo sofregamente o quarto. Onde esto,
por fim, os diamantes? S se o portugus os meteu todos no saco!
Gagula,
decerto,
compreendeu os nossos olhares, que buscavam avidamente:
Alm,
alm, onde
mais escuro! L esto os trs cofres de pedra, dois selados, um aberto!
A sua
aguda voz tomara um
som cavo e sinistro. Mas qu! Onde ia agora, diante de to inverosmeis
riquezas, o medo das profecias mortais? Era alm no recanto escuro?
Para l
corremos, sondando com a lmpada.
Aqui,
rapazes!
gritou John, na maior excitao.
Aqui.
Oh meu Deus!
So trs arcas de pedra!
E eram!
Eram trs arcas de
pedra que nos davam pela cintura, ocupando os trs lados de uma espcie
de
alcova tenebrosa. Duas estavam fechadas com imensas tampas de pedra. A
tampa da
terceira estava encostada muralha. Baixmos a lmpada para dentro.
No
pudemos distinguir nada ao princpio, deslumbrados por uma vaga
refraco
prateada que faiscava e tremia. Quando os olhos se habituaram quele
brilho
estranho, vimos que a arca imensa estava cheia at ao meio de diamantes
brutos!
Mergulhei as mos neles. Com efeito! Eram diamantes. Uma arca cheia de
diamantes! No havia dvida! Bem lhes sentia eu entre os dedos aquele
macio
especial que em Kimberley, nas minas, chamam sabonceo! Era uma arca cheia de diamantes!
Ficmos,
mudos, olhando
uns para os outros. A frouxa luz da lmpada eu via as faces dos meus
amigos
perfeitamente lvidas. E no havia em ns nenhuma alegria. Era um
torpor, como
se a alma nos ficasse bruscamente esmagada sob a fabulosa infinidade
daquela
riqueza.
Eu
murmurei, com um
suspiro de criana:
Somos
os homens
mais ricos deste mundo!
John
passava os dedos pelo
queixo, numa distraco quase melanclica:
Eu
sei l!... Os
diamantes agora perdem de valor; ficam como vidro!
E
transport-los?
E transport-los? dizia o baro, abanando a cabea.
De
repente sentimos por
trs uma risada que nos estarreceu. Era Gagula. Gagula que ia, vinha,
s -
voltas, na sala escura, como um morcego, de brao estendido para ns.
Ih!
ih! ih! A
est satisfeito o desejo vil dos vossos coraes, homens das estrelas!
Ih! ih!
ih! Quantas pedras brancas! Milhares delas! E todas vossas! Agarrai
nelas!
Rolai por cima delas! Ih! ih! ih! Comei as pedras! Ih! ih! ih! Bebei
as pedras!
Havia alguma coisa de to grotesco naquela
ideia de beber diamantes e comer diamantes, que larguei a rir
estridentemente,
desbragadamente. E, por contgio, os meus companheiros desataram tambm
a rir,
a rir, s gargalhadas. E ali ficmos todos, de mo nas ilhargas,
perdidos a
rir, a rir, a rir! Ramos de qu? Nem sei. Ramos dos diamantes
daqueles
diamantes que, milhares de anos antes, os mineiros de Salomo tinham
escavado
para ns. Pertenciam
a
Salomo... Mas onde ia Salomo? Eram nossos, agora, os seus diamantes! No
tinham sido para Salomo,
nem para David, seu pai, nem para nenhum rei de Jud! No tinham sido
para o
atrevido e velho fidalgo portugus, nem para nenhum dos portugueses que
vinham
singrando de leste em caravelas armadas! Tinham sido para ns! S para ns! Para ns aqueles milhes e
milhes de libras, que, neste
sculo, em que o dinheiro tudo domina, nos tornavam to poderosos como
outrora
Salomo. De facto ramos Salomes!
De repente o acesso de riso
findou. E ficmos a
olhar uns para os outros, estupidamente.
Abri
as outras
arcas! gania no entanto Gagula. Esto tambm cheias! Todas as
pedras so vossas! Fartai-vos, fartai-vos!
Em
silncio, com uma
sofreguido brutal, arremessamo-nos sobre as outras arcas, quebrando os
selos,
empuxando as tampas, num desesperado esforo! Hurra! Cheias tambm!
Cheias at
cima!...
No, a terceira estava
quase vazia. Mas todas as pedras que continha eram escolhidas, de um
peso, de
um tamanho inacreditveis. Havia-as como ovos pequenos. As maiores,
todavia,
postas contra a luz, apresentavam um vago tom amarelo. Eram diamantes
de cor,
como eles dizem em Kimberley, nas minas. Tinha eu um destes na mo,
enorme,
quando, de repente, ouvimos gritos aflitos do lado do corredor. Era a
voz de
Fulata:
Acudam! Acudam!
Que a porta de pedra est a cair!
Uma
outra voz,
desesperada, a de Gagula, rugia sinistramente:
Larga-me,
rapariga, larga-me!
Acudam! Acudam! Ai
Gagula que me matou!
Como
contar o brusco,
pavoroso lance? Corremos. luz frouxa da lmpada vimos a porta de
pedra
descendo, e, junto dela, Gagula e Fulata enlaadas numa luta furiosa.
De
repente Fulata cai, coberta de sangue. Gagula atira-se ao cho, para
fugir como
uma cobra atravs da fenda que havia ainda entre o cho e a porta. Mete
a
cabea e os ombros!... Justos Cus! Era tarde. A pedra imensa apanha-a,
e a
criatura uiva de agonia! A pedra desce, desce com as suas trinta
toneladas,
sobre o corpo j preso. Vm dele gritos e gritos, como eu jamais ouvira
at que h um som horrvel de coisa esborrachada, e a porta imensa fica imvel,
fechada, justamente
quando ns, correndo sempre, esbarrmos de roldo contra ela!
Isto
durara quatro
segundos quatro sculos. Voltmos ento para Fulata. A pobre rapariga
tinha uma grande facada e estava a morrer.
Ah
Boguan! (era
assim que os Cacuanas chamavam a John). Ah Boguan! exclamou,
sufocada,
a bela criatura. Gagula saiu fora. Eu no a vi, estava meio
desmaiada.
Ento a porta comeou a descer... Ela ainda entrou, foi olhar para
vs...
Depois tomava a sair, quando eu a agarrei, e ela me deu uma facada, e
agora
morro!
Pobre
rapariga!
Minha pobre rapariga! gritava John.
E como
no podia fazer
outra coisa, comeou a dar-lhe beijos, longos beijos.
Ela
sorria, arfando, com
as plpebras cerradas. Depois:
Macumazan, ests
a?... J mal vejo... Ests a?...
Estou, Fulata. Que
queres?
Fala
por mim,
Macumazan. Diz a Boguan que no me compreende bem. Diz-lhe que o amei
sempre,
desde o primeiro dia, que o amo... Mas que morro contente, porque ele
no se
podia prender a uma rapariga como eu... O Sol no se casa com a noite.
Teve um
suspiro. A sua mo errante procurava em redor.
Macumazan, ests
a? Diz-lhe que me aperte mais contra o peito, para eu sentir os seus
braos.
Assim, assim... Diz-lhe que um dia hei-de tornar a v-lo nas
estrelas... Que
hei-de ir de estrela em estrela, procura dele. Macumazan, diz-lhe
ainda que o
amo, diz-lhe ainda...
Os
lbios sorriam, sem
falar. Estava morta.
As
lgrimas caam, quatro
a quatro, pela face do meu pobre John.
Morta!
murmurava ele, agarrando ainda as mos de Fulata. J me no ouve! E
no
a tornar a ver, no a tornar a ver!
O baro
disse ento,
devagar, e numa estranha voz:
No
tardar,
amigo, que a tornes a ver.
Como
assim?
Oh
homens, pois
no percebestes ainda que estamos enterrados vivos?
Foi ento,
s ento, que, pela primeira vez, compreendi o indizvel horror do que
nos
sucedia! Sim, com efeito! A enorme massa de pedra estava fechada. O
nico ser
que lhe conhecia o segredo jazia esborrachado por ela, sob ela.
For-la, s se
tivssemos ali massas de dinamite! Estava fechada para sempre! E ns
ali fechados,
detrs dela! Durante momentos ficmos mudos, com os cabelos em p,
junto do
cadver de Fulata. Toda a fora de homens, a coragem de homens, fugia
de ns
bruscamente. ramos seres inertes. E compreendamos agora todo o plano
monstruoso de Gagula as suas ameaas, as suas ironias, o seu sinistro
convite para bebermos e comermos
os diamantes.
Sim, era o que
tnhamos para beber e comer! Desde Lu, decerto, ela viera planeando a
traio
e s nos trouxera caverna para nos deixar l dentro, morrendo junto
dos
tesouros que apetecramos!
necessrio fazer
alguma coisa exclamou o baro, numa voz rouca. nimo, rapazes!
A lmpada vai findar. Vejamos se, por acaso, podemos achar o segredo, a
mola
que move a rocha.
Recobrmos
um momento de
energia, e, escorregando no sangue da pobre Fulata, rompemos a apalpar
ansiosamente a porta e as paredes do corredor. No achmos nada, em
mais de uma
hora de desesperada busca, que nos esfolou as mos.
A
mola, se tal
mola h, est do lado de fora disse eu. Foi por isso que Gagula
saiu, como disse Fulata. Depois, se voltou, porque se queria
certificar que
estvamos bem entretidos com os diamantes... Malditos sejam eles, e
maldita
seja ela!
De
resto
lembrou o baro se a infame bruxa tentou fugir pela fenda, que
sabia
bem que, pelo lado de dentro, no podia levantar a rocha. No h nada a
fazer
com a porta. Vamos ver outra vez na cmara.
Levantmos
ento, com
respeito e cuidado, o corpo de Fulata, fomo-lo colocar dentro, no cho,
com os
braos em cruz, junto das arcas de dinheiro. Depois vim buscar o cesto
de
provises. E sentados junto dos cofres de pedra, atulhados de riquezas
que nos
no podiam salvar, dividimos as provises em doze pequenos lotes, que,
a dois
repastos por dia, nos poderiam sustentar a vida por dois dias. Alm da
caa
fria e das carnes secas, tnhamos duas cabaas de gua.
Bem,
jantemos
disse o baro que talvez o nosso penltimo jantar neste
mundo.
Pouco
era o apetite,
naturalmente. Mas havia horas que estvamos em jejum, e aquela parca
comida,
molhada com avaros goles de gua, reconfortou-nos e deu-nos um vago
alento de
esperana. Comemos ento a examinar sistematicamente as paredes da
nossa
priso, contando com a remota possibilidade de que existisse, alm da
porta da
rocha, outra sada. Esquadrinhmos todos os recantos, arredmos todas
as arcas,
batemos as muralhas, sondmos o solo, explormos a abbada. Ficmos
exaustos,
sem achar nada. A lmpada espirrava e amortecia. Quase todo o leo
estava
chupado.
Que
horas so,
Quartelmar? perguntou o baro.
Tirei o
relgio. Eram seis
horas. Tnhamos entrado s onze na caverna.
Infands h-de dar
pela nossa falta lembrei eu. Se nos no vir voltar esta noite,
decerto nos vem procurar...
E
ento?
exclamou o baro. De que serve? Infands no conhece o segredo da
porta, ningum o conhecia seno Gagula. Ainda que conhecesse a porta,
no a
podia arrombar. Nem todo o exrcito dos Cacuanas, com as suas azagaias,
pode
furar cinco ps de rocha viva. Ningum nos pode salvar seno Deus!
Houve
entre ns um longo,
grave silncio. De repente a luz flamejou, mostrando, num relevo forte,
todo o
interior da cmara, o grande monte dos marfins brancos, as arcas de
dinheiro
pintadas de vermelho, o corpo da pobre Fulata estirado diante delas, o
saco de
couro cheio de diamantes, a vaga refraco que saa dos cofres de pedra
abertos, e as lvidas faces de ns trs, ali sentados a um canto,
espera da
morte. Depois a luz bruxuleou e morreu.
XV
NAS ENTRANHAS DA TERRA
No me
possvel
descrever, com exactido, as agonias daquela noite. E ainda assim a
divina
misericrdia permitiu que dormssemos a espaos. Mas o brusco acordar,
a cada
instante, era pungente. Por mim, o que mais me torturava era o silncio.
Um silncio
tenebroso, tangvel, absoluto
o silncio de uma sepultura cavada nas profundidades rcheas do globo,
e onde
todas as artilharias troando, e as trovoadas do cu estalando, no
poderiam
fazer chegar a menor vibrao de som, fosse ele ao menos to leve como
um leve
zumbir de mosca... E ento, acordado, a monstruosa ironia da nossa
situao
ainda mais me acabrunhava. Em tomo de ns jaziam riquezas incontveis,
bastantes para pagar as dvidas de muitos estados, construir frotas de
couraados, erguer palcios todos feitos de ouro, saciar todas as
fomes,
satisfazer todas as imaginaes... E de que nos serviam? Uma pouca de
pedra
bruta sem valor, mas que ns no podamos quebrar com as nossas mos,
tomavam-nas inteis, to sem valor como a prpria pedra! Uma arca
inteira de
diamantes daramos ns com infinito prazer por um pouco de po, ou por
outra
cabaa de gua. Mais! Daramos todas as arcas de diamantes pelo
privilgio de
morrer de repente, sem sentir, sem sofrer! Na verdade, o que a
riqueza?
Sonho, estpida iluso!
John
disse
o baro, do seu canto, num dos momentos em que eu assim pensava
quantos fsforos
te restam?
Oito.
Acende um, v as
horas.
A chama
quase nos
deslumbrou depois da intensa treva. Eram cinco horas no meu relgio. A
alvorada
estaria agora clareando as alturas da serra! A brisa espalharia o aroma
do
rosmaninho em flor! Os soldados de Infands comeariam agora a mexer-se
nas
suas mantas, junto das fogueiras apagadas e as nascentes de gua,
junto
deles, cantariam de rocha em rocha. De assim pensar, as lgrimas
humedeceram-me
os olhos.
Era
melhor
comermos alguma coisa sugeriu o baro.
Para
qu?
exclamou John. Quanto mais. depressa acabarmos com isto, melhor!
Enquanto Deus
permite a vida, que permite a esperana! respondeu o baro
gravemente.
Repartimos
uma pouca de
carne seca e de gua. Enquanto comamos, um de ns lembrou que nos
avizinhssemos da porta, e gritssemos com toda a fora, porque talvez
Infands, andando j na caverna nossa procura, ouvisse o remoto som
das
nossas vozes. John, que, como marinheiro, tinha o hbito de gritar,
desceu o
corredor s apalpadelas, e comeou a berrar furiosamente. Nunca,
decerto, ouvi
uivos iguais: mas foram to ineficazes como um murmrio de insecto. O
resultado
nico foi que John voltou com a garganta ressequida, e teve de chupar
um trago
da pouca gua que restava. Gritar s nos fazia sede. Desistimos desse
esforo
intil.
De
sorte que nos agachmos
de novo junto dos cofres cheios de diamantes, naquela horrvel inaco
que era
um dos nossos maiores tormentos. E eu, ento, cedi ao desespero. Deixei
cair a
cabea no ombro do baro, e desatei a chorar. Do outro lado o pobre
John
soluava tambm.
Grande
alma, e corajosa, e
doce, era a do baro. Se ns fssemos duas criancinhas assustadas, e
ele a
nossa me, no nos teria animado e consolado com maior carinho.
Esquecendo a
sua prpria sorte, fez tudo para nos serenar, contando casos de homens
que se
tinham encontrado em lances terrivelmente iguais, e que milagrosamente
tinham
escapado. Depois levava-nos a considerar que, no fim de tudo, ns
estvamos
simplesmente chegando quele fim a que todos tm de chegar, que tudo em
breve
acabaria, e que a morte por inanio suave (o que no verdade). E
enfim,
com um modo diferente, pedia-nos que nos abandonssemos misericrdia
de Deus,
e lhe rogssemos, na nossa misria, um olhar dos seus olhos piedosos.
Natureza
adorvel, a deste homem! Quanta serenidade, e quanta fora! Eu, por
mim,
acolhia-me a ele como a um grande refgio. E, por sua exortao, rezei
e
serenei.
Assim
passou o dia (se tal
treva se pode chamar dia), at que acendi outro fsforo, olhei o
relgio. Eram
sete horas! Pensmos ento em comer.
E
quando estvamos
dividindo a carne seca, ocorreu-nos, de repente, uma ideia estranha.
Porque
disse eu que o ar aqui se conserva to fresco? um pouco espesso,
mas
fresco.
Santo
Deus!
exclamou John erguendo-se com um pulo. Nunca pensei nisso!
Com
efeito, fresco...
No pode vir de fora pela porta de pedra, porque reparei perfeitamente
que ela
desliza dentro de quelhas... Tem de vir de outro stio. Se no houvesse
uma
corrente de ar, devamos ficar sufocados, quando aqui entrmos ontem...
Agora
mesmo devamo-nos sentir abafados. Evidentemente, o ar renovado.
Vamos a ver!
Ainda
ele no findara, j
ns andvamos, de gatas, s apalpadelas, na escurido, procurando
sofregamente
qualquer indicao de buraco ou fenda por onde entrasse ar. Houve um
momento em
que pousei a mo no quer que fosse de gelado. Era a face da pobre
Fulata, j
rgida.
Durante
uma hora, ou mais,
passmos assim apalpando todos os cantos, at que o baro e eu
desistimos,
esfalfados, e todos pisados de ter constantemente batido com a cabea
nos
muros, nos dentes de elefante e nas esquinas das arcas. Mas John
continuou, sem
perder a esperana, declarando que era melhor aquilo que pensar na
morte, de
braos cruzados.
De
repente, teve uma
exclamao:
Oh
rapazes! Aqui!
Vinde c.
Com que
precipitao
corremos para o canto donde ele falara!
Quartelmar, ponha
aqui a mo, onde est a minha. A. Que sente?
Parece-me que
sinto um fio de ar.
Agora
oua!
Ergueu-se,
e bateu com o
p no cho. Uma imensa esperana relampejou-nos na alma. A laje soava
oco.
Com as mos a tremer acendi um
fsforo. Estvamos
num recanto, de que ainda no suspeitramos e aos nossos ps, na laje
que pisvamos, e como incrustada nela, havia uma grossa argola de
pedra. No
tivemos uma palavra, na imensa excitao que de ns se apoderou. John
tinha uma
navalha, com um desses ganchos que servem para extrair pedras pequenas
das ferraduras
dos cavalos. Ajoelhou e comeou a raspar com o gancho em tomo da
argola.
Raspou, raspou at que conseguiu introduzir a ponta do gancho sob a
argola, levant-la pouco a pouco, p-la a prumo. Depois deitou-lhe as
mos, e
puxou desesperadamente. Nada se moveu.
Deixai-me ver a
mim! exclamei com impacincia.
Agarrei,
pondo toda a
minha fora no puxo contnuo e intenso. Escalavrei as mos. A pedra
no se
moveu. Depois foi o baro. Sentamo-lo gemer. A pedra no se moveu.
De novo
John se atirou de
joelhos, e com o gancho da navalha raspou em redor a frincha por onde
ns
sentamos como um dbil hlito de ar. Em seguida tirou um grosso leno
de seda
que lhe envolvia o pescoo e passou-o na argola.
Agora, baro! Mos
ao leno, e puxar at rebentar! Quartelmar, agarre o baro pela cinta,
e puxem
ambos quando eu disser... Um, dois, v!
Em silncio, com os dentes
rilhados, puxmos,
puxmos at que eu senti rangerem os ossos do baro. Era ele que
fazia
o esforo maior, com os seus enormes braos de ferro. E foi ele que
sentiu a
pedra mexer...
Agora! agora! Est
cedendo! Mais! Ala, ala! Eh!
Um
estalo, uma rajada
brusca de ar, e rolmos estatelados no cho, com a pedra por cima de
ns. Fora
a imensa fora do baro que fizera o prodgio. Que grande coisa, a
fora!
Um
fsforo,
Quartelmar! exclamou ele, erguendo-se, ainda arquejante.
Acendi
o fsforo. E,
louvado Deus! vimos diante de ns os primeiros degraus de uma escada de
pedra!
E
agora?
perguntou John.
Descer! E confiar
em Deus!
Esperai!
gritou o baro. Quartelmar, veja se apalpa e acha o resto da comida e
da gua. Quem sabe onde iremos parar?
Achei
logo as provises,
que estavam junto da arca de pedra, cheia de diamantes.
E j
enfiara o cesto no
brao, quando pensei nos diamantes... Porque no? Quem sabe? Talvez,
por merc
divina, achssemos uma sada! No fazia mal nenhum, cautela, meter um
punhado
de diamantes na algibeira!... Se chegssemos a sair daquela horrvel
cova, no
teriam sido ao menos inteis todas as nossas angstias. Um punhado de
diamantes
nada pesava! E, ao acaso, mergulhei a mo na arca e comecei a encher
todos os
bolsos da minha rabona. Depois atulhei as algibeiras das pantalonas. J
abalava, quando voltei ainda, com uma ideia, arca onde estavam as
pedras mais
gradas. E encafuei uma enorme mo-cheia delas para dentro da algibeira
do
peito. O contacto vivo daquelas riquezas fez-me pensar nos outros.
rapazes! No
quereis levar uns poucos de diamantes? Eu enchi as algibeiras.
Diabos levem os
diamantes disse do canto o baro, impaciente. At me faz
nuseas a ideia de diamantes! marchar, marchar!
Enquanto
ao amigo John,
esse nem respondeu. Creio que estava de joelhos, junto do corpo de
Fulata,
dando o ltimo adeus quela que por ele morrera! Quando nos achmos
junto do
alapo, j o baro descera o primeiro degrau.
Eu
vou adiante,
segui devagar.
Cuidado!
gritei eu. Pode haver por baixo algum medonho buraco. V tenteando...
Mo encostada sempre parede...
O baro
desceu, contando
os degraus. Quando chegara a quinze, parou.
um
corredor
gritou ele de baixo. Descei!
Quando
chegmos ao fundo,
acendi um dos dois fsforos que nos restavam. luz que ele deu, vimos
um
pequeno espao, onde se encontravam, em ngulo recto, dois tneis muito
estreitos. O fsforo morreu, queimando-me os dedos. E ficmos numa
horrvel
hesitao! Qual dos tneis seguir? John, ento, lembrou-se que a chama
do
fsforo se inclinara para a banda do tnel da esquerda. Portanto o ar
vinha
pelo tnel da direita. Era por esse que devamos caminhar, demandando o
lado do
ar.
Aceitmos
a ideia. E
apalpando sempre a parede, no arriscando um passo sem tentear o solo,
seguimos
nesta nova e incerta aventura. Ao fim de um quarto de hora de marcha
lenta,
esbarrmos num muro. Era outro tnel transversal, por onde continumos
cosidos
com o muro. Depois desse topmos outro, que o cruzava em ngulo agudo.
Depois
havia outro, mais largo. E assim durante horas. Estvamos num labirinto
de
rocha viva. Para que tivessem servido outrora estas inumerveis
passagens
subterrneas, no sei dizer mas tinham a aparncia de galerias de
mina.
Finalmente
parmos,
esfalfados, com a esperana meio perdida. Comemos os restos das
provises,
bebemos os derradeiros goles de gua. Tnhamos escapado de morrer nas
trevas de
uma cova de diamantes para vir talvez morrer nas trevas de uma mina
vazia...
Quando
assim estvamos
sentados no cho, encostados ao muro, num infinito desalento eu
julguei
ouvir um som, dbil e vago, com a distncia. Avisei os outros,
escutmos sem respirar.
E todos muito claramente distinguimos um som. Era muito tnue, muito remoto
mas era um som, um
som murmurante e contnuo.
Santo
Deus!
exclamou John. gua a correr!
Num
instante estvamos de
p, caminhando para o som. A cada passo o sentamos mais distinto, mais
claro,
na imensa mudez do tnel. Sempre para diante, sempre para diante! O som
ia
crescendo. Por fim era um rudo forte, o rudo de uma corrente de gua.
Mas
como podia haver gua corrente nestas entranhas da Terra?... E todavia,
com
certeza, ali perto corria gua com fora. John, marchando adiante,
jurava que
lhe percebia j a humidade e o cheiro.
Devagar, John,
devagar! gritou o baro. Devemos estar perto...
De
repente um baque na
gua, um grito de John! Tinha cado.
John!
John! Onde
ests? berrmos, perdidos de terror. Fala! Fala!
Que
alvio, quando a voz
dele nos veio de longe, sufocada.
Salvo. Agarrei-me
a uma pedra! Acendei um fsforo para eu ver onde estais! Raspei o meu
ltimo
fsforo. sua luz trmula vimos aos nossos ps uma imensa massa de
gua,
correndo com grande fora. Que largura tinha no percebemos... Mas, a
distncia, distinguimos a forma vaga do nosso companheiro, pendurado de
um
penedo agudo.
Preparai-vos para
me agarrar gritou ele de l. Vou nadar para a!
Outro
baque, uma grande
luta de braos batendo a gua. Depois, junto de ns, um resfolegar
ansioso. E,
por fim, uma exclamao do baro, que agarrara o nosso amigo pelas
mos, o
puxara para dentro do tnel, a escorrer.
Irra!
balbuciava John, ofegando. Estive por um fio. uma corrente furiosa
e
parece-me que no tem fundo.
Evidentemente,
deste lado
nada conseguamos. De sorte que, depois de John descansar, de bebermos
farta
daquela gua, que era deliciosa, e de lavarmos a cara, deixmos as
margens
daquele tenebroso rio, e retrocedemos ao comprido do tnel, com John
adiante,
tiritando e pingando. Depois de andarmos um quarto de hora chegmos a
outro tnel, que se inclinava para a direita e parecia mais largo.
Seguimos este
disse o baro, inteiramente desalentado. Todos eles so iguais.
O melhor andarmos, andarmos, at cair a para um canto, sem poder
mais,
espera da morte.
Durante
muito, muito
tempo, mudos, em fila, arrastmos os passos na treva, atrs do baro,
cujas
fortes pernas j frouxeavam.
De
repente esbarrmos com
ele que estacara, como atnito.
Quartelmar!
exclamou ele, agarrando-me convulsivamente o brao. Eu estou a
delirar ou aquilo alm luz?
Arregalmos
desesperadamente os olhos. E com efeito, l ao longe, ao fundo do
tnel, vimos
uma plida, vaga mancha de claridade, pouco maior do que um vidro de
janela!
Com outro alento de esperana, estugmos o passo. Momentos depois toda
a dvida
cessara, deliciosamente. Era luz
uma desmaiada mancha de luz! Tropevamos uns contra os outros na nossa
ansiedade. Mais viva, cada vez mais viva a luz! Por fim, um ar fresco
bateu-nos
a face!... Mas, de repente, o tnel estreitou. Caminhmos curvados.
Depois
estreitou mais. Gatinhmos, de mos no cho. E estreitou ainda, como
uma toca
de raposa. Fomos de rastos. Mas a rocha findara. Era terra, terra
frivel, que
se esboroava... Um empuxo, um gemido, e o baro furou, e John furou, e
eu
furei e sobre as nossas cabeas luziam as benditas estrelas, e na
nossa
face batia uma aragem doce!
De
repente faltou-nos o
cho, e todos trs, uma, rolmos de escantilho por um declive
abaixo, de
terra mole e hmida, entre capim e tojo... Agarrei uma coisa e parei.
Estonteado, coberto de lodo, berrei pelos outros, desesperadamente. Um
brado em
resposta veio de baixo, de uma terra ch onde o baro fora parar.
Resvalei at
l e fui encontrar o nosso amigo atordoado, sem flego, mas intacto.
Gritmos
ento por John. E uns ols arquejantes
guiaram-nos ao stio onde uma raiz de rvore, em que ainda estava
acavalado, o
detivera no desesperado tombo.
Sentmo-nos
ento todos
trs na relva e vendo-nos fora da fnebre caverna, salvos, sos, a
respirar outra vez o ar da terra, a emoo foi to forte que comemos
a chorar
de alegria. Seguramente fora Deus misericordioso que nos guiara por
aquele
tnel, para aquele buraco, que era a porta da Vida. E agora, a manh
que
julgvamos nunca mais ver estava roseando o topo dos montes. sua luz
bendita
vimos ento que nos achvamos no fundo, ou quase no fundo, daquela
imensa cova
circular que fora outrora a mina de diamantes. L no alto, j podamos
distinguir as confusas formas dos trs colossos. Sem dvida aqueles
corredores
por onde tnhamos vagueado, to angustiosamente, comunicavam outrora
com as
diamanteiras. E enquanto ao tenebroso rio... Mas que nos importava
agora o rio?
A luz do dia clareava. Estvamos envolvidos na luz do dia! S isto era
essencial e doce de saber!
No
podamos deixar,
todavia, de pasmar para as nossas figuras. Escaveirados, esgazeados,
rotos,
cheios de pisaduras, com camadas de p e de lama, sangue nas mos e
sangue nas
faces ramos, na verdade, trs espantalhos medonhos. Mas no havia a
pensar em nos sacudirmos ou nos ajeitarmos. Aquele fundo da cova,
hmido e
regelado, era perigoso para corpos como os nossos to exaustos. De
sorte que
comemos, com lentos e custosos passos, a trepar as ladeiras ngremes,
atravs
da greda azulada, agarrando-nos s razes, e agarrando-nos ao tojo, num
esforo
ltimo que nos esvaa. Ao fim de uma hora estava terminada a faanha
e
os nossos ps, trmulos, pisavam outra vez a estrada de Salomo. A umas
cem
jardas adiante brilhava uma fogueira junto de cabanas, e em volta dela
estavam
homens. Para l caminhmos, amparando-nos uns aos outros, e parando,
meio
desmaiados, a cada passo incerto. De repente um dos homens que se
aquecia ao
lume ergueu-se, avistou-nos e atirou-se de bruos ao cho, tremendo,
gritando de medo.
Infands,
Infands, somos ns, teus amigos!
Ele
levantou a cabea,
depois o corpo. Por fim correu para ns, com os olhos esbugalhados, e
ainda
tremendo todo.
Oh
meus senhores!
Sois vs! Sois vs! Voltais do fundo dos mortos!... Voltais do fundo dos
mortos!...
E o
velho guerreiro,
abraando-se ao baro pelos joelhos, rompeu a soluar de alegria.
XVI
A PARTIDA DE LU
Dez
dias depois estvamos
de novo em Lu nas nossas confortveis cubatas de Lu, sombra dos
machabeles. E poucos vestgios nos restavam daquela atroz aventura,
alm dos
muitos cabelos brancos que eu trazia, e da melancolia em que cara o
nosso
pobre John, com o corao ainda cheio de Fulata.
E
intil acrescentar que
no tommos a penetrar no tesouro de Salomo apesar de sagazes e
metdicas tentativas. Naquele dia em que Infands nos acolheu como a
ressuscitados, nada fizemos seno comer, dormir, descansar, gozar o
sol. Logo
no dia seguinte, porm, descemos com uma escolta grande cova, na
esperana de
encontrar o buraco por onde tnhamos furado para a luz e para a vida.
Foi
debalde. Em primeiro lugar, chovera copiosamente de noite, e todas as
nossas
pegadas tinham desaparecido; mas, alm disso, os declives em funil da
enorme
cova estavam por todos os lados cheios de buracos, uns naturais, outros
feitos
por bichos. Qual deles nos salvara, entre tantos milhares? Impossvel
descobrir!
Depois
disso voltmos
caverna de estalactites, afrontmos os horrores da cmara dos reis
mortos; e
durante muito tempo rondmos diante da muralha de pedra, para alm da
qual
jaziam, inacessveis para sempre, os maiores tesouros da Terra, para
sempre
guardados funebremente pelo esqueleto da pobre Fulata. Mas, apesar de
examinarmos a muralha durante horas, de a apalpar, de martelar sobre
ela, no
nos foi possvel achar o segredo da porta sob a qual jaziam
pulverizados
os fragmentos da hedionda bruxa que, com a sua traio, s ganhara a
sua perda.
Enquanto a forar aqueles cinco ps de rocha viva, quem podia pensar em
tal
feito? Nem todo o exrcito dos Cacuanas, trabalhando anos, lograria
passar
atravs. S com dinamite ou trazendo pelo deserto poderosas ma-quinas.
E
assim, l esto ainda,
nesse remoto canto de frica, os tesouros que desde os tempos bblicos
tanto
tm fascinado a imaginao dos homens. Um dia talvez, quando a frica
toda
estiver civilizada, cortada de estradas, coberta de cidades, algum
mais feliz
que ns, e com os incalculveis recursos da cincia de ento, penetrara
no
vedado tesouro, e ser rico alm de toda a fantasia! Esse, se jamais
existir,
encontrar l, como vestgio da nossa passagem, as arcas abertas e os
ossos da pobre
Fulata, e uma lmpada apagada. A esse tempo j estar perdida a memria
deste
livro, contando a estranha aventura. E esse explorador futuro mal
suspeitar
ento, ao dar com o p nesses ossos, ao remexer essas riquezas, que
trs homens
do sculo XIX passaram ali um dos mais trgicos lances que jamais foi
dado a
homem passar...
Devo,
todavia, acrescentar
que, materialmente, a nossa estada na caverna no foi de todo intil.
Como
contei, ao abandonarmos o tesouro, eu tive a esplndida precauo de
atulhar as
algibeiras de diamantes. Muitos destes, e sobretudo os maiores, caram,
ficaram
perdidos, quando eu rolei pelos declives da cova. Mas ainda me restou
nos
bolsos uma enorme quantidade. No lhe posso calcular o valor. Deve ser
imenso!
Suponho
que trouxemos
ainda diamantes bastantes para sermos todos trs milionrios, e
possuirmos os
trs mais ricos adereos de jias que existam no mundo. Em resumo, no
ponto de
vista econmico, a aventura no gorou.
Em Lu,
fomos acolhidos
pelo rei Ignosi com grande amizade e regozijo. Apesar de fundamente
absorvido
nos cuidados de um reinado que comea (e sobretudo na reorganizao do
exrcito), estivera em grande inquietao durante a nossa longa demora
nas
minas. E foi com ardente curiosidade que escutou a nossa maravilhosa
histria.
A
notcia da morte de
Gagula foi para ele um alvio imenso.
Quem
sabe
murmurou ele se depois de vos deixar morrer no stio escuro, no
acharia ainda artes de me matar a mim tambm!
Para
comemorar a nossa
volta, Ignosi deu um banquete e uma dana. E foi nessa noite, ao fim da
festa,
no terreiro real, onde brilhava o luar, que ns anuncimos ao rei o
nosso
desejo de deixarmos enfim o seu reino, e regressar nossa ptria.
Ignosi,
primeiramente,
pareceu espantado. Depois cobriu a face com as mos.
O que
vs
anunciais exclamou ele por fim retalha o meu corao! Sempre
pensei que de todo ficareis comigo. Para que foi ento, valentes,
que me
ajudastes a ser rei? O que quereis? O que vos falta? Mulheres? Campos?
Gados?
Toda a terra que minha, vossa. Escolhei! uma casa como as que os
brancos
habitam no Natal que vos falta? Os meus homens, ensinados por vs,
edificaro
uma entre jardins... Dizei! E cada um dos vossos desejos tem j a minha
promessa de rei.
No,
Ignosi, no!
acudi eu. O que ns simplesmente desejamos voltar para as
nossas terras.
Ele,
ento, sorriu com
amargura. Sim, bem percebia! Nos nossos coraes nunca houvera amor por
ele,
mas s cobia das pedras que brilham. Agora tnhamos as pedras para
vender,
para recolher dinheiro... Estava satisfeito o vil desejo do branco. Que
importava pois o amigo que ficava chorando? Malditas fossem as pedras,
e idos
fssemos ns bem cedo!
Eu
pousei-lhe a mo no
brao:
Escuta, Ignosi! As
tuas palavras no vm do teu corao. Quando tu andavas exilado na
Zululndia,
e depois entre os homens brancos do Natal, no sentias tu o desejo da
terra
donde vieras, e de que tua me te falava? No se te voltavam os olhos
para o
Norte, para onde estavam os campos e as senzalas onde tu nasceras, onde
brincaras com as ovelhas, onde os velhos que passavam no caminho tinham
conhecido teu pai?
Assim
era,
Macumazan, assim era! exclamou o rei, comovido.
Pois
do mesmo modo
o nosso corao deseja a terra em que nascemos. Ignosi baixou a cabea.
As
tuas palavras,
como sempre, Macumazan, vem cheias de verdade e razo. Sim, tendes de
partir. E
eu ficarei triste, porque no mais me chegaro notcias vossas, e vs
sereis
para mim como mortos!
Esteve
um momento
pensando, com o dedo pousado na testa. Depois chamou os chefes mais
idosos,
anunciou a nossa partida, ordenou que fssemos acompanhados pelo
regimento dos Pardos
at s
montanhas, e da, com uma
escolta e com guias, levados pelo caminho do osis (de que ele s
recentemente
tivera notcia) e que nos pouparia todos os trabalhos da passagem das
serras.
Em seguida, erguendo a mo, jurou ante os chefes que no permitiria
jamais que
nenhum branco entrasse no seu reino a procurar as pedras que brilham
mas que ns poderamos voltar sempre, porque ramos os irmos do seu
corao!
E, por fim, decretou que os nossos nomes fossem considerados sagrados
como os
nomes dos reis mortos e que assim se proclamasse por todo o reino, de
montanha em montanha.
E
agora ide! Ide
antes que os meus olhos vertam lgrimas como os de uma mulher. Quando
estiverdes longe, nas vossas casas, junto das vossas lareiras, pensai
por vezes
em mim... Adeus! Adeus para sempre, Incubu, Macumazan, Boguan, grandes
homens e
meus amigos!
Ergueu-se;
esteve um
momento olhando fixamente para ns, um por um; depois escondeu a cabea
no seu
manto de pele de leopardo, e fugiu para dentro da senzala real.
Ns
afastmo-nos em
silncio, e com o corao pesado.
Na
madrugada seguinte
partimos de Lu, acompanhados por Infands e pelo regimento dos Pardos.
Apesar de to
cedo, as ruas estavam apinhadas de
gente que nos lanava a saudao Crum e nos desejava boa jornada! As
mulheres atiravam-nos
flores ao passar. Todos os tants ressoavam. Era como uma grande
cerimnia
real.
Pelo
caminho, Infands
foi-nos explicando que havia, com efeito, uma passagem nas montanhas
mais fcil
do que aquela por onde viramos ou antes, que era possvel descer por
aquela alta escarpa que separa os dois seios de Sab como um muro
separa duas
torres. Havia um ano, um bando de caadores cacuanas, indo ao deserto
procura
do avestruz, tinham achado e seguido este caminho. Ao fim dele
encontraram o
deserto; e ao fundo, no horizonte, avistaram macios de rvores.
Levados pela
sede, caminharam para l, e acharam um largo e frtil osis, cheio de
fruta, de
caa e de gua. E da, diziam os caadores, podiam-se distinguir no
horizonte
outros lugares frteis, formando como uma continuao do osis. Deste
modo era
talvez possvel diminuir os horrores de uma nova travessia do deserto.
Ao fim
de quatro dias de
marcha chegmos, com efeito, ao alto da escarpa donde avistmos, por
lguas e lguas, outra vez, o medonho deserto amarelo em que tanto
sofrramos.
Foi de madrugada que comemos a descida e foi ento que nos
separmos
do nosso amigo Infands.
O
excelente homem quase
chorou de mgoa.
Nunca
os meus
olhos exclamava ele vero homens como vs. Aquele golpe de
machado, Incubu! Que beleza! Sois os fortes dos fortes! E o meu corao
fica
cheio da vossa lembrana. Adeus!
Tivemos
realmente saudade
do velho Infands; e John, como lembrana, deu-lhe adivinhem o qu?
um monculo! Tinha um
de sobresselente, e presenteou com ele o herico e leal selvagem!
Infands,
entusiasmado, procurou logo ental-lo no olho, certo de que essa pupila
resplandecente
aumentaria o
seu prestgio entre
as tropas. E foi esta a derradeira impresso que me ficou dos nossos
amigos da
Cacunia um velho guerreiro, nu, com uma pele de leopardo ao ombro,
grandes plumas negras na cabea, franzindo a face, de monculo no
olho!
Da a pouco, tendo apertado
afectuosamente a mo a
esse honrado Infands, comevamos a nossa descida pela escarpa que
liga os
seios de Sab, entre as trovejantes aclamaes do regimento dos Pardos.
Fizemos essa descida em doze
horas. A noite
estvamos acampados orla do deserto, conversando em tomo das
fogueiras acerca
desses dois estranhos meses que passramos entre os Cacuanas!
H
stios piores
para se viver dizia o baro.
Quase
desejava ter
l ficado acrescentava John, com saudade.
Eu no
dizia nada.
Tnhamos l passado temerosos momentos. Mas, por vezes, a vida fora
doce. E no
alforge trazamos um saco de diamantes!
Na
madrugada seguinte
encetmos a marcha para esse osis que os nossos guias conheciam.
Trilhmos
trs dias o deserto mas sem desconsolo, graas ao bando de
carregadores
que nos dera Ignosi, e que nos permitia levar provises fartas e gua
farta.
Pelo comeo da tarde do terceiro dia avistmos um bosque e o nosso
jantar j foi regaladamente servido debaixo de copadas rvores e junto
de
frescas guas correntes.
XVII
ENFIM!
Agora
resta-me contar a
maior maravilha desta maravilhosa jornada. To estranha, quase
inverosmil ,
que, para no lhe aumentar o ar de romance que ela j de per si tem,
preciso
narr-la com a mxima brevidade e mxima simplicidade.
Foi
isto. Na manh
seguinte, no osis, andava eu passeando ao comprido de uma fresca
ribeira que o
banha, quando de repente, num frondoso outeiro sombra de figueiras,
com a
fachada voltada para a corrente vejo uma confortvel cabana,
construda
maneira cafre, mas com uma porta, uma porta de madeira, em vez do
costumado
buraco redondo. E quando eu estava pasmando para esta casota humana
perdida num
osis do deserto, eis que a porta se abre, e aparece, coxeando,
encostado a um
pau, todo vestido de peles, e com uma imensa barba branca at
cintura, um homem
branco!
Ficmos a olhar esgazeadamente
um para o outro.
Justamente nesse momento o baro e John apareceram. O homem crava os
olhos em
ns, com um ar quase aflito. De repente larga a correr, como um coxo
pode
correr, aos tropees. Esbarra, rola no cho. O baro acode. Ergue o
homem. E
grita:
Santo
Deus!
meu irmo Jorge!
Quase
tenho vergonha de narrar este lance. Parece banalmente inventado pelos
moldes
do teatro antigo. Mas foi assim.
E ainda
mais! Ao alvoroo
do baro, s exclamaes que seguiram, outro homem saiu da cabana,
tambm
vestido de peles, com uma espingarda na mo. Ao dar com os olhos em
mim, larga
a arma, leva as mos carapinha...
Oh
Macumazan! Oh
Macumazan!... No me conheces? Sou Jim! Sou Jim! Aquele papel que tu me
deste
para o patro, perdi-o... Estamos aqui h dois anos. E o pobre Jim
rojava-se no
cho diante de mim, chorando e rindo, numa alegria furiosa.
Com
efeito, havia dois
anos que o irmo do baro e o seu servo Jim viviam naquele osis. Foi
no nosso
acampamento, nessa tarde, que Jorge Curtis nos contou, lentamente, toda
a sua
histria. Dois anos antes partira da aringa de Sitanda, como ns, para
atravessar o deserto, e procurar as minas de diamantes para alm das
montanhas.
Por informao, porm, que lhe deram uns caadores de avestruzes que
felizmente
encontrara, tomou um caminho diverso, e bem melhor do que aquele que
seguira
outrora o velho D. Jos da Silveira, e que ns seguramos guiados pelo
seu
roteiro. Esse caminho era atravs do deserto, mas entremeado de osis.
Assim
tinha chegado a este, o maior de todos, e estava junto das Montanhas de
Salomo, quando lhe aconteceu uma grande desgraa. No dia mesmo em que
aqui
parara, estava sentado junto do rio, por baixo de umas penedias, onde
Jim, o
servo, andava procurando o mel de abelhas mansas. De repente, a um
esforo
qualquer que Jim fez em cima, um dos penedos rola e vem cair sobre uma
perna do
pobre Jorge, esmigalhando-lha horrivelmente! Desde esse dia no pde
mais
andar. E, muito naturalmente, preferiu ficar ali no osis, onde tinha
gua,
caa e fruta do que tentar atravessar de novo o deserto, onde
inevitavelmente morreria.
E ali
ficou dois anos,
como um Robinson Cruso. Havia justamente dias que decidira mandar Jim
para
trs, aringa de Sitanda, a buscar socorro. Mas quase tinha a certeza
que Jim
no voltaria...
E
sois vs agora
que apareceis de repente. Justamente tu, irmo! E tu, meu bom John!...
E o sr.
Quartelmar, muito bem me lembro de o ter encontrado em Bamaguato!
extraordinrio! E foi tudo a misericrdia de Deus!
Nessa
noite tambm lhe
contmos as nossas aventuras. Quando eu lhe mostrei um punhado de
diamantes, o
homem empalideceu de espanto.
Santo
Deus! Ao
menos o que sofrestes no foi em vo! Enquanto que eu!...
Esta
triste exclamao
tornou-me pensativo. E desde logo decidi partilhar com ele um lote
daquelas
pedras, que a ele tinham trazido uma to longa desgraa.
E aqui
acaba esta
histria. A nossa travessia do deserto foi extremamente trabalhosa. No
sofremos tanto da sede, porque, segundo o novo roteiro indicado pelos
caadores
de avestruzes, encontrmos a espaos pequenos e frescos osis. Mas o
pobre
Jorge Curtis, que mal podia ainda usar a perna, necessitava constante
amparo
e, por assim dizer, tivemos de o transportar atravs do deserto.
Enfim,
atingimos a aringa de Sitanda, onde o velho sacripanta a quem
deixramos as
nossas armas e bagagens ficou indignado de nos ver voltar, vivos e
sos, para
as reclamar. E seis meses depois estvamos jantando confortavelmente
aqui na
minha casa em Durban, sombra das laranjeiras.
Quando
eu acabava
justamente de escrever esta ltima pgina das nossas aventuras, vejo um
cafre
entrar pelo meu jardim, com cartas e jornais na mo. o correio da
Inglaterra.
E eis aqui uma carta do baro, que eu transcrevo, porque d exactamente
a
concluso da minha histria:
Solar de
Braley
Yorkshire
Meu caro
Quartelmar
S algumas
breves linhas
para lhe dizer que meu irmo Jorge, John e eu chegmos a Inglaterra
todos trs
perfeitamente. Apenas deixmos o paquete, em Southampton, partimos logo
para
Londres pelo primeiro trem. No imagina o Quartelmar que elegante nos
apareceu
logo na manh seguinte o nosso John! Mas parece-me que ainda pensa
muito,
coitado, na pobre Fulata.
E agora
enquanto a
negcios. Levmos os diamantes aos melhores joalheiros de Londres, aos
Streeter. Quase tenho vergonha de dizer em quanto eles os avaliaram.
uma soma
descomunal. Est claro que eles no podem dizer com exactido, porque
nunca
apareceram no mercado pedras deste tamanho em tal quantidade. Enquanto
a
compr-los eles, est fora de questo. Apesar de ser uma forte casa,
no
poderia nunca reunir semelhantes somas. Aconselharam-me que os vendesse
em
pequenos lotes, a diferentes joalheiros, e devagar, para no inundar o
mercado.
Um desses lotes, o que o Quartelmar to generosamente reservou para meu
irmo,
esto eles todavia resolvidos a comprar por cento e oitenta mil libras.
O que o
Quartelmar deve
fazer, agora que est to rico, vir para Inglaterra, e comprar uma
propriedade ao p da minha. O melhor seria vir imediatamente para
passar comigo
este Natal. Tenho c por essa ocasio o nosso John. A respeito de seu
filho
Henrique, posso dizer que est bom. Esteve aqui uns dias comigo a
caar. Gosto
dele. Pregou-me uma carga de chumbo numa perna, extraiu ele prprio os
chumbos,
e provou-me depois a vantagem de haver sempre, em todas as partidas de
caa, um
estudante de medicina.
Venha pois,
velho amigo, e
creia-me sempre seu
HENRIQUE
CURTIS
Hoje
sbado. H um
paquete para Inglaterra alm de amanh. Creio, na realidade, que vou
partir
nele... J tenho saudades do meu rapaz. E, depois, quero vigiar eu
prprio a
publicao destas memrias.