Cartas Familiares e Bilhetes de Paris

Eça de Queirós

 

Cartas Familiares de Paris

Joana d’Arc

O conde de Paris

Chineses e Japoneses

O Czar e a Rússia

A sociedade e os climas

Casimire Périer

A propósito da doutrina de Monroe e do Nativismo

O Inverno em Paris

A propósito do Termidor

 

Bilhetes de Paris

Festas russas – As Decorações

Ainda as festas russas – Os Jornais

Mais uma vez as festas russas – O Povo

Aos estudantes do Brasil

Revolta de estudantes

As catástrofes e as leis de emoção

 

Cartas Familiares de Paris

 

JOANA D’ARC

 

I

 

Meus amigos: aconteceu uma desgraça a Joana d’Arc. A donzela de Orleães, a boa e forte lorena, salvadora do reino de França, foi beatificada pela Igreja de Roma. E (sem malícia voltairiana o digo) com a sua entrada no céu ela está perdendo o prestígio que tinha na Terra, e a sua santidade já irremediavelmente estragou a sua popularidade.

Não havia, contudo, figura da história aperfeiçoada pela lenda que fosse mais popular em França que Joana d’Arc, La Pucelle. Também nenhuma outra concorda mais estreitamente com os gostos, os ideais e as qualidades melhores da raça francesa. Em primeiro lugar, é mulher, e moça, e bela, e loura, e soberbamente feita, como afirmam todas as crónicas, desde a Espanhola até à de João de Metz – e isto desde logo a devia tornar querida a um povo tão sensível, como o francês, às graças e influências da formosura, ao povo que verdadeiramente criou, no culto da Virgem, o culto da mulher, rainha de graça. Depois saíra da plebe, de uma família de lavradores da aldeia de Domremy, na Lorena, que da servidão dos senhores de Joinville tinha passado para o directo domínio da coroa, que trabalhavam a terra por suas mãos ou pastoreavam o gado, enquanto ela ficava fiando à lareira com a mãe, numa simplicidade de vida tão grande que nunca soube ler nem escrever – e a humildade desta origem naturalmente encantou sempre a gente humilde que, no fundo da Inspirada, da companheira do rei de França, encontrava uma irmã em ignorância e pobreza, coberta com um mau saiote escarlate, uma paupercula bergereta. Depois a sua acção no mundo é de guerreira que assalta as muralhas, ergue um pendão, desbarata hostes – e esta é a glória mais amada e popular entre a raça gaulesa, raça de guerra e de ruído, cujo génio não foi ao princípio senão movimento e conquista, e que, como diz Estrabão, é «doida pela espada e sempre sôfrega de brigas». Depois a sua missão foi expulsar o verdadeiro inimigo da França, o inglês invasor; e nenhuma outra poderia exercer mais prestígio entre um povo que con serva como uma das formas do patriotismo a antipatia tradicional pelo Anglo-Saxónio. Enfim, tão profundamente francesa é Joana d’Arc que permanece absolutamente francesa, mesmo naqueles estados de alma que são mais alheios ao génio da França – os de alucinação e de inspiração mística.

Imagine-se uma espanhola, do tipo de Santa Teresa, que recebesse como Joana tão repetidas e visíveis visitas do arcanjo S. Miguel, armado da sua couraça de diamante e transmitindo-lhe o grave recado de Deus, a incumbência heróica de desbaratar os inimigos da Espanha!

O que não faria a espanhola – que transportes, que intensidade de paixão trasbordando em gritos e hinos, que arrojos de demência divina! A donzela lorena, essa, cercada de vozes, de claridades celestes, tratada como uma irmã por grandes santas, levada pela vontade de Deus como num rijo vento, conserva-se muito simples, muito prudente, cheia de bom senso, penetrando e decidindo as coisas da guerra e do Estado com o propósito sagaz e bem-avisado de um conselheiro que encaneceu nos negócios.

E isto que dá à pobre pastora, paupercula bergereta, uma tão encantadora originalidade.

Visões, como as dela, quem as não teve na Idade Média? A França, mesmo no tempo de Joana, estava cheia de inspirados que conversavam com Cristo, suavam sangue, arrastavam multidões pelo enlevo das suas prédicas ou a evidência dos seus milagres. Mulheres tomando uma lança, combatendo nos assédios, derrotando astutos capitães, também não eram raras, mesmo nesse prosaico século XV; e, contemporanea mente com Joana, as matronas da Boémia batalhavam nas guerras dos Hussitas como «muito ferozes diabos», segundo diz o velho Monstrelet. Inspiradas e amazonas não faltavam – o que nenhuma tinha, como Joana, era o sério e fino juízo no meio da alucinação mística e doçura e bondade terna em meio dos recontros e da brutalidade das armas. Esta é a sua privilegiada originalidade. E foi ela que atraiu essa esplêndida popularidade de padroeira nacional. Esta glória de Joana, todavia, nem sempre permaneceu intacta e luzente. E bem se pode afirmar que, logo em seguida à sua reabilitação por Calisto III, e como se a França tivesse saldado a sua dívida para com a pastora, que por ela vivera e sofrera, Joana d’Arc começou a ser esquecida. A sua memória devia ser mesmo importuna à coroa e às classes nobres. Ter recebido um trono, e um trono hereditário, das mãos de uma guardadora de ovelhas, nunca pode ser uma recordação agradável para uma velha casa real. O clero, esse não tinha senão interesse em que se estabelecesse um pesado silêncio sobre aquela santa, que ele queimara por um desses enganos tão frequentes nos cleros constituídos, desde o pavoroso engano do Gólgota. E o povo então, em França, ainda não existia como povo francês – era apenas um agregado de povos diferentes, sem comunhão de sentimentos, donde nascesse um culto patriótico por quem tão apaixonadamente trabalhara na unidade da pátria. Creio em verdade que, quando o último daqueles capitães ingleses, para cuja expulsão ela se armara à voz de Deus, deixou o solo de França, já Joana era apenas lembrada com amor por algum obscuro servo da sua aldeia de Domremy, ou por algum grato burguês dessa Orleães que ela salvara.

Os poetas do século XVI todavia ainda cantam a virgem lorena; mas, através do naturalismo pagão da Renascença, ela aparece com feições lamentavelmente deformadas. Já não é a doce, a cândida virgem cristã, iluminada por Deus para tirar da sua dor o pobre reino da França – mas uma valente amazona, amando o sangue, a guerra, e correndo a ela pelo mero e brutal desejo de destruir, de retalhar! Assim a representa um poeta do tempo, armada, como uma Diana, de arco e de flechas, e toda consagrada ao homicida Marte...

Para o ilustre Malherbe, Joana é um hércules feminino, um grosso hércules façanhudo, cuja violenta morte vem como natural conclusão de violentas aventuras, e que:

 

...Ayant vécu comme un Alcide

Devait mourir comme il est mort.

 

Assim desfigurada pela Renascença, a donzela lorena conserva no entanto uma certa grandeza heróica. Está tornada numa virago, do tipo truculento da nossa padeira de Aljubarrota, mas ainda se impõe pela força, pela bravura, pelo patriotismo. Chega porém Chapelain... Conhecem decerto Chapelain, o único homem, desde que há homens, educado cuidadosa e expressamente pela família para ser um poeta épico!

E foi, com efeito, um poeta épico – e de todos os poetas, em todos tempos, o mais estupidamente fastidioso e ridículo. O assunto do seu enorme poema foi (infelizmente para ela) a infeliz Joana d’Arc. Um segundo processo de condenação não teria sido mais funesto à boa libertadora do reino de França do que esta medonha epopeia que a sublimava.

A fogueira atiçada na praça de Ruão apenas a matou –mas o poema de Chapelain tornou a sua memória perfeitamente risível. Com tão difusa pieguice e patetice celebrou este cruel homem durante trinta intermináveis cantos a virgindade de Joana, que ninguém mais depois pôde pensar nessa virgem sem ter a tentação de lhe troçar a virgindade. O poema era tão tolo que pedia represálias. Foi Voltaire que se encarregou das represálias, nessa famosa e conhecida gaiatice a que deu o mesmo nome da epopeia de Chapelain, La Pucelle.

Voltaire fez mal – e decerto hoje, se ressuscitasse, reconheceria que a virgem exaltada e vitoriosa que restituiu a terra de França ao rei de França, merecia melhor que a troça cintilante de um satirista genial. É um erro porém supor, como pretendem agora os católicos e os patriotas, que já no tempo de Voltaire a sua grande facécia sobre a boa donzela lorena fora reprovada. Pelo contrário! Todo o século XVIII aplaudiu a facécia – e a concepção de uma Joana d’Arc patusea e libertina foi considerada como perfeitamente racional. As pessoas mais graves saboreavam e sabiam de cor cantos inteiros da La Pucelle, de Voltaire. O virtuoso Malesherbes, ele próprio, pesadíssima coluna de respeitabilidade, costumava recitar, com gosto, alguns dos trechos mais picantes deste gaiato poema. Era uma ideia geral então, por todos recebida, que só se podia falar da donzela lorena galhofando.

 

II

 

Ao nosso século romântico e romanesco, sensível e simpático a todos os complicados e exaltados estados de alma, cheio de uma piedade filial pelo passado e sôfrego de espiritualidade, competia empreender a reabilitação de Joana d’Arc. Já Chateaubriand, no seu majestoso passeio através da história da França, encontrando Joana d’Me, lança aos seus pés, de passagem, algumas maravilhosas flores de eloquência, como as sabia produzir esse mágico renovador do estilo e da imaginação.

Mas a verdadeira reabilitação foi feita realmente por Michelet, em três ou quatro capítulos da História de França, que fixaram a beleza e a grandeza moral de Joana. A figura que Michelet impõe, porém, à nossa adoração não é rigorosamente histórica. Como sempre, aquele vidente da história idealiza e simboliza com excesso e paixão. La Pucelle não era exactamente essa pastorinha doce, toda inocência e bondade, tímida e pensativa, murmurando apenas sublimes palavras de caridade e ternura divina, cheia de horror pela violência e pelo sangue, tão evangelicamente pacífica no meio da guerra que trazia uma bandeira ou um bastão, para que as suas mãos cândidas nem sequer tocassem a espada que fere e mata. Todas as testemunhas contemporâneas nos contam uma outra Joana bem diferente, e talvez mais interessante, por ser mais humana. A virgem lorena, sem ter nada da virago hercúlea e façanhuda que cantavam os poetas da Plêiade, era uma vigorosa e corpulenta moça alegre, quase folgazã, sem timidez, de uma grande audácia de palavra e de acção, cheia de confiança em si e na sua missão e não desistindo por vezes de uma boa e dura briga. É ver como ela graceja como Robert de Baudricourt, capitão de Vaucouleurs, a quem viera pedir salvo-conduto e cartas credenciais para se apresentar a Carlos VII. O bravo capitão, com a sua grossa malícia tarimbeira, chasqueia a moça, por escolher a carreira das armas, em lugar de casar honestamente na sua aldeia com um belo mocetão que lhe faça belos filhos. Ao que La Pucelle responde logo, com agudez e desenvoltura alegre:

– Mais tarde, mais tarde! Quando eu tiver cumprido tudo o que Deus me manda, então conto arranjar três filhos, e o primeiro há-de ser papa, e o segundo imperador, e o terceiro talvez rei!

O bom capitão acode com redobrada galhofa:

– Por Deus!, então quero ser o pai de um deles! Que se têm de ser pessoas de tão grande marca, arranjo assim protector para a velhice!

E a donzela lorena replica com singular finura:

– Não, não, gentil Robert! Quem os há-de fazer é o Espírito Santo!

Linda réplica! Mas como estamos longe da virgem timorata e cândida de Michelet!

Em quanto ao seu caridoso horror pela guerra e pelo sangue, é certo que ela disse mais de uma vez, e com sincera dor, que «nunca via derramar sangue francês, sem que se lhe erguessem os cabelos na cabeça»! Assim era para com o sangue francês – mas a sua compaixão diminuía consideravelmente quando se tratava de sangue de borgonheses ou de ingleses. No cerco de Orleães, o seu intendente Aulon conta que a viu repetidamente acutilar o inimigo bastamente e rudemente. No assalto ao bastião de Saint-Loup, Joana planta o seu estandarte nos fossos: os ingleses que estão dentro, uns trezentos, oferecem render-se, se lhes dão vida salva; Joana recusa, gritando «que os há-de agarrar um a um»! São agarrados, e um a um passados a fio de espada. Ela própria fala de uma certa catana tirada a um prisioneiro borgonhês, e de que gostava de se servir, por ser muito cómoda e larga para a boa pranchada. O que mostra que, se a valente virgem nem sempre acutilava, pelo menos sempre pranchava.

De resto, bater com um pau, um rijo bastão, que segundo a moda do tempo ela trazia sempre na mão, era um dos seus hábitos mais espontâneos em dias de acção e de pressa.

Nenhum destes traços diminui La Pucelle – antes a toma mais tocante, porque a mostra mais real.

Em quanto à sua castidade, essa era perfeita, absoluta. O seu heroísmo, a origem celeste da sua missão, a simplicidade infantil da sua virtude, quase a tornavam insexual. Os rudes homens que a cercavam (como eles mesmo contam) não sentiam diante dela nem a fugidia picada de um vago desejo, apesar da sua beleza robusta e grandemente apetecível. Só a sua coragem lhes fazia lembrar que Joana era uma mulher, para mais estranhamente a admirarem.

O duque de Alençon, o mais formoso dos cavaleiros que a seguiam, e o seu preferido como sobrinho do duque de Orleães, a cuja causa ela se votara, conta que muitas vezes dormira ao lado de Joana, debaixo da mesma barraca, e a vira despir a armadura, mostrar o que a couraça escondia (videbat ejus mammas quae pulchrae erant), sem que o importunasse um único desejo de carne e de pecado. Pelo contrário! Dormia mais serenamente, por se sentir sob uma protecção angélica. E se ela para os homens era assim tão pouco mulher – para ela os homens com quem vivia promiscua mente, moços, e galantes, e bravos, eram, pelo lado da virilidade, menos que sombras ou abstracções.

Todas estas feições formam uma Joana d’Arc muito viva, muito real, perfeitamente compreensível, e de todo adorável. Mas, ao lado desta, Michelet compôs uma outra Joana, de uma graça mais frágil, cheia de caridade, da angelidade resignada de uma mártir – e foi essa que a poesia, e a arte, e o povo escolheram para adorar e celebrar. Esta popularidade, esta devoção, subiu ao seu maior fervor, depois dos desastres do Ano Terrível. A França, então, num certo ponto se assemelhava à França dolorosa de Carlos VII – e era que metade do seu território estava invadido pelo estrangeiro, e que os alemães de Moltke, como os ingleses de Bedford, acampavam também em Orleães.

E havia ainda outra lamentável semelhança – é que em Paris se batiam franceses contra franceses, como no tempo dos Borgonheses e dos Armanhacs. Bem natural era que o pensamento dos vencidos se voltasse para a pobre pastora, que outrora, em dias de perigos iguais, fora a grande salvadora. Desta vez não surgira uma donzela inspirada do fundo da Lorena, nem Deus interviera por meio do seu arcanjo S. Miguel.

A própria Lorena deixou de ser terra francesa, e S. Miguel parecia estar aliado com o Hohenzollern. Mas por isso mesmo que não fora salva, a França sentiu e compreendeu melhor a grandeza daquela alma simples e forte, que, outrora, com tanta força e tanta simplicidade a salvara. A mágoa de não ter já uma Joana d’Arc, e estarem para sempre passados os tempos em que eram possíveis as Joanas d’Arc, levou este povo de imaginação e sentimento a amar, com um amor renovado e mais ardentemente expresso, aquela que outrora possuíra, que fora uma raridade no mundo, e que nunca mais poderá ser repetida.

A corações em que as desgraças tinham exaltado a ideia de pátria – Joana apareceu como a encarnação mais bela e mais pura dessa ideia excelsa.

A França começava a viver para a esperança da desforra, e necessitava uma padroeira, como Atenas a tivera em Minerva. Quem poderia ser senão a virgem elegida de Deus, que outrora aparecera com a sua roca à cinta, se oferecera para ser o supremo instrumento de uma desforra milagrosa? Desde então, só desde então, nasceu verdadeiramente em França o culto de Joana d’Arc. Culto sem descrentes e sem heréticos. Aquela pastora que, como devota, era inspirada pelo arcanjo S. Miguel para servir como vassala o rei Carlos VII, encontrou franca adoração mesmo entre os que têm por profissão liberal rir dos arcanjos e abominar os reis. A história, a poesia, a arte, encetaram ardentemente a glorificação da maravilhosa donzela. Os dois capítulos de Michelet, impressos num pequeno volume popular, tornaram-se um manual de patriotismo. Os grandes poetas, é verdade, uns confinados na antiguidade mítica e clássica, outros votados somente à modernidade, outros transviados pela metafísica, outros teimosos ainda sobre o amor e os seus martírios, outros dedicados a um artifício pueril e picaresco, que parece ter relação com a reforma do dicionário, mas que se não sabe realmente a que tende, e que se chama o decadismo – não se ocuparam de Joana d’Arc: e nenhum canto verdadeiramente belo a desforrou da ignomínia de ter sido cantada por Chapelain. Os pintores, porém, e os escultores ressuscitaram com entusiasmo a boa lorena, uns preferindo-a na sua singeleza tocante de guardadora de ovelhas, outros na sua audácia pitoresca de desbaratadora de ingleses. E como em França não há verdadeira glória sem a consagração do teatro – Paris cada noite aplaudiu a donzela, posta magnificamente em melodramas e em pantomimas militares.

Foi então também que por todos os sítios da velha França por onde ela passou, ou triunfante ou humilhada, em Vaucouleurs, em Orleães, em Reims, em Ruão, se ergueram, em sua honra, esses monumentos cuja enumeração cansaria um tão incansável enumerador de monumentos como o velho Pausânias. Em Paris a sua estátua (que é de Fremiet, o animalista, e bem medíocre) não cessou mais de estar coberta de coroas de perpétuas, de flores, de pequeninos ramos de um sou que lá pousava a piedade dos simples. Orleães, que ela libertou, todos os anos celebrava a sua festa cívica. Domremy, e a casa em que ela viveu, tomada relicário, foi um lugar de peregrinação. E o maior número dos três mil volumes que formam hoje a bibliografia de Joana foram publicados neste período de fervor.

Tudo isto constitui mais que a popularidade – é já um culto. A donzela estava tornada em França uma deusa civil.

 

III

 

A Igreja não podia ficar alheia a este movimento nacional. É verdade que fora a Igreja que queimara a doce libertadora – e que, depois de a queimar, e para justificar a fogueira, a caluniara atrozmente, não só pela sua voz, já forte, mas pela voz, então terrivelmente dogmática, da sua filha predilecta, a Universidade de Paris. Verdade é também que, passados uns trinta anos, o ilustre papa Calisto III, por um rescrito pontifical, ordenara ao arcebispo de Reims que, assistido de dois bispos e do inquisidor-geral das heresias em França, fizesse a revisão do processo de Joana d’Arc.

A primeira reunião deste tribunal apostólico teve lugar em Paris, na Catedral de Notre-Dame. Aí compareceu a idosa mãe de Joana, toda de luto e em lágrimas, acom panhada dos seus dois filhos, Pedro e João, e de um grande povo que chorava também e clamava justiça. Estes clamores, estes prantos de uma multidão invadindo uma igreja, a suplicar que se restitua a graça a uma alma condenada, eram frequentes na Meia Idade e ainda no século XV. Os delegados do papa não se comoveram. Ao que parece mesmo, chamaram a mãe de Joana à sacristia para lhe recomendar que se calmasse, não suscitasse embaraços, nem se alargasse em queixumes talvez levianos, pois que os juízes que tinham condenado Joana como herege eram homens revestidos de altas dignidades eclesiásticas, e a quem se não devia imputar facilmente dolo ou injustiça Assim falou na sacristia o arcebispo de Reims. A fogueira nesse momento ainda lhe parecia justa, por ser eclesiástica.

No entanto, em obediência ao rescrito pontifical, começou a lenta e laboriosa revisão do processo de Ruão. E em Ruão mesmo, um ano depois, foi proclamada a decisão dos revisores em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Bem podia enfim secar as suas lágrimas a mãe de Joana. A sentença lavava a boa donzela «de toda a culpa de impostora, bruxaria, magia, cisma, sacrilégio, idolatria, apostasia, blasfémia, e outras práticas abomináveis, por que fora condenada, segundo os artigos do processo, os quais desde agora ficavam cassados, anulados, aniquilados, lacerados, pois que eles revisores diziam, pronunciavam, decretavam, declamavam que tais artigos e processos estavam contaminados de dolo, calúnia, contradição, iniquidade, erro, etc., etc., e etc.!...»

Enfim, com toda esta temerosa fraseologia, entornada aos baldes, a Igreja apagava juridicamente a fogueira que trinta anos antes acendera. O corpo puro da donzela lá ficava em torresmos entre os tições da fogueira (exceptuando o coração, que, apesar dos teimosos esforços do carrasco, nunca quis arder, e que foi necessário afogar no Sena). Mas a alma, e isso era a parte importante no século XV, essa ressurgia do lume absolvida e limpa. Depois, tendo concluído este acto que ela considerava mais de misericórdia do que de justiça, a Igreja não se tomou a ocupar de Joana. Os seus afazeres eram consideráveis – e havia outros justos, e sábios, e filósofos, e profetas, que estavam necessitando atenção e fogueira. E não creio que, durante os séculos seguintes, a Igreja desse à donzela um pensamento. E natural mesmo que no século XVIII os galantes abbés, de batina de cetim e pós de íris na coroa, muitas vezes lessem em serões mundanos os trechos picantes de La Pucelle, de Voltaire, com alegria e com gosto.

Quando, porém, há vinte anos, se deu a ressurreição patriótica de Joana, e começou o seu culto civil, a Igreja imediatamente se lançou no movimento com santo calor. Enquanto os seculares pediam simplesmente, para a boa lorena, estátuas e festas – o clero francês, subindo logo aos limites extremos da glorificação, reclamou que ela fosse canonizada. Àquela a quem o génio nacional estava prestando homenagens, que só eram e só podiam ser da Terra, a Igreja, mais rica em Deus, oferecia logo a homenagem suprema – o céu!

Neste entusiasmo havia muita sinceridade. Todos os motivos que levavam a multidão leiga a amar e a exaltar Joana actuavam também no espírito do clero – que é grandemente inteligente a patriótico. Mas a este entusiasmo também se misturava muito interesse.

Não era bom, nem útil, que nessa história de Joana, agora sempre lembrada e constantemente mostrada como a maravilhosa realização de todas as virtudes francesas, a Igreja só aparecesse como perseguidora, ao lado do carrasco, com o facho da fogueira na mão evangélica. Por outro lado, convinha que a libertadora do reino de França fosse uma enviada de Deus, como tal reconhecida e venerada pela Igreja, e que, portanto, no espírito do povo a ideia de desforra nacional se misturasse intimamente à ideia de intervenção divina. E, finalmente, desde que Joana d’Arc, outra vez, como no tempo de Carlos VII, tinha o dom de arrastar as multidões, era vantajoso para a Igreja que uma tão grande despertadora de fé, de emoção, de poesia e de patriotismo estivesse colocada sobre um altar, no interior de um templo – porque todo o templo e os altares vizinhos não teriam senão a lucrar com hóspeda tão popular e atraente.

Influíssem estes, influíssem outros motivos, o facto considerável é que o clero francês começou a promover em Roma a canonização de Joana d’Arc com um vigor, uma abundância, um ruído, que inquietaram a França radical e livre-pensadora. Os bispos gritavam todos os dias, num entusiasmo impaciente e textualmente: «Santíssimo Padre, apressai-vos a pôr sobre a fronte de Joana a auréola divina!» E o radicalismo descontente murmurava: «Para quê?...» Em Roma tudo se faz com uma prudente lentidão: e além disso o Sacro Colégio, a Congregação dos Ritos, o papa, todos tendiam a considerar a boa donzela mais como uma heroína, do que como uma santa. A auréola tardava. E perante esta demora, o Governo da república julgou hábil republicanizar Joana d’Arc, instituindo em sua honra uma festa nacional e civil, como a da tomada da Bastilha, com iluminações e danças, de modo a imprimir definitivamente à glorificação de Joana um carácter civil e oficial. Mas esta festa, que devia ser votada pelo parlamento, também se retardou – porque o Estado em França é uma máquina que ainda se move com mais morosidade do que a Igreja. Os bispos então redobravam os esforços, fizeram ressoar todo o Vaticano de súplicas. E a sua íntima intenção lá se ia revelando, pois que uma das vozes eclesiásticas mais potentes e cheias de autoridade, a do padre Monsabré, apresentava como argumento que, desde que a Igreja exaltara na pessoa do reverendo La Salle o ensino católico, para o proteger contra todas as «intervenções nefastas», deveria sem demora exaltar na pessoa de Joana d’Arc o patriotismo católico, para que a pátria francesa pudesse reconquistar o seu lugar no mundo, como verdadeira filha que e, e filha mais velha, de Deus...

O radicalismo e o livre-pensamento empalideceram. O plano dos bispos era manifesto. Assim como tinham tentado monopolizar o ensino, tentavam agora monopolizar o patriotismo – e aferrolhando Joana d’Arc dentro da Igreja, utilizando a sua força em serviço da Igreja, procuravam tornar-se eles os dispensadores exclusivos da fé patriótica, e estabelecer no espírito das multidões a ideia de que a França só pode ser salva pelo heroísmo que os bispos benzem. O livre-pensamento, ao que parece, ainda tentou afastar da cabeça de Joana a auréola que a ia tomar propriedade do clero. Mas era tarde. Leão XIII, cedendo às exigências do episcopado, e certo, de resto, que santificar Joana era ainda honrar a França – canonizou a donzela de Orleães.

Assim temos no calendário uma nova santa, virgem e mártir, e mártir que não sofreu martírio por edictos pagãos de Diocleciano ou de Décio, mas por uma sentença eclesiástica, assinada por bispos. Creio que pela primeira vez se dá o caso singular de a

Igreja adorar como santa uma mulher que ainda não há muito queimara como bruxa. E ambos os julgamentos, o que a queimou e o que a santificou, foram dados em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, e sob a garantia da sua inspiração. Tal é a certeza e a infalibilidade da Igreja. E agora que um espírito novo a espiritualiza, e que através das ruínas do fanatismo ela tenta recuar até à pureza primitiva, bem devia realmente a Igreja rever os processos de outros ilustres queimados. Quem sabe se muito deles, bem exami nado de novo o seu caso, não mereceriam passar da fogueira para o altar? E nas trevas inferiores, onde jazem por sentença eclesiástica muitos outros mártires, como Bruno e Savonarola, estão talvez, ao sentir o aroma de incenso que se evola para a antiga sacrílega e nova santa, murmurando amargamente: «E nos

 

IV

 

Enfim, eis a donzela de Orleães canonizada – e bem se pode compreender a sofreguidão com que o clero se apoderou dela e a levou em triunfo para a sombra sagrada dos templos, para longe dos mações, dos radicais e dos livre-pensadores, que a maculavam com o bafo impuro do seu entusiasmo literário e racionalista.

Ainda não secara a tinta da sentença beatificadora, e já em Notre-Dame de Paris se estava celebrando, com o devido esplendor, a sua festa, a primeira festa, com órgão e procissão, de Santa Joana d’Arc. O clero todo bradava vitoriosamente, pela voz de monsenhor Gouth-Soulard, arcebispo de Aix: «Joana nostra est! Joana é nossa!»!

E o arcebispo de Aix não só afirmava a propriedade da Igreja sobre a alma de Joana, mas sobre todos os seus feitos. «Joana é nossa!«, exclamava o digno prelado numa carta pública. «Agora só é nossa! Só nós, católicos, temos a propriedade exclusiva dos seus milagres. Vós, racionalistas, guardai os vossos outros grandes homens. Colocai-os no Panteão ao lado do vosso Voltaire. Ninguém vo-los disputa, ninguém vo-los quer. Mas Joana é nossa, nostra est! E o que e do céu não é do mundo!»

Assim falava o arcebispo de Aix, em palavras aladas, como diz o bom Homero – e o radicalismo rugia de furor. E ao mesmo tempo aquela numerosa França, que, sem ser radicalista, nem livre-pensadorista, não se reclama todavia da Igreja católica-apostólica-romana, pensava que sendo Joana uma francesa que vivera e sofrera pela França devia pertencer a toda a França. E o próprio Governo republicano se sentia embaraçado, porque realmente a república não podia prestar honras oficiais a uma santa do Paraíso. Arrancar Deus do ensino, secularizar todas as instituições e, conjuntamente, decretar uma gala e iluminar os edifícios públicos em honra de Santa Joana, seria um contra-senso que nada justificaria, nem o facto de Joana ter libertado a França das hostes de Bedford, pois que também Santa Genoveva salvou Paris das hordas de Atila, e nem por isso o Estado lhe celebra a festa. (Pelo contrário! Expulsou-a da sua velha igreja, para lá colocar Victor Hugo e depois Carnot.) E para Joana d’Arc, o primeiro resultado da sua santificação foi o Estado retirar-lhe a aparatosa festa cívica que lhe estava prometendo em nome da pátria.

Em outros tempos, com outro povo, tudo se poderia conciliar – e Joana teria a sua festa religiosa na igreja e a sua festa cívica na praça, como sucede em Portugal a S. João, a Santo António e a S. Pedro. Mas nesta França, dividida em duas Franças, a católica e a não católica, ambas hostis, nada querendo ter em comum, e cada uma conspurcando o que a outra adora, a boa donzela de Orleães, guerreira e santa, nunca poderia reunir e gozar pacificamente e simultaneamente o preito da Igreja e o preito da sociedade civil. Para ela, ou a popularidade secular, e desde logo a desconfiança e a indiferença da Igreja – ou a glória sobre os altares, e desde logo a descrença e a desafeição entre as multidões racionalistas.

E foi o que sucedeu. Apenas o clero a quem ela fora atribuída a instalou devotamente na sua capela nova – não houve mais para a França livre-pensadora, nem Joana d’Arc, nem boa lorena, nem donzela de Orleães. Foi como se a guerreira, que era amada pelo povo, porque no meio dele vivia, se retirasse bruscamente do mundo e o renegasse, para se esconder na sombra devota de uma sacristia. Ninguém mais a compreendeu, nem a reconheceu mais, sob aquela túnica de santa que agora a cobria em vez da armadura de aço, e com aquela palma verde na mão, em lugar da rija espada borgonhesa, que tão bem pranchava nas trincheiras de Orleães. O Estado já passara um traço amargo sobre o projecto de festa nacional com que a queria exaltar. As municipalidades interromperam logo a construção dos monumentos que lhe estavam erguendo. Os escultores abandonaram-na aos santeiros. Os poetas não a celebraram mais em poemas, porque ela agora pertence aos fazedores de loas. E o teatro deixou de pôr Joana d’Arc em melodramas e pantomimas bélicas, desde que ela, pela sua beatificação, voando da Terra ao céu, perdia a sua realidade e se desfazia em mito.

Mas o egoísmo do clero tornou ainda mais aguda esta desafeição. Era de uso em Paris, nestes últimos anos, depor flores e coroas no pedestal da estátua de Joana d’Arc. Nunca lhe faltaram, vistosas e frescas. Para significar claramente, porém, que essas coroas eram dedicadas à guerra e não à santa, os não católicos começaram a pintar-lhe este dístico: «A Joana, queimada por herética. » Os católicos, indignados com essa recordação histórica ultrajosa para a nova santa, vinham de noite arrancar estas coroas e deitá-las ao Sena. Mas quando as substituíam por outras, dedicadas, em largos rótulos «a Santa Joana d’Arc» – eram os livre-pensadores que corriam de noite e arrojavam ao no as coroas devotas... E assim, pela primeira vez desde 1871, se vê a estátua da donzela desguarnecida de flores, com o pedestal nu, como o de uma heroína desdenhada ou de quem se esqueceu o heroísmo.

Pobre Joana d’Arc, tão amada, tão entronizada há pouco na alma da França! Ela mesma esperara outrora, durante as angústias de Ruão, que um dia «todos lhe quereriam bem». E esse dia chegara, reparador e triunfal. Todos lhe «quiseram bem» – e todos lhe “quereriam sempre bem», se ela continuasse pertencendo a todos, ou se as consciências em França não estivessem divididas, como estavam divididos os interesses no tempo dela, quando havia duas Franças, a França dos Borgonheses e a França dos Armagnacs.

Já não há Borgonheses e Armagnacs – e a França politicamente é uma. Mas há uma separação mais funda: de um lado os católicos, do outro os racionalistas. Desde que a boa donzela foi, como santa, entregue ao culto ritual da Igreja, não podia conservar mais o culto afectivo do racionalismo. Para este, o clericalismo é, será ainda por muito tempo, o inimigo. É pois como se Joana passasse, com as suas armas e a sua bandeira, para o inimigo. Decerto, a pobre heroína não tem culpa da sua santificação. E a sua alma não é menos divina por estar divinizada. Mas o bom racionalista não pode, em boa consciência, prestar a sua homenagem patriótica a uma grande figura que está coberta de todos os atributos místicos, a auréola, a palma verde, a túnica de bem-aventurança, e cujos heroísmos foram convertidos em milagres. A França republicana ainda poderia adorar uma inspirada, mas nunca uma taumaturga.

E se não lhe retira inteiramente nestes primeiros tempos o seu amor – abstém-se pelo menos de o traduzir em uma expressão pública. Para ela, de ora em diante, não mais coroas ante a sua estátua, nem monumentos nas praças, nem livros celebradores, nem festas nacionais – isolada no seu altar, na sombra da igreja, só gozará, cada ano, a sua missa, com tochas, música, sermão. E uma decadência. E aqui está como a santidade mata a popularidade e como uma grande alma, por ter penetrado no céu, se torna esquecida na Terra.

Porque não pode haver dúvida. A Igreja mesmo a esquecerá. Nestes anos chegados, enquanto durar a geração clerical que a conserva, e ela conservar o verniz fresco da uma santa nova, não lhe faltará certamente um culto destacado e ruidoso. Ela é por um motivo de batalha religiosa, como a Helena de uma Tróia devota – e o aparato e estridor do seu culto é uma das formas e das estratégias da batalha. Mas quando os tempos passarem, e vierem novas gerações eclesiásticas, novos bispos, Santa Joana d’Arc não será, para esses, especialmente distinta de outros santos de França, san tificados também pelo seus feitos, como Santa Genoveva ou S. Luís. Terá o seu altar, as duas velas que lhe competem segundo o ritual – e nada mais, nem mesmo uma genu flexão especial dos sacristães. O pó dos tempos, que tudo vai cobrindo, e que cobre também os santos, apagará lentamente o brilho com que ela por ora brilha. Pouco a pouco se tornará uma antigualha da Igreja, como Santa Genoveva. E como hoje já se não escrevem hagiológios, a sua lenda, que já esconde a sua história, cairá no esquecimento. A Igreja tem tantas santas, todas elas com direitos tão iguais ao mesmo culto, que não pode realmente devotar todo o seu fervor e todo o seu cerimonial a uma única, posta num altar mais alto por uma liturgia privilegiada. Santa Joana d’Arc tem de se contentar com o que se contenta Santa Eufrósina. Será uma santa como outras santas, e como elas mal distinta, vaga e perdida na celeste névoa luminosa que a todas envolve. Em cem anos, só algum padre muito erudito saberá ainda os feitos e os milagres da donzela de Domremy. O povo, lançado decerto nos ardores de uma religião nova, terá totalmente esquecido Joana d’Arc, que pertencerá então a um culto, desalojado por outro culto superior. E quando algum curioso de ruínas, nesses dias, penetrando num templo do passado, e avistando sobre um altar vetusto uma figura de mulher com uma bandeira na mão, perguntar de quem é essa imagem poeirenta e desbotada, o guarda trôpego do templo encolherá os ombros sem saber. Se, porém, casualmente, aí passar algum arqueólogo, bom ledor de antigualhas, talvez pare e murmure:

– Essa? É uma Santa Joana das muitas Santas Joanas, que fez não sei que milagres, numa batalha com ingleses, para os lados de Reims ou de Orleães.

E a esse tempo, fora, nas praças da cidade, os heróis que não foram canonizados, que ficaram entre os homens, na sua simples glória humana, conservarão as suas estátuas, bem limpas, bem visitadas, sempre contempladas. com uma ou outra flor no pedestal – e serão ainda heróis.

 

 

O CONDE DE PARIS

 

O conde de Paris teve, como chefe da Casa de França e portanto pretendente à coroa de França, o defeito de não possuir senão virtudes.

Nascido simplesmente numa velha família patrícia, como os La Tremouille ou os Mirepoix, a nobreza dos seus instintos, a sua absoluta rectidão, a sua inteligência, absorvente e destra, a sua vigorosa cultura, a dignidade puríssima dos seus costumes domésticos, o activo sentimento das suas responsabilidades sociais, a sua infatigável aplicação ao dever, a sua bondade amável, a sua acolhedora urbanidade, fariam do conde de Paris um raro e superior exemplar de fidalgo, espalhando sobre a sua classe, agora que ela está inactiva e repelida da vida pública pelas desconfianças da democracia, aquele lustre que ela já não pode ganhar pela acção colectiva, mas apenas pelo valor intelectual e moral de algum dos seus membros que se destaque e se eleve.

Se ele pertencesse ainda a uma antiga família parlamentar, dessa alta burguesia parisiense que hoje entrou na república, onde representa os elementos de ordem, de tolerância e de probidade, o conde de Paris, como um colaborador natural da França democrática, teria sido um grande e útil cidadão, pois que as suas qualidades e as suas ideias eram justamente as que mais se necessitaria num homem de Estado, neste momento histórico da França em que, sob a dissolução das velhas doutrinas políticas, afloram com tanta impaciência as novas e irredutíveis forças sociais. Em qualquer dos casos, ao menos o conde de Paris teria sido (o que não foi) um homem feliz. Viveria pacificamente e largamente nesta terra de França, que era o seu amor e o seu cuidado; exerceria uma influência contínua e legítima, não fragmentária, disfarçada e constantemente sobressaltada; escreveria sobre as questões económicas, que lhe eram caras, livros sólidos, bem documentados, que, por virem de um espírito muito sincero e muito livre, teriam autoridade, se não popularidade; seria da Academia, do parlamento, do Governo; certamente a natureza especial das suas virtudes públicas o levaria à mais alta magistratura da república; e sobretudo teria a satisfação, para ele suprema, de servir facilmente e naturalmente a França como um bom francês.

Mas, em vez deste calmo destino, nasceu, como outrora se dizia, «nos degraus de um trono», neto do último rei dos Franceses, herdeiro de um princípio, portanto herdeiro de um direito que ele considerava perfeitamente legítimo, e ao mesmo tempo de um dever que ele considerava absolutamente sagrado. E aqui aparece logo a excelência moral deste príncipe. Ser rei de França para ele não era só a realização de um velho direito – mas antes de tudo, acima de tudo, o cumprimento de um grande dever. Morto o conde de Chambord, tornado ele o chefe da Casa de França, representante único do princípio monárquico – a ele incumbia, por herança, o dever de restaurar em França, para glória e felicidade da França, esse princípio de que era a encarnação. Dever para consigo, dever para com sua casa, dever para com a sua pátria, dever mesmo para com Deus – pois que a monarquia francesa é na Terra uma das grandes servidoras do céu. E assim claramente visto e compreendido o seu dever, este príncipe admirável imediatamente se aplicou a cumpri-lo, com a consciência, a seriedade, o zelo religioso com que se aplicava a todos os deveres. Não palpitava nele a mínima fagulha de ambição –o que o levava era antes a submissão fiel a Deus que o fizera nascer de reis de França, o marcava para rei de França, e uma submissão patriótica aos interesses da pátria que só na monarquia poderia de novo encontrar a paz, a unidade moral, o prestígio histórico.

No cumprimento deste dever ele contrariava todas as suas inclinações, todos os seus gostos íntimos. As tendências, os gostos do conde de Paris eram mais elevados, mas não eram dissemelhantes dos do conde de Chambord, que nunca quis ser rei, porque o agitado Paris e o Palácio das Tulherias, encravado entre as sombrias cantarias do Louvre, lhe pareciam desagradáveis, cheios de responsabilidades e cuidados, em comparação dos quietos confortos do castelo de Frohsdorff e dos fundos bosques onde ele caçava rijamente, tão irresponsável e livre. O conde de Paris, decerto, não queria permanecer um simples cidadão, para poder ser um simples caçador. Mas, a todos os brilhantes destinos, sem dúvida preferiria viver no seu castelo de Eu, como um fidalgo rural, administrando dignamente os seus bens, educando superiormente os seus filhos, compondo narrações da sua mocidade militar, publicando nas revistas doutos artigos de sociologia, e envelhecendo docemente entre carinhos e leais amizades. O exílio inquieto, estéril, amargamente errante em que se consumia, mais apetecida lhe tornava esta larga vida estável, fecunda em alegrias e obras. Ele próprio, de resto, pensava que nunca seria Filipe VII – senão no desterro. Mas que lhe importava? O dever que o conde de Chambord não cumprira, por um egoísmo que disfarçava em escrúpulo, tornando a realeza impossível para que ele não fosse um rei possível – esse dever era agora o seu. Tomou pois corajosamente sobre os ombros a sua cruz de pretendente – e marchou.

Mas imediatamente, nessa marcha para o trono, se ergueram contra ele todas as suas virtudes. Um pretendente necessita de certos defeitos, alguns brilhantes e que o mundo aclama, outros condenáveis e que desolam a pura moral, mas todos úteis, indispensáveis, quando não queira ser como esse estranho Borbón de Espanha, Francisco III, que há dias nos aparece reclamando também a coroa da França, mas declarando que respeita a república, e que não deseja ser senão, como rei de França, um bom general de brigada em Espanha.

O pretendente que não se limite ao platonismo superplatónico deste delicioso Francisco III tem de pôr em actividade todos esses defeitos clássicos e que são, sobretudo: audácia temerária; ruidosa prodigalidade; o charlatanismo que produza lenda; o desprezo de todas as fórmulas legais ou expressões de soberania popular que não sejam a confirmação do seu direito pessoal; um bela indiferença, uma indiferença de príncipe, pela fortuna e pela vida de todos os seus partidários; e a capacidade de montar a cavalo e surgir uma manhã na praça, com uma espada nua... Ora o conde de Paris (e é esta a sua glória de cidadão) tinha justamente o horror quase pudico destes defeitos, e o culto quase supersticioso das virtudes opostas, sendo desses, cada dia mais raros, para quem as regras da moral pública não se distinguem das regras da moral privada. Dessas virtudes, nele, a maior era o seu respeito da legalidade e da soberania popular. A coroa de França, que era dada outrora por Deus por amor do povo, queria ele que lhe fosse dada pelo povo sob a inspiração de Deus – convencido que essa dádiva era absolutamente segundo o direito, e que a aceitação era absolutamente segundo o dever. Tão claro, e positivo, e inequívoco queria ele ver o consentimento da nação, que não aceitaria ser rei numa monarquia estabelecida por uma maioria parlamentar: a sua ideia era de um grande plebiscito, em que a França toda votasse livremente a monarquia.

Realmente, a sua consciência só ficaria satisfeita quando ele próprio separasse, contasse, verificasse, os dez ou doze milhões de boletins de voto, contendo, em letras bem inteligíveis, estas linhas bem expressivas:

«Queremos Filipe, conde de Paris, para rei dos Franceses!»

A república era para ele um facto que o desolava, mas uma constituição legal que respeitava. A França caíra de novo na velha ilusão jacobina – mas dera a essa ilusão uma forma constitucional e jurídica, que só ela na sua soberania absoluta podia destruir. O seu dever, pois, era arrancar suavemente a França a esse erro em que ela se debatia e em que se enfraquecia: e a sua acção como pretendente foi por isso simplesmente persuadir, pregar, lançar manifestos, criar comités de propaganda, disseminar artigos de jornais, desrepublicanizar lentamente a França por meio da dialéctica. Cada eleição decerto lhe provava que a França persistia na sua ilusão, complicando-a mesmo com ilusões novas, traduzidas em seitas novas, e que cada dia se afastava mais, e por caminhos mais obscuros, da sólida e segura realidade monárquica. Que lhe importava a ele, homem de dever? Recomeçavam os comités, os manifestos, a dialéctica. E havia aqui alguma coisa de religioso, do que há de mais nobre no espírito religioso, que nunca descrê da conversão do pecador e da eficácia da graça.

Este defeito, tão grave num pretendente – o respeito da legalidade –, era o suficiente para o inutilizar – e decerto, na pura esfera da consciência, o conde de Paris se sentia feliz em se saber anulado. Mas todas as suas virtudes de homem concorriam para o anular, como pretendente. Nada o prejudicou mais que a sua modéstia, recato em esconder o que nele havia de moralmente superior. Nunca consentiu que em torno da sua pessoa se formasse uma lenda atraente. A cabotinagem napoleónica, repetida depois por Boulanger, era odiosa à sua natureza fina e grave.

Apesar de entre os seus partidários abundarem os homens de letras, não existem sobre ele livros que o contassem à nação – quase não existem retratos seus, e o conde de Paris é ainda, para uma grande massa da França, mais um nome do que uma pessoa.

Era o seu delicado horror à exibição que o fazia mergulhar durante meses, quase durante anos, numa penumbra discreta, donde’ a sua voz por fim surgia nas colunas do Figaro e do Soleil, e que, por vir assim do remoto e do vago, mal ecoava, se perdia logo entre o rumor da actualidade e da vida.

Em vez de animar as lendas favoráveis, deixava mesmo correr sobre o seu carácter pequeninas lendas desagradáveis e falsas, sem que erguesse um dedo para as deter e desmanchar, como se fosse simplesmente um filósofo na sua cabana, para quem não existe o mundo exterior. Assim toda a França o considerava um avarento. Era o velho rótulo da avareza, que fora colado a Luís Filipe pelos românticos e humanitários de 1830, e ficou depois tradicional para toda a família de Orleães. As nações mais democráticas como a França conservam ainda, dos tempos em que a liberdade dos príncipes era a riqueza dos particulares, a ideia de que à realeza compete a prodigalidade, e que só hábitos faustosamente perdulários provam uma alma verdadeiramente real. Quando os príncipes (que a democracia muito justamente nivela com os cidadãos) se comportam como qualquer cidadão, administrando com economia e cautela a sua fortuna para garantirem a liberdade moral, a dignidade da vida e os dias de escassez que lhes possa trazer a desumanidade das revoluções – são logo acusados desdenhosamente de forretas. Esta acusação parte principalmente de entre a classe média, que condena nos príncipes, como fraqueza e vício, aquilo que ela em si própria exalta como virtude e força. A classe média involuntariamente descobre, deste modo, o fundo da sua natureza interesseira e servil – servil, porque gratuitamente atribui aos príncipes uma natureza superior, que não pode ser governada pelas regras comuns a mediana humanidade; e interesseira, porque indirectamente lamenta todo aquele dinheiro que os príncipes aferrolham e que, dissipado, rolaria por um declive natural para a algibeira burguesa. Os «cortiços» do conde de Eu foram, creio eu, uma das grandes indignações democráticas do Rio de janeiro, em nenhuma outra classe era ela mais viva do que na dos proprietários de «cortiços». Em Inglaterra, as economias do duque de Edimburgo eram ultrajadas com rancor por todos aqueles que tinham enriquecido com as dissipações do príncipe de Gales. A França, nação sublimemente avara, que inventou o mealheiro (donde realmente tira, louvado seja ele!, a sua força, a sua fortuna, a sua grandeza), censurava asperamente o mealheiro do conde de Paris; e o partido republicano todos os dias escarnecia a parcimónia com que ele subsidiava os jornais monárquicos! De facto, o conde de Paris era um desses homens económicos que, sob a solicitação de um dever, se tornam logo pródigos. A sua caridade não tinha brilho, mas solidez. Do seu rendimento uma parte considerável era gasta em esmolas, fundações, dons, escolas, obras de beneficência. E depois da sua morte, os seus amigos puderam enfim desafogadamente contar que, levado pelos encargos crescentes da sua generosidade, aquele príncipe avarento, nos últimos anos, gastava mais que o seu rendimento, como um mero e alegre estroina.

Mas prodigalidade por ambição, decerto, a não tinha nem sequer a compreendia – e era esse outro dos seus defeitos como pretendente. Hoje já se não compra o império por uma soma de ouro posta em cima de uma mesa, como sucedia em Roma, depois da geração dos Antoninos; o dinheiro, porém, ainda se conserva um supremo instrumento das revoluções e das restaurações. Numas e outras, porém, desgraçadamente, ele é aplicado sobretudo ao soldado, e o que com ele se paga sempre é a indisciplina. Não há portanto, como agente político, outro mais dissolvente e mais vil, porque com o pretexto de conquistar a liberdade, ou com o pretexto de restaurar a autoridade, não faz mais que criar na nação grandes massas de rebeldes ou grandes massas de desertores. E não há também outro mais funesto para quem o empregue, seja a república, seja a monarquia – porque todo o governo que se estabeleça sobre a rebelião, ou deserção de tropas, não é senão um governo nominal e sem soberania: a verdadeira soberania não está mais então no povo, nem no príncipe, mas no soldado. Um tal governo é criado exclusivamente para utilidade do exército ou, antes, de um grupo de coronéis. E esse grupo de coronéis que delibera, administra, dispõe da riqueza pública, mantém ou derruba os chefes aparentes, se torna o violento senhor da rua e o dono dos cidadãos... Tais formas políticas são hoje impossíveis dentro da civilização europeia. A Espanha foi o último país onde elas se produziram, mas onde agora, depois de passados trinta anos de disciplina, elas já aparecem anacrónicas e bárbaras às novas gerações militares, educadas no patriotismo e no respeito racional da legalidade. E mesmo em Espanha, realmente, nunca foi sobre o dinheiro, sobre uma desbragada prodigalidade com as tropas, à velha maneira pretoriana, que se levantaram e se mantiveram as formas revolucionárias – mas sobre o idealismo político. Pagar cada manhã os janízaros para governar com eles (e no fundo para eles) só se dava outrora na Argélia no tempo do bei ou do Egipto antes de Mehemet Ali – e só se pode dar hoje em civilizações muito atrasadas, onde não existam nem princípios, nem costumes. Pensemos pois o que devia ser, para um homem do valor moral, e do patriotismo, e da alta cultura política do conde de Paris, a ideia de dar um cêntimo para insubordinar um soldado!

Se o conde de Paris, porém, fosse chamado ao trono, ou por uma revolução, ou por um plebiscito, ou ainda pelos desastres de uma nova guerra, todos estes defeitos de pretendente se converteriam em virtudes de rei – e ele seria incontestavelmente (nenhum republicano o nega) um rei admirável. Admirável, ainda que talvez não popular, porque em França a popularidade iria espontaneamente para um rei do tipo de Henrique IV (apesar de o Francês do século XIX ser tão diferente do do século XVI): e ninguém menos do que o conde de Paris se parecia com esse façanhudo, jovial, sensual, céptico e bonacheirão Henrique IV. O conde de Paris era essencialmente o homem íntegro, grave e crente. Se de seu pai, o duque de Orleães, herdara a fina inteligência e a generosidade humanitária – de sua mãe, princesa luterana, recebera um espírito piedoso e sério, que, desenvolvido através de uma forte educação inglesa, o assemelhava sobretudo ao gentleman inglês na sua expressão perfeita. Ora o feitio moral inglês nunca pode ser popular em França. O conde de Paris daria antes um rei do tipo de seu avô Luís Filipe – com mais elevação, mais requinte, uma ciência mais funda do governo e um sentimento mais exacto das ideias e ideais do seu tempo. Seria como ele um príncipe sóbrio e casto, impondo o salutar exemplo de todas as virtudes domésticas – mas sem ter como o avô, no seu palácio, lacaios especialmente encarregados de mostrar às famílias o leito real, com as duas fronhas postas lado a lado, numa ostentação oficial de união conjugal. Seria um rei simples, eliminando da realeza toda a pompa e luxo nocivo – mas sem passear pelas ruas de Paris com um enorme guarda-sol vermelho debaixo do braço, como emblema constitucional de patriarcalismo. Culto e letrado também, como Luís Filipe – mas mais sensível do que ele às letras e à sua força e dignidade, e preferindo sempre governar pelas ideias a governar pelos interesses. Incapaz, como ele, de amargura ou rancor – mas capaz, como o outro não era, de gratidão e reconhecimento aos serviços prestados e aos bons servidores. Forte, como Luís Filipe, na ciência dos detalhes, dos factos, das datas, dos nomes, dos números – mas sabendo também, o que o avô ignorava, as tendências, as aspirações, as correntes invisíveis das consciências. Cioso decerto da autoridade real – mas preferindo exercer a influência a exercer a vontade, e a dominar mais pela cabeça do que pela coroa. De resto, como Luís Filipe, tranquilo, trabalhador, minucioso, intrépido, observador, organizador, afável, superiormente bom. Com todas estas qualidades, numa grande nação, é fácil ser um grande rei.

E estas qualidades vêm da família, são ingénitas nos Orleães. O grupo doméstico que saiu de Luís Filipe é realmente admirável. Dos filhos dele, já dizia o velho Metternich serem «rapazes como se não vêem e príncipes como não há». Todos os homens, entre os Orleães, são bravos, todas as mulheres virtuosas. O talento neles anda misturado com a bondade. Poucas famílias representaram em França, com mais brilho, as virtudes próprias da raça francesa – a coragem, o senso, a graça, a sociabilidade, a ordem, o gosto, a elegância afável. Mesmo fisicamente, são excelentes exemplares de força viril, ou de beleza plácida e doce. As suas existências têm sempre uma dignidade especial, e não caem nunca na inutilidade tumultuosa ou mole que parece ser o destino dos príncipes. Uns escrevem livros de história ou compõem memórias, outros viajam e exploram regiões remotas, outros aperfeiçoam sem descanso os seus talentos militares, todos de qualquer maneira procuram servir a França, de que são uma honra.

E do conde de Paris se pode ainda dizer que ele serviu a França mostrando por toda a parte, da Europa até à América, através dos seus dois exílios, o que é a virtude, a coragem, o saber, a polidez, a bondade de um príncipe francês. Por este lado, o seu desterro foi uma espécie de emprego público cheio de responsabilidades: e ele achou ainda aí o meio de se dar todo a um dever e de exercer, com amor e nobreza, uma alta função patriótica. Exilado de França, o conde de Paris, por toda a parte e em todas as circunstâncias, nas cortes, nos acampamentos, nas academias, na vida social, como príncipe, como soldado, como pensador, como escritor, como homem de família, incessantemente e magnificamente, ocupou-se em popularizar e fazer amar a França.

 

 

CHINESES E JAPONESES

 

A nordeste da China, ou antes da Manchúria chinesa, entre o mar do Japão e o mar Amarelo, há uma tristonha península de costas escarpadas, que a si própria se enfeitou, desde o ano de 1392, quando começou a reinar a dinastia que ainda hoje reina (ou que ainda reinava no mês, passado) com o nome risonho, luminoso e fresco de Reino da Serenidade Matutina. Os Japoneses, seus vizinhos, chamam a esta terra Ko Rai; nós, mais comodamente, Coreia. E um país tão silencioso, tão recluso, tão separado de toda a humanidade, mesmo dos seus parentes asiáticos, que no Japão e na China o designam pela alcunha de País Ermitão.

O que dele, na Europa, nós melhor conhecemos, por estampas, é a figura dos seus habitantes, homens esguios e graves, de longos bigodes pendentes, que usam o mais extraordinário chapéu de que reza a história das modas, o formidável chapéu coreense, muito alto, muito pontiagudo e de abas tão vastas que sob ele um patriarca pode abrigar toda a sua descendência, os seus móveis e os seus gados. Estes homens falam um chinês mascavado de tártaro, vivem de arroz e habitam casas rudimentares, feitas de bambu, adobe e papel.

Há aí, como na China, uma classe superior de letrados, mas enxertada sobre a antiga casta nobre de senhores feudais: e são estes senhores, educados sumariamente pelos livros chineses, que, depois de passados seus exames públicos e obtidos seus diplomas escolares, exercem os empregos, comandam as forças, governam as províncias, escrevem as gramáticas, administram a justiça e formam a corte. Todos os outros serviços são feitos por escravos. As classes letradas professam como moral, se não como religião, um confucionismo todo enferrujado de enguiços e magia. O povo nos campos adora o Sol e as estrelas. Toda esta gente bebe cozimento de arroz. O chá é um luxo da família real. A arte mais estimada é a música, que faz parte do ensino primário, como na Grécia de Péricles. As suas indústrias, se existem, são desconhecidas. Quando a Europa lhe manda missionários, a Coreia mata os missionários. Por capital têm a velha cidade de Seul, que todos os coreenses consideram como sendo, sobre a Terra, o centro supremo do fausto, dos prazeres, das belas maneiras, das existências ditosas.

É por causa deste Reino da Serenidade Matutina que o Império Florido do Meio está em guerra com o Império do Sol Nascente... Assim contada desta maneira (que é a maneira oficial), a luta da China e do Japão parece um enredo de mágica, ou o começo de um desses romances alegóricos, que tanto deleitaram o século XVIII, nos tempos do Palácio Rambouillet, da boa Mademoiselle de Seudery, d´Artamène ou le Grand Cyrus. E, com efeito, para o grande público, para todos aqueles que não são profissionalmente diplomatas, sociólogos ou estratégicos, esta guerra entre as duas nações fortes do Extremo Oriente oferece apenas o interesse divertido de uma pantomima militar, passada numa região de fantasia, onde a política é dirigida pelas fardas e os príncipes são picarescos. O Europeu tem decerto viajado desde que se criou a Agência Cook, folheia narrações de viagens (quando abundam em anedotas e diálogos), e já não exclama, à maneira das damas eruditas e dos espíritos picantes do sé culo XVIII: «Como é possível ser persa.» Hoje começamos realmente a compreender (com certas reservas) que se possa ser chinês. Mas esses povos da extrema Ásia, por ora só os conhecemos pelos lados exteriores e excessivos do seu exotismo. Com certos traços estranhos de figura e trajo, observados em gravuras, com detalhes de costumes e cerimónias aprendidos nos jornais (artigo «Variedades») e sobretudo com o que vemos da sua arte, toda a caricatural ou quimérica – e que nós formamos a nossa impressão concisa e definitiva da sociedade chinesa e japonesa. Para o Europeu, o Chinês é ainda um ratão amarelo, de olhos oblíquos, de comprido rabicho, com unhas de três polegadas, muito antiquado, muito pueril, cheio de manias caturras, exalando um aroma de sândalo e de ópio, que come vertiginosamente montanhas de arroz com dois pauzinhos e passa a vida por entre lanternas de papel, fazendo vénias. E o Japonês é ainda para nós um magricela de crânio rapado, com dois enormes sabres enfiados na cintura, jovial e airado, correndo, abanando o leque, dissipando as horas fúteis pelos jardins de chá, recolhendo à casa feita de biombos e crisântemos para se cruzar numa esteira e rasgar o ventre! A ambos concedemos uma habilidade hereditária em fabricar porcelana e bordar a seda. Como por vezes as suas populaças trucidam os nossos missionários, a estes traços de carácter (tão exactamente deduzidos) juntamos o da ferocidade. Porque os Chineses não querem ter caminhos de ferro, nem fios de telégrafo, nem candeeiros de gás, que constituem para nós as expressões sumas da civilização, concluímos rasgadamente que são bárbaros. E enquanto aos Japoneses, que já copiaram as locomotivas e os telefones, só nos parece que essa civilização importada, macaqueada e mal usada, os torna irreparavelmente grotescos. Que por trás do rabicho e dos guarda-sóis de papel, e das caturrices, e de todo o exotismo, existam sólidas instituições sociais e domésticas, uma velha e copiosa literatura, uma intensa vida moral, fecundos métodos de trabalho, energias ignoradas, o europeu mediano não o suspeita.

Mesmo que conhecesse todas essas forças e virtudes, não se impressionaria, nem votaria mais respeito a essas pobres raças, que só o divertem. Quando uma civilização se abandona toda ao materialismo, e dele tira, como a nossa, todos os seus gozos e todas as suas glórias, tende sempre a julgar as civilizações alheias segundo a abundância ou a escassez do progresso material, industrial e sumptuário. Pequim não tem luz eléctrica nas lojas; logo, Pequim deve ser uma cidade inculta.

Aquele loquaz personagem de Edmond About que desprezava profundamente os Árabes, porque «os desgraçados ainda nem sequer possuíam cafés-concertos», representa, em caricatura, o europeu mediano, julgando as civilizações asiáticas. Milhares, se não milhões, de europeus não acreditam ainda, verdadeiramente, que os Romanos e os Gregos fossem povos civilizados, pois que não conheciam a máquina a vapor, nem a máquina de costura, nem o piano, nem outras grandezas do nosso grande tempo.

Por isso damos a esta guerra do Japão e da China uma atenção errante e sorridente. E apenas uma grossa e rude bulha entre dois países bárbaros, um dos quais não é menos bárbaro que o outro, por andar mascarado com rabonas e armas da Europa. Pretendem alguns visionários, desses que gostam de profetizar sombriamente, que essas centenas de milhões de bárbaros, um dia, munidos do formidável material da nossa civilização, descerão sobre nós, assolarão a Europa... A ideia faz sorrir – e todo o europeu, olhando em torno de si a sua força, a sua riqueza, as inumeráveis invenções do saber, tanta máquina, e a Natureza domesticada e trabalhando à sua ordem, sorri regaladamente.

Assim o Galo-Romano outrora na sua linda vivenda de campo, repousando com um douto pergaminho no joelho sob os frescos pórticos de mármore, ou passeando no seu horto entre o acanto e as roseiras entrelaçadas aos bustos dos deuses e dos filósofos, sorria quando lhe contavam das hordas selvagens, francos ou godos, que tinham atacado alguma velha legião romana, longe, na terra dos pântanos e das brumas. Que podiam importar essas gentes bestiais? Não era a Gália, toda a Itália, uma maravilha de força, de riqueza, com tanta máquina de guerra, tão fortes invenções do saber?... Depois, uma manhã, o Godo ou o Franco aparecia, montado num potro bravo, com um simples chuço, e do Galo-Romano, dos pórticos de mármore, do quieto jardim cheio de rosas, dos filósofos e de todas as invenções do saber, só restava um pouco de sangue e de poeira.

O motivo por que se estão batendo Chineses e Japoneses não é o que particularmente nos interessa. Ambos querem dominar o Reino da Serenidade Matutina. Os Chineses, porque esse domínio é para eles uma tradição secular. Os Japoneses, porque receiam (segundo dizem os seus diplomatas) que a Rússia, através da fraqueza ou da condescendência interesseira da China, se estenda pela Coreia, ocupe algum dos seus portos fronteiros ao Japão (como Fusan), domine portanto no mar do Japão, que os Japoneses consideram seu, e venha, se não ameaçar a independência japonesa, a prejudicar o seu desenvolvimento comercial... Mas tudo isso é uma questão de remota política asiática. O que ardentemente nos deve ocupar, a nós Europeus, e mesmo a vós Americanos, são as consequências da guerra – sobretudo as consequências de uma derrota da China, de uma boa derrota, bem estridente e humilhante, que penetre até ao mandarinato, até ao inacessível orgulho da dinastia manchu. Se fosse o Japão o esmagado, não viriam daí inquietações para o nosso mundo ocidental. Era apenas um povo ligeiro e atrevido que levava uma sova. A China vitoriosa seria a China readormecida. A China vencida – é a Europa ameaçada.

A China é um povo de quatrocentos milhões de homens (quase um terço da humanidade!), todos extremamente inteligíveis, de uma actividade formigueira, de uma persistência de propósitos e tenacidade só comparável à dos buldogues, de uma sobriedade quase ascética e com inacreditável capacidade de aturar e sofrer. Os europeus que habitam e visitam a China acrescentam que eles são, além disso, muito falsos, muito mentirosos, muito covardes, muito larápios e muito sujos. Mas estes europeus, verdadeiramente, da China só conhecem a orla marítima, os portos abertos ao comércio europeu, as «concessões», Hong-Kong e Xangai. E nestes portos só conhecem materialmente aquela populaça chinesa, iletrada e grosseira, que se emprega nos misteres inferiores de barqueiro, carregador, criado, moço de fretes, vendedor ambu lante, etc. Ora, avaliar por esta baixa matula toda a sociedade chinesa é como julgar a França pelos maltrapilhos que fervilham nos cais de Marselha, ou criticar o Brasil, e a sua educação, a e a sua cultura, e a sua força social, pela gente baixa que carrega e descarrega fardos dos trapiches para os armazéns. Viajantes que se tenham alongado para o Centro da China, e observado alguns modos e costumes das classes cultas, e espreitado aqui e além, através das fendas de portas, um pouco da vida íntima, da família, das ideias, das crenças, podem ser contados pelas pontas dos dedos. Os próprios residentes estrangeiros de Pequim, formando o pessoal das legações, não penetram na sociedade chinesa, vivem enclausurados dentro dos muros das residências, como os antigos judeus nos guetos, e só se familiarizam com os aspectos externos, ruas, lojas, frontarias de templos e perpassar das multidões. Só um desses residentes tinha aprofundado a China. Era um secretário da legação inglesa, que falava com perfeição o chinês, não só o idioma popular, mas a linguagem mandarina e clássica, e que deixara crescer um enorme rabicho. Durante trinta anos, todas as noites, este homem absolutamente achinesado vestia a sua cabaia de seda, soltava o rabicho, tomava um leque e ia passar algumas horas amáveis com as famílias nobres de Pequim. Esse realmente conheceu a China; mas, tornado chinês e portanto discreto, não escreveu as suas impressões – e morreu.

Recentemente alguns empregados europeus do Governo chinês, como os engenheiros e professores do arsenal de Fucheu, têm entrado suficientemente no âmago do mundo chinês. E todos esses voltam contando uma China muito diferente da dos turistas que desembarcam uma manhã no cais de Xangai e à noite estão avaliando a civilização sessenta vezes secular de um povo de quatrocentos milhões de homens pelo que observaram de reles, de sujo, de grotesco e de velhaco no coolie que lhes carregou a maleta para o hotel. Os que assim se internam pela China vêm na realidade mara-vilhados – e tendo ido para ensinar os operámos chineses a construir metralhadoras, confessam que aprenderam, na convivência da burguesia culta e letrada, lições de conduta, de ordem, de respeito filial, de profunda união doméstica, de inteligente economia, de trabalho metódico, de subordinação, de pureza, de zelo moral e de toda a sorte de virtudes íntimas, que garantem melhor a grandeza, estabilidade e ventura de uma nação do que a mais subtil arte em fabricar obuses e manobrar torpedeiros.

Só se queixam da falta de higiene municipal e da porcaria das ruas – que, sobretudo nas províncias (mesmo em Cantão e Pequim), são quase tão mal varridas, e tão abundantes em lixo, como as de Paris aqui há cinquenta ou sessenta anos, quando já o papá Hugo lhe chamava a «cidade radiante», alma do mundo, e toda a Europa lhe imitava, mais que hoje, os modos, as modas, as graças e os vícios.

Mas que os Chineses tenham só defeitos ou só qualidades, o certo e que arranjaram a seu modo uma civilização que possui sem dúvida uma força prodigiosa, pois que tem sobrevivido a todas as formas de civilizações criadas pelo génio da raça ariana: e que possui decerto também uma grande doçura, porque o tema invariável e secular da literatura chinesa, desde as máximas dos filósofos até às canções dos lírios, é celebrar a inefável e incomparável felicidade de ser chinês, de viver na China!

Com efeito, tudo tem havido na China, neste últimos dez mil anos mais chegados – excepto um pessimista. Dentro dessa civilização forte e doce vivia a China encerrada, como todos perfeitamente sabem, porque a Muralha da China tem sido uma das metáforas mais activas da retórica ocidental. Todos os que se prezam em arquivar os feitos civilizadores do século sabem também como a Inglaterra, ajudada pela França, abriu brechas nessa muralha para meter para dentro o ópio – o ópio que o Governo da China não queria admitir, pela razão verdadeiramente intolerante de que o ópio enerva, envenena, destrói, desmoraliza as raças! A esse feito se chamou a guerra do ópio – e por ela triunfaram os sagrados direitos do negócio.

Depois de entrar vitoriosamente em Pequim, e de ter, à velha maneira dos Átilas e dos Tamerlãos, «flagelos de Deus», roubado e queimado o Palácio de Verão, que era o inestimável museu imperial da arte chinesa, e com ele bibliotecas, arquivos históricos, toda a riqueza literária daquela letrada nação, a Europa força a China a abrir na sua carta cinco portos ao comércio europeu, aos algodões, às ferragens, ninharias ocidentais, e sobretudo ao ópio, ao imenso ópio, a seis a sete milhões de quilos de ópio por ano!

Ora sucedeu que por esses portos, ou portas rasgadas na vetusta Muralha da China, onde entravam os Europeus, saíram os Chineses a ver enfim o mundo, e esta família humana de que há tantos mil anos andavam separados... De então, com efeito, datam os dois factos consideráveis da nova China – a emigração e as missões mandadas à Europa para estudar as nossas ciências, as nossas indústrias, as nossas frotas e os nossos exércitos.

Estas missões saíram da China com curiosidade – mas também com imensa repugnância. O Chinês tem pelo Europeu um horror, de instinto e de razão, fisiológico e raciocinado, que está muito bem caracterizado numa página dos Anais Populares do Império em que se conta a primeira aparição dos holandeses em Macau, e nas vizinhanças de Cantão. «Estes homens (diz essa amarga narração) pertencem a uma raça selvática que habita regiões escuras e húmidas, e que nunca teve a vantagem de se relacionar e aprender com a China. São criaturas avermelhadas, de olhos azulados e estúpidos, e imensos pés de mais de um côvado. Parecem lamentavelmente ignorantes. E como aspecto exterior nada se pode imaginar de mais exótico e repelente!» Aí está a impressão que os bons flamengos (que nos parecem tão sólidos, sãos e limpos tipos de homens) fizeram aos Chineses. E os portugueses que nos fins do século XV apareceram nas costas da China, e os ingleses e franceses que vieram depois no rasto das nossas caravelas, não foram mais simpáticos aos filhos do céu. Todos estes forasteiros lhes pareceram grotescos e hirsutos de figura, grosseiros e brutais de maneiras – e, como costumes e moral, perfeitamente desprezíveis. Para que tinham eles atravessado o mar nos seus grossos navios? Para piratear ou, quando muito, para traficar. Ora a classe culta da China, a grande burguesia letrada, considera o negócio como ocupação inferior e baixa – e a avidez do ganho, a fome do ouro, como a evidência de uma natureza vil. Naqueles homens turbulentos, de face dura e arrogante, que berravam, constantemente sacavam de grossas catanas, e para quem a arte de viver se resumia na arte de mercadejar, os Chineses não podiam encontrar as únicas qualidades que para eles constituem o homem bom – a quietação, a polidez, a tolerância, o sentimento de equidade, o amor das letras e da palavra escrita, o culto da tradição e da autoridade. E desde então a ideia do Europeu ficou associada no Celeste Império à ideia do homem maléfico. O nome com que geralmente nos honram é o de fan-kuci, que significa o diabo estrangeiro, o ser que traz de fora e espalha o mal. De resto todos os outros europeus que, desde a abertura dos portos, se estabelecem na China ou a visitam, não melhoram esta impressão de desconfiança e desprezo. São, na quase totalidade, homens de negócio, secos, sacudidos, ocupados só de enriquecer, passando uma vida toda material, sem gosto pelas coisas do espírito e do saber – e portanto, segundo a ideia do chinês letrado, abjectos. São também em grande parte marinheiros que desembarcam, e pela sua indisciplina, as suas rixas, as suas bebedeiras, escandalizam e desolam o Chinês, o mantêm na opinião de que na raça europeia, além de avareza, só há brutalidade. Os missionámos, que deveriam ser os representantes autorizados das nossas virtudes espirituais, não os impressionam senão desagradavelmente. Na sua religião eles não mostram, nem unidade, nem dignidade, tratando-se mutuamente de «heréticos», de um lado a Igreja Católica, de outro a Igreja Protestante, esta contraminando aquela, que intriga contra a outra, e ainda dentro de cada igreja, divididos em seitas que se guerreiam, calvinistas contra anglicanos, jesuítas contra dominicanos. Nos seus costumes não mostram humildade nem unção, dando-se logo todos como altos funcionámos europeus, usurpando as insígnias exteriores dos dignitários chineses (como a liteira verde de quatro carregadores), desprezando as leis do império, escarnecendo os ritos e os sacerdotes budistas, e tendo uma conduta toda de intolerância e arrogância. Além disso, a sua doutrina (sobretudo na parte moral, que é a única que importa ao espírito chinês) não parece superior nem nova a quem foi educado nos livros de Confúcio ou nos conceitos budistas. Na realidade o letrado chinês não encontra no cristianismo senão contradição, inverosimilhança e névoa; e no pouco que ele tem de bom, os seus preceitos morais, só vê, com desdém, pálidas e imperfeitas imitações do confucionismo e do budismo.

De tudo isto resulta, para o Chinês, um tremendo desdém pelo Europeu e a convicção de que, intelectualmente, moralmente e socialmente, lhe é de todo o ponto superior, e deveria ser seu mestre. Todavia há uma qualidade que ele reconhece no Europeu – é a de mecânico. É esta, de resto, a única superioridade que nos concedem os Orientais: e qualquer brâmane hindu ou qualquer ulemá muçulmano concordará que, lamentavelmente medíocres, como somos, nos nossos sistemas religiosos e éticos, na nossa metafísica, na nossa literatura, nas nossas doutrinas sociais, temos todavia uma habilidade de mãos verdadeiramente infernal para fabricar máquinas a vapor, aparelhos telegráficos, toda a sorte de ferramentas astutas. Este talento nosso, todo o Oriente decerto o considera inferior, manual, próprio de mesteirais e de escravos. Mas concorda na sua grande utilidade (não há nada, mesmo para um mandarim da academia de Han-Li, como uma locomotiva quando ele queira andar depressa) e reflecte que, se adquirir esse talento, se tornará um homem verdadeiramente completo, pois que à superioridade intelectual juntará a superioridade industrial, e será duplamente forte pela moral e pela mecânica.

 

Foi neste espírito que os Chineses mandaram as suas primeiras missões escolares à Europa e começaram a sua aprendizagem científica.

Esta iniciação, porém, teria sido muito fragmentária, toda casual e sempre contrariada pelo velho e intratável conservantismo chinês, se a não estimulasse por outro lado o orgulho político dos mandarins e as suas violentas rivalidades com o Japão. A China, desde séculos, detesta o Japão por motivos um pouco semelhantes aos que mantêm a França e a Inglaterra num perpétuo e surdo estado de antagonismo e desestima. São as duas grandes nações do Extremo Oriente, onde ambas aspiram o predomínio; têm um desenvolvimento idêntico, em literatura, em arte, mesmo em certas indústrias nacionais que ambas exportam e que se chocam nos mercados, o que ajunta à emulação intelectual a emulação comercial: os seus temperamentos, além disso, são dissemelhantes como o do Francês e do Inglês, um grave e prático, outro ligeiro e fantasista, o que cria, no constante encontro dos homens das duas raças, uma multiplicidade de pequeninas antipatias individuais, que se prendem e se somam, num vasto ódio internacional. Guerras sucessivas têm intensificado essa rivalidade – e realmente o Chinês e o Japonês, que ambos mutuamente se tratam de bárbaros e de escória da Terra, só tinham tido até hoje um impedimento para se entredilacerarem, que era o mar que os separa, a insuficiência das suas marinhas e o medo comum da Europa.

Ora, o Japão, como todos sabem, realizou uma transformação extraordinária e decerto única na história. De uma manhã para a tarde, sem descanso, com um ardor frenético, este povo ligeiro e gárrulo sacudiu as suas tradições, as suas instituições, as suas leis, os seus costumes, os seus trajes, as suas maneiras – e envergou de uma só vez, e toda completa, como uma farpela, a civilização europeia, comprada por preços ruinosos num «armazém de civilizações feitas”. Nada representa ou deve representar melhor um estado do que o seu chefe – e ainda há pouco eu considerava duas estampas que pintam com um relevo desolador (para o artista) a transformação do velho em novo Japão. Numa é o micado, ainda imperador omnipotente e hierático, meio homem, meio deus, alçado no seu trono, que mais parece altar, todo envolto num manto de seda cor de palha, com uma mitra de laca branca, onde faíscam pedrarias, imóvel e de olhos baixos à maneira de um ídolo, enquanto o fumo do incenso se eleva das caçoletas, e velhos daimios feudais e samurais magníficos, vestidos de brocados, de bronzes dourados, os dois sabres na cintura, as duas antenas de ouro tremendo no elmo, se prostram ante a majestade do Filho do Sol, tocam com a fronte as finas esteiras claras, juncadas de flores de nassari. Na outra estampa, de cores vivas, é ainda o mesmo micado, anos depois, mais pequeno e como diminuído, com uma farda vermelha de general inglês que lhe faz rugas no sovaco, um capacete branco de general prussiano que lhe tomba para os olhos, umas calças azuis de general francês que lhe fogem dos tornozelos, sentado de esguelha numa poltrona, dentro de uma estação de caminho de ferro, enquanto em redor se agitam funcionámos constitucionais, de chapéus de bico, de chapéus altos, de chapéus-coco, apelintrados e contrafeitos, e ao longe uma locomotiva fumega e vai partir por sob um arco de lona que ostenta este lema estupendo: «Viva a constituição!» Este é o Japão novo. E lúgubre.

Mas é forte – porque, com os nossos horrendos chapéus de bico e as nossas pantalonas agaloadas, adoptou também os nossos couraçados, as espingardas Lebel, as metralhadoras, toda a nossa organização e ciência militar. E, como não lhe falta a inteligência destra para aplicar os nossos princípios e usar o nosso material, e como os seus oficiais são educados nas escolas, nos arsenais, nos campos de manobras da Europa, em breve o Japão pitoresco se tornou o Japão formidável, e, apesar de as fardas mal feitas lhe darem um ar xexé de Entrudo, ficou sendo a grande potência do Extremo Oriente.

A China observou com indizível nojo esta revolução social do Japão – mas também com uma vaga inquietação. Os homens que aboliam o mais santo dos cultos, o culto do passado, que se enfardelavam com a rabona estrangeira, que abandonavam as suas festas religiosas para aplaudir em casinos alumiados a gás as cançonetas torpes de Marselha, eram sem dúvida vis: mas os seus portos estavam cheios de couraçados, os seus arsenais de armamentos, um saber novo penetrara na sua educação, e podiam portanto, apesar de ignóbeis, ser perigosos. A manhosa e forte civilização dos «diabos europeus» convertera-os numa grande potência asiática, comunicando-lhes as suas manhas e a sua força – convinha portanto adquirir também essa força e essas manhas para que o Império do Meio não fosse sobrepujado pelo pequeno Império do Sol Nascente, uma vez que está desgraçadamente provado que a espingarda Lebel mata melhor que a elegante e venerável flecha dos avos.

Foi portanto o Japão que forçou sobretudo a China a entrar, bem a seu pesar, na imitação europeia – e este passo humilhante, tão contrário a todos os seus sentimentos sociais, políticos e religiosos, a que a China era impedida pela indecente europeização do vizinho Japão, mais irritou os mandarins contra o Governo, agora constitucional, do micado. O velho Japão já era antipático à China – o novo Japão, apetrechado à europeia, com gás e com telefones, tornou-se-lhe intoleravelmente odioso. A própria questão da Coreia, tão antiga entre os dois povos, se complicou, se azedou com esta questão recente e singular das inovações ocidentais. Em Seul, na corte do pobre rei da Coreia, as influências chinesa e japonesa, em hostilidade latente desde longos anos, combateram-se agora, nestes derradeiros tempos, acerca dessas formas de civilização que o Japão, com o zelo dos novos convertidos, tentava introduzir na Coreia, e que a China se esforçava em repelir, com rancor. Assim o Japão levava o fraco e aturdido Governo coreense a criar uma escola militar de tipo europeu – e imediatamente a China conseguia a sua supressão. Depois, foi um caminho de ferro, a que a influência japonesa assentara os primeiros rails – e que a influência chinesa logo tortuosamente embargou e por fim destruiu.

E, apesar de tudo, a China continuava a importar as nossas armas, a reproduzir os nossos modelos – mas lentamente, a custo, sem grande confiança na sua eficácia, e certa ainda que, numa guerra, o Japão, com todo o seu material e ciência trazidos da Europa, seria esmagado pelo número incontável das velhas tropas chinas, manchus e tártaras.

Era uma ilusão. Apenas declarada essa guerra, em poucas semanas o Japão ocupava a Coreia, escangalhava o velho rei e o velho Governo, repelia o exército chinês, destroçava a armada chinesa, invadia o solo chinês e começava uma marcha sobre Pequim, para impor ao Filho do Céu, dentro da sua cidade santa, uma paz cheia de vergonha e ruína.

Por ora o Japonês ainda marcha, ainda está longe de Pequim. Mas quando lá entrar, como tudo o pressagia, a China terá sofrido a maior afronta de toda a sua história de seis mil anos. E que, em consequência dessa humilhação, a actual dinastia manchu desabe ou permaneça, o mandarinato, que é eterno e sobrevive a todas as dinastias, há-de raciocinar (porque é essa a sua profissão) que a ultrajante derrota provém só de a China não possuir as armas e os métodos europeus, tão intrinsecamente fortes que, mesmo usados por homens tão vis como os Japoneses, «escória da Terra», triunfam irresistivelmente de um tão augusto poder como o do Império Florido.

E deste raciocínio justo resultará que, pelo menos militarmente, a China se vai tornar europeia, no que a Europa tiver de mais engenhoso, de mais científico, de mais moderno. Ela fará exactamente o que nestes derradeiros quinze anos fez o Japão, nas proporções superiores de quem tem quatrocentos milhões de homens e inumeráveis milhões de dólares, e com aquela inteligência, e tenacidade, e senso prático, e método que caracterizam a raça. Em vinte anos, em menos, a China pode ser a mais poderosa nação militar da Terra.

E não precisa para isso, como nós precisamos, de inventar, de criar laboriosamente: basta que compre e que aprenda, o que é fácil ao seu agudo engenho, ao seu imenso dinheiro. O génio ariano cá está no Ocidente, na sua sublime e natural tarefa de calcular, de descobrir – o mongol de rabicho só tem que olhar, escolher, adoptar.

 

Ora quando a China se tornar uma nação militar, extremamente poderosa, a Europa ficará numa situação singularmente perigosa. Não que devamos recear, como tanto receiam e já profetizam, uma nova invasão de bárbaros da Ásia. Mesmo quando na China surgisse um Átila, capaz de reunir pela energia do seu génio todos o povos do Oriente, para os lançar sobre o Ocidente – a nossa civilização nunca poderia ser submergida, nem mesmo parcialmente desmantelada. A sua coesão é enorme, há uma resistência invencivelmente forte na sua unidade social e moral – e a Rússia forma um baluarte que nenhum poder, mesmo organizado e apetrechado à europeia, poderá jamais transpor.

Além disso, a China está prodigiosamente velha – e essas aventuras reclamam um sangue novo e rico, como era o dos Hunos ou dos Godos. De resto, o Chinês é, como todos os povos rurais, um povo essencialmente pacífico. A sua educação, desde longos séculos, tem sido antiguerreira – e toda a sua literatura, como toda a sua ética, ensina o desprezo pelo homem de anuas. A China é uma raça de lavradores, governada por uma classe de literatos; e com estes elementos não se criam hordas invasoras. Creio, pois, que o Galo-Romano pode passear sossegadamente, sob os pórticos pintados da sua vila, entre as flores e os bustos dos sábios. O homem amarelo não descerá do seu peludo corcel tártaro, soltando o velho grito de Tamerlão: «Haï-up! Haï-up!»

Mas virá, todavia, o homem amarelo! Virá muito humildemente, muito pacificamente, em grandes paquetes, com a sua trouxa às costas. Virá, não para assolar, mas para trabalhar. E é essa a invasão perigosa para o nosso velho mundo, a invasão surda e formigueira do trabalhador chinês. A Califórnia mostra, nas pequenas proporções de uma província, o que poderá ser, no nosso populoso continente, uma ilimitada vinda de chineses. Foi em 1852 que chegaram a São Francisco da Califórnia os primeiros cem imigrantes, ainda tímidos e incertos, procurando trabalho nas minas. Dez anos depois eram cem mil. Seriam hoje um milhão, muitos milhões deles, se o estado da Califórnia não os tivesse repelido como uma praga, como se repelem na Argélia os gafanhotos, ou na Austrália os coelhos. Não é, como se pensa, a fome e a miséria que os expulsam da China. Ao contrário! Todos estes imigrantes que vêm das ricas províncias do Sul da China pertencem a uma classe rural remediada, possuem uma instrução média, trazem o seu pecúlio. Não há neles o espírito errático de aventura – mas o propósito muito raciocinado de fazer fortuna comedida e sólida, e de voltar para a China, onde deixaram a casa, as mulheres, uma família, um centro estável com quem comunicam constantemente, fielmente. Toda esta imigração estava admiravelmente organizada, por meio de associações (tudo na China se faz por associação) cujos chefes, já instalados na Califórnia, promoviam a passagem dos imigrantes, os recebiam, os instalavam, lhes procuravam emprego, julgavam as suas dissensões, velavam sobre eles paternalmente. Assim se forma logo sempre na cidade estrangeira uma cidade chinesa, fechada e compacta, com os seus altares, as suas lojas, os seus hospícios, as suas escolas, o seu mandarim, todos os órgãos necessários a uma pequenina China. Daí irradiam os trabalhadores. E nunca lhes falta trabalho. Em primeiro lugar, porque se contentam com a terça parte do salário do trabalhador branco. O Chinês não tem necessidades: uma única cabaia de chita ou lã grossa lhe basta para uma existência: um pouco de arroz e dois goles de chá o alimentam. Onde o branco, comilão e vicioso, precisa de’ ganhar dois mil réis por dia, o Chinês está feliz com três tostões, e acumula. Em segundo lugar, tem admiráveis qualidades de trabalhador – pontualidade, actividade, docilidade, adaptação perfeita a todas as formas de serviços. São superiormente inteligentes e inacreditavelmente sofredores. As colossais obras de aterramento feitas na Califórnia, na Serra Nevada, só podiam ser executadas pela dureza e infatigabilidade do nervo chinês. Sem eles, o grande caminho de ferro do Pacífico nunca teria sido construído tão rapidamente, tão habilmente. Na Havana, nas grandes plantações de tabaco, de açúcar, de algodão, em serviço onde todas as raças sucumbem, mesmo a negra, o Chinês prospera, fica mais luzidio e gordo.’ Sóis tórridos, chuvas trespassantes, terrenos paludosos, micróbios e toxinas não têm acção sobre aquele ser, de aparência mole e como feito de borracha. De resto, como se sabe, a; sensibilidade nervosa do Chinês é mínima, e por isso eles são quase indiferentes às penalidades usuais do código chinês, a bastonada e a canga. Toda a sua sensibilidade é moral e assim, na Havana, o castigo terrível e verdadeiramente doloroso que se impõe ao Chinês é cortar-lhe o rabicho. O rabicho é o símbolo exterior da sua dignidade, como outrora, para os cavaleiros godos ou francos, os densos cabelos anelados.

O Chinês, logo que reúna pelo trabalho do campo, da mina, ou da fábrica, um saco de economias, vem estabelecer-se na cidade, como jardineiro, lavadeiro, alfaiate, sapateiro, cozinheiro, ourives, etc.

E nestes misteres é incomparável pela habilidade, a rapidez, a originalidade, a excelência da mão-de-obra. Quando as economias crescem, abandona a pequena indústria, entra no comércio – onde é prodigioso, pela lealdade, a finura, o faro, a prontidão em compreender todos os métodos e manhas da praça. Depois, apenas faz fortuna, abala para a China, levando o dinheiro do branco, e um desprezo mais intenso ainda do que trouxera pela civilização europeia.

Um imigrante com estas capacidades é terrível, sobretudo em países industriais, porque altera profundamente a balança dos salários. O capital produtor tem o sonho ansioso (e legítimo) de diminuir, pela baixa dos salários, as despesas de produção. Quando lhe aparece, portanto, um operário hábil, incansável, pontual, dócil, que não faz greves, nem política, é apenas um complemento inteligente das máquinas, e oferece o seu trabalho por metade ou um terço do salário normal, imediatamente o aceita, com alacridade, sem curar de que ele tenha raça amarela, branca ou verde. Foi o que aconteceu na Califórnia. O celestial começou lentamente a expulsar o ianque de toda a actividade assalariada. Nas minas, nas estradas, nas fábricas, nas indústrias, por toda a parte onde se necessitavam braços os amarelos eram preferidos aos brancos. E como esta imigração se desenrolava sempre cada dia mais densa, e o seu crescente conhecimento do país lhe aumentava os meios de expansibilidade, a concorrência chinesa em breve pesou vitoriosamente no mercado, e a taxa do salário baixou de um modo esfaimante para o trabalhador de raça branca. A consequência foi que a raça branca (que tem inventado as teorias mais nobres sobre a liberdade do trabalho) passou a impedir violentamente os chineses de trabalharem. Nas mesmas fábricas, por toda a parte, o Chinês era escorraçado, espancado, esfaqueado e a polícia da Califórnia desviava os olhos benévolos. Além disso os políticos, sob a influência da população operária que dispõe de voto, começavam a criar leis opressivas contra o Chinês, para lhe tornar a vida intolerável, o desgostar para sempre as doçuras da Califórnia. O Chinês, porém, com a tenacidade da sua raça, persistia. Cada paquete do Pacífico desembarcava em São Francisco mil e quinhentos, dois mil chins. Era como uma velha praga da Bíblia. A populaça operária, submergia, ameaçava o Estado com uma revolução. Os políticos então, repuxando até ela estalar a doutrina de Monroe, conseguiram uma lei que proibia ao habitante da China penetrar no solo da Califórnia!

Mas como se pôde estabelecer uma tal lei, tão escandalosamente violadora de todos os direitos divinos e humanos? Porque a China era fraca, e não tinha esquadras nem exércitos para fazer respeitar nos seus nacionais o direito que a todo o habitante da Terra assiste de percorrer a Terra, e de escolher nela um canto onde se instale, pacificamente trabalhe e se nutra.

Como me dizia a mim mesmo um mandarim (o único que me foi dado conhecer, homem magnífico, de maneiras antigas e incomparavelmente aristocráticas, e vestido com uma cabaia de seda verde-mar e fio de ouro que me perturbou), como ele pois me dizia: «O Chinês não poderá viajar enquanto não possuir, à maneira da Europa, couraçados para o comboiar.» E por isto significava aquele venerável mandarim que a China, quando fosse preste, deveria fazer à Europa o que a Europa fez à China – obrigá-la a receber os seus trabalhadores sob pena de a metralhar.

E aqui está o perigo económico que nos virá do Império Florido, quando ele, derrotado pelas armas europeias do Japão, sacudir o antigo torpor sob que se tem enferrujado, atirar para o lixo a flecha tártara, e se armar e construir frotas, e conhecer profundamente o modo de as manobrar e se converter numa imensa potência militar e marítima – o homem amarelo fará logo a sua trouxa e embarcará, confiado e seguro, para vir explorar a Europa. Será um movimento lento (tão lento como foi o das hordas bárbaras para dentro do Império Romano), mas que fatalmente se dará como a natural consequência de quatrocentos milhões de homens reentrarem de novo na família humana. O pequeno formigueiro chinês que alastrava a Califórnia até que O ianque o esmagou sob o seu grosso sapato ferrado de pregos – recomeçará em proporções imensas para toda a América, para toda a Europa. E então não se poderá contra ele decretar a perseguição, muito menos a expulsão – porque detrás do imigrante chinês avançará o couraçado chinês: comer um chinês, segundo a expressão americana, será então uma aventura tão indigesta e tão cheia de perigo como é hoje na China comer um inglês.

A desorganização económica que se deu na Califórnia virá repetir-se na Europa com descomunal magnitude. Nas fábricas, nas minas, no serviço dos caminhos de ferro, não se verão senão homens de rabicho, silenciosos e destros, fazendo por metade do salário o dobro do serviço – e o operário europeu, eliminado, ou tem de morrer de fome, ou fazer revoluções, ou de forçar os estados a guerras com quatrocentos milhões de chineses.

É esta a invasão a recear – não a invasão tumultuária à moda vandálica. E será tanto mais temerosa que terá por si a força do direito, sem que seja fácil exercer contra ela o direito da força. Ela terá além disso como cúmplice e instigador o interesse do capitalismo: porque, à maneira que as nossas classes operárias, mais educadas, se tornarem mais indisciplinadas (ou antes, mais legitimamente exigentes) e o capital europeu travar uma Juta mais áspera com o trabalho europeu, a sua tendência irresistível será utilizar a enorme massa dócil e facilmente contente que cada ano lhe remeterá a inesgotável China. Em cada centro industrial da Europa haverá assim um permanente e atroz conflito de raças – como já hoje se dão, e por motivos idênticos, conflitos de nacionalidades, em que o Francês espanca o Italiano, porque o homem trigueiro de além dos Alpes come menos carne e pede menos salário.

E se a invasão operária chinesa não triunfar (porque a força e a influência do proletariado são já imensas e ainda crescem), essa invasão será, num grande período do século XX, uma nova e intensa complicação, sobrevindo a tantas, já tão temerosas, que esperam os nossos pobres netos.

Mas basta de Chineses! Vós, amigos, aí no Brasil, parece que os desejais, para vos plantar e vos colher o café. Sereis inundados, submergidos. Virão cem, virão logo cem mil. Daqui a dez anos em São Paulo e no Rio tereis vastos bairros chineses, com tabuletas sarapintadas de vermelho e negro, fios de lanternas de papel, covis empestados de ópio, toda a sorte de associações secretas, uma força imensa crescendo na sombra, e cabaias e rabichos, sem cessar fervilhando. Mas tereis cozinheiros chineses, engomadores chineses – e sabeis enfim o que é uma sopa superlativamente sublime e um peitilho lustroso e digno dos deuses. Todas as outras colónias, portuguesa, italiana, alemã, serão insensível e subtilmente empurradas para as suas pátrias de origem – e o Brasil todo, em vinte anos, será uma China.

Os nativistas estourarão de dor e nojo. E como, por caridade intelectual, é necessário que a todo o espírito se dê alimento – metade da Gazeta de Notícias será impressa em chinês. Bom é, pois, que comeceis a reler o vosso Confúcio, camaradas – e que vos inicieis nos divinos livros fundamentais, o Chu-King, que é o Livro das Memórias, o Chi-King, que é o Livro das Imaginações, o Ji-King, que é o Livro das Mudanças, e o Li-King, que é o Livro dos Ritos.

De resto, todo esse chinesismo não será para o Brasil senão um ligeiro acréscimo de confusão. E depois, quem sabe? Talvez a influência ambiente do confucionismo infiltre enfim e derrame no país os princípios salutares da doutrina perfeita – o amor da disciplina, do respeito, da tolerância, da ordem e da paz laboriosa.

 

 

O CZAR E A RÚSSIA

 

O czar Alexandre III, que a Rússia está há três semanas sepultando com uma pompa tão morosa e difusa, era um homem excelente, pacífico, probo e patriota. Estas qualidades, estimáveis e puras, não merecem geralmente canonização. Delas, quando possuídas e exercidas por um merceeiro, não resultarão, como benefício para a humanidade, senão alguns quilos de açúcar pesados com honestidade, ou luminárias penduradas de uma varanda nos aniversários festivos de príncipes e constituições. Possuídas, porém, e exercidas por um autocrata todo-poderoso, elas ganham uma magnitude e uma irradiação proporcionadas à vontade ilimitada que as exerce, e delas podem provir bens inestimáveis para um povo, mesmo para todo um agrupamento de povos. Ora, o czar é um autocrata omnipotente e de uma omnipotência sem igual na história, pelo menos na história da Europa civilizada. Mesmo nas grandes civilizações asiáticas, os soberanos não dispõem de um poder tão incircunscrito. Assim na China, além dos costumes imutáveis e dos ritos que peiam a autoridade do imperador, há ainda, para a conter e reter, a força dos vice-reis, como o vice-rei de Cantão ou o vice-rei de Pechili, que, dispondo sem fiscalização dos tesouros e dos exércitos das suas províncias, constituem úteis e formidáveis centros de oposição e de resistência.

Na Rússia, porém, a autocracia é absoluta e mais ilimitada que a dos césares de Roma, de quem os czares, como herdeiros do cisma grego e através dos césares de Bizâncio, são os sucessores remotos. Os césares não eram propriamente déspotas, tal como se entendia então o despotismo, e como ele existia no Oriente, sobretudo na Pérsia, onde não havia estado, nem leis, nem opinião, nem propriamente homens conscientes, apenas uma horda tremenda de escravos que o grande rei podia mutilar, matar, vender, lançar em manadas para aqui ou para além, como gado vil. Decerto Roma viu formas violentas de tirania, sob certos príncipes de natureza perversa ou transviados por esse desequilíbrio da vontade absoluta que se chamou a «loucura cesariana». Mas eram crises transitórias – não situações normais. O cesarismo foi sempre na realidade uma monarquia temperada. Assim o consideravam os contemporâneos e os que estavam ainda próximos de um Nero, de um Cláudio, de um Domiciano. «Não se deve confundir (diz o liberal Plínio) o principado romano com o despotismo.» As antigas liberdades não só, depois do império, tinham ficado nas leis, mas nos costumes.

Em face dos césares restavam ainda muitas forças vivas para os constranger e moderar. Todas as magistraturas que eles nomeavam e que os ajudavam a governar o império, esse Senado augusto cuja autoridade era mais antiga que a sua e revestida de carácter religioso, a opinião pública impaciente e loquaz, as tradições, as maneiras, a sociedade, o patriciado, o culto, o próprio passado glorioso de Roma, a memória sempre viva dos altos feitos e das altas virtudes, eram outras forças essas que podiam fortemente limitar, e limitavam, o poder dos césares. Somente, e daí provinha o mal, a marcação desses limites não se achava constitucionalmente determinada e fixa. Nero dizia, com razão, que os imperadores nunca sabiam exactamente o que lhes era permitido ou vedado. O mesmo podiam afirmar os magistrados e o Senado. Através desta incerteza se puderam produzir os males e os crimes que enegrecem a história augusta. O poder cesariano não era ilimitado, era antes mal limitado. Mas mesmo dentro desses limites incertos ele foi sempre em princípio (princípio que ainda, sob imperadores deleitáveis, se traduzia em realidades) exercido em nome do povo e do Senado. Com o povo, na verdade, os imperadores não contavam, porque o povo, desde Augusto, se desinteressara das coisas públicas e já nem compreendia o orgulho ou o proveito da liberdade. Quando Calígula reuniu novamente os comícios populares, suprimidos por Tibério, nem um só homem da plebe romana apareceu para votar. Estavam todos nos teatros, nos banhos, nas festas, nas romanas. Contando que as subsistências permanecessem baratas e os espectáculos interessantes, o velho povo romano aplaudia o seu príncipe. Também se o pão encarecia, se os jogos circenses eram chochos, a velha independência e altivez romanas reapareciam e as estátuas do imperador, por vezes mesmo a pessoa do imperador, recebiam dessas vaias de infinita malícia que os Italianos foram sempre magistrais. Os imperadores sorriam paternalmente e confiados. Fora a plebe que os fizera, tirava deles um lucro seguro e não havia receio que o trocassem pelas contingências e misérias da rebelião.

O Senado, porém, esse era o terror dos imperadores. O sacro e augusto corpo dos padres conscritos conservava todo o seu prestígio, e o mundo romano era para ele que olhava e dele que esperava. O que contribuía para a sua importância universal e mantinha a certeza (e mesmo a lenda) do seu poder, eram as largas mostras de respeito, de respeito humilde e filial, que lhe prodigalizavam os césares. Todos desde Augusto se esforçavam em não aparecer senão como servidores do Senado. Mesmo sob os mais demagógicos e violentos, ele permanecia, segundo a expressão de um deles, de Othon, «a cabeça e a honra do império». O próprio Nero concorreu para lhe aumentar o brilho e a dignidade, e portanto, numa sociedade tão hierarquizada como a sociedade romana, a influência e o mando.

As perseguições que um Cláudio ou um Domiciano exerceram contra ele provavam ainda o seu poder e a pesada sombra que ele fazia à autoridade imperial. Decerto o Senado deu por vezes, em tempos já muito servis, o exemplo de todos os servilismos, porque a fraqueza dos homens vicia e anula as instituições mais fortes. Mas não impede que, durante todo o império, os césares sentissem sobre eles aquele soberano corpo político, e a um ponto que o mais intratavelmente orgulhoso, um Tibério, não praticava acto de que não desse explicações ao Senado numa dessas «grandes e verbosas cartas» que a cada instante chegavam de Capreia.

O imperador da Rússia é que não tem explicações a dar a ninguém, senão a Deus. O seu poder, mais absoluto que o de Luís XVI porque não é contrabalançado pelos parlamentos, mais absoluto que o de Filipe porque não é coarctado pelos fueros, corresponde de facto ao do grão-sultão, no velho Império Otomano, que só tinha por limites a religião. Com a diferença, porém, que o sultão podia ser deposto por um decreto dos ulemás e dos mollahs congregados em concílio –e não há concílio de metropolitas russos que possa suprimir uma parcela de poderio dos czares. Essa soberania é una, indivisível, inalienável. Fundada sobre o sistema dos principados feudais, ela é como uma propriedade, um morgado herdado por cada imperador, e seria nele quase uma covardia, pelo menos uma baixeza, o abandonar aos seus vassalos, individualmente ou constituídos em assembleia, uma porção, ainda mínima, do depósito que recebeu intacto dos antepassados e que deve transmitir intacto a seus filhos. Não só pela tradição medieval o czar é o proprietário, o dono da Rússia e de todos os russos, mas pela teoria dos legistas é, como czar, o único e perpétuo representante da nação, e ainda pela doutrina dos teólogos é, como David, o delegado especial de Deus sobre a Terra. Tem a tríplice consagração do costume, da lei e do dogma. A civilização, a filosofia, a ciência, a absorção da cultura europeia têm adoçado nas suas formas, mas não alterado na sua essência, esta vetusta concepção da soberania russa.

O excelente Alexandre III era, na realidade, tão absoluto como o medonho Ivan III, há trezentos anos. Esse Ivan dizia aos Russos, para lhes definir bem as relações de czar a vassalo: «Eu sou o vosso deus, como Deus é o meu!» E o povo russo assim o entendia. Por isso suportava todas as crueldades do soberano, não só em perfeita submissão, mas ainda adorando, e com as mãos erguidas para ele, como as raças muito crentes, quando Deus lhe manda as privações da fome ou da peste. Alexandre III não dava da sua soberania a mesma fórmula de Ivan, mas, no fundo, tinha dela a mesma ideia: e a Rússia continua a consentir nessa ideia, se não já com fervor devoto, como nas idades bárbaras, pelo menos com respeito jurídico.

Ora, num soberano possuidor de tal poder, estas virtudes simples de doçura, probidade, patriotismo, espírito pacífico, respeito da vida humana, que num mero cidadão não têm senão uma acção restrita à família, e num rei constitucional não têm senão uma acção restrita à corte – são de um alcance universal e influem nos destinos do mundo, sobretudo quando a omnipotência desse omnipotente se estende a cento e cinquenta milhões de homens! Mais que tudo ainda quando a essas virtudes se junta, como no imperador Alexandre, o sentimento religioso da sua responsabilidade para com Deus – e quando, sob o olhar desse Deus, que ele sente e que o manda, se aplica a exercer com indomável tenacidade, com um impulso nunca afrouxado, no que é grande e no que é mínimo, essas virtudes que recebeu de Deus. Então a sua doçura natural pode produzir ao longe a felicidade de vastas massas populares; a sua probidade instintiva dilatar-se-á em fecunda gerência da riqueza pública. O seu patriotismo criará talvez a expansão e engrandecimento da pátria; as tendências do seu coração pacífico podem dar a paz ao mundo. A sua omnipotência opera como uma alavanca, que, sob a pressão de cinco dedos, e não dedos enormes do gigante Golias, mas dedos usuais e frágeis do mediano homem que passa, levantará facilmente a mais monstruosa das rochas. E assim, por possuir as três ou quatro qualidades que quase todos possuímos, permanecendo com elas em incurável obscuridade, o soberano absoluto, do tipo do czar, fica ilustre e um homem da história, principalmente se teve a felicidade de viver num tempo como o nosso, tumultuoso e vazio, tempo de muita turba e poucos homens.

O czar Alexandre era caracteristicamente um russo. Ele próprio costumava dizer, segundo contam, «que a única justificação de um czar era o seu russianismo». Mais que russo, o czar era um mujique, um genuíno mujique coroado. Do mujique tinha a robustez enorme e mal feita, o andar bovino e lento, o olhar cismador. Os seus prazeres eram os trabalhos rudes de homem dos campos, em luta com a Natureza áspera – desbastar mato, derrubar árvores, rachar lenha. Em Gatchina, onde ele se escondia como numa cidadela, havia sempre, durante o Inverno, algumas ruas do parque a que se não limpava a neve – porque era o imperador que todas as manhãs a levantava com uma imensa pá proporcionada à sua imensa força e uma pesada carroça, a que o senhor da Rússia se atrelava. E com tudo isto, numa ternura de simples, devotamente fiel à czarina, em adoração diante dos filhos, tremendo se um deles tossia ou dormia mal, e sacudindo papéis de Estado e cuidados do império para lhes ir consertar bonecos, ou para os divertir no jardim com engraçadas façanhas de força.

A sua inteligência era lenta e pouco curiosa. Nunca foi homem de livros, nem o interessavam as coisas da cone. O seu gosto tendia antes para o que é intrinsecamente precioso e que brilha – e coleccionava com ardor obras de ourivesaria, pedrarias, baixelas. No teatro, estimava sobretudo os dramalhões tremendos em que se chora, em que ele chorava. A sua superioridade residia toda no carácter – e sobretudo na incomparável probidade, no zelo ansioso com que cumpria o seu ofício de reinar. O império, para Alexandre III, não era uma sinecura esplêndida. Assim como possuía todos os poderes, tomava a seu cargo todas as funções. Naquela centralização grosseira, sem fiscalização e sem publicidade, ele tinha de substituir a sua vontade e a sua acção a todas as acções e vontades abolidas. Assim que se tratasse de uma aliança política ou do conserto de uma estrada, era o imperador quem decidia e dava o impulso. Um tal regime necessita uma energia indomável, uma severidade minuciosa, um discernimento quase infalível. Na realidade, necessita génio. O imperador substituía a pequenez do génio pela imensidade da aplicação. Para governar por um tal sistema, Frederico II da Prússia levantava-se estremunhado às quatro da manhã; e Napoleão trabalhava dezoito horas por dia; e mesmo à mesa, ou no banho, ou enquanto o criado o esfregava todo com água-de-colónia, ditava aos seus secretários. E nem um nem outro dirigiam máquinas que se possam comparar com a Rússia, pela complicação, pela grandeza e pela irregularidade. O czar realmente morreu desse trabalho sobre-humano. Mesmo durante as suas férias, no Verão, quando residia na Dinamarca, continuava a governar a Rússia, em todas as miudezas, do fundo do seu quarto do castelo de Trendenburg; e, para o auxiliar na tarefa pavorosa, trazia apenas consigo um copista! Era sofreguidão de auto ridade ciumenta? Desconfiança de colaborações infiéis e interesseiras? Paixão de burocrata, como tem o sultão? Talvez um pouco de tudo – mas acima de tudo o sentimento austero da sua responsabilidade. O seu zelo administrativo era ainda uma forma do seu zelo religioso. À noite, aquele imperador era o homem mais esfalfado de todo o império. O trabalho aqui, pela magnitude, quase condizia com o salário. Poucos mujiques, nos campos, teriam arquejado sobre a tarefa tão duramente como o grande mujique coroado. Com os ombros caídos, como se em cima carregasse a Rússia, recolhia então ao quarto da imperatriz, onde, pai simples, cercado dos seus, era ele que fazia o chá.

 

A ideia dominante deste verdadeiro russo foi russificar completamente o império, fundir numa forte unidade política e religiosa todas as raças e todos os credos, de modo que não houvesse dentro da Rússia senão russos, e russos ortodoxos. Assim fortalecia a sua própria autoridade, porque o czar, chefe temporal, é também chefe espiritual. Para esse imenso fim, não desdenhou nenhum meio, mesmo pequeno – como quando ordenou que na corte se empregasse só a língua russa, e que as senhoras restaurassem os antigos trajes russos. Nem todos os seus métodos de russificação foram decerto eficazes e hábeis – porque não é com finlandeses oprimidos que se fazem russos leais: e a expulsão dos judeus, por princípio ortodoxo, não consolida a ortodoxia, nem a purifica, porque toda a seita que se torna perseguidora perde da sua força e corrompe o seu espírito. Mas no seu anti semitismo, o czar obedecia fatalmente às suas íntimas antipatias de mujique. Esforço mais coerente e eficaz foi a sua metódica eliminação do elemento e da influência germânica. Sob o seu reinado, a Rússia quase inteiramente se desgermanizou. E aqui ainda o seu interesse político concordava com a sua simpatia doméstica – porque à czarina, filha do rei da Dinamarca, o antigo vencido de Koenisgratz, era naturalmente odioso todo o germanismo.

Mas a obra grandiosa do czar foi a lenta extensão da Rússia para a Ásia, a marcha sobre o Afeganistão, realizada com uma tenacidade, um método, um saber admiráveis, apesar de todos os obstáculos geográficos, da resistência de populações ferozes e fanáticas, da esterilidade das regiões, nunca até aí transpostas, e do dispêndio incalculável de milhares de homens.

Para levar a cabo esta colossal ramificação do seu império asiático, o czar necessitava de dinheiro e paz. E estes preciosos factores da obra só a França lhos poderia garantir –porque as duas outras nações ricas e fortes, a Alemanha e a Inglaterra, rivais da Rússia nas suas fronteiras da Europa e da Ásia, nunca concorreriam, com empréstimos ou alianças, para o seu engrandecimento. Por isso o czar naturalmente se voltou para a França. E nunca houve uma aliança mais lógica, fundada em interesses mais positivos.

Os Franceses, que gostam de embelezar todos os seus negócios com uma auréola de sentimento, falam da fraternização irreprimível da «alma russa e da alma francesa». Estas «almas», que não se conhecem e que nunca se compreenderam, foram inteiramente alheias a essa aliança ou acordo, que consistiu numa troca muito tangível de serviços muito materiais. A França deu à Rússia quatro milhões, para que empreendesse a sua conquista asiática; e a Rússia, em recompensa, tirou a França do isolamento político em que ela jazia, fraca, apesar de tão forte, perante os sete milhões de soldados da Tríplice Aliança. Por sobre isto, é certo, muitos abraços se trocaram, muito champanhe estalou, muito lirismo bateu o voo. Mas, na realidade, foi uma transacção, e extremamente seca.

A França entregou quatro mil milhões de francos – a Rússia prometeu quatro milhões de soldados. Mil francos por cada soldado. Não é caro, para a França.

O czar nunca estimou nem podia estimar a França. Àquele autocrata devoto e pudico, tudo na França lhe devia repugnar – o seu radicalismo político, o seu cepticismo religioso, o sensualismo da sua literatura e da sua arte e mesmo o cosmopolitismo leviano da sua capital. Decerto a Alexandre III a França aparecia como o país de todas as irreverências e de todas as libertinagens. A grande obra civilizadora da França, se jamais reflectiu nela, certamente a atribuía e a limitava à antiga França histórica, a França governada pelos seus reis. Com efeito, a influência da civilização francesa sobre a Rússia, no tempo em que foi mais viva, no século XVIII, era toda de sociedade e de corte e ia para Sampetersburgo, não da França, nem mesmo de Paris, mas directamente de Versalhes. As classes russas afrancesadas ainda o são à maneira do século XIII; e, mesmo lendo os livros modernos de Paris, procuram em Zola e em Bourget aquela coisa especial que procuravam em Dorat ou em Crebillon. Ora, este mesmo feitio francês da sociedade russa era profundissimamente desagradável ao czar. Para aquele puro e devoto monarca, o espírito da França sempre pareceu venenoso.

Amava ele ao menos o carácter dos Franceses, a sua sociabilidade, a sua limpidez intelectual, a sua graça inventiva e fácil, a sua fina arte de alindar e popularizar? É duvidoso que a natureza do czar fosse acessível à sedução destas qualidades. O que é, porém, certo é que o povo, que em cem anos tem demolido treze vezes a sua estrutura política e que se não cansa em a tornar cada vez mais radical, mais positiva, mais irreligiosa, devia chocar todas as opiniões e crenças daquele soberano de direito imutável, absoluto e divino. E no dia em que ele, num banquete de gala, se ergueu, escutou de pé A Marselhesa, fez indubitavelmente ao patriotismo e aos interesses da Rússia o sacrifício de sentimentos muito íntimos, e muito enraizados, e muito queridos.

E a França, compreende ela e estima a Rússia?

Certamente que não – apesar do que tanto se tem declamado (mais em Paris que em Sampetersburgo), nestes dois derradeiros anos, acerca da união das duas almas. Não pode haver ligação de almas onde não exista identidade de ideias, de crenças e de costumes. Seria impossível uma estreita aliança moral entre Franceses e Turcos. Ora a Turquia não está moralmente mais separada da França do que a Rússia. Entre Paris e Moscovo não existem somente, para as distâncias, milhares de quilómetros (que de resto os comboios expressos cada dia encurtam); existem sobretudo centenas de anos, quatro ou cinco longos séculos. E sempre entre a Rússia e a França se deu este radical desencontro de progresso e barbaria. No século XIII, quando a França e a Europa ocidental estão na plenitude da civilização medieval, e nas escolas ressoa o tumulto da filosofia, e nos concílios se deliberam as mais subtis questões espirituais, e os mosteiros são centros fecundos de saber, e a arte gótica desabrocha em maravilha, e por toda a parte resplende a honra a polidez da cavalaria – a Rússia é ainda mais uma floresta que uma nação, onde os eslavos da planície, hirsutos, mudos, cobertos de peles, esconchados em choças, são menos homens que bichos. Nos fins do século XV, na Renascença, durante o máximo esplendor do génio europeu, no tempo dos grandes poetas, dos grandes pintores, dos grandes humanistas, quando a diplomacia substitui a força e os prazeres mais procurados são os do espírito, e o mundo está cheio de letrados e de finos amores de conversas doutas, e os reis e os papas se disputam a posse dos artistas, e Francisco apanha os pincéis de Ticiano, e o faustoso D. Manuel passeia pelas veigas de Sintra, entre Gil Vicente e Garcia de Resende – na Rússia o czar Ivan IV, o homem mais civilizado do seu império, decepa por sua mão, com um grande cutelo, as cabeças dos boiardos, faz cozer em caldeirões de cobre os príncipes apaniguados e, depois de comer brutalmente, como uma fera, vem para os pátios da sua negra cidadela ver ursos devorar as crianças. No século XVII, no grande século, quando Luís XIV resplandece em Versalhes como o Sol, e a graça e nobreza da vida e das maneiras atingiram a perfeição suprema, e a cultura e as belas-letras se respiravam como o ar, e qualquer burguesa do Marais escrevia tão puramente como os melhores da Academia, e os escritores eram Boussuet, e Pascal, e Molière, e Corneille, e Racine, e La Rochefoucauld, e Boileau – na Rússia, em Sampetersburgo, os homens de grenhas incultas até à cintura, de barbas esquálidas até ao umbigo, arrastavam pela lama grosseiras túnicas tártaras; mesmo os nobres só tinham por distracções bebedeiras e brigas; as mulheres, tapadas com espessos véus, viviam aferrolhadas, sem permissão de sair à rua, de aparecer a uma fresta, como nos haréns de Bagdade; e nas casas, mobiladas com rudes trastes de pinheiro mal pranchado, não havia um quadro, nem havia um livro, porque ninguém na Rússia sabia ler. Pedro, o Grande (esse czar genial que, quando assistia às sessões do Senado, terminava sempre por desancar os senadores com uma furiosa bengala), mandou, é verdade, por decreto, cortar todas as barbas e encurtar todas as túnicas; libertou, também por decreto, as mulheres da sua reclusão de serralho persa; tornou obrigatórias, ainda por decreto, as reuniões sociais e os saraus discretos; e estabeleceu, sempre por decreto, as maneiras com que os fidalgos se deviam conduzir, os copos de aguardente a que se deviam limitar, os gestos de cortesia e deferência com que deviam saudar as damas, e o número moderado de chicotadas que poderiam descarregar sobre os lacaios. Era um admirável czar – e vivia no tempo em que Racine escrevia a Athalie e em que Luís XIV, quando encontrava nos corredores de Versalhes uma criada, se cosia com a parede e tirava o seu grande chapéu cheio de pedrarias e plumas. Ao fim de trinta anos de energia, à força de rapar barbas, de substituir túnicas tártaras por bigões franceses e de impor aos seus nobres, por decreto imperial e sob pena de prisão, alguma amabilidade com as damas, conseguiu dar à Rússia, pelo menos às classes superiores da Rússia, uma vaga e exterior aparência europeia.

Mas, sob as barbas cortadas, as novas casacas de seda e as contumélias mal aprendidas – as almas ficavam russas, profundamente russas, como a do próprio Pedro, o Grande. Tão russas como eram no tempo de Ivan IV, tendo apenas por fora, na roupa e nos modos, uma casquinha de Paris. E russas permanecem ainda, sob este czar gentil, de olhos pensativos, que se chama Nicolau II, e que é no fundo ainda um verdadeiro Ivan IV por aquilo que mais importa num czar – o poder, o poder indiscriminado, em frente ao qual não há outro poder. A distância moral, pois, que vai da França à Rússia é a que vai de um Casimire Périer a um Ivan IV. Maior ainda! Porque a França, pelo seu espírito, já está no século XX – e a Rússia ainda se arrasta escuramente no espírito do século das Cruzadas, do Velho da Montanha e de Pedro, o Eremita.

A Rússia de facto é uma velha casa asiática, que tem uma varanda rasgada sobre a Europa. A essa varanda ela surge frequentemente e, de cima dela, intervém, com a sua força e com a autoridade que a força lhe dá, nos negócios da Europa.

Nesses momentos, a Rússia parece europeia, porque se reveste de um traje europeu, se serve de fórmulas europeias.

Um pouco do ar da Europa penetra então pela varanda, levando o rumor das nossas ideias e da nossas inovações morais. Mas é um ar que mal passa das grades. E, quando as portas da varanda se cerram, só há dentro um Oriente antigo e muito estranho, que nós não podemos compreender.

Mas, apesar de tão remotas moralmente, a França e a Rússia seguirão politicamente unidas, porque, ainda que ricas e fortes, uma precisa sempre de mais dinheiro para se estabelecer na Ásia, e a outra sempre de mais exércitos para se defender na Europa.

Não creio, pois, que os Franceses se devam inquietar acerca das ideias deste inédito czar Nicolau. Da sua varanda da Europa, ele continuará, necessariamente, como o pai, a estender, por causa da Alemanha, um olhar amorável para a França e para a sua grande força vital – o bom camponês de blusa azul que amontoa as boas peças de cinco francos, arrancadas à seara e à vinha. Quem mais se deverá preocupar com as ideias do czar moço e todo-poderoso são os Russos, os vastos eslavos na planície russa, para quem ele é Deus e pai. Terão esses um czar de progresso, como o aristocrático e humanitário Alexandre II, acessível à infiltração das ideias germânicas e renovadoras, ou um czar de retrocesso, como o devoto e plebeu Alexandre III, hostil a todo o germanismo e protector ultra-russo do velho partido russo? Como dizia não sei que poeta, num verso verdadeiro e detestável:

 

Não se podem prever as coisas de tão longe.

 

E de resto, qualquer que seja o temperamento desenvolvido pelo czar Nicolau, a Rússia continuará a ser Rússia – isto é, um imenso império, três quartas partes do qual são asiáticas, e que tem portanto de ser governado como se fosse todo asiático, pela vontade única e indiscutida de um autocrata, através de um funcionalismo todo dependente dessa vontade e tremendo sempre no salutar terror dela, e sob a sanção tradicional de um clero servil e ignorante. Só assim se governam os estados da Ásia. E, como a Rússia tem também uma fronteira europeia, conservará, como factor da vida social e para de algum modo praticar das agitações intelectuais da Europa, um ou outro Tolstoi, pregando um idealismo evangélico, feito de renunciamento e humildade, um pouco semelhante ao faquirismo dos países budistas e ao santonismo dos países muçulmanos, e que é a única filosofia possível e permissível num estado autocrático, de raiz oriental, e ainda enfaixado e imobilizado nas concepções sociais da Idade Média.

 

 

A SOCIEDADE E OS CLIMAS

 

Há anos, há muitos anos, quando nós todos éramos novos e a política se conservava ainda tão romântica como a literatura, um estadista nosso, Fontes Pereira de Melo, aquele a quem se chamava concisamente o popularmente «o Fontes», dizia num discurso de Estado, comparando Portugal às outras nações da Europa, estas palavras consoladoras: «E certo que a nossa pátria não possui como outras a riqueza comercial, as numerosas vias férreas, as incontáveis fábricas, os estaleiros, a ferramenta industrial, os fortes factores do progresso: mas tem sobre elas uma superioridade, que lhe garante vida mais fácil e mais livre, e é este luminoso e magnífico céu azul que nos cobre!»

Todos nós, então moços e pervertidos pelos livros sonoros de Eugéne Pelletan, o divinizador da máquina, o bardo heróico do progresso, rimos estridentemente deste homem de Estado lírico, quase idílico, que considerava um pedaço de céu azul como uma força civilizadora, antepunha a doçura do ar a todas as magnificências da ciência, celebrava a sua terra pelos mesmo motivos por que a exaltavam os poetas do Almanaque de Lembranças, e decerto quando lhe pedissem ideias de governo, de administração e de fomento, se contentaria em mostrar os raios do sol meridional, batendo, com providencial radiância, nas folhas dos laranjais. Rimos estridentemente. Mas o nosso riso era todo feito de inexperiência e de ignorância. Fontes, relacionando a sociologia e o clima, fazendo depender da atmosfera as qualidades e, portanto, a felicidade das nações, estava com efeito dentro de uma doutrina muito medíocre, apesar de o século XVIII, tão sôfrego de ciências exactas, se ter deleitado com ela, e de Montesquieu se ter constituído o seu defensor paternal e clássico. Segundo essa teoria, em cada região o solo e atmosfera influem irresisti velmente sobre todos os produtos da Natureza, a começar pelos homens e a acabar pelos cogumelos. Tudo provém (como demonstra o grande autor do Espírito das Leis) da acção que o ar exerce sobre as fibras exteriores do nosso pobre corpo. O ar frio, como o da Inglaterra ou da Suécia, aperta essas fibras, aumenta a sua elasticidade, dá-lhes, portanto, resistência e vigor. O ar quente, pelo contrário, como o de Nápoles ou de Portugal, relaxa essa fibras, diminui a sua elasticidade, faz-lhes decrescer a presteza e a força. Quem ganha ou sofre com isto é o coração, que recebe um influxo de sangue mais activo e vivo, quando as fibras têm robustez e elasticidade, e mais lento e mole, quando, sob a influência de um ar cálido, as fibras são lassas, lentas e frouxas. (É ainda Montesquieu que está falando.) Daqui resultam os corações fortes dos homens do Norte e os corações fracos dos homens do Sul. Ora, é o coração que faz o carácter. Os homens do Norte terão, pois, por causa desta fortaleza do coração, mais confiança em si, o que importa mais coragem: e terão uma consciência mais clara da sua superioridade, o que lhes dará franqueza, lealdade, generosidade, audácia de empreendimento, tenacidade de conduta, um espírito igual e justiceiro, horror às intrigas, às manhas, às traições e às vinganças oblíquas. O desgraçado homem dos climas quentes (sempre seguindo o grande autor do Espírito das Leis), esse terá todas as qualidades inversas, para sua eterna humilhação. Para ele, e em virtude das suas fibras moles e relaxadas, a covardia, a volubilidade, a inconstância de propósito, a indolência de corpo e alma, a deslealdade, a desconfiança, o amor da intriga, os gostos traiçoeiros e vingativos.

Nos países frios (continua Montesquieu) estão os povos sãos e bem constituídos, abundantes em virtudes, com poucos vícios, todos cheios de sinceridade e de clareza, amando só os prazeres que são viris e puros. Nos climas temperados estão as gentes sensíveis, impressionáveis, imaginativas, inconstantes tanto nas virtudes como nos vícios, incapazes dos grandes esforços, loquazes e vãs. Mas quando se penetra nos climas verdadeiramente quentes (e aí está Montesquieu convosco, amigos!) parece que nos achamos a milhares de léguas da própria moral: aí o corpo não tem resistência e o abatimento contamina o espírito: não há nenhuma alta curiosidade, nenhuma nobre empresa, nenhum sentimento generoso: todas as inclinações são passivas ou baixas; a felicidade consiste na preguiça, o egoísmo é o móbil supremo: as más paixões multiplicam os crimes torpes: e, para não fazerem sequer o esforço de se conduzirem e governarem a si próprios, os homens preferem a escravidão!

O quadro é medonho. Mas como é falso e estouvadamente improvisado! E como são corredias e fáceis as objecções que se podem pôr aos manes veneráveis de Montesquieu, sobre a sua dilecta doutrina das influências climatéricas.

O solo e a atmosfera de Atenas não mudaram desde que essa atmosfera e esse solo criaram a raça que repeliu as invasões do Oriente, deu à humanidade os maiores dos filósofos e os maiores dos artistas e foi a mãe augusta da civilização. Como sucede então que, nesse mesmo solo e sob essa mesma atmosfera, vive e respira hoje apenas uma populaça ignara, onde não há um filósofo nem um artista, e tão frouxa que não consegue desembaraçar-se sequer das suas quadrilhas de salteadores, ela que outrora sacudiu como simples pó os exércitos de Xerxes? O mesmo fácil argumento se podia transportar para Roma, que conserva o mesmo solo, o mesmo ar, e que todavia (sem fazer ofensa aos seus generais, aos seus poetas, aos seus oradores) não é a Roma dos Cipiões, dos Césares, dos Virgílios, dos Tácitos, dos Catões. Mas é sobretudo Paris, o próprio Paris, que deve embaraçar Montesquieu. O imperador Juliano, que muito tempo habitou entre os Parisienses, nestas margens do Sena, diz no seu livro do Misopogon que o que mais o encantava nesses Parisienses era a gravidade do seu carácter e a austeridade dos seus costumes! Ora o mesmo rio corre entre as mesmas margens: ainda nelas restam as ruínas do palácio de Juliano e das termas que ele edificou: e o mesmo solo, segundo a teoria de Montesquieu, devia produzir os mesmos caracteres graves, e a mesma atmosfera devia produzir os mesmos costumes puros. E onde estão elas hoje, essa austeridade e essa pureza? O próprio nome de Paris simboliza tudo quanto não é grave nem puro – e Paris é, segundo todos os escritores que o têm explicado e celebrado, o berço natural dos risos, dos jogos, das graças inconstantes e dos vícios amáveis e finos. Pode, pois, haver ainda alguma esperança para os povos que vivem com trinta e quatro graus de calor à sombra, e que o duro Montesquieu condena por isso a uma fatal e irresgatável inferioridade. Os climas não são, como ele pretende, tão rigidamente lógicos na sua acção.

Sobre o mesmo solo e dentro do mesmo ar pode haver duas Atenas, uma grandiosa, outra reles. E debaixo dos trópicos, esses criadores fatais da moleza, do vício e da servidão, brota muita energia, muita virtude, muito civismo. As qualidade fortes e as qualidades fracas não estão divididas na Terra por zonas, como as plantas – de outro modo os Lapónios e os Gronelandeses seriam os povos superiores da humanidade, e não se poderiam explicar o heroísmo, a nobreza e a disciplina social dos Zulos, que ocupam algumas das mais tórridas regiões da África. De facto, por esta teoria, toda a história se tornaria incompreensível – e a civilização do Alto Egipto, as destemidas conquistas de Cartago, a grandeza intelectual dos Hindus seriam fenómenos absurdos, ó meu ilustre Montesquieu!

Se esta teoria dos climas, como a popularizou o espirituoso autor do Espírito das Leis, na sua generalização tirânica, não se mantém perante a ciência e a história – é certo que a felicidade dos homens e dos povos depende consideravelmente do solo e do ar em que Deus os colocou. Há em primeiro lugar a tremenda questão dos confortos materiais! São eles, sobretudo eles, que complicam a vida, a dificultam, lhe dão o seu áspero carácter de luta. O nevoeiro, a humidade, o frio, a neve, causam em grande parte os males humanos – os males morais e os males sociais. Para se resguardarem dessas intempéries é que os homens necessitam casas bem apetrechadas, e fogões, e caloríferos, e tapetes, e grossas cortinas, e veludos pesados, e mobílias acolchoadas, e peles, e carruagens, e a abundância das luzes alegres. É de facto para contrabalançar a miséria dos climas ríspidos que o homem apetece o luxo. Só na beleza, no brilho, nas formas ricas das coisas íntimas que o cercam ele consegue esquecer a fealdade e a monotonia de céus sempre cinzentos e soturnos. Ora como nestas nossas imperfeitas civilizações os confortos e o luxo não se alcançam sem dinheiro, e o dinheiro, desde os grandes erros de Eva e de Caim, não se alcança sem esforço, eis a vida tornada uma luta ansiosa e dolorosa para a conquista de um pouco de ouro, ou de pedaços de papel enxo valhado que represente ouro. Daí estas nossas sociedades ocidentais tão tumultuosas, tão confusas, com as suas fábricas, os seus bazares, os seus bancos, as suas bolsas, a sua agiotagem, as suas greves, as suas revoltas, os seus crimes, a sua febre, a sua instabilidade, as suas opressões escandalosas, as suas incuráveis misérias. E tudo porque durante sete meses do ano do Senhor chove, venta, neva, gela, e o céu é como um tecto mortuário, forrado de papel pardo. Que se compare o homem de Londres, de Paris, de Berlim – com o homem do Oriente, o feliz habitante de Damasco, ou o árabe da Palestina, ou o hindu na sua aldeia. Um abafado em peles até aos olhos, com as calças arregaçadas, as mãos ambas agarradas ao guarda-chuva, cortando o vento, chapinhando a neve, com trevas por cima e trevas em redor, arrepiado e sujo, lá vai numa azáfama, por entre a turba azafamada, aos encontrões, na sôfrega luta para ganhar artificialmente aquilo que a Natureza lhe recusou, um pouco de calor, uma pouca de claridade, um pouco de conforto, um pouco de bem-estar. A mesma hora, o hindu na sua aldeia, o árabe de Damasco no seu quintalejo, serenos, sem pressas e sem cuidados, estão cobertos pelo esplendor de um céu que é uma fonte de alegria: um ar mais doce e macio que todos os nossos veludos envolve-o numa constante carícia: para se cobrir, um côvado de linho branco lhe basta, um pouco de arroz e milho colhidos sem esforço, os frutos de cada árvore, a água límpida da fonte comum são o banquete que Deus cada dia lhe oferece: em torno só vê formas graciosas e luminosas: a sua vida é toda de repouso e não tem terrores. Mas nem precisamos peregrinar tão longe, à Síria ou à Índia. Paremos em Espanha ou Portugal, e comparemos o trabalhador do Algarve, ou das veigas da Inglaterra. Um traço único marca as diferenças que opera um céu hostil ou um céu afável. No Sul o trabalho é todo feito a cantar, como uma devoção; no Norte o trabalho é feito sombriamente, quase amargamente, como uma condenação. Ao fim do labor, largada a enxada ou a ferramenta, o repouso do homem do Sul é ainda gozado entre cantigas e danças, porque do seu dia afadigado só lhe resta satisfação e esperança; o homem do Norte procura o repouso na garrafa de gim ou de álcool, porque do seu dia só quer esquecer a miséria e a aspereza. E porque é esta diferença entre os dois trabalhadores? Porque um trabalha numa Natureza que o afaga – e o outro numa Natureza que o atormenta.

Mas é sobretudo nos temperamentos que os climas influem de um modo tirânico. Paris é um exemplo, quase tão doloroso, dessa lei crua.

Na Primavera, sob o afago macio do ar resplandecente, tudo nesta cidade é amável e fácil. O homem e as próprias coisas têm não sei que indefinido sorriso de universal cordialidade. Toda a cidade se toma hospitaleira e bem acolhedora. As melhores qualidades da raça francesa, a polidez, a sociabilidade, a graça, parecem reverdecer, com uma frescura nova, como as folhas nas árvores. O estrangeiro sente em tomo de si uma ambiência fraternal. As próprias paixões políticas, que em Paris nunca desarmam, perdem da sua ira e do seu azedume. Os jornais são ligeiros e cheios de novas que alegram e repousam. Todos os cuidados vão para as coisas da inteligência, da arte e do gosto. Os cocheiros de fiacres amansam. Pelas ruas, a multidão, em lugar de se empurrar febrilmente, aos encontrões, desliza, como se na vida só houvesse vagares delicados. Paris é então verdadeiramente, como a que riam e cantavam os poetas do século XVIII, a cidade dos jogos e dos risos.

Mas vem o Inverno, os primeiros frios, as primeiras névoas – e adeus o Paris cordial e doce. Toda a cidade se enruga e escurece. Já não há face que soma, e os próprios muros, tornados cor de fuligem, se mostram carrancudos. Ninguém mais pensa nas coisas da inteligência e da arte. Quem triunfa é a Bolsa e a aspereza egoísta dos negócios. A política imediatamente se torna feroz e ressuma rancor. Os jornais, alçando o tom violento e sinistro, trasbordam de injúrias e só contam crimes. O estrangeiro deixa de ser o hóspede apetecido e passa a ser o intruso irritante. Dos cocheiros não há mais a esperar compaixão. Os fornecedores apresentam as contas rangendo os dentes, com ferocidade. Nas ruas só há repelões e pressa brutal. E Paris todo parece, findos os jogos e os risos, a pátria natural da desconfiança e da cólera. Que causou esta lamentável transformação? Unicamente o desaparecimento do Sol, o céu sempre cor de chumbo, as névoas glaciais, a lama, a tristeza invernal.

Grande razão tinha o nosso Fontes! Não há bem maior para uma nação que um clima suave e luminoso. Riqueza, força, grandes indústrias, minas auríferas, um comércio trasbordante, nada, para a felicidade de um povo, vale um lindo sol e um ar aveludado. Tudo se simplifica numa região tépida e clemente. O contentamento do corpo envolto em luz e calor contrabalança, calma, quase faz esquecer os descontentamentos públicos. As diferenças de sortes e de fortunas, que são a origem dos males sociais, perdem da sua irritabilidade e do seu amargor sob um céu benévolo onde respirar, passear, contemplar, são prazeres superiores que Deus concede mesmo ao mendigo errante pelas estradas. A beleza exterior do mundo exterioriza a vida; a alma não se concentra nem se dobra sobre si mesma, muito menos a si mesma se consome.

Terra de atmosfera transparente não é propícia aos rancores, aos despeitos, às surdas invejas. A própria política é aí sem violência; o dinheiro quase não tem egoísmo. Uma bonomia esparsa envolve os corações. Todos os interesses se amolecem sob um fermento de vaga fraternidade. Como se vive na rua e ao ar, e as existências se misturam, todos se conhecem e todos se toleram. A sociedade tende a estar em harmonia com a Natureza, e o impulso universal vai sobretudo para as coisas agradáveis. A dor nunca conserva aí persistência e lancinância, e para secar lágrimas não há como o sol. Uma manhã radiante consola do maior desapontamento. As paixões são amenas, e se o ciúme é um pouco mais ruidoso é também mais rápido, e nunca envenena lentamente, nem corrói... Mas o bem maior está nas poucas necessidades da vida e portanto na sua simplificação e liberdade. Todos esses impedimentos (como dizem os Ingleses), que tanto atravancam as sociedades setentrionais, são ou podem ser ignorados. Portugal viveu muito tempo, e foi feliz, com quatro cadeiras de palhinha em salas soalhadas de pinho branco. O homem não é escravizado pela amontoação dos confortos e pode mover-se sem ter de deslocar consigo, como o homem dos climas frios, uma montanha de coisas. Daqui provém logo a modéstia das indústrias, as menores exigências de capital, o adoçamento das questões sociais. Quantos bens inumeráveis... Sem contar que nas terras do sol a imaginação dos homens nunca e sombria, e portanto estão-lhe poupados os tormentos piores, os da imaginação. O Sol, que tudo alumia, enche também de claridade o espírito. Não há fantasmas interiores. O mundo nítido, repassado de luz, não oferece mistérios nem terrores. Enfim, o nosso Fontes tinha superiormente razão – e um bom clima é ainda a melhor base de um estado feliz.

 

Todas estas reflexões me vieram deste longo, fresco e tristonho Inverno. Há seis meses que Paris não vê o Sol.

É como se ele tivesse para sempre ficado no mar, onde mergulhou numa das últimas tardes de Agosto – Febo indolente que se não quis arrancar mais ao seio verde de Anfitrite. Desde então, para Paris, não há firmamento – apenas um tecto mole e sufocante de algodão sujo. Dizem os entendidos que o Sol está velho, muito velho, e que já não tem o esplendor e o vigor dos tempos em que era adorado como o único deus visível e o único compreensível. O astro primordial sofre de anemia, de tanto se ter prodigalizado a mundos talvez ingratos – e, com as pavorosas tempestades e revoluções que nestes últimos tempos o agitam sem cessar, a sua face apresenta só manchas e rugas, como qualquer face humana que as aflições devastaram. Assim é talvez – e os mundos dançam e cantam o seu canto pitagórico em torno de um moribundo. Mas decrépito, e enrugado, e clorótico, como ele está, os homens não o podem dispensar – sobretudo para o seu equilíbrio moral. Os corpos, à custa de fogões, de tapetes, de peliças, vão vegetando – mas as almas, com toda esta sombra que as envolve, vão ganhando um feitio sombrio. A alma de Paris está sombria. E é este hoje o lugar melhor para se lembrar com saudade e inveja o velho verso de Eurípides que diz: «Felizes os que se movem com espírito sereno e livre num ar luminoso e macio!»

 

 

CASIMIRE - PÉRIER

 

O Sr. Casimire Périer deu a sua demissão de presidente da República como um caixeiro maltratado e zangado que em dia de crise comercial se despede bruscamente do patrão e abala, desabafando contra as torpezas da loja e atirando furiosamente com as portas. Na longa história das abdicações, desde a do velho Diocleciano, tão preparada, tão prudente, tão cuidadosa do bem do Estado, não creio que se encontre uma outra mais despida de preparo, de prudência e de consideração pelo Estado e pela sua segurança. O presidente nem realmente abdicou o poder: mas uma fria manhã saiu do palácio, atirou o poder para o meio da rua com uma sacudidela a que não faltou nem coragem nem independência, e encaminhou os passos para casa, para as doçuras da irresponsabilidade. Não é um vencido que se retira – é um enfastiado que se safa.

Toda a imprensa o cobre de injúrias. «É o covarde! É o desertor! E o leviano que aceitou funções para que se sabia incapaz! É o fracalhão que por vaidade se mascarava de valentão! É o egoísta que sacrifica os interesses da sua pátria ao sossego da sua digestão! É o capitão que abala porque rompeu o fogo! É o caprichoso que amua porque lhe disseram que não.» Os próprios jornais que, durante estes seis meses, mais concorreram, com assaltos ferozes, para o desgostar e desalojar do poder, fulminam agora triunfalmente contra a sua impotência e contra a sua deserção.

Tudo isto, a meu ver, é excessivo – e provém do feitio do espírito francês, sempre idealista, tendendo incorrigivelmente para as generalizações absolutas, e que exige dos homens a força abstracta que só pertence aos princípios. Mas um homem realmente não pode ter a rigidez impassível de um princípio. Os princípios são insensíveis e intangíveis – e os homens são um feixe de nervos sujeitos a todas as influências, mesmo as da chuva e do vento. É absurdo pretender que um poeta seja tão poético como os seus poemas, um padre tão transcendente como o seu dogma – e que um estadista, elevado ao poder para representar uma ideia, se torne tão impessoal como ela, e como ela prossiga impassivelmente na sua evolução, mesmo quando a Terra trema e os céus em torno caiam.

O Sr. Casimire Périer era simplesmente um homem, com todos os nervos e susceptibilidades e irritabilidades de um homem. Talvez mesmo, herdeiro único e chefe de uma dinastia (a dos Périer), rico, inteligente, adulado pelos seus e pela sua clientela, habituado a exercer um império fácil, poupado reverentemente pela contradição, ele se tornara o que nós chamamos em Portugal um menino mimalho. Se como presidente da República tivesse encontrado diante de si um caminho seguro, aplainado, cheio de um doce murmúrio de louvores, sobretudo bem defendido por aqueles que tinham interesse na sua marcha vitoriosa, e oferecendo apenas aqueles obstáculos que uma vontade mediana prontamente costeia ou destrói – sem dúvida teria cumprido toleravelmente a sua missão, porque não lhe faltavam intenções excelentes nem capacidade activa. Mas, em vez disso, achou diante da sua sagrada pessoa um caminho intransitável, inóspito, varrido de ventos glaciais, infestado de bichos venenosos, ensopado de lodo que lhe salpicava para as faces, e sobretudo atravancado de obstáculos que os seus colaboradores, aqueles mesmos que lhe deviam assegurar e defender a marcha, vinham de noite sorrateiramente erguer e eriçar de espinhos bravos O resultado foi que o pobre presidente, regelado, arranhado, apupado, topando contra pedregulhos, resvalando em barrancos lamacentos, desanimou e fugiu por um atalho, gritando indiscretamente que aquela estrada, que era a da república, não oferecia segurança e conduzia a desastres. Certamente um herói, um hércules, teria avançado – mas o Sr. Casimire Périer não é um hércules, nem um herói, e como a França, sobretudo a burguesia francesa esgotada, já. não produz heróis, parece insensato exigir dele uma grandeza de alma e força que não são próprias da raça, e muito menos da sua classe.

 

A sua eleição, feita numa quase unanimidade, entre grandes esperanças, logo depois do assassinato de Carnot e quando toda a França ordeira tremia do papão anarquista, teve uma significação essencialmente conservadora. Ele era o homem do pulso forte que a França chamava para suster, com esse forte pulso, a marcha das «hordas revolucionárias». Fora a sua reputação de energia, herdada do avô, o ministro de Luís Filipe, o grande consolidador da classe média, que o indicara para um governo que todos queriam resoluto e autoritário. O que se esperava era que, do ramo mais grosso da árvore da liberdade, ele fizesse um cacete. A França teria preferido um general com uma espada. Mas como os tempos ainda não estão maduros para o advento dessa espada de soldado – a França contentava-se com o cacete do burguês. Em todo o caso a sua eleição foi um alívio, uma esperança – e toda a França que tem uma conta no banco e que deseja, portanto, tranquilidade e ordem em tomo do banco aclamou o homem forte.

Nestas condições Casimire Périer podia legitimamente pensar que seria um presidente popular. Foi uma ilusão que durou ainda menos que a rosa de Malherbe. Na primeira manhã que ele saiu no landau de Estado, com a sua escolta de couraceiros, avistou diante de si uma França muda e glacial. Nem um sorriso afável que o acolhesse, nem um viva alegre que o animasse. Tão estranho era este silêncio, esta ausência das aclamações tradicionais do expansivo Paris, que os seus amigos a explicavam pelas dificuldades eufónicas do seu nome – Casimire Périer –, que, composto de sílabas longas, não se presta a ser lançado num viva curto e brilhante. E todavia ele nada mais fizera ainda do que mostrar a sua face à nação. Mas essa mesma face logo desagradou. Com efeito, na sua fotografia oficial, exposta em todas as vidraças e publicada em todos os jornais, ele aparecia com uma carantonha agressiva, um ar de buldogue extremamente desamável.

Era talvez mera culpa do fotógrafo. Assim a popularidade de um chefe de Estado depende por vezes da perfeição ou imperfeição de um cliché! Além disso, o presidente usava uns colarinhos singulares, revirados, prodigiosamente decotados, que não convieram a este povo acostumado aos colarinhos correctos, hirtos e majestáticos do Sr. Carnot. Imediatamente se esquadrinharam outras razões de o suspeitar. Os radicais já andavam denunciando com alarido as suas relações mundanas e aristocráticas. Muito amargamente se contava que quando ele soube do assassinato de Carnot, estava numa soirée ouvindo música, sentado entre a princesa de Hennin e a condessa de Grelhufe. A democracia não lhe perdoou mais esta condessa e esta princesa, que o contaminavam. Desde logo se profetizou com rancor que o Eliseu seria um centro escandaloso de aristocracia orleanista. Não era ele próprio um velho amigo dos Orleães? Não dera ele a sua demissão de deputado, quando se decretara a expulsão do conde de Paris? Evidentemente a sua presidência seria o prólogo sorrateiro da monarquia...

Mas o que mais irritava era a sua imensa fortuna, os seus três milhões de renda. A democracia (todos os publicistas o afirmam) é invejosa – e este presidente da República que possuía um palácio na Rua Nicot, tão aparatoso como o Eliseu, e vivendas de campo que valiam as vivendas reais, e coutadas de caça, e uma criadagem de grande estilo, e requintes da vida privilegiada – parecia um contra senso, a negação mesmo da igualdade republicana, um perigo, quase uma afronta.

Quando a opinião assim se formava, veio a eleição pelo círculo que, ao subir à presidência, ele deixava vago. Era o seu velho círculo, a sua cidadela política. Por ele devia ser naturalmente eleito um sub-Casimire, do mesmo feitio conservador, que continuasse nas câmaras a obra de resistência à invasão socialista. Qual! O círculo elegeu justamente um socialista! Todo o país riu com gosto desta ingratidão, que era uma lição. O presidente estava definitivamente impopular, mesmo entre a sua antiga clientela. O radicalismo não cessou mais de o cobrir de ultrajes – e de pilhérias. Drumont lançou contra ele raios e Rochefort piparotes. Os seus milhões, as suas librés, os seus bigodes, os seus colarinhos, os seus avós e a sua energia hereditária – tudo foi vilipendiado ou achincalhado.

Tinha ele ao menos a afeição e o apoio dos conservadores? Também não: também se lhes tornara suspeito. Vendo que ele não brandia o famoso cacete, cortado na árvore da liberdade, e que a «horda revolucionária» não cessava de avançar, os partidos conservadores começaram a descrer da força conservadora do seu eleito. A afirmação constante que ele fazia da sinceridade do seu republicanismo, a sua afectação em se pronunciar contra as suas tradições de classe e em se isolar das suas relações elegantes eram outros motivos de irritação para os moderados. De bom grado lhe diriam como o personagem de Shakespeare: «Vós provais de mais, meu belo senhor, provais de mais!» Além disso, por se ser conservador não se deixa de ser parisiense: e a irreverência, o espírito frondeur, o assalto irónico contra todo o chefe de Estado que mostre hesitação ou fraqueza, é um dos hábitos mais incuráveis do espírito de Paris. Os próprios jornais que o tinham proclamado como o esteio forte da ordem começaram também contra ele um tiroteio maligno. Por ocasião do Grand Prix, o Sr. Casimire Périer, penetrado da velha ideia de que a pompa reforça a autoridade, resolvera ir a Longchamps, à solenidade clássica do sport francês, em grande estado, com grandes librés, e precedido de batedores à antiga maneira imperial. Apenas, por uma indiscrição dos jornais, se conheceu esta tentativa de restaurar na república o luxo real, todo o Paris começou a rir – e ninguém riu com mais malícia que o Figaro. O presidente, assustado, suprimiu à última hora os batedores, e atravessou num landau democrático os Campos Elísios, onde se juntara uma multidão imensa, elegante e divertida, para assistir a essa magnificência de librés e lacaios, tão nova e tão pouco gozada pela geração republicana. Quando se avistou o landau sem picadores e sem librés, seco como a virtude, foi um desapontamento e uma troça. Aquele presidente que de repente, por medo, recolhia todo o seu luxo, o deixava escondido no canto mais escuro das cocheiras do Eliseu, pareceu indizivelmente ridículo. Tudo isto é minúsculo. Mas para uma população tão ligeira e mundana como a de Paris são estas coisas minúsculas que levantam ou derrubam uma popularidade e, por vezes, uma forma de governo.

Mas os maiores tédios do presidente vinham dos seus próprios ministros. Por deferência para com o seu pobre antecessor, o Sr. Casimire Périer conservava o velho ministério em cujos braços morrera Carnot.

Em lugar, porém, de dirigir o seu ministério, e de fazer prevalecer uma política conforme as suas ideias pessoais, o presidente em breve reconheceu que não era mais de que «uma máquina de assinar». Todos os negócios consideráveis se tratavam sem que ele fosse escutado, sequer consultado. Se tentava afirmar a sua autoridade de presidente, imediatamente lhe recordavam a conduta exemplarmente discreta de Carnot, que nunca impusera as suas opiniões, se submetera sempre, com todo o rigor constitucional, às dos seus ministros. Assim todos os planos, todos os projectos de reforma, que ele esperava realizar sob a sua presidência, encontravam uma oposição cortês, mas irredutível. O presidente ultimamente ignorava mesmo o que se fazia nos diferentes ministérios, porque a mais tímida e modesta informação que pedia era tão demorada, tão adiada, tão habilmente sonegada, que, de pura fadiga, ele terminava por desistir, emudecer. Se indicava, por exemplo, a nomeação de um funcionário era certo que de todos os modos subtis e oblíquos lhe recusavam. Se ao contrário punha objecções à escolha de um prefeito, ou de um general, ou de um governador de colónia, era certo também que, dias depois, essa nomeação reapareceria, teimosamente entre os decretos apresentados à sua assinatura formal. E se ele ainda se retraía, hesitava, o decreto, passado uma semana, tornava a surgir entre os papéis, implacável. A política internacional é aquela em que tradicionalmente o presidente é sempre ouvido com deferência, O Sr. Casimire Périer, que justamente saía do Ministério dos Estrangeiros e trazia portanto o conhecimento e a experiência dos negócios diplomáticos, nunca era consultado.

Como o nosso D. João VI, depois da revolução de 1820, ele só sabia de manhã, pelos jornais, o que se decretara, em seu nome, na véspera. Não era propriamente um chefe de Estado – era uma estaca de Estado. Estava ali plantado no Eliseu. E não se lhe atribuía mais sensibilidade moral do que a uma estaca. Os seus ministros, o seu partido, tinham deixado elevar à presidência da câmara Brisson, o chefe do radicalismo, seu inimigo pessoal. E esse mesmo partido decretara uma acusação contra Reynal, seu amigo íntimo. Era uma estaca, tendo a tiracolo a grã-cruz da Legião de Honra, e a que se prestavam honras régias, mas que na realidade não contava nem na política, nem na nação. A única coisa para que servia – era para que os jornais lhe atirassem lama.

Nestas condições, uma bela manhã, o Sr. Casimire Périer, vendo que o ministério oportunista caíra, que se lhe devia seguir um ministério radical e antevendo que, tão desconsiderado já pelos seus amigos, o seria ainda mais pelos seus inimigos, agarrou no poder, na grã-cruz da Legião de Honra, nos seus direitos majestáticos, na sua casa civil e militar, na sua escolta de couraceiros, em todas as suas honras, atirou tudo, de escantilhão, para o meio da rua e sacudiu os ombros livres. Farto de ser uma estaca – quis tornar a ser um homem. O desejo é legítimo – e no «gesto», como agora se diz, não deixa de haver audácia e elegância.

 

 

A PROPÓSITO DA DOUTRINA DE MONROE E DO NATIVISMO

 

Venezuela deve ter atingido, neste momento, o ponto supremo da sua felicidade nacional – se é certo que a nação reproduz sempre, colectivamente e com intensa magnitude, as virtudes e os defeitos do indivíduo. O homem de Venezuela, como geralmente os homens das repúblicas latinas que cercam o golfo do México (se é que eles conservam as naturezas que lhes conheci), tem o apetite constante e infartável do brilho, da publicidade, da nomeada, da importância ruidosa e que reluza. (Talvez por isso eles se carregam tão profusamente de jóias – para faiscarem ao longe.)

Este prurido de gloríola, de carácter mórbido, constitui uma verdadeira inflamação aguda da personalidade. E uma herança do velho sangue espanhol, apesar de tão adelgaçado e aguado hoje nas veias por onde corre. Ainda por isso, as vezes, leva ao heroísmo; mas quase sempre pára no alarde e na farófia. Transportado para a Europa, onde a expansão da personalidade é mais difícil porque há menos espaço social, esse prurido toma aquele feitio a que os Franceses deram o curioso nome de «rastaquerismo». De resto, o «rastaquerismo» não é uma especialidade exótica do Americano da costa do Pacífico e do golfo do México, porque o Francês, e sobretudo o Parisiense, também o cultiva largamente e com estridor. E o rastaquère nascido em Paris e no Bulevar é mesmo infinitamente mais desagradável que o rastaquère importado de Guatemala ou do Peru, porque neste há um simpático fundo de ingenuidade, e no outro só se encontra secura e perversão.

Em todo o caso, esta fome canina da celebridade dá gozos excepcionalmente fortes àquele que a satisfaz. Não é fácil calcular, pela tabela de medidas de que dispõe a civilização, a alegria colossal de um crioulo, cujo o nome e pessoa e feitos consigam um dia ocupar a página culta de um jornal da Europa. Se ele alcança a glória superior do telegrama, então a sua felicidade só poderá ser comparada à de um santo que, ao fim de penosos anos de penitência e de ermo, veja escancaradas diante dos seus passos as portas refulgentes da bem-aventurança... Ora, Venezuela (se é que a nação reproduz o indivíduo) está hoje saboreando com indizíveis delícias este triunfo inesperado. Não só vem nos jornais de toda a Europa, não só vem nos telegramas de todas as agências – mas, por causa dela, duas altas nações do mundo estão em áspero conflito, e a diplomacia hesita esgazeada, e as bolsas cambaleiam tomadas de pânico, e pelos ares passa, com o seu costumado ruído de ferro e dor, a velha Belona, deusa da guerra!

 

Não há, na história moderna, mais curioso conflito do que este que surge entre a Inglaterra e os Estados Unidos da América do Norte por causa de algumas milhas de terra perdidas no fundo da Venezuela. É certo que dentro desse bocado de terra existem minas de ouro – e onde aparece o ouro, o terrível ouro, imediatamente os homens em redor se entreolham com rancor e levam as mãos às facas. Foi por causa de umas imaginadas minas de ouro que a Inglaterra tão vorazmente tentou arrancar a Portugal o território de Manica, em África. Por fim, em Manica não havia ouro – porque já os diligentes Fenícios, há três mil anos, o tinham extraído e fundido com ele ídolos e alfaias para os colégios sacerdotais de Cartago e de Tiro. Os bons Ingleses, nessas minas vazias, só encontraram cacos, vasos de barro e ferramentas roídas por uma secular ferrugem, sobre as quais passaram logo, com mal disfarçada melancolia, a escrever dissertações eruditas para a Revista de Edimburgo. Porque tão forte é esta raça que até transforma em proveitos da ciência os desapontamentos que, por vezes, encontra no exercício da rapina. Nessas minas, porém, de Venezuela afiançam os exploradores ingleses e americanos que ainda resta ouro, muito e delicioso ouro, porque os Astecas justamente tinham aí os seus jazigos mais ricos e fundos. Eu desconfio desse ouro. Os Astecas segundo as últimas revelações das ciências etnológicas, descendem dos Fenícios, que nas suas esguias trirremes e olhando a pálida Estrela Polar, navegaram todos os mares, aportaram a todas as costas, tiveram Gamas e Colombos mais de dois mil anos antes das nações ibéricas, e conheceram realmente o mundo quase tão bem como o velho Eliseu Réclus. Ora, se os Fenícios, esses formidáveis esgravatadores de ouro e de metais preciosos, estiveram jamais nas regiões de Venezuela, receio bem que não se encontre nelas, como não se encontrou em Manica, ouro bastante para cunhar uma libra falsa.

Em todo o caso a auri sacra fames (a «maldita fome do ouro», ou a «sagrada fome do ouro», segundo a tradução mais ou menos psicológica que se fizer do versículo) não constitui senão um factor subalterno desta brusca dissidência anglo-americana. Os dois fortes irmãos estão em cólera, quase estão em guerra, com fins mais nobres, por causa de uma doutrina – por causa da tão falada e tão incompreendida doutrina de Monroe. Seria, pois, essa uma guerra (se a houvesse) originada num ponto de casuística política. Amplo e legítimo orgulho para todos os legistas e todos os fazedores de sociologias. Já havia séculos que os homens, materializados, se não batiam por divergirem na interpretação de um ditame. Agora, ao menos, alvorece sobre nós a doce e feroz esperança de que se alague de sangue e se cubra de ruínas um certo parágrafo obscuro e tortuoso do tratado de direito internacional.

 

Oh!, esta doutrina de Monroe! Que estranha evolução ela sofreu desde que saiu, tão gravemente formulada, dos lábios do presidente Monroe, até se tornar esse aforismo oco e mal-avisado que hoje todo o ianque (e à imitação dele todo o homem da América) lança com tanta inconsideração e arrogância.

A América para os Americanos! Nesta fórmula, que é doutrinalmente incompreensível, e praticamente cheia de perigos, se converteu a prudente doutrina do presidente Monroe, no curto espaço de oitenta anos e através de uma civilização cujo objecto mais constante tem sido a fusão e a confraternização dos homens!

Começa por ser singularmente errada esta expressão doutrina, aplicada à declaração muito simples e muito prática que o presidente Monroe fez na sua mensagem ao Congresso de Washington, em Dezembro do já muito remoto ano de 1823. Monroe era um homem medíocre e limitado, totalmente incapaz de conceber e desenvolver uma doutrina política – e só pensava ou falava sob o bafo e inspiração do seu secretário de Estado, Quincy Adams. Foi este fino e forte estadista, hoje esquecido no pó desinteressante dos arquivos americanos, que ideou e redigiu essas frases famosas da mensagem de 1823; mas foi o feliz Monroe que penetrou na posteridade, trazendo bem alta nas mãos, como Moisés ao descer do Sinai, a tábua com a sua doutrina. Assim ficou este homem insípido e nulo com a singular glória de ter traçado o forte programa político que conduziria a América aos seus altos destinos, e de ser o Sólon ianque. Muito bem me recordo de ver, nos Estados Unidos, um busto dele, com a coroa de louro e hera, a coroa profética que compete aos grandes legisladores de povos. E esta coroa era tanto mais divertida quanto sucede à sua doutrina o que sucede a outras obras consagradas – que toda a gente a cita, e ninguém jamais a leu.

E todavia essa doutrina (para lhe conservar a aparatosa alcunha), quando se lê, parece excelente – e foi realmente excelente dentro do momento histórico que a originou. Era então o devoto e bourbónico ano de 1823, e a Europa estava nos grandes dias de Metternich e da Santa Aliança. Tão radicalmente mudou a face política, moral e social do mundo, que o conhecimento íntimo desta famosa Aliança, que a si própria se chamava e se considerava santa, pertence quase exclusivamente à erudição histórica. Não a caluniamos decerto dizendo que ela foi uma aliança dos reis contra os povos. Nascida no Congresso de Verona, depois da queda de Napoleão e sob o medo pânico que inspirava ainda a Revolução (de que Bonaparte fora uma encenação agressiva sob a forma cesariana), a Santa Aliança partiu de um princípio inteiramente novo, desconhecido no século XVIII, e mesmo no século XVII durante o grande prestígio das monarquias. Segundo esse princípio, os reis formavam uma família superior e única, com interesses dinásticos e majestáticos muito diferentes dos interesses dos povos: e portanto deviam coligar-se e manter entre si uma harmonia imutável, para poderem livre e seguramente sufocar todo o espírito de liberdade e de revolução em qualquer povo que ele se produzisse, e defenderem assim colectivamente os seus direitos sacros de dinastia e majestade. Esta aliança, de que Matternich, primeiro-ministro da Áustria, era a alma motriz, funcionou com brilho até 1830: e foi em obediência ao santo princípio donde se originara que os reis, santamente aliados, mandaram um exército austríaco sustentar o rei de Nápoles destronado pela revolução constitucional do general Pepe e depois um exército francês libertar o rei de Espanha, que se achava coagido pela revolução de Riego, forçado aos sacrifícios mais pungentes, até a expulsar os jesuítas, até a abolir a Inquisição! Tendo deste modo esmagado gloriosamente os primeiros rebentos liberais no Piemonte e em Nápoles e restituído à Espanha os pitorescos benefícios de Fernando VII, da Inquisição e da forca, a Santa Aliança declarou, à maneira de uma intimação final aos povos, que ela desde então e para sempre considerava «como nula e desautorizada pela lei pública da Europa qualquer pretendida reforma efectuada por meio da revolta e da força popular; e que se arrogava o imprescritível e sagrado direito de tomar uma atitude hostil contra qualquer nação que, em qualquer parte do mundo, ou sob qualquer forma, derrubasse o seu legítimo governo e desse assim um pernicioso exemplo de rebelião e infidelidade social aos súbditos dos reis aliados...» Ora, havia então uma parte do mundo que estava dando esse escandaloso exemplo, e onde cada ano um povo se erguia batendo ignominiosamente e expulsando com irrisão o seu venerável e legítimo governo. Era a América. Por toda a sua costa, do Atlântico ou do Pacífico, não se viam senão vice-reis espanhóis, fugindo com os baús de couro carregados de uniformes e de dobrões, para bordo de velhas naus que viravam cabisbaixamente as proas para a Espanha. Uma a uma todas as colónias, aproveitando as guerras de doutrina política que assolavam a mãe-pátria, se iam emancipando dela e dando começo a essa bela pândega anárquica em que se têm deliciado há setenta anos, entre muita gritaria, muita poeira e muito sangue. Em 1803 foi a Venezuela, que sacudira as «algemas espanholas»; depois, já em tempo da Santa Aliança, tinham sido Guatemala e o Peru – e esta ingratidão do Peru amargurou mais penosamente do que as outras o coração paternal de Fernando VII, que dele esperava sempre, por tradição, uma fonte de riqueza perene e fácil. Tais emancipações constituíam esses actos de «rebelião e força popular», tão soberanamente condenados pela Santa Aliança. Para os anular e os governos que deles tinham saído (governos viciosos e falsos, pois que se baseavam sobre o vício e a falsidade da soberania nacional) é que a Santa Aliança se criara e se armara, sob o olhar aprovador de Deus, amigo particular da Casa de Áustria. Por isso a Santa Aliança, apenas acabou de consertar os negócios de Fernando VII em Espanha, e de aferrolhar os liberais nas prisões do Santo Ofício e nos presídios de África, começou a pensar em lhe consertar também os negócios na América espanhola, e em lhe reduzir de novo as novas colónias a uma sujeição filial, redourando assim o necessário prestígio dos Bourbons, e dando simultaneamente uma ríspida lição aos povos que se quisessem abandonar à desleal quimera da liberdade. Com tão santos intuitos se reuniu o Congresso de Verona, onde se deviam assentar as bases de uma acção entre todas as potências aliadas, para o extermínio dessas abomináveis repúblicas latinas, formadas com os pedaços partidos do Império Espanhol.

Foi então perante esta possível invasão da América espanhola republicanizada que se levantou pesadamente a voz deselegante, mas justa, do presidente Monroe. A situação dos Estados Unidos era com efeito difícil. Todas as colónias espanholas tinham apenas imitado o exemplo revolucionário da colónia inglesa – e cada uma aclamava o seu pequeno Washington. As constituições políticas com que se tinham dotado eram traduzidas da constituição dos Estados Unidos – e assim concorriam para dar a todo o continente uma vasta harmonia política e económica. Por virtude dessas rebeliões, o solo da América ficara limpo de todas as máculas do absolutismo; e do rio da Prata ao rio de S. Lourenço não havia já, felizmente, nem um penacho de vice-rei, nem uma roupeta de jesuíta, nem um cárcere de Inquisição.

Podiam, pois, os Estados Unidos consentir que uma frota aliada, com pavilhão apostólico, viesse desmanchar esta obra de liberdade e mesmo de civilização de que ela fora a inspiradora e a mestra? E a condenação, pela Europa, dessa soberania que os crioulos espanhóis se tinham legitimamente arrogado não era a condenação injusta e implícita do direito com que os Estados Unidos tinham sacudido o domínio inglês? A opinião, em toda a América do Norte, foi logo rancorosamente hostil a qualquer acção da Santa Aliança contra as novas repúblicas latinas, ainda fracas e convalescentes da causa espanhola. E o presidente Monroe não fez mais, na sua famosa mensagem de Dezembro, do que traduzir este pronto e vivo sentimento da nação. Não houve aí pois uma doutrina nova, saída como uma Minerva armada da sua cabeça, que certamente não era olímpica. Monroe apenas formulou oficialmente a vontade íntima e popular dos estados. E deu mesmo à sua fórmula o tom mais discreto e mais modesto. Nesses tempos distantes os Estados Unidos ainda não tinham adoptado, nos seus modos políticos, essa arrogância estridente a que os Ingleses chamam estilo de águia desfraldada.

Monroe, falando à Santa Aliança, não esquece que ela se compõe de reis da Casa de Bourbon e da Casa de Habsburgo. E na sua mensagem, através da firmeza que dá à consciência do direito, há um agradável vislumbre da antiga polidez colonial. «A nossa política para com a Europa (diz ele nessa mensagem tão famosa) consiste em não intervir nunca nos negócios internos dás potências; considerar como legítimos todos os governos de facto, manter com eles relações cordiais, conservando uma atitude franca e viril, sem recusar nunca as reclamações justas e sem nunca nos submeter a ofensas ou injustiças... Enquanto porém ao continente da América, as circunstâncias são eminentemente e conspicuamente diferentes. E possível que as potências aliadas estendam e transportem os seus sistemas políticos para este continente, sem grave risco da nossa paz e da nossa felicidade: nem é fácil de acreditar que os nossos irmãos do Sul, abandonados à sua inspiração, adoptassem semelhantes sistemas. E portanto perfeitamente impossível que nós víssemos com indiferença qualquer intervenção, e sob qualquer forma, das potências aliadas...»

Tais são as recatadas palavras que constituem aquilo que tão pomposamente se chama hoje a doutrina de Monroe. Que elas são justas e práticas e que em 1823, nas vésperas do Congresso de Verona, se tinham tornado grandemente necessárias, ninguém o pode negar, desde que conheça a história do domínio espanhol na América e o espírito arcaicamente absolutista do metternichismo e da Santa Aliança: mas e também inegável que esta declaração política está rigorosamente limitada pela sua própria data, nada significa fora do momento histórico que a originou e só poderia ser desenterrada dos arquivos e reaplicada se as potências da Europa se coligassem de novo para arvorar a bandeira apostólica e tentar na América o restabelecimento de sistemas obsoletos, que elas próprias já arremessaram para o lixo do passado... E notemos ainda que a declaração de Monroe, nem ao menos no momento em que se produziu, em 1823, teve eficácia – pois não foi ela nem o sentimento dos Estados Unidos, de que era a expressão, que atemorizaram a Santa Aliança e a impediram de repelir para além do Atlântico as façanhas restauradoras de Espanha e de Nápoles, reintegrando o bom do Fernando VII na posse aurífera da sua Venezuela, do seu México, do seu Peru. Não! O que deteve a Santa Aliança foi simplesmente a atitude da Inglaterra, que protegeu as tenras repúblicas da América do Sul, as reconheceu logo como governos legítimos – com o vivo mercantil receio de que a restauração da política da Espanha no Novo Mundo fosse (como fatalmente seria) a restauração paralela do seu sistema económico, que excluía dos portos coloniais todo o tráfico, produção e indústria ingleses. A mensagem do presidente Monroe era um decreto-protesto, desacompanhado de força; e a Santa Aliança podia bem impunemente encolher os seus reais ombros e mandar vogar as suas frotas, levando já vice-reis e inquisidores-mores, envernizados de fresco e com garrotes novos. Mas a oposição da Inglaterra era um obstáculo absoluto, porque em 1823 todas as esquadras juntas da Santa Aliança e as do mundo todo não podiam arriscar sequer a ponta das suas proas fora dos portos onde se abrigavam sem permissão da Inglaterra, já então, e mais que hoje, senhora soberana dos mares.

Pois foi desta frase do presidente Monroe, já platónica e estéril em 1823, que os ianques, com o natural orgulho de quem sente cada dia surdirem em si forças novas, e com a ambição de passarem perante o mundo como criadores únicos da sua grandeza, e ainda também com esse surdo despeito que os povos coloniais conservam contra os seus antigos dominadores, cuja civilização mais requintada, por ser mais velha e complexa, eles nunca podem igualar na sua beleza, estabilidade e brilho histórico – extraíram essa singular fórmula da América para os Americanos! O que significa (se eu não interpreto mal o sentimento que inspirou a fórmula) que a América, sendo uma obra exclusiva da raça americana, só pertence à raça americana, e só pela raça americana pode ser explorada e gozada.

Ora, dos dois termos que ela encerra logo um me parece fictício e não existente: porque se todos sabemos muito toleravelmente, aprovados no atlas, o que é e onde está a América, não se percebe tão facilmente o que seja e onde esteja a raça americana. Certamente existiu (e ainda existem dela restos dizimados e perseguidos) uma verdadeira raça americana, que todos os compêndios de etnologia escrevem, e que se compunha amontoadamente dos Tinehs, dos Algonquins, dos Iroqueses, dos Apalaches, dos Astecas, dos Incas, dos Caraíbas, dos Guaranis e de toda a gigantesca gente patagónia. Esses sem dúvida, ou fossem bascos, ou indígenas da África setentrional, ou homens do Extremo Oriente, ou tivessem ido através do submerso continente da Atlântida, ou tivessem subido pela Alta Sibéria e penetrado pelo estreito de Bering, esses eram os legítimos donos da América, cujos desertos povoaram e onde estabeleceram civilizações primitivas e originais, que iam desde a tribo caçadora até às cidades dos Astecas cheias de templos e de artes. Mas não é decerto para esses que os compatriotas do presidente Monroe reclamam o domínio e o gozo exclusivo da América – pois que esses (também por uma estranha aplicação da doutrina de Monroe) são perseguidos, exterminados, como animais que, pela sua própria animalidade, maculam o esplendor da civilização americana e ocupam no solo, com as suas pobres choças, um espaço que pertence ao civilizado e aos seus prédios de dezasseis andares. Fora desses, porém, hoje raros, tão raros que só constituem uma curiosidade etnológica e como que pertencem já ao bricabraque humano, eu, na América, só vejo uma raça, que é a europeia, nas grandes famílias em que a geografia e a história moderna a dividiu – os Saxónicos, os Germânicos, os Escandinavos, os Franceses, os Italianos, os Espanhóis, os Portugueses... Em todo o vasto continente americano não há uma cidade, um centro activo, onde exista, se possa descobrir um único americano. Em Nova Iorque, onde se agitam dois milhões de homens que são irlandeses, ou ingleses, ou escoceses, ou alemães, ou suecos, ou franceses, ou italianos, ou russos, ou espanhóis, ou portugueses, é fácil ainda encontrar chineses, japoneses, hindus, tártaros, persas, marroquinos, árabes do deserto, negros dos mais negros fundos de África: mas é impossível descortinar um homem, que, no puro sentido etnológico, seja um americano.

Para se ver este espécime venerável dos velhos senhores do solo é necessário empreender uma viagem, passar para além de Omaha, para além do território do Nebrasca, para além do país dos búfalos; e aí será possível, em torno a alguma estação do caminho de ferro do Pacífico, avistar um americano, cor de cobre, de longas guedelhas corredias, mirrado e embrutecido, que pede esmola e se coça por entre os farrapos da camisa e das pantalonas recebidas, pelo Natal, na grande distribuição, como esmola do alto pai, do grande chefe branco que está em Washington.

Ora, sendo estes realmente os únicos puros americanos, a grande máxima política tem de ser interpretada deste outro modo, mais coerente e mais franco: «A América pertence exclusivamente aos europeus que nasceram na América. E este o seu verídico sentido. E dele provém a doutrina ruidosa do nativismo.

Não há todavia nenhuma originalidade nesta doutrina do nativismo. Nem ela nasceu na América. Mais de dois mil anos certamente são passados desde que a China a concebeu e a praticou. O nativismo é, com efeito, um produto chinês, adoptado durante algum tempo pelo Japão, depois por ele abandonado como caduco e caturra, e agora posto, com grande alarido, em circulação pelos povos americanos.

Foi durante a dinastia dos Tsin e reinando o imperador Huang-Ti que apareceu na China e se apoderou dos espíritos este princípio novo do nativismo. Esse imperador Huang-Ti era um bandido, de ilimitado orgulho, ignorante e falso, que alterou toda a constituição política da China, delapidou as finanças, inventou uma religião grotesca em que confusamente entravam a humanidade e três espíritos que habitam numa ilha, cometeu o sacrilégio de reformar o calendário, perseguiu os poetas e os eruditos e queimou todos os livros sagrados da China. (O que prova que as ideias extravagantes nascem sobretudo nos tempos de anarquia e de decadência moral.)

Somente os Chineses puseram na aplicação deste princípio, imposto por um tirano fantasista, aquela coerência forte e rigor que sempre os caracteriza na prática das suas instituições. Desde que o escandaloso Huang-Ti e os seus mandarins (entre os quais dominava um certo Liseu, meio letrado e meio feiticeiro) conceberam a ideia de que o uso da China devia ser vedado a todos os que não fossem nativos – fecharam a China, fecharam materialmente toda a China do lado da terra com a Grande Muralha, e do lado do mar, nas embocaduras dos rios, com fortes correntes de bronze e hediondos dragões de madeira pintada. Depois, assim enclausurados na sua China como uma imensa e silenciosa cidadela, o mundo nunca mais soube deles e quase perdeu a noção da sua existência entre as gentes. De resto, durante os seguintes séculos, se, apesar de todas essas correntes e muralhas, algum estranho penetrava na China por motivos espirituais ou temporais, logo uma populaça nativista corria sobre ele com bambus e cutelos, e do intruso abominável só restava em breve uma massa roída e retalhada em cima de um charco de sangue. Os Japoneses, mais doces e de natureza céptica, nunca se abandonaram a estas ferocidades nativistas, e quando muito corriam o estrangeiro à pedrada, pelas ruas, até ao batel de que ele desembarcara. E na América, ainda mais doce e mais polida, o nativismo todo se limita a uns gritos nos jornais – e o intruso é meramente corrido a adjectivos. Assim, as ideias fortes, na sua costumada marcha de oriente para ocidente, se enervam e se amolecem.

Considerando, porém, com seriedade, e sem desejos de sorrir, esse curioso fenómeno do nativismo chinês, muito facilmente se lhe encontra justificação e até grandeza. Os Chineses não são somente os primitivos senhores da China, mas são os primitivos e únicos criadores da sua civilização, que é só deles, bem original e bem própria, sem mistura de ideia ou forma alheia. Foram eles, só eles, que tiraram da sua razão, do seu sentimento e da sua fantasia tudo o que temporalmente e espiritualmente constitui a China, a sua organização política, a sua religião, a sua moral, o seu direito, a sua agricultura, a sua indústria, a sua literatura, a sua arte, os seus cerimoniais, as suas armas, os seus trajes... Toda a China é absolutamente e unicamente de invenção chinesa. Não há ideia ou costume, nem mesmo uma pequena regra de etiqueta, nem mesmo uma ligeira forma de vaso, que fosse importada do mundo exterior, que para eles é bárbaro, e que fica para além da Grande Muralha e do mar Amarelo. E tão intensamente homogénea é esta civilização que qualquer ideia ou costume que chegue de fora e consiga cair nesse compacto fundo de costumes e de ideias não se funde, não penetra na circulação da vida ambiente: fica enquistada, no lugar onde pousou, como um caroço estéril, e em breve se mirra e se desfaz. E pelo mesmo motivo, para onde quer que emigre (agora que emigra) o Chinês instala uma pequena China, onde vive de uma existência só chinesa, tendo já ao lado um esquife chinês para que, apenas morto, o reconduzam dentro dele à grande China.

Dada pois esta absoluta originalidade e homogeneidade da sua civilização, o nativismo chinês é lógico e legítimo. O Chinês prova soberbamente que, para construir uma civilização completa, toda inteira, desde as bases da moral até ao feitio dos sapatos, e solidamente estável (a mais estável que conhece a história), não lhe foi necessário importar um único princípio, um único utensílio, uma única forma linear – e portanto muito justamente pensa que o homem alheio à China, o estrangeiro (que era um selvagem quando ele já exercia todas as artes) não tem direito a gozar e a partilhar os benefícios de uma obra que nada lhe custou, nem a ele nem aos seus, e para a qual não contribuiu com nenhum elemento fundamental nem mesmo com nenhum retoque que a embelezasse. Por outro lado, essa civilização, que só ele concebeu, tanta felicidade lhe dá (para o Chinês, como todos os moralistas e poetas afirmam, não há ventura mais certa na Terra do que nascer e ser chinês) que não pode admitir que o estrangeiro venha, com as suas ideias, e as suas crenças, e os seus métodos desmanchar a harmonia da sua ordem social, macular-lhe talvez a pureza, abalar-lhe talvez a solidez e comprometer portanto essa imensa felicidade que nela encontram há mais de quatro mil anos mais de quatrocentos milhões de homens. O sentimento dos Chineses realmente equivale ao que seria o nosso, na Europa, se os Amarelos viessem, com missionários, com empreiteiros, com letrados, com artífices, instar, fazer propaganda para que nós usássemos rabicho, habitássemos casas de bambu e papel e viajássemos em liteiras de machos, só lêssemos o livro dos Deveres Filiais e queimássemos cada manhã um rolo de cera perfumada em louvor de Confúcio. Como a Europa então soltaria o grito unânime e feroz de supremo nativismo: «Fora os Chineses!»

A Europa é para os Europeus! De resto, esse grito rancoroso já o brama sem cessar a Califórnia, contra os pobres celestiais que vêm trabalhar a S. Francisco, e sem que eles intrusivamente missionem as suas ideias ou os seus costumes (como nós fazemos na China), e só porque no meio da cidade branca, de raça saxónica irisada de espanhola, faz uma mancha irritante aquela colónia amarela, de cabaia e de rabicho, que cheira adocicadamente a ópio.

Mas se o nativismo chinês, fundado na originalidade e intransigência da sua civilização, é claramente compreensível – quem pode compreender o nativismo americano e a pretensão estranha de excluir a Europa do uso e gozo de uma América que a Europa fez, com o esforço do seu génio, e que todos os dias, incessantemente, continua fazendo como a sua obra mais querida. Todos os dias! Pois, como disse com fina profundidade um humorista inglês, o que a Inglaterra sobretudo exporta para os Estados Unidos é os próprios Estados Unidos. Com efeito, de cada porto da Europa, em cada paquete, vão Estados Unidos para os Estados Unidos (assim como vai Brasil para o Brasil) – vão os homens, e vão as ideias, e os obreiros, e vão os materiais com que se erguem civilizações. E cada semana, por cada paquete, a América recebe um bocado de si mesma, com que se vai robustecendo e com que se vai alargando. De norte a sul, não há em todo o continente americano (com excepção dos toucados de penas dos índios) um único princípio, um único costume, uma única forma que fosse originariamente inventada na América. Tudo foi aqui concebido por nós e por nós experimentado num prodigioso labor de séculos. Os Chineses criaram a sua religião, o seu direito, a sua moral, a sua filosofia, a sua arquitectura, o seu alfabeto. Mas a arquitectura, a moral, os códigos, os dogmas usados na América, todas as instituições fundamentais da sua sociedade, são a obra magnífica de alguns europeus que nunca conheceram a América. As línguas em que a América proclama os princípios do seu nativismo foram pela Europa inventadas e polidas. A própria tinta com que imprimem os jornais em que nos acusam de intrusos fomos nós que a imaginámos e remexemos. E se os Europeus nunca tivessem fabricado sapatos, – ainda as finas damas de Nova Iorque andavam descalças!

Os elementos primordiais desta civilização foram levados, é certo, para a América pelos primeiros europeus nas primeiras naus. Mas depois desses dias imprudentes de Colombo, de Cabral, de Magalhães, de Balboa, de Grijalva, quase quatrocentos anos são passados. Neste comprido espaço de história os Americanos, estabelecidos no seu continente, tendo fixado as divisões geográficas, tendo experimentado as terras aráveis, com o habitat e o pão seguros, bem poderiam ter desenvolvido esses elementos e completado uma civilização sua, própria, adaptada ao seu clima, à sua natureza, às necessidades novas das raças fundidas. Mas não! Essa América, que tanto se ufana de génio inventivo, nada inventou nestes últimos trezentos anos, que têm sido os mais fecundamente activos da humanidade. E fomos nós, aqui nesta esfalfada Europa, que, suando e gemendo, continuámos a espantosa tarefa da civilização, descobrindo as leis universais, criando as ciências naturais, construindo os sistemas de filosofia, apurando a beleza das artes, fundando indústrias, dando ao mundo a imprensa, a electricidade, o gás, o vapor, os teares, os telégrafos, milhões de livros, toda a sorte de ideias!... E desses benefícios inumeráveis recebidos pelas naus da carreira, logo a boa América se utilizava e gozava, conspirando já, surdamente, contra a nossa supremacia. O motivo que ela invocava para esta sua soturna abstenção na obra humana do progresso era que o génio estava sufocado sob a dureza do regime colonial. Vieram as independências, findaram os regimes coloniais – e a América continuou unicamente a viver à custa intelectual da Europa. Em mais de um século de independência, esses próprios Estados Unidos, que se proclamam o povo iniciador da América, não têm con-corrido para a obra da civilização do mundo com uma ideia nova, nem com uma forma nova. Quando muito, fazem aplicações subalternas e complicadas dos nossos princípios originais. A sua única invenção é talvez o telefone – que, se não fosse emendado e refundido pelos mecânicos ingleses, ainda hoje permaneceria um aparelho grotesco e radicalmente inútil.

Ora, é esta América, a quem a Europa forneceu todos os elementos essenciais para ela existir socialmente, e politicamente, e intelectualmente, e industrialmente, que agora grita à Europa com soberano desplante: «Fora deste continente, que é nosso e que nós fizemos! A América é exclusivamente para os Americanos! Nós não queremos cá nem a vossa influência, nem a vossa actividade, nem quase a vossa presença!» É grave. E há aqui certamente uma escandalosa ingratidão. Porque, se Europeus e Americanos definitivamente se desquitassem e cada um recolhesse aquilo que é obra lenta do seu génio, os Americanos ficariam subitamente sem religião, sem leis, sem moral, sem ciência, sem artes, sem indústrias, sem costumes, sem tudo o que constitui a vida superior de um povo, e seriam apenas uns selvagens louros, uns «peles-brancas», absolutamente iguais aos peles-vermelhas que eles consideram uma mancha na civilização do continente e que por isso perseguem a tiro, como os ursos e como os búfalos.

Não! Só é legitimamente admissível o nativismo num povo que, como o Chinês, tenha originalmente concebido e realizado a sua civilização e que não quer portanto que o estrangeiro, introduzindo nela princípios e formas heterogéneos, lhes desmanche a beleza e a utilidade. Uma Muralha da China é então uma construção perfeitamente racional. Um tal povo já soberbamente provou que a si próprio se basta e se completa, e que, na ordem espiritual e na ordem material, é independente de todos, não sendo, pela força experimentada das suas instituições, inferior a nenhum.

O seu nativismo representa então a justa e necessária defesa dessas instituições, onde encontrou felicidade e estabilidade. Mas entre povos de civilizações idênticas, e dos quais um, o nativista, tudo recebeu do outro, desde os dogmas até às ferramentas, o nativismo é simplesmente o medo egoísta da concorrência. E de que pode provir esse medo? Unicamente do sentimento da própria inferioridade.

E eis aí porque eu não compreendo o nativismo em povos tão orgulhosos como os povos americanos – pois que dele resulta meramente que o homem da América se declara em altos brados, e ante o mundo, inferior ao homem da Europa.

O que significa realmente o Americano proclamando nos seus jornais ou nos seus parlamentos que aquele seu bocado da América é só para ele e que não quer lá, nem a influência, nem a actividade, nem mesmo a presença do Europeu? Significa no fundo simplesmente esta confissão bem humilhante: «Eu sou indolente, o Europeu é laborioso; eu sou obtuso, o Europeu é inteligente; eu sou fraco, o Europeu é forte... Se o Europeu aqui entra, eu, na luta e concorrência da vida, sou indubitavelmente vencido! Portanto ergamos contra o Europeu uma grande muralha, à boa moda da velha China! Oh, Americano, meu valente, como podes tu, sem corar, fazer uma confissão de fraqueza? E depois considera que se tu próprio te declaras inferior ao Europeu em actividade, inte-ligência e força – implicitamente reconheces que o Europeu, possuindo qualidades superiores às tuas, poderá muito melhor que tu explorar, valorizar, civilizar, para bem geral da humanidade, esse pedaço de América de que tu és o dono geográfico. Os interesses superiores da humanidade reclamariam, portanto, que esse bocado de terra te fosse expropriado, e que outros (que tu próprio reconheces como mais fortes e mais hábeis) fossem aí criar a obra de civilização, que tu, com as mãos contritas sobre o peito, te confessas impotente para fundar.

E se insistisses na tua muralha, não deverias estranhar que os outros a atacassem em nome desses altos interesses humanos, e fundados nas confissões de inferioridade intelectual e física – que tu fizeste, tão transparentemente, quando pregavas o teu nativismo com um ímpeto que era todo feito de abdicação!

Nativismo! Quem pode conceber a Inglaterra, ou a França, ou a Alemanha, ou nações onde haja um pensamento e um braço, pregando o nativismo, e regateando a qualquer homem o direito de vir para o meio delas labutar na obra humana? De resto não existem, na realidade, povos nativistas. O que existe em cada povo é um certo número de nativos que, por falta de qualidades activas, destras e rijas, sucumbem e murcham naquelas mesmas carreiras em que outros, que não são nativos, prosperam e florescem.

É o lojista que tem de fechar a loja deserta, enquanto ao lado o lojista estrangeiro alarga a sua, onde a multidão se apinha. É o escritor que vê os livros estrangeiros vendidos, discutidos, envolvidos na vida intelectual, enquanto os seus ao fundo dos armazéns apodrecem, no silêncio, na escuridão e no pó das obras mortas. É o arquitecto a que nem o Estado, nem os particulares confiaram a construção de um muro de quintal, e que assiste aos triunfos do arquitecto estrangeiro, encarregado de cobrir a cidade de casas e monumentos. E o médico sem doentes que por trás dos vidros, roendo som-briamente as unhas, conta a longa fila de clientes que enfia para dentro da porta do seu vizinho, o especialista estrangeiro. É sobretudo o homem das profissões liberais, ávido de publicidade, de posição, de influência, que permanece na obscuridade, no abandono, ao passo que o estrangeiro é acolhido, reclamado, festejado. Estes são os verdadeiros nativistas – os que falharam em face do estrangeiro que acertou. A ilusão e a vaidade nunca lhes consentiriam reconhecer que a sua derrota proveio da sua insuficiência – e é como consolação interior, e mesmo como desculpa publica, que eles se consideram e se proclamam vítimas de uma vasta calamidade social, a invasão das raças estrangeiras, que alastra, tudo atravanca, se impõe pela brutalidade do número e pela parcialidade do privilégio, e tiram ao pobre nativo esmagado a parte que lhe competia do pão e do solo natal. A identidade do descontentamento faz que todos estes descontentes se juntem, mutuamente desabafem, e se exaltem, e findem por organizar uma seita que vá pregando a salvadora ideia nativista. E na maior parte dos casos não é com a esperança que essa ideia triunfe, pois que eles sentem bem quanto ela é socialmente intriunfável, mas apenas com o intuito, em parte ingénuo e em parte astuto, de encontrarem no exercício dessa estranha profissão de nativista os proventos, a influência fácil e a posição que não souberam granjear nas outras profissões em que a sua mediocridade foi factor da sua derrota. E esse intuito frequentemente o logram – porque tão profunda é a credulidade emotiva das multidões que não há bandeira nova, por mais frágil, com um mote novo por mais irracional, que, bem desfraldada na rua, não reúna e levante uma legião. E durante esse curto momento, um bom nativista saboreia as glórias de um chefe, de um messias. Mas também tão rápida é a reacção do bom senso nas multidões educadas que, reconhecida a fragilidade da bandeira e a irracionalidade do mote, a legião que se formava ao começo da rua fica reduzida, antes mesmo que se desemboque na praça, a alguns arruaceiros e a alguns simplórios.

É esse o desagradável momento para o nativista – porque então se descobre que aquilo que se julgara ser o movimento forte de uma nação era apenas o despeito, ou a manha, ou a ilusão de alguns falhados.

Por isso nunca me inquietei quando, lá um ano, tanto se falava na agitação nativista do Brasil. O Brasil nativista! Porquê?

É possível que aí, como em toda a parte, haja um outro ladino que visse no exercício do nativismo uma profissão fácil, sem habilitações obrigatórias, sem horas presas, altamente rendosa e mesmo divertida. (Não se tomou hoje em França o anti-semitismo uma carreira soberba que leva a celebridade e à fortuna?) E provável também que, sobretudo no Rio, onde a concorrência já é áspera, alguns derrotados da vida atribuam candidamente a sua derrota, não à própria inabilidade e fraqueza, mas à força esmagadora de um fenómeno social, ao número invasor das raças alheias. E é quase certo ainda que muitos moços, com a ingenuidade um pouco tumultuosa que é própria da nossa raça, confundindo nativismo com nacionalismo, tivessem concebido o sonho de um Brasil só brasileiro. Estas ideias e interesses, tendo um fundo idêntico de negação, sem dúvida se juntariam, atravancariam a rua com o seu bando e a sua bandeira, e por motivo daquela excitação contagiosa, que tanto prejudica as sociedades meridionais, encontrariam apoio, por um momento, entre multidões crédulas e com os nervos ainda abalados por uma dura guerra civil. Mas essa influência do nativismo só podia ser (como foi, creio eu) muito transitória, no meio de uma nação tão amorável, tão generosa, tão hospitaleira, tão europeia e de tão vasta fraternidade como é o Brasil, para sua grande honra entre as nações.

As repúblicas semimortas da América Central, uma Guatemala, uma Nicarágua, um Equador, são nativistas com paixão, e o seu nativismo é compreensível – porque nelas não só abundam os homens falhados, mas elas próprias são países falhados.

Começaram a sua carreira de nacionalidades sem para isso terem habilitações ou capitais, e em breve caíram em tal desordem civil e em tal miséria moral que toda a inteligência, toda a actividade, toda a força gradualmente se lhes sumiram, e hoje qualquer aventureiro que lá entre, sendo um pouco esperto e um pouco vidente, se pode tornar num instante o seu explorador e mesmo seu dono. Mas o Brasil, esse, nativista! Como poderia ser?

O nativismo na América espanhola é sempre sentimento invejoso de mulato que tem alma mulata e que falhou. Ora, o Brasil é branco, de alma branca – e está, como nação, em pleno e vivo êxito (apesar destes anos de atrapalhação política, que vem não da falta de ideias, mas da falta de pessoal, junta a um individualismo exagerado que produz indisciplina). E nem pode deixar de estar em êxito, sendo como é um povo superiormente inteligente, provadamente activo e escandalosamente rico. Com tais qualidades, que inveja pode ele ter do estrangeiro e que medo da sua concorrência? E não tem, como soberbamente o prova cada dia com a sua magnífica franqueza hospitaleira; porque a hospitalidade não é somente um sinal de doçura, é sobretudo um sinal de força.

E aqui está como, levado pela tagarelice godo-latina, eu me deixei da doutrina de Monroe, para divagar através do nativismo, seu filho bastardo e petulante.

De resto, agora que ela foi bem definida num relatório parlamentar ao Senado, em Washington, essa boa doutrina interessa menos os estados da Europa do que as nações do continente americano – porque desde hoje ela já não constitui uma defesa contra a preponderância da Europa na livre América, mas estabelece um verdadeiro princípio de agressão contra a autonomia das repúblicas américo-latinas. Em virtude da antiga doutrina, tal como ela era pregada ainda há pouco pelos patriotas de Washington, os Estados Unidos pretendiam que nenhuma nação europeia pudesse, pela força e pela conquista, adquirir um pedaço qualquer do continente americano, onde fossem estabelecer os seus métodos vetustos de política e de administração.

Agora, porém, os patriotas de Washington decretam que nenhuma nação do continente americano poderá ceder, trocar ou vender a uma nação da Europa uma parcela, mesmo mínima, do seu território, sem o consentimento dos Estados Unidos, que nunca o darão, para evitar que se formem sobre o limpo solo da América focos de infecção europeia! Ora o direito de proprietário inclui necessariamente o direito de ceder, trocar, doar, vender, a totalidade ou uma parte da sua propriedade. E este um princípio que está em todos os códigos dos civilizados e mesmo em todo o direito costumário dos selvagens. Desde que se contesta ao possuidor o direito de dispor da coisa possuída, implicitamente se lhe contesta a plenitude directa da propriedade. Proprietário directo e pleno é aquele que, usufruindo a terra, tem simultaneamente o direito de a alienar. Aquele que habita a terra, e a cultiva, e vive dos frutos dela, mas não tem a faculdade de alienar nem uma árvore nem uma pedra é usufrutuário. não senhorio. Se alguém, vindo de longe, lhe propõe a compra dessa pedra ou dessa árvore, o usufrutuário nada pode resolver sem tirar respeitosamente o seu chapéu e implorar a permissão do senhorio. Ora, os Estados Unidos pretendem, por uma votação do Congresso, determinar que os povos do continente americano são meramente usufrutuários dos territórios que habitam, pois que só têm direito de os fruir, não de os alienar sem consentimento – e conjuntamente, pela mesma votação, eles se declaram senhorios directos de todo o continente, pois que só a eles pertencerá dar ou negar esse consentimento. E uma portentosa conquista, tão portentosa e fácil que quase parece cómica. Uma tarde, de repente, no fim de uma sessão do Congresso, o ianque surge como o dono de toda a América. Em torno já não haveria senão nações usufrutuárias. O povo brasileiro pensa possuir o Brasil? O Brasil todo, desde o rio Parima até ao rio Paraná, é do ianque. Ao povo brasileiro só pertence habitar o solo, plantar nele zelosamente o seu café e estar quieto. Mas se um dia tiver a livre ideia de vender ao Inglês ou ao Turco três metros de areal ou de senão terá de ir, com a fronte baixa, implorar a licença do ianque, que lha recusará, rispidamente, com um vasto gesto senhorial...

E ainda há aqui moderação da parte dos Estados Unidos – porque poderiam, em vez de declarar os povos da América simples usufrutuários, decretar que eles seriam, a partir deste ano de 1896, meros rendeiros, devendo pagar-lhes cada semestre a renda dos territórios fruídos, sob pena de expulsão. Os Franceses dizem, com a sua usual razão e finura, que quand on prend du galon on n’en saurait trop prendre. Se os Estados Unidos estão em veia forte de arrebatar propriedade, porque a não arrebatam toda e completa com os deleitáveis benefícios da renda? Seria isso um grandioso domínio à velha moda oriental. Só povos tributários em toda a América e lá no alto o ianque, grão-senhor! E todos os anos, então, subiriam do Sul e do Centro lentas filas de emissários, uns sobraçando velhas carteiras ajoujadas de papel (à falta de ouro), outros carregando fardos cheios de cacau ou de café, e todos a caminho de Washington, a depor o tributo nos degraus do Capitólio, aos pés do presidente dos Estados Unidos, o presidente dos presidentes, dono supremo dos homens, como o velho Xerxes. Esse espectáculo deleitaria o coração de todos aqueles para quem a grande fraternidade democrática da América é a mais divertida de todas as pilhérias sociais deste século.

Na minha aldeia, no Norte de Portugal, se um lavrador que durante anos amanhou uma terra recebe bruscamente de um cavalheiro seu vizinho a intimação de que essa leira de vinho e pão lhe pertence por posse directa, como antigo senhorio – começa por coçar a cabeça e comer nessa noite, à lareira, o seu caldo com mais lentidão e silêncio. De manhã, ao primeiro sol, enverga a jaqueta e vai ao letrado, a quem escuta pensativamente e paga cinco tostões. Depois volta ao lugar e pede, de chapéu na mão, ao cavalheiro as suas provas, os seus papéis. O cavalheiro não tem provas – tem só a sua arrogância, o seu palacete, os seus criados de estrebaria e monte, a sua influência na freguesia. E quer a terra! Então o lavrador volta ao canto da lareira e agarra no cajado. E nessa tarde há, junto de qualquer sebe onde se enrosca e rescende a madressilva, um cavalheiro com uma clavícula e três costelas absolutamente partidas. E assim na minha pequenina aldeia. Não sei como é nessa imensa América.

 

 

O INVERNO EM PARIS

 

Este Inverno em Paris, reuniu todas as condições para ser esplendidamente elegante e alegre.

Teve dezasseis graus abaixo de zero, a neve endurecida e branqueando o Bosque de Bolonha, todos os lagos gelados e um sol claro e fino num céu de tons delicados.

Há dez anos, mesmo sob a república (que por profissão se deve sempre mostrar modesta e austera), tais belezas invernais excitariam de modo sobreagudo esse famoso amor do prazer que todos os moralistas afirmam ser o motor natural do carácter francês. Assim como o Verão atrai os homens para as simplicidades e verdades da Natureza – o Inverno por toda a parte incita aos requintes da sociabilidade: mas principalmente em Paris, onde o frio e a neve foram sempre os principais criadores dessa actividade mundana que tantas formas interessantes reveste, abrangendo, já na ordem intelectual, já na ordem física, uma infinidade de exercícios e de emoções, desde a patinagem até ao neo-evangelismo. Actividade absolutamente incongénere com o Verão, o pó, o sol rutilante, e as árvores todas cheias de folhas e pássaros. A própria produção das ideias necessita o Inverno, o conchego pensativo dos fogões acesos e céus velados, árvores despidas, uma Natureza sem brilho que não distraia das contemplações abstractas. Nunca se concebeu um poema, ou uma grande e nova teoria científica, em Maio ou Julho, quando os prados estão em flor, e as águas murmurantes, as densas e frescas sombras despertam irresistivelmente no homem os velhos instintos adâmicos da ociosidade divina.

Mas é necessário também que o Inverno, para ser fecundo, se conserve luminoso, seco, vivo, fino, crespo, com aquela ligeireza de ar, abundante em oxigénio que tão bem excita e tonifica a vitalidade nervosa. Inverno morrinhento, pardo, mole, morno, grosso, é inteiramente hostil às alegrias da sociabilidade, às invenções do espírito, a toda a espécie de actividade quer ele se traduza por bailes, quer por livros. Mas é sobretudo desfavorável ao brilho faustoso de uma cidade mundana – porque inteiramente adormenta e debilita toda a energia festiva. Ora em Paris, este Inverno foi favo-ravelmente seco, assoalhado, bem gelado, vivificante e excitante – e todavia foi triste. Nem festas, nem pompas, nem a tradicional representação das classes patrícias, nem o luxo casual e exuberante que transborda para as ruas, nem sequer aquele movimento de uma cintilação, um pouco febril, que, no simples e vivo cruzar das carruagens, na mera animação de um olhar que passa e sorri, prova quanto uma sociedade se está divertindo com segurança e com vigor. Pelo contrário! Paris teve neste Inverno um ar parado e pensativo. Reparando bem, existia mesmo um estranho constrangimento e mal-estar moral. Ninguém parecia disposto ao prazer – ou havia em todos como um receio, um escrúpulo de se abandonarem ao prazer ruidosamente e despreocupadamente. E claro que Paris, meus amigos, não se tornou de repente um mortificado convento de trapistas. Ainda se dança, ainda se abrem garrafas de champanhe, ainda se encomendam nas modistas vestidos de três mil francos. Mas não houve, não há já aquele viver ardente e livre, e a elegância petulante, e a jovial audácia no prazer, e a estonteada acumulação de festas, que eram a glória mundana destes invernos de Paris, quando Deus os dotava de toda a sua beleza invernal. E porquê?... Por um motivo que não é só parisiense, mas europeu, e que seria grandemente honroso se nele entrasse apenas a generosidade, e não entrasse também muito egoísmo, e algum medo.

É só delicado pudor, generosidade de quem não quer, mostrando a riqueza própria, tornar mais pungente nos miseráveis o sentimento da sua miséria? Não, decerto. É também medo. É o medo crescente que os ricos têm dos pobres - desde que os pobres são uma irresistível força, que se une. se disciplina, se concentra, se prepara, Não se mostra hoje o luxo, sobretudo para que ele não irrite mais a indigência. Todo o milionário se sente ameaçado, e evita prudentemente estender, como outrora, os seus milhões ao sol. É que outrora o Estado por meio da sua polícia, do exército, de todos os instrumentos de governo, defendeu sempre o milionário e o seu milhão. Ainda o defendeu, ou seja monarquia ou seja a república, porque tem ainda a sua base nas classes médias, possuidoras da riqueza. Mas hoje já se considera provável, talvez próxima, uma outra organização social em que o Estado tenha por base as grandes massas proletárias, e, em lugar de consolidar, desmanche o poder do capitalismo. Quem diria, há dez anos, que nas ruas de Paris, duzentas mil pessoas gritariam como gritaram no dia em que Drumont, amnistiado, voltou de Bruxelas: - «Abaixo Rothschild» ? Grito estranho, que revela o advento de um mundo novo. Por isso Rothschild (e tomo aqui Rothschild como um símbolo capitalista) se retrai, se esbate, elimina em si, em torno de si, tudo o que muito brilhantemente mostre e prove o seu rothschildismo.

É a antiga história da aristocracia, escondendo nos armários as fardas douradas dos lacaios, raspando nas portinholas dos coches os brasões muito vistosos. Por seu turno a plutocracia se faz toda modesta e simples. Nem estrondo de festas, nem luxo que cintile ao longe. Tudo muito discreto, muito disfarçado, As cortinas das janelas bem corridas para que se não aviste de fora a luz dos lustres. Só três ou quatro amigos a jantar, com um champanhe tímido, E quando se dança é por subscrição, em benefício de algum asilo ou creches, para que até o prazer pareça estar ao serviço do sofrimento.

Paris, o Paris rico não se diverte com tão brilhante despreocupação porque não há em roda dele, em frente dele, um outro grande Paris, o Paris pobre que o entristece e que o intimida. Esse Paris miserável é muito velho – e nunca impedira até há pouco, nem impusera reservas ao esplendor ruidoso do Paris opulento. O que é novo, o que vem datando destes anos recentes, é o sentimento que ele inspira, um sentimento atento e inquieto, misturado de ternura e de terror. Apesar de o Evangelho ser tão antigo, e de haver em todas as revoluções feitas por Paris um fundo de instintos evangélicos ao lado das reivindicações políticas, o pobre, tão recomendado pelo Evangelho, foi sempre para o parisiense de prazer e de luxo um ser pouco interessante, quase importuno, que maculava a magnificência harmónica da cidade, que podia ser casualmente socorrido, mas que devia ser sobretudo vigiado e reprimido. Nunca até há pouco a ideia de que em Paris se morre de fome e de frio atormentara o coração parisiense. A miséria era mesmo considerada como uma exageração oratória dos tribunos revolucionários. No meio de uma civilização tão produtiva, como poderia faltar trabalho, e portanto pão, ao homem laborioso e decidido? Os desgraçados, se existiam tal como os pintava pateticamente a literatura humanitarista, só à sua indolência e instintos de vício deviam certamente a sua desgraça.

Assim pensavam os ricos – o que não impedia que exercessem uma certa caridade desde que ela era motivo de bazares elegantes ou de cotillons patrocinados por duquesas.

De resto lá estava o Estado que se encarregava dos pobres – ou para os socorrer, por meio da assistência pública, enquanto eles se mantinham submissos, para os reprimir por meio da polícia, quando uma exagerada noção dos seus direitos à vida e à igualdade os tornava turbulentos.

Este modo de sentir, em que havia mais leviandade do que dureza, tem sido, nestes últimos anos, inteiramente modificado, louvado seja Deus e louvado seja Paris. Muitas causas determinaram esta evolução, que é uma considerável revolução moral. Mas a principal é que o pobre saiu do seu obscuro e silencioso opróbrio, apareceu como classe, revelou a sua força e falou. Apesar de todas as revoluções, o pobre, em França, permanecera sempre, de facto, calado. Ainda em 1848, durante um período aliás repassado de humanitarismo sentimental, se gritava na Assembleia Nacional e com aplauso de todas as classes: «Silêncio ao pobre!» O pobre era um mudo, que passava isoladamente na sombra e de olhos baixos. De vez em quando, furioso, roubava uma espingarda e assaltava a sociedade. O exército acudia, sufocava a escandalosa revolta. A sociedade respirava, e continuava o jantar interrompido, declarando com indignação que o pobre era uma fera. E o pobre, como uma fera, recolhia silenciosamente ao seu covil.

O seu primeiro triunfo foi quando, em vez de se revoltar, se começou a explicar, tranquilamente, como um ser sensato e cheio de justiça. Esta voz nova, triste e profunda, impressionou, foi escutada.

O rico só desde então verdadeiramente conheceu o pobre – começou a saber o que é ser pobre. As duas classes viviam totalmente separadas, uma no seu escuro inferno, outra no seu vistoso paraíso – e os paletós, bem acolchoados, só tinham uma noção muito vaga de que havia farrapos, por os avistar de longe, na rua e na penumbra. Em Londres, há dez ou doze anos, foi uma tremenda surpresa quando, por ordem do parlamento, se fez um demorado inquérito aos slums, os bairros indizivelmente miseráveis, onde vive, ou antes, onde lentamente morre a mais desgraçada, faminta e lúgubre populaça de toda a Europa. O quê!

Havia pois famílias que andam quase nuas, e dormem durante os mais duros invernos na terra húmida, e comem apenas as hortaliças podres que são apanhadas à noitinha no lixo e nos enxurros, à roda dos mercados. A gente que tem uma conta larga no alfaiate, e é muito difícil na escolha do seu champanhe, não podia acreditar que na rica Londres do século XIX houvesse tais vergonhas públicas. E o sentimento geral, mesmo entre os mais duros, foi que misérias tão dolorosas se não deviam permitir numa terra cristã.

O mesmo espanto se tem dado em Paris, e com a mesma revolta da consciência perante a revelação real e minuciosa das misérias do proletariado, que é uma das dores do socialismo, e a mais fecunda, a mais prática, porque opera sobre o sentimento. É desde então que grandes forças sociais como são a Igreja, a literatura, a arte começaram a preocupar-se com o pobre, a compreender amoravelmente a justiça e o amor que se lhe deve, e a espalhar nas almas, cada uma pelo meio que lhe é próprio, a salutar lição, não só da bondade activa e militante, mas do renunciamento, de um verdadeiro renunciamento social, em que os ricos se despojem para que chegue a todos um pouco do pão da terra. E digo a Igreja também, porque também ela andava esquecida dos pobres, apesar de ser a sua mãe natural. Todos tínhamos, com efeito, esquecido o pobre, nesta grande ilusão e deslumbramento do progresso material que nos absorveu e obcecou setenta anos. Enganados pela ciência, embrulhados nas subtilezas balofas da economia política, maravilhados como crianças pelas habilidades da mecânica, durante setenta anos construímos freneticamente vapores, caminhos de ferro, máquinas, fá-bricas, telégrafos, uma imensa ferramentagem, imaginando que por ela realizaríamos a felicidade definitiva dos homens e mal antevendo que aos nossos pés, e por motivo mesmo dessa nova civilização utilitária, se estava criando uma massa imensa de miséria humana, e que, com cada pedaço de ferro que fundíamos e capitalizávamos, íamos criar mais um pobre! No fim destes setenta anos de martelar e de forjar, havia com efeito alguns sujeitos muito gordos e muito ricos – mas havia uma multidão de famintos, mais faminta e maior que nenhuma que o mundo vira desde o velho patriciado romano.

Foi esta multidão, setenta anos muda e trabalhando, que por fim, sem cessar de trabalhar, falou; contou o seu opróbrio, pediu justiça. E como a alma humana não é pior nem melhor que no tempo de Jesus, contemporâneo de Tibério, a dolorosa voz entrou nela, e trá-la desde então entristecida e inclinada ao amor.

Não, já não há hoje, sobretudo nas civilizações muito intelectuais, aquele duro e soberbo egoísmo que tornava os felizes tão alheios aos desgraçados e às causas da sua desgraça! lodo o homem digno desse nome se sente hoje solidário com os homens todos e não separa inteiramente o seu bem-estar do bem-estar universal. Já o desconforto do nosso vizinho nos impede de gozar, com um gozo pleno e sem mistura, o nosso próprio conforto. E quando sejam ainda raros os que empregam toda a sua energia em melhorar a sorte dos que não têm sorte, são inumeráveis já aqueles que dão ao seu semelhante desvalido um pensamento constante de piedade e simpatia. É ainda uma fraternidade platónica, passada nas regiões do coração: mas que progresso enorme, desde o tempo em que essa ideia de fraternidade não saía das regras frias da razão filosófica! Que um homem hoje se não possa sentar diante da sua mesa farta sem pensar, com fugitiva melancolia, nos que têm fome, e que não estenda à noite os pés para o lume do seu fogão, ouvindo fora silvar o nordeste gelado, sem ter um momento de piedade pelos que estão sofrendo frio – são fortes evidências estas de uma alta revolução moral. E são estados de alma muito novos.

Sempre existiu a piedade pelos que sofrem – mas era a piedade pelo indivíduo isolado, e que os nossos olhos testemunhavam e palpavam o sofrimento. Sempre o pobre que batia à porta, mostrando a sua magreza, os seus farrapos, a sua chaga mal lavada, excitou as compaixões momentâneas, levou no saco a sua esmola. Esta grande emoção, porém, que se sente hoje pelo colectivo de vastas classes proletárias, este desejo de lhes garantir um alívio durável, este esforço humanitário que trabalha e conspira para nivelar as fortes desigualdades económicas – são produtos morais deste tempo, e a sua obra mais difícil e mais honrosa.

Ora esta preocupação nova das almas influi necessariamente nos costumes. O homem, quando sensibilizado, põe logo nos seus menores modos de ver uma certa reserva e gravidade pensativa. E toda a nossa Europa ocidental anda profundamente sensibilizada. Um tépido bafo de espiritualismo e de amor humano, vindo de horizontes ainda desconhecidos, amacia e aquece os corações. Neste estado de sentimentalidade afectiva, a inteligência, que se torna sempre mais recta quando o sentimento a inspira, facilmente reconhece a injustiça afrontosa das desigualdades sociais. E assim existem já hoje ricos que consideram quase injusto o excesso da sua riqueza. Ainda decerto não atingiram (nem atingirão talvez jamais) aquela perfeita elevação evangélica que levava os santos a partilhar com os famintos, com os regelados, a metade do seu pão e da sua capa. Mas onde evidentemente já chegaram é a um certo escrúpulo moral de tornar muito patente o escândalo da sua fortuna e de ofuscar a indigência com a publicação da sua abundância. Desde que tanta gente morre positivamente de fome, e que toda uma legião de profetas clama contra uma sociedade em que tal morte é possível, há naturalmente da parte dos ricos uma grande timidez em abrir as suas janelas e revelar a fortuna ostentosa da sua mesa. A nova corrente de ideias criou esta coisa estranha – a riqueza envergonhada. O milionário, por pudor, esconde os seus milhões. Assim como nos primeiros tempos da grande revolução, e ainda mesmo depois em 1830, muitos fidalgos ocultavam os seus títulos, se proclamavam plebeus, se gabavam de ter por suas mãos cavado a terra ou manejado o martelo, os ricaços de agora afectam uma estreita mediocridade de fortuna, e disfarçam pudicamente o seu ouro. Ninguém ousa fazer tilintar a sua bolsa cheia. E como as festas, os bailes, os jantares são a mais natural manifestação da riqueza, numa cidade tão activamente social como a de Paris, todo esse movimento sumptuoso se acalma, se esconde, desaparece lentamente, insensivelmente. Há como um receio delicado de ofender o pobre. Todos sentem que o dinheiro dissipado no luxo deveria antes ser empregado na caridade – e não se celebram festas de riqueza, por isso mesmo que elas parecem roubos feitas à pobreza. Realmente com que coragem se pode dar um rico jantar, cujo luxo e flores e requintes serão contados na mesma página do jornal em que virá a história angustiosa de velhos ou de crianças encontrados nas suas trapeiras, entre farrapos, mortos de fome, de pura fome? Outrora a neve, a neve dura sob um sol resplandecente, era em Paris o motivo de um luxo especial de Inverno, que ia até aos trenós dourados sulcando as avenidas do Bois... Mas quem se atreve a todas estas ostentações hoje, quando os jornais radicais (e muito justamente radicais) contam cada dia que criancinhas sem abrigo, sem um tição que as aqueça, sem uma côdea que as reconforte, morrem, transidas de frio, sob as pontes de Paris?

Cada fogão aceso quase que faz mancha, numa cidade onde tantos milhares de criaturas não têm um sou para comprar uma acha.

E se ninguém ainda, por este sentimento, se priva de acender o seu fogão – muitos fecham as janelas para que o brilho do lume rico não seja visto de fora por aqueles que erram, com escassos farrapos, por entre neblinas geladas.

E eis aí por que o Inverno foi tão triste em Paris. A cidade das graças e dos risos apaga o antigo fulgor do seu riso, e esconde a vivacidade da sua graça um pouco por deferência, muito por medo daquela outra cidade que está em torno, mostrando como uma acusação permanente a sua face esfaimada, onde os risos são raros, e quando vêm são amargos. E quase às escondidas, de portas bem calefetadas, que Paris se diverte. E este constrangimento espalha sobre os seus próprios divertimentos uma indefinida sombra de tédio – porque, como diz um dos mais velhos e mais sinceros provérbios de França, e em que o povo francês se pintou todo – où il y a de la gène il n’y a plus de plaisir. Assim um dos primeiros e inesperados resultados do momento socialista é a austeridade de Paris, o seu renunciamento forçado ao prazer vistoso e franco. A festiva cidade está passando por aquela crise de gravidade sorumbática que Londres atravessou no tempo de Cromwell e dos puritanos, quando era quase um crime de Estado cantar uma canção numa taberna, ou apertar o gibão com um laço de cores garridas.

Crise perigosa, porque a deusa da Alegria, como a deusa da Fortuna, raras vezes volta aos sítios donde foi expulsa por motivos de doutrina. A Inglaterra, que até Cromwell era tão cheia de festivais e folganças que se chamava Merry England, a jovial Inglaterra, passou a ser a terra clássica da insipidez. Debalde a monarquia foi restaurada, e os puritanos desapareceram com as suas longas capas negras, o seu rancor a toda a graça e todo o riso – o puritanismo ficou pesando sobre a pobre Inglaterra, como uma grande sombra de jazigo. As almas tinham tomado resignadamente o hábito da sensaboria, e já vegetavam nela como num escuro elemento natural. Só agora, depois de quase três séculos, é que, por esforço lento do velho temperamento saxónico, ela começa a emergir dos cinzentos véus puritanos, e a retomar um pouco do lustre, da espontaneidade jucunda, da ligeireza galante do tempo em que era a Merry England, a jovial Inglaterra.

Quem sabe também se a França não está rindo em surdina os seus últimos risos – e se, com o advento do quarto estado, com o triunfo social do proletariado, ela se não tornará, por seu turno, a pátria clássica da melancolia! Com efeito uma velha profecia do monge de Orval anuncia que, aí por 1897 ou 1898, Paris deixará de rir. O terrível monge, que viveu no século XV, previu Luís Filipe, profetizou a guerra de 70. E esta nova ameaça, o fim do riso de Paris, bem se pode também realizar: porque já aquele riso que tem sido, desde o século XVIII, a sedução da Europa, se produz com esforço em lábios que estão pálidos e começam a murchar.

Que aproveitem pois este resto de alegria, e corram depressa antes que ela se extinga, aqueles que vinham a Paris, sobretudo com o fim profano de serem os hóspedes acariciados e deliciosamente acolhidos dos jogos, das graças e dos risos.

 

 

A PROPÓSITO DO TERMIDOR

 

Victorien Sardou, há cinco ou seis anos, escreveu (ou antes maquinou, porque este verbo melhor lhe compete) um drama intitulado Termidor, que foi representado uma vez na Comédie Française e imediatamente proibido pelo Governo como funesto para a república e para a liberdade. Termidor, com efeito, ressuscitava uma época essencialmente antilivre e anti-republicana, pois que durante ela se desenrolou o reinado do Terror e a sangrenta tirania de Robespierre.

Mas, coisa democraticamente divertida, a peça de Sardou foi interdita, em nome da república e da liberdade, por isso mesmo que, através dela, em falas amargas e em episódios demonstrativos, se condenava o despotismo. A razão aduzida pelo Governo ou, antes, pela maioria das câmaras, que, sob o comando fogoso de Clemenceau (então omnipotente), votou a proibição de Termidor: porque todo o verdadeiro e leal republicano deve aceitar a Revolução Francesa em bloco. Nesse dia nasceu ou, pelo menos, foi cunhada em aforismo e penetrou na circulação banal a doutrina, hoje famosa, do bloco. Consiste ela em que o bom republicano, verdadeiramente útil à república, deve adoptar a Revolução Francesa em todo o seu conjunto, na sua absoluta totalidade, com todos os seus benefícios magníficos e todos os seus crimes bestiais, sem separar, sem escolher, sem sorrir a Camile Desmoulins, porque ele foi generoso e poético, sem repelir Marat, porque ele foi sórdido e sangrento, amando tudo, reverenciando tudo, os homens todos, as festas todas, os heróis e os canalhas, a abolição dos direitos feudais e as matanças de Setembro, como se essa revolução fosse na realidade um bloco, um bloco de metais fundidos, onde se não pudesse estremar o ouro puro do chumbo vil e onde o chumbo estivesse tão sumido no ouro que na realidade tudo parecesse e valesse ouro. E segundo esta dogmática doutrina, um governo republicano, mesmo reconhe-cendo a sós com o seu penacho que Robespierre foi vagamente ridículo como papa (papa do Ente Supremo) e secamente sanguinário como ditador, nunca poderia permitir que Robespierre, que é um dos bocados considerados do bloco, afrontasse uma pateada num teatro de Paris.

Daí a supressão ditatorial de Termidor. E havia ainda a velha razão dos governos (tão velha, e decrépita, e trémula, e tonta, que eu pasmo como ela ainda pode aparecer nas assembleias e ser tomada por uma realidade viva), a safada razão da ordem pública.

Com efeito, segundo afirmava o Governo, os jacobinos e os sebastianistas (porque esta alcunha do Brasil, tirada da poética seita de Portugal, convém admiravelmente aos realistas de França) tinham planeado descer em massas densas sobre a Comédie Française, uns para apupar o reinado do Terror e aclamar Sardou, que o denegria, os outros para vitoriar Robespierre e quebrar Sardou e os bancos: e ambos para uivarem e mutuamente se tratarem de «garotos», em nome de 89 e da Declaração dos Direitos do Homem.

Até se murmurava com terror que nessa noite devia aparecer Lissagaray, o próprio Lissagaray, o formidável Lissagaray. Eu nunca soube quem fosse esse homem assus-tador, nem mesmo se era um homem ou um símbolo como Ferrabrás e Polifemo. Na minha mocidade, quando eu conspirava em Lisboa, na Travessa da Conceição Nova, contra Napoleão III, havia em Paris um Lissagaray, também terrível, em quem Rochefort dera alegremente ou estocadas ou bengaladas. Seria ainda esse, e ainda terrível? Em todo o caso, símbolo social ou homem mortal e espancado, Lissagaray nessa noite devia vir! O Governo sufocou Sardou para salvar a ordem. E a Comédie Française, em vez de Termidor, deu a peça que melhor convinha, como comentário – o Tartufo.

Pois bem! Cinco anos vão passados, como se dizia nos romances românticos. E aí temos nós Termidor representado no teatro da Porte St. Martin, durante dois meses, sob a benevolência paternal do Governo e no meio de uma risonha e deliciosa ordem pública! E notai que mestre Sardou, sagaz cozinheiro de guisados teatrais, sabendo bem que nunca se deve servir um prato da véspera sem um molho novo e fortemente apimentado, introduziu em Termidor episódios inéditos e todos desagradáveis para a Revolução, uns mostrando a sua incoerência anárquica, outros enegrecendo a sua ferocidade impiedosa. Até há uma sessão da Convenção, a sessão de 9 de Termidor, em que Robespierre foi acusado e derrubado, reconstituída num cenário erudito, com as bancadas e as tribunas, e os convencionais mais ilustres, e o povo tumultuoso, e as grandes invectivas históricas, e os gestos, os apupos, os rugidos, os ultrajes, e Robespierre de casaca cor de pinhão, com o punho fechado, gritando ao presidente Collot-d’Herbois: «Pela última vez te peço a palavra, presidente de assassinos!» E todavia, apesar destas exibições irritantes, que o Governo há cinco anos temia, ou afectava temer, por causa da velha ordem e da reverência que se deve ao bloco, todas as noites Termidor se desenrola no meio de um sossego atento, como se em vez da Revolução se tratasse da Renascença ou da Guerra dos Cem Anos. O que interessa não é a sorte de Robespierre, mas a arte de Coquelin. Ninguém pensa nos princípios através do prazer que dão a cor e a animação dos cenários. E jacobinos e sebastianistas saem do teatro e acendem pacificamente os seus charutos, com a sensação muito certa de se terem divertido. Ora há cinco anos, se o Governo se não tivesse espavorido, com os seus vivos pudores ordeiros e revolucionários, Termidor correria entre o mesmo sossego, apenas aquecido por uma chamazinha mais viva de curiosidade e de excitação.

E daqui a dez anos, se o mesmo Sardou ou outro Sardou voltar com outro drama da Revolução, contendo Danton ou Marat, reinará em torno dele um sossego ainda mais parado, e os jacobinos e os sebastianistas nem mesmo se divertirão; antes, ao sair do teatro, acenderão os seus charutos com o vago cansaço e tédio de quem tivesse visto durante cinco actos passar e repassar, entre pórticos, Belisário ou Artaxerxes.

E porquê? Porque (ai de nós!) uma grande indiferença, à maneira da sombra de um crepúsculo, começa a descer sobre a Revolução Francesa. E a mesma indiferença que, numa camada mais densa, já cobre Luís XIV e o Grande Século, e depois, em camadas sucessivamente mais espessas e negras, cobre e abafa a matança de S. Bartolomeu, e a Guerra dos Cem Anos, e a expulsão dos Mouros da Península, e a invasão dos Bárbaros, e a queda de Jerusalém, e a conquista das Gálias, e as Guerras Púnicas, com o seu Aníbal e o seu Cipião, e todos os feitos e todos os homens por aí acima até Nemrod e as suas façanhas.

Entre nós e a queda simbólica da Bastilha já medeia um século, e o século mais cheio, mais fecundo, mais rico em homens e feitos de que se gaba a história. Já houve pois tempo para que o mundo se restabelecesse do imenso abalo e emergisse do imenso deslumbramento que lhe dera aquele tumultuoso cair de Bastilhas, de instituições e de cabeças. Nenhuma época houve, é certo, que prolongasse tanto, como a época da Revolução, o calor intenso das suas paixões para além das datas cronológicas que a limitam. E nenhum grupo de homens históricos continuou a viver para além da campa, entre as gerações sucessoras, como estes de 1789 e de 1793, que eu, na minha primeira mocidade, ainda conheci vivos; vivos de uma vida real e quase física; vivos pela expressão, pela voz, pelo gesto, pelo traje; vivos sobretudo pelos entusiasmos ou cóleras que inspiravam, como só as inspiram os vivos.

Em Coimbra, na ardente e fantástica Coimbra do meu tempo, no meio das nossas discussões de princípios, tão tremendas e tão vagas, ainda se ouviam destes gritos, lan-çados por um camarada, de punho fechado, contra outro camarada, de olhos faiscantes: «Danton! Diante de mim não te atrevas a falar desse modo de Danton! Olha que esqueço que somos amigos! Danton é sublime!» Ou, então, ainda num furor maior, com patadas atroantes no soalho: «Marat é um monstro! Conheço perfeitamente Marat! E um monstro! E se o negas, é porque o não conheces, ou mentes, ou estás miseravelmente vendido!» De Marat, de Camile Desmoulins, de Saint-Just, de todos os homens da Revolução nunca dizíamos era, mas é, no presente do verbo, porque para nós eles estavam presentes, sempre vivos, habitando Paris, habitando também Coimbra, vivos e presentes em todo o lugar onde houvesse um coração revolucionário para os compreender.

E todos nós os conhecíamos pessoalmente, familiarmente, e sabíamos os seus hábitos, os seus amores, as suas manias, os seus gestos e a cor das suas casacas. Vi companhe 7 iros meus profundamente namorados da princesa de Lamballe. Ainda se faziam então sonetos, repassados de devoção, a Charlotte Corday. E o ser guilhotinado, depois de uma ceia como a dos Girondinos, entre belas palavras históricas lançadas à posteridade, parecia a muitos de nós o melhor e mais ditoso fim de uma vida de homem verdadeiramente digno da humanidade. Portugal nesse tempo andava sempre uns vinte ou vinte cinco anos atrasado da França. (Hoje anda apenas quinze dias, quando não adianta.) E o estado de espírito de Coimbra não era mais que a tradução sincera dos sentimentos que agitavam a mocidade de Paris de 1840. Ora, se em Paris, em 1840, se representasse um Termidor, o rolo seria pavoroso.

Apeados da sua coluna, recolocados entre a mediana humanidade, os homens da Revolução apareceram como realmente tinham sido, nem deuses, nem demónios, mas simples homens capazes de sublimidade e capazes de perversidade, como tantos outros que fizeram outros capítulos de história. São para adorar? São para maldizer? Não. Eram ideólogos enfáticos – mas sacrificavam a vida por dedicação a um teorema. Eram asperamente egoístas – mas as suas simpatias envolviam a humanidade inteira. Eram de uma medonha vaidade – mas de um patriotismo magnífico. Eram sanguinários – mas exerciam a crueldade sob a ilusão do bem universal. Eram cépticos, eram sensualistas, eram ridículos – mas lutavam pela verdade abstracta e tinham como fim a salvação do mundo.

Eram homens cheios de ideias grandes e de ideias mesquinhas, de qualidades baixas e de qualidades magnânimas. Mas, desde que uma história verdadeiramente crítica e não cantada ao som da lira ou rugida como um vitupério, à Carlyle, os mostrou assim simples homens – todo o interesse vivo e fumegante que eles se inspiravam se apagou. Ah!, a Revolução Francesa não é uma epopeia super-humana, no género da guerra dos titãs?... Então não gastemos mais com ela as nossas preciosas emoções. Que fique de uma vez e definitivamente arrumada no catálogo geral da história, como a Reforma, ou a Jacquerie, ou a Guerra dos Cem Anos, ou o império português do Oriente. Não lhe devemos já a nossa paixão – apenas a nossa investigação. Seria pueril que nos exaltássemos mais por Danton e Robespierre do que por Cipião ou por Carlos, o Temerário. O que a uns e outros compete são dissertas teses, bem documentadas, com notas e com glossários.

Mas, desde que nós não conservamos mais a Revolução entre o vivificante calor das nossas discussões, e não a abrigamos sob os nossos entusiasmos, ela ficou como abandonada e sem defesa contra a goela tragadora do tempo. Não é hoje um pedaço da nossa vida – é apenas um capítulo da História Moderna. Já se tornou coisa morta – está para além do Letes, do rio dos mortos. E essa côncava goela do tempo a que o poeta chamava o «Pórtico do Esquecimento», já começa a estirar sobre ela a sua sombra densa. Nós assistimos assim ao esvaecimento da Revolução. Cada ano que passa a vai levando mais para longe de nós, num alongamento que lhe esbate os fortes relevos e em que as suas vivas, ardentes cores, desmerecem, esmorecem.

Era um grupo movente de gente viva – não é mais que uma galeria de figuras paradas, sob uma luz neutra. Ainda se vêem ao longe os madeiros da guilhotina (é mesmo o que se vê mais nitidamente): mas já se não percebe aquele jorrar e fumegar de sangue, que há pouco era motivo de tanta cólera e tanta dor. A Convenção está como esborratada, sem que se lhe possam reconhecer as faces violentas e populares. O Clube dos Jacobinos não é mais que um tremer de manchas negras e anónimas. A graça tocante ou o heroísmo das Charlotte Corday, das Lamballe, está tão desbotado que nem o coração mais sectário por elas se entusiasma. A vasta voz de Mirabeau, que ainda há pouco ressoava entre nós, nos fazia estremecer, é simplesmente um murmúrio indistinto. De Danton, que enchia o mundo, resta uma sombra sobre um muro. E já nem se percebe a cor da casaca de Robespierre! Todos nós a conhecíamos, essa casaca que ele trazia tão escovada, tão tesa, tão autoritária... E já não nos lembra, nem podemos verificar a esta distância de além-Letes, se era azul ou cor de pinhão.

Será definitiva esta entrada da Revolução na paz silenciosa dos arquivos? Ressurgirá ela desse jazigo erudito, como agora ressurgiu Napoleão? Duvido. Napoleão é um herói simples, compreensível, fácil de reconstruir, sem os profundos trabalhos para que o nosso tempo é impróprio. A Revolução, pelo contrário, é imensa e complicada, cheia de ideias e de homens, um pesado mundo, difícil de ressuscitar e de repuxar para a luz. E pois quase certo que ela ficará no vasto cemitério do passado, ao lado das outras grandes épocas monas. E quando algum dos seus heróis voltar a aparecer, durante algumas noites, no tablado de um teatro de Paris, não despertará mais entusiasmos ou mais cóleras do que Carlos V ou César Bórgia, quando esses ilustres, vestidos de trajes ricos, exprimem sentimentos fortes por meio de belos versos. De facto a Revolução já está bastante morta para começar a ser tratada em verso. Termidor ainda é em prosa. Daqui a alguns anos Mirabeau, Marat, Robespierre, dirão as grandes ideias e as grandes paixões da Revolução através de cinco actos, em alexandrinos sonoros, de rima preciosa. Anos depois os três homens terríveis, à boca do proscénio, cobertos de veludo, com a mão sobre o peito, entre largas rajadas de orquestra, cantarão um terceto sublime de tenor, barítono e baixo.

Não me atrevo a prever quando a Revolução será posta em bailado. Mas no dia glorioso em que Danton, vestido de malha cor-de-rosa e dançando um pas-de-deux patriótico, ordene por mímica as matanças de Setembro, e em que Madame Rolland, de saias de gaze tufadas e os braços em arco, suba com piruetas graciosas a uma guilhotina, toda engrinaldada de flores, podemos respirar e considerar que se fechou o ciclo histórico da Revolução e saudar os tempos novos.

 

 

 

 

Bilhetes de Paris

 

 

FESTAS RUSSAS – AS DECORAÇÕES

 

A França, nação ditosa, durante três dias caminhou, como Ruy Blas, toute vivante dans son rêve étoilé, ruidosamente desperta e vivendo o sonho radiante que nestes três anos andara sonhando, entre tanta esperança, tanta ansiedade e tanto remoque irónico das velhas monarquias que a cercam. Durante três dias o czar esteve em Paris. O czar em Paris! Dois milhões de parisienses, a que se juntou um milhão de provinciais, contemplaram enfim o senhor de todas as Rússias, real, não pintado, numa caleche que tinha na portinhola o brasão de Paris, com os joelhos a tocar nos joelhos do presidente da República, entre as escoltas da Guarda Republicana, circulando nas ruas e na poeira de Paris, visitando o presidente do Senado e o presidente da Câmara, penetrando em Notre-Dame para se inclinar ante a Virgem a que rezou Joana d’Arc, descendo às criptas do Panteão para depor uns ramos de orquídeas sobre a tumba de Carnot, assistindo a uma sessão da Academia Francesa em que os imortais disseram versos e discutiram o dicionário (que nesse dia, simbolicamente, chegara ao substantivo amizade), cimentando a pedra inicial da Exposição de 1900, folheando nos arquivos da Sainte-Chapelle o vetusto pergaminho esclavónico sobre que juraram os primeiros reis de França, bebendo champanhe Montebelo no hôtel de ville com a muncipalidade radical e socialista, percorrendo os Inválidos por entre as bandeiras tomadas na Crimeia, até ao túmulo de Napoleão, passando revista, no acampamento histórico de Châlons, a oitenta mil homens do exército reconstituído, rindo na Comédie Française com a mais clássica das comédias de Molière, e rindo também na galerias de Versalhes com a mais garota das farsas de Meilhac, prestando um preito igual à velha França e à França nova, e sobretudo, mais que tudo, espalhando por sobre a multidão encantada um olhar que os jornais mais cometidos classificam de doce e carinhoso. Durante três dias a França condensada em Paris gozou, deslumbrada, esta realização triunfal do seu sonho de três anos. Ah! Se, depois dos abraços de Cronstadt e das efusões de Toulon, e do almirante Avelance acolhido nos bulevares como outrora a pomba foi acolhida na arca, o czar viesse a Paris!... O czar veio a Paris. Veio a Paris trazendo a Rússia, porque a Rússia toda se resume nele, e trazendo a imperatriz e a sua filhinha Olga, e até o seu cão Lofki.

Para receber este bem-desejado a França alvoroçadamente prodigalizou o seu dinheiro, o seu génio decorativo e o seu entusiasmo. E o resultado, meus queridos, não se me afigurou sumptuoso. O Francês, por isso mesmo que é eminentemente intelectual, não tem o engenho decorativo, nem o plástico dom de criar o pitoresco. Quando as suas glórias o levam a enfeitar as suas cidades, nunca a sua invenção vai além de mastros, colunas de lona pintada e molhos de bandeiras que emergem de escudos de papelão cinzento formando uma panóplia triste. E depois deste esforço os decoradores muni-cipais ficam exaustos. Desta vez, como o patriotismo os exaltava, tiveram um arranque de imaginação e cobriram os ramos desfolhados dos castanheiros dos Campos Elísios com florinhas de papel escarlates e brancas. Paris inteiro se maravilhou com esta ornamentação, que é usual em todas as aldeias da China, e que os bons burgueses alemães de Wurtemberg tinham já inventado em 1805, para festejar Napoleão. Qualquer vila da Itália, da Espanha ou de Portugal desenvolve realmente mais cor e brilho, no adorno das suas ruas, para solenizar o seu santo padroeiro (com quem todavia é familiar, e de quem já nada espera, nem mesmo chuva em tempo de seca) do que este rico e genial Paris para festejar o grande soberano que lhe trazia a segurança e a paz. Para todo o Francês, de resto, é mais fácil compor uma lúcida, fina e bem coordenada tese histórica do que guarnecer a sua janela com elegância aceitável.

Pelo mesmo motivo, pelo admirável equilíbrio da sua razão, o Francês não tem a vistosa e sonora arte do entusiasmo. Os Espanhóis dizem que quem em certas ocasiões não perde a cabeça é porque não tem cabeça para perder. Os Franceses (pelo menos do Ródano para cima) desmentem completamente este rifão da terra privilegiada dos belos gestos e dos belos gritos. Têm cabeça, e muito bem construída, muito sólida, funcionando com superior pressão e eficácia –e nunca absolutamente a perdem. A sua razão está sempre fazendo a polícia das suas paixões. Amando ou odiando, as emoções do Francês invariavelmente se movem entre alas vigilantes de raciocínios, que, à maneira de gendarmes no meio de uma turba, as alinham e as contêm.

Este discreto temperamento, apurado ainda pela cultura e disciplina social, tem gradualmente tirado ao gesto do Francês toda a vivacidade arrebatada e à sua voz, mesmo em dias de vitória, toda a sonoridade ovante. Onde o Espanhol, num rasgo imenso, atira ao ar, caramba!, a alma e o sombrero, e onde o Inglês, puxando todo o sangue à face, lança hurras que abalam as chaminés e fazem redemoinhar as nuvens – o Francês esboça um aceno risonho e murmura um viva!, com a amabilidade muito quieta com que nós, nas terras trigueiras da oliveira e de milho, dizemos a um velho amigo: «Seja muito bem aparecido!»

Este povo equilibrado nunca desenfreia. E, tão naturalmente alegre, mesmo quando mais se alegra, está sempre vigiando que a sua alegria não flameje e não atroe. Alguém observou já que a França por dentro e por fora é cinzenta. Pelo menos é toda em tons neutros. O seu céu, mesmo no Julho mais ardente, nunca é rasgadamente azul, mas discretamente azulado. A sua vegetação nunca brota vivamente verde, mas de uma cor sóbria e moderada de reseda. As mesmas flores silvestres, e por isso mal-educadas, como a papoila, o botão-de-ouro, que em toda a parte rutilam com descarada magnificência, não ousam, nas campinas desta terra comedida, vestir o seu escarlate e o seu ouro. São assim, em tons neutros e pardos, as suas cidades, os trajes do seu povo. São assim, em tons neutros e finos, a sua literatura e os seus sentimentos.

Até o gás e a electricidade, mesmo em noites de gala, se coíbem, retêm o seu fulgor. A Natureza aqui, como a sociedade, tem horror ao excessivo. Por isso a França sobretudo se reconhece e se ama na sua bela Touraine ou no país angevino, tão decentemente francês, com as suas imensas planícies calmas e os seus choupos muito finos, em renques muito regulares, ao longo de rios muito direitos e de uma água muito clara. Por isso em literatura o seu grande homem será eternamente Boileau (a não ser que um dia seja Sarcey). Por isso em política ela procurará sempre ressuscitar Luís Filipe. Esbater, mondar, alisar, polir, eis a missão da França. Este é o país que, se tivesse leões, os caçaria para lhes pentear a juba, lhes limar as garras e lhes ensinar a rugir pelos métodos do Conservatório. De uma tal raça não haveria a esperar, mesmo que o Filho de Deus de novo encarnasse e viesse passar alguns dias ao Grand Hotel, festejos e aclamações que condignamente celebrassem tão prodigiosa visita. E assim foi que, apesar de se terem gasto, ao que parece, sete milhões de francos (que são aí, no Rio, com este horrendo câmbio, mais de sete mil contos) e de andarem por essas ruas de Paris durante três dias quatro milhões de povo contente, as festas não foram mais pitorescamente originais ou mais genialmente festivas do que as que nós em Portugal fazemos todos os anos ao nosso velho Santo António ou ao nosso amado S. João – e o imperador da Rússia nunca viu em torno de si o entusiasmo ardente que vê o toureiro Mazantini, em Madrid, na Plaza Real, quando mata o touro, em sorte larga com uma estocada fina e limpa, e as palmas retumbam, e os lenços palpitam, e as flores juncam a arena. Mesmo os poetas, encarregados pelo Estado de celebrar o hóspede adorado, entoaram cantos singularmente franzinos e moles. Coppée, a quem couber saudar o czar em nome da Academia Francesa, foi tão banal como o banal tapete que se estendia por sob a poltrona imperial. Incumbido de cantar os soberanos quando eles lançavam os alicerces de uma ponte de Paris, Herédia, o sonoro Herédia, que é um cinzelador em ouro, nesta ocasião tão rara cinzelou em chumbo umas estrofes delgadas que tinham a cor, a moleza, o som morto do chumbo. E Sully-Prudhomme, a quem o protocolo pedira que na festa de Versalhes cumprimentasse o czar em nome do Grande Século, foi incomodar uma ninfa e depois acordar a sombra de Luís XIV, para lhes fazer gemer, através dos lábios plangentes de Madame Sara Bernhardt, concertos filandrosos que adormeceram o próprio protocolo... Porque fraquejaram assim estes três poetas que representam na poesia francesa o pensar grave, a forma rutilante e a graça familiar? Por acaso as musas de França (sempre tão destras em celebrar o poder que chegaram a inspirar essa obra-prima do cortesanismo poético – a Ode a Namur) perderam, nestes vinte anos de república, a arte de incensar os reis do mundo? Ou foi que os poetas, amantes da simetria, não quiseram desmanchar a tonalidade neutra destas festas e de propósito rasparam o relevo dos seus pensamentos e apagaram o fulgor das suas imagens? Não sei – mas foram baços, muito baços. E assim foi Paris, e até o próprio céu sobre Paris, que se manteve sempre entre cor de pérola e cor de cinza, retraído e reser-vado, sem enegrecer e sem verter chuveiros descorteses, mas também sem francamente se vestir de luxuoso azul e espargir os seus raios de festa, como o faria o céu de Espanha.

 

 

AINDA AS FESTAS RUSSAS – OS JORNAIS

 

Notava eu ontem a recatada sobriedade destas festas. E no entanto todos os jornais de Paris vos afirmaram em colunas sólidas que as festas realizaram as maravilhas sempre irrealizáveis das Mil e Uma Noites, e que o entusiasmo abalou o firmamento atónito, e que uma inspiração nova e rara arfou na lira dos poetas! Não há aqui todavia exageração. Os Parisienses (ainda que pela maior parte nascidos em Marselha) não são exagerados.

Há aqui apenas um excelente sistema, desde longos anos adoptado pela imprensa de Paris, que nós deveríamos sofregamente seguir no Brasil e Portugal, e que consiste em afirmar, com afoita certeza, sem escrúpulos, sem pudores, que tudo quanto se diz ou se faz em Paris é perfeito, do mais nobre gosto, de um esplendor soberbo, e desmedidamente superior ao que se faz e se diz nas outras nações subalternas. Excelente e fecundo sistema! Ele termina por plantar fortemente, no espírito dos outros, como um dogma, a ideia da supremacia total da França – e sobretudo convence a França da sua supremacia, e absolutamente a penetra daquela confiança própria que é sempre a inspiradora dos grandes feitos e das grandes obras.

Meus amigos, louvor bem entendido deve começar por nós, porque nesse caso ele se torna uma verdadeira forma da caridade. Mal daqueles que, por humor sombrio ou por desalento muito expansivo, se cobrem de cinza diante do mundo porque o mundo imediatamente, por cima da cinza, os cobre de lama. A humildade só foi possível na Tebaida – e os próprios santos nunca se mostram aos homens sem a sua pomposa auréola.

A ovelha, enquanto balava timoratamente e baixava o focinho, foi sempre tosquiada pelo tosquiador e comida pelo lobo; até que um dia (segundo nos ensina uma venerável fábula oriental), tendo envergado uma pele de pantera para substituir o seu pobre pêlo rapado, viu o lobo tremer diante dela e recuar, o tosquiador fugir com as suas luzidias tesouras, e findou por se instalar e pastar tranquilamente no relvoso vale onde o lobo reinava. Esse desde a Antiguidade se adoptou o pavão como a ave mais ornamental e a mais bela, é porque desde os primeiros dias da história o pavão se empavonou, e desdobrou a cauda, e reluziu magnificamente ao sol, e impôs a sua plumagem à admiração dos povos e dos reis. «Tem a confiança em ti, proclama o teu valor, e logo possuirás a perfeita arte de viver.» Assim prega o Mefistófeles de Goethe. Mas o bom Mefisto, tão astuto psicólogo, devia acrescentar que a proclamação do nosso mérito é um exercício excelente para aumentar e mesmo para adquirir efectivamente esse mérito. Um outro apólogo oriental conta que a negra gralha tanto e tão estridulamente afirmou que era branca que terminou por embranquecer.

É este um fenómeno que o fabulista antigo não conhecia, mas que anda hoje em todos os compêndios de fisiologia e que se chama a auto-sugestão. Com efeito, quem sem descanso apregoe a sua virtude, a si próprio se sugestiona virtuosamente e acaba por ser às vezes virtuoso. A exaltação afectada da nossa força actua como um estímulo permanente, que equivale realmente à força. E quem engrandece desmedidamente o seu pequenino feito mostra que sente a nobreza de empreender altas coisas, prova o seu gosto pelos aplausos dos homens e está portanto já no caminho e com o feitio moral para praticar um feito grande.

Não suponhais, pois, amigos, que nestas túrgidas narrativas dos jornais de Paris há uma pueril e palavrosa exageração. Não! Há o intento muito legítimo e muito patriótico de afirmar a superioridade da França, mesmo em matéria de flores de papel e de colunas de lona – e de manter portanto nos ânimos alheios esse respeito e nos próprios essa confiança que são para os homens e para as nações dois formidáveis elementos de êxito. Também eu outrora supunha que essas amplificações que de uma lamparina fazem um sol provinham sempre de um espírito exagerado, inconsciente, falseador de proporções. Mas fui muito finamente esclarecido por um mestre eminente. Este mestre era um cozinheiro chinês. Não se mostrou, porém, sempre a China uma segura mestra da humanidade?

Pois há muitos anos, uma tarde, na Havana, estando com um amigo no seu jardim a tomar chá gelado, sob um caramanchão de magnólias, vimos de repente o cozinheiro da casa, esse chinês, correr, de rabicho eriçado gritando que matara uma cobra! O meu amigo, que era alemão, banqueiro e erudito, e portanto triplamente amador de dados positivos, quis logo saber o tamanho exacto dessa cobra, que assim invadira os seus quietos arvoredos.

Então o chinês, à moda chinesa, desenhou, com um pau que trazia na mão, sobre a areia lisa do jardim, uma imensa cobra, uma jibóia, de três longos metros, mais grossa que um tronco de palmeira, e com umas goelas tão furiosamente escancaradas que o banqueiro e eu recuámos, inquietos, para o fundo do caramanchão. E o bom chinês, para nos sossegar, passou o pé pela areia, apagou o monstro desenhado, com a serenidade forte com que derrubara o monstro vivo.

Foi louvado, foi recompensado – e nessa tarde o seu arroz de caril cubano, o seu pato da Florida à vera-cruzana atingiram uma perfeição em que todos sentimos o esforço de um génio que um triunfo estimula a outros triunfos.

Ao outro dia, porém, de manhã, o cocheiro, a quem decerto as glórias do chinês tinham impacientado, apareceu diante de nós, na varanda, trazendo na mão, embrulhada num velho jornal, a cobra.

Oh!, furor! Era um bichinho discreto, quase uma lombriga, de vinte ou trinta centímetros, e pouco mais encorpado que um lápis! O chinês foi chamado, posto diante da realidade, interpelado com tumultuoso azedume.

– Para quê... – bradava o meu amigo, brandindo o seu enorme cachimbo de porcelana –, para que foi essa indecente, essa infame exageração?

Com uma perfeita segurança de modo e de alma, o chinês respondeu:

– Não foi exageração, amo. Foi para me convencer a mim e para que os outros se persuadissem que eu era capaz de tanto, e para me dar ânimo noutra ocasião a matar uma cobra maior! Mas não é exageração.

Então eu, com o clássico cruzar de braços com que outrora Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, exclamei:

– Homem, mas que é então exageração?

O admirável chinês pousou sobre mim os olhinhos oblíquos, onde senti a madureza e a suculência de um saber quarenta vezes secular, e deixou escorregar estas palavras profundas:

– Exageração era pintar a cobra e depois pôr-lhe quatro pernas!

 

 

MAIS UMA VEZ AS FESTAS RUSSAS – O POVO

 

Mas que as festas de Paris não fossem festivas, e as suas iluminações não fossem iluminadas, e as suas poesias não fossem poéticas, nada importa, porque o czar não veio de tão longe (não falo naturalmente de Sampetersburgo, que dista apenas três dias do Bulevar, mas do seu trono de autocrata, que fica a muitos milhares de léguas e a muitos centos de anos da praça do hôtel de ville) para admirar estrelas de gás ou saborear versos perfeitos.

Veio essencialmente para ver como é este formidável povo que, em menos de um século, matou um rei, depôs e expulsou furiosamente outros dois, escangalhou dois impérios napoleónicos, sacudiu várias ditaduras, fez e desfez inumeráveis constituições... E veio ainda para observar como é o exército de que dispõe este povo, exército esmigalhado, há vinte anos, em vinte campos de batalha, e que agora nos aparece tão inteiro, tão novo, tão forte, tão viçoso, tão reluzente, como se nunca tivesse servido.

Pois bem, sendo assim, a França plenamente contentou o imperador da Rússia. Esta cidade de Paris, incorrigível destruidora dos seus próprios tronos, começou por se mostrar encantadoramente respeitadora dos tronos alheios. A atmosfera republicana de Paris, durante três dias, não cessou de ressoar com sinceros e convencidos gritos de «Viva o imperador! Viva a imperatriz!» Não houve nesta população radical, enquanto o czar foi seu hóspede, a menor, a mais fugitiva expressão de radicalismo.

A muito socialista municipalidade de Paris recebeu os autocratas russos, tipos supremos do despotismo supremo, com a etiqueta e grave reverência com que um parlamento no velho regime teria acolhido o rei de França e o seu manto de flores-de-lis.

O feroz espírito igualitário foi sufocado para se admirarem, sem reserva, com risonho agrado, a pompa monárquica, os uniformes de corte, os grandes lacaios empoados. Nos velhos faubourgs revolucionários, na clássica região das barricadas, foi arvorada em cada janela a bandeira imperial do czar, essa bandeira amarela onde a águia negra empolga numa das garras o globo, que simboliza o povo, e na outra o ceptro, que simboliza o látego. Não houve cidadão por mais livre que não tomasse, por um momento, diante do senhor da Rússia, a atitude reverente de um mujique russo – e a liberdade não cessou de oferecer à tirania as mais belas flores dos jardins de França.

Mas sobretudo, meus amigos, que ordem, que disciplina, que polidez, que magnífica doçura mostrou esse revolucionário povo de Paris!

Mais de quatro milhões de gente se amontoaram nesta cidade, que só tem espaço para dois milhões (e metade desse espaço escandalosamente tomado pelas mangas bufantes e pelos chapéus floridos das mulheres), e não houve uma briga, um atropelamento, um destes violentos redemoinhos de cólera ou medo que ensanguentam sempre as festas cívicas.

Na própria coroação deste czar apenas se juntara uma turba de quatrocentos mil homens numa livre e vasta planície de Moscovo, e logo morreram esmagados quatro mil! Aqui eram quatro milhões, em ruas estreitas entalados entre casas e filas de cavalaria, e (segundo juram as estatísticas da polícia) morreu unicamente um sujeito da província, já velho, pela ruptura de um aneurisma. E era uma multidão mal dormida, porque não achava cama nos hotéis, mal comida, porque não conseguira mesas nos restaurantes, e portanto com desculpáveis tendências a esse humor áspero e brigão que dá um chouriço mal mastigado sobre um banco de praça que serviu de colchão.

Mas não! Paris, que recebia um imperador, quis ser todo ele, durante uns dias, uma verdadeira corte, e mostrou as maneiras nobres de uma populaça palaciana. E o czar assim o reconheceu declarando que Paris lhe parecera, pela ordem e pela polidez, um imenso salão. Era um salão, mas um salão do Velho Regime, daqueles que frequentava sem receio Mr. de Coislin, o homem mais bem-educado de todos os tempos e de todas as raças – porque nos salões democráticos, e mesmo constitucionais, há sempre empurrão, costelas pisadas, sobretudo à meia-noite, quando se abrem ao fundo as portas benditas do bufete da ceia.

Bem sei que César conquistou as Gálias, e que há aqui portanto o delicioso resultado de dezoito séculos de civilização. Mas as legiões de César também circularam em Espanha, também desembarcaram em Inglaterra, e nesses dois países admiráveis não há gala sem pancada, nem turba sem rolo grosso. Não regateemos pois os louvores a este povo, que é ainda mais bem-educado do que Mr. Coislin.

Além da França civil, que tanto contentou o czar, este senhor de todas as Rússias vinha também ver a França militar. Esse solene exame teve lugar no campo histórico de Châlons. Oitenta mil homens manobraram e desfilaram diante do imperador a cavalo, e diante do presidente da República, sentado entre as senhoras, num landau.

(Oh! Esta abominável teima da república, que impõe ao chefe do Estado, como uniforme, a casaca preta de criado de hotel, lhe não permite os dois actos tão essenciais numa democracia armada, o andar a pé e o andar a cavalo, e o cola fatalmente, em virtude mesmo da sua grandeza, às almofadas pacatas de uma caleche civil!).

Tem havido grandes batalhas em que não chegaram a entrar os oitenta mil soldados que se apresentaram nesta revista de gala. Na batalha de Farsália, que decidiu da sorte do mundo, apenas combateram setenta mil homens. A batalha de Hastings, que consumou a conquista da Inglaterra pelos Normandos; a batalha de Azincourt, que deu metade da França aos Ingleses; a batalha de Lutzen, em que morreu Gustavo Adolfo e que terminou a Guerra dos Trinta Anos; a batalha de Marengo, que entregou a Itália aos Franceses, outras muitas foram pelejadas com menos de oitenta mil homens.

Foi pois esta uma cerimónia grandemente militar, apesar de que o chefe do exército, segundo a constituição, estava no landau, de casaca, entre as senhoras. E tão bela, na sua totalidade e nos seus detalhes, provando tão soberbamente a grandeza militar readquirida pela França, que logo depois, ao almoço, no meio de quinhentos oficiais, o czar ergueu o seu copo de champanhe e proclamou a confraternidade de armas entre Franceses e Russos.

Portanto, amigos, esta visita certamente pôs no espírito do senhor de todas as Rússias muita segurança, porque ele verificou que este povo que lhe estende os braços, há três anos, como noivo deslumbrado, é na sua cidade em festa extremamente doce, e é no campo em armas extremamente forte.

Ora, que mais se pode desejar num amigo, com quem se vai trilhar um bocado de caminho na história, do que muita doçura aliada a muita força?

Mas o povo francês, esse, com que segurança ou certeza ficou depois que a vasta Rússia veio a Paris, na pessoa um pouco franzina e melancólica desse seu césar a que ela chama paizinho! Essa impressão talvez se resuma nas palavras consideráveis que eu ouvi a um condutor de ónibus. Chovia: apenas três passageiros ocupavam as longas banquetas de veludo; e o digno homem, na plataforma, filosofava sobre as festas russas, com um sujeito bilioso, zarolho, de barbicha rala e ruiva, que parecia minado por um cepticismo mortal.

O imenso ónibus parara na estação do Arco da Estrela. E o condutor concluiu, à pressa, num gesto que trasbordava e triunfava:

– Enfim, seja como for!... Agora é trabalhar para a Exposição, e já se não está sempre com medo e podem vir os reis e os imperadores, sem que a república fique aí para um canto envergonhada!

Admirei esta síntese. E senti que ela resumia numa forma grossa e rápida, numa forma adequada a um ónibus, o sentimento das classes que se chamam dirigentes.

Este homem de boné agaloado, que vive carimbando bilhetes, sem dúvida pertence por nascimento, se não já por direito democrático, à casta política. Há nele em botão um próximo conselheiro municipal, talvez um deputado, em todo o caso um dirigente. E a sua opinião sobre a amizade franco-russa, ainda que enunciada sem elegância académica, não seria decerto desmentida pelos altos corpos do Estado.

Mas o sentimento do povo miúdo, das classes dirigidas, esse mais especialmente me foi revelado por um pequeno de sete anos, que toda esta tarde, sob os castanheiros e as faias do jardim vizinho, brandindo uma bandeira russa e esporeando um corcel de pau, ainda não cessou de ganir esta copla decisiva:

 

La Russie, la France,

Se donnant la main,

Garden l’ espérance

D’aller à Berlin

Dire ao vieux Guillaume...

 

Através da folhagem copada que este fusco Outubro ainda não arrancou do arvoredo, não logrei perceber o que a França e a Rússia, assim de mãos dadas, iam a Berlim dizer ao velho Guilherme... E porquê ao velho Guilherme? Esse avô augusto morreu. E agora há em Berlim um Guilherme novo, a quem é excessivamente perigoso o dizer coisas.

Em todo o caso, a copla esganiçada do meu pequeno vizinho desenha muito graficamente a atitude das duas nações que se entrefestejam. A França, a Rússia, com efeito, deram as mãos, estas mãos tão diversas, uma tão fina e criadora, outra tão grossa e inerte, e têm entre si uma esperança... Qual? Possa ela ser a esperança de ficarem cada um em sua casa, tratando dos seus complicados negócios domésticos, sem dizerem nada aos Guilhermes, velhos ou novos, e deixando a pobre Europa passar com tranquilidade os derradeiros anos deste agitado século.

 

 

AOS ESTUDANTES DO BRASIL

 

Sobre o caso que deles conta Madame Sara Bernhardt

 

I

 

Madame Sara Bernhardt publicou recentemente no Figaro uma concisa apologia da sua vida e do seu génio.

Apesar da concisão, tão substancial e recheado de factos nos aparece este papel que bem penso que a considerável senhora o poderia ter intitulado: «História da Minha Missão e da Minha Influência Civilizadora na América do Norte e do Sul». E se em tal documento, desde hoje histórico, há verdade histórica, vós, aí no Brasil, meus amigos, sois estranhamente culpados! Sois horrendamente culpados, oh!, meus doces amigos!

Ora, eu creio que a apologia de Madame Sara Bernhardt é sólida e verídica. Ela não nasceu nem da vaidade, nem da ilusão. Não temos aqui uma velha e manhosa actriz que, por hábito de camarim e de maquilhagem, devendo recapitular diante de um público crédulo a sua carreira, a sobrecarrega à pressa com grossas pinceladas de púrpura e de ouro, para lhe dar a radiância postiça de um sol. Não temos aqui também uma ingénua criatura que, vivendo sempre dentro de uma luminosa névoa de louvores, perde o sentimento exacto da sua estatura, se considera tão grande como esse iluminante nevoeiro a aparenta, e, docemente embriagada, alude à sua grandeza com a simplicidade e a graça lhana com que aludiria à cor dos seus olhos que não pode disfarçar nem pintar. Não! Nesta apologia de Madame Bernhardt há meramente uma mulher muito conscienciosa, muito séria, que, em perfeito silêncio e perfeita solidão, longe do sussurro adulador das turbas, se coloca em frente da sua vida, a interroga, a esquadrinha, e a vive, e não encontrando através dela senão altos feitos, concepções geniais, triunfos radiosos, influências nobremente exercidas, se vê forçada (apesar da sua modéstia e da sua humildade) a confessar publicamente, estridentemente, que é heróica, que é genial, que é triunfadora e que bem mereceu dos povos! Por isso Madame Bernhardt, muito candidamente e baixando os olhos, chamou ao seu documento Exame de Consciência.

De resto, os motivos que a levaram a empreender este grave Exame garantem a sua veracidade. Senão, vede! A literatura de Paris, aquela parte da literatura que mais especialmente vive do teatro, criando, criticando, noticiando, ou apenas parasitando, resolveu celebrar a apoteose de Madame Sara Bernhardt. Apoteose absolutamente legítima. Madame Bernhardt não é somente a actriz de garganta de ouro e alada inspiração, que, através dos dois mundos, com muita glória e muito lucro, nos tem arrulhado e rugido D. Sol, a Dama das Camélias, a Fedra, a Teodora e outras tocantes ou terríveis. Um mérito mais raro e mais esteticamente precioso a torna merecedora de todas essas honras cesarianas, quase divinas, que (segundo ela afirma) a Terra unânime lhe tem prodigalizado. Como muito bem notou o bom poeta Rostand, num dos sonetos jaculatórios que foram declamados nesse dia de apoteose (porque agora, em Paris, como em Lisboa no tempo do senhor D. João VI, não há festa sem soneto), Madame Bernhardt é a derradeira inspirada que nos resta, neste século de chata e monótona materialidade, capaz de ressuscitar, com sumptuoso idealismo, as emoções e as maneiras das idades épicas e romanescas. E este dom é inestimável. Só Madame Bernhardt, com efeito, sabe ainda descer uma branca e trágica escadaria e parar pateticamente em cada branco degrau com solenes brocados brancos a arrastar, exalando toda ela fatalidade e terror! Só ela sabe, num altivo cenário de arcarias e douradas abóbadas, atravessar entre alas de escravos ou de príncipes, toda rutilante e hirta com o peso das pedrarias, os olhos hieraticamente estáticos, erguendo na mão um lírio pálido! Só ela ainda sabe, com o braço nu, brandindo um ferro, lançar uma imprecação ao destino. Só ela pode ainda ser, entre nós, a cortesã hindu, coroada de rosas e enamorada de um deus! Só ela, nestes tempos de crime deselegante, assassina com elegância!...

Ora, no meio do descorado burguesismo do drama contemporâneo, e da chocarrice vilã das comédias e da universal fealdade das atitudes, estas coisas grandiosas que Madame Bernhardt ainda sabe fazer, com tão esplêndido relevo, são uma consolação para os que conservam o salutar amor do pitoresco e do romanesco. E acresce ainda que esta privilegiada mulher, quer represente em Paris, quer se exiba em Nicarágua, todas as noites, depois de muito arrulhar e tão arrulhadamente que ninguém percebe as doçuras que ela arrulhou, e depois de rugir e tão rugidoramente que ninguém compreende os furores que ela rugiu, tem sempre aí, cerca das onze horas ou onze e meia, um momento, dois momentos, em que é genuinamente e incomparavelmente sublime.

De sorte que ninguém, com algum gosto pela paixão e pela sua expressão decorativa, pode regatear a apoteose a esta princesa dos gritos magníficos e rainha das nobres atitudes.

A apoteose devia consistir num almoço no Grand Hôtel, a trinta francos por cabeça, vinho compreendido... Sim, amigos velemos a face, gemendo! Grand Hôtel, trinta francos –vinho compreendido!... Que quereis? E a irremediável pelintrice dos tempos. Ah!, não! Não estamos no século radiante, nesse Domingo de Páscoa em que Petrarca, vestido com a túnica de púrpura que lhe dera Robert de Anjou, trovador e rei de Nápoles, precedido pela assembleia da nobreza, toda emplumada e coberta também de escarlate e de ouro, seguido pelo Senado nos seus grandes mantos de brocado verde, atravessava as ruas de Roma, entre as aclamações de um povo deslumbrado, sob uma perfumada chuva de flores, para receber nas escadas do Capitólio, das mãos do síndico romano, a coroa de louros, a coroa dos antigos triunfos, enquanto ressoavam as tubas e repicavam os sinos, e diante do poeta se inclinavam todos os estandartes da Itália.

Ah!, decerto Madame Sara Bernhardt seria a mulher para atravessar os bulevares de Paris soberbamente envolta na túnica de púrpura de Robert de Anjou. Mas só ela nos resta – e tudo o mais nos falta! Já não há rei de Nápoles, bom humanista e bom trovador, para remeter por uma embaixada a púrpura augusta! Já não há nobreza que, para uma gala poética, se cubra de veludos recamados de ouro! Já não há senadores arrastando brocados verdes sobre um chão juncado de rosas! Já não há sinos que repiquem, nem pendões que se inclinem quando um poeta passa! Já não há nada – há só Madame Bernhardt, o Grand Hôtel e um resto de vinho falsificado. Todavia sejamos justos. Além do almoço, e do hino, e do soneto inevitável de Coppée, havia no programa da apoteose – uma surpresa. Todo Paris, todo Paris de teatro, se entreolhava sorrindo com enternecimento (ou com malícia) e se entressegredava a surpresa. Na véspera da apoteose, os jornais, piscando o olho, aludiram à surpresa. Já mesmo Madame Bernhardt, séria e grave, conhecia a surpresa. Sabeis qual era a surpresa?... No dia da apoteose, cedo, de manhã, o Estado iria ao Grand Hôtel, penetraria pé ante pé na sala do almoço ainda deserta, e, diante do lugar bem enfeitado de Madame Bernhardt resvalaria sorrateiramente, entre o prato e o guardanapo, a cruz da Legião de Honra! Esta era a surpresa.

E foi então que o Figaro (com aquele seu belo faro espanhol pelas coisas intensamente picarescas) pediu a Madame Sara Bernhardt que procedesse a um exame de consciência, recolhesse a sua vida tão largamente espalhada pelo mundo, a interrogasse com severa sinceridade e declarasse depois, perante a Europa, pondo a mão sobre o ardente coração, se na realidade se considerava merecedora da apoteose, do almoço, do hino, do soneto e da surpresa. Madame Sara Bernhardt, naturalmente habituada aos lances patéticos, não hesitou. E, durante uma longa noite, na sua alcova (ou no seu oratório, que esta terrível mulher é capacíssima de o ter!), recolhida, ensimesmada, segundo a velha fórmula metafísica, esmiuçou toda a sua vida, nos seus motivos e nos seus resultados, com o escrupuloso rigor de quem, estando diante de si própria, se sentia diante de uma divindade... E ao outro dia de manhã subiu à mais alta coluna do Figaro, e muito sobriamente, recusando ao seu discurso esses bordados e lavores que prodigaliza nos seus vestidos, declarou que, tendo examinado a sua consciência, considerava-se merecedora da apoteose, do almoço, do hino, do soneto e da surpresa! E assim se considerava porque, além de ser uma artista genial e de ter herculeamente trabalhado, concorrera (escutai!, escutai!, não percais isto!) – concorrera a civilizar a Austrália, o Canadá, sobretudo a América do Sul, e a implantar nessas regiões o amor da França, das letras francesas e da civilização francesa! E de um modo tão insinuante, com uma graça tão intelectual, que recebera desses povos (escutai!, escutai!, por Deus!, não percais agora este final!) recebera desses povos ovações, preitos, vassalagens, gritos de reconhecimento, honras quase divinas, como só as recebem os conquistadores de almas e os anunciadores de evangelhos!... E seguidamente Madame Bernhardt citou, como provas históricas, esses preitos, essas vassalagens. Disse o desembarque triunfal na Austrália. Disse o portentoso cortejo no Canadá, sobre a neve. Disse o episódio pavoroso com as senhoras do Chile. E, por fim, disse o caso supremo, o caso que ultrapassa todos os casos, o caso com os estudantes do Brasil!

Ah!, meus doces amigos, é verdade!... Mas, para conversar sobre este caso, que me sufoca, eu necessito o ar, o espaço e a tranquilidade de outro bilhete.

 

II

 

Agora, neste bilhete, mais arejado e espaçoso, podemos sem precipitação conversar, ó meus amigos, sobre o caso sufocante. E vós mesmos reconhecereis que ele é supremo e ultrapassa em sombria estranheza todos os casos gloriosamente sucedidos a Madame Sara Bernhardt durante a sua jornada civilizadora através dos continentes novos. Senão, vede! Tomemos respeitosamente o primeiro feito contado pela genial senhora com uma simplicidade tão nobre, no seu Exame de Consciência. E a chegada à Austrália. Madame Bernhardt aporta a essa terra privilegiada da lã e do ouro. No cais de desembarque, tapetado e florido, está esperando por ela, numa trémula ansiedade, a municipalidade de Melburne, com todas as insígnias tradicionais dos velhos municípios ingleses, a dalmática de romeira de arminhos, os quatro trombeteiros, porta-espada e o porta-ceptro. Nas docas os apitos de todos os vapores encorados apitam com desesperado entusiasmo. Em cada torre adeja a tricolor. Madame Bernhardt desembarca com essa simplicidade com que sempre desembarcam os verdadeiros conquistadores, os verdadeiros civilizadores –Santo Agostinho na Inglaterra, Cortez no México. Entra no seu hotel; põe um pouco de pó-de-arroz; janta; representa a Tosca – e imediatamente (como ela diz, em palavras memoráveis que eu não altero) «a colónia francesa, que até aí vivera numa posição subalterna e oprimida, ergueu livremente a cabeça e começou a dominar na Austrália!» Isto é certamente inesperado. Mas não há, neste feito de Madame Bernhardt, nada de. extravagante ou de estranho. É a clássica façanha, tantas vezes consumada através da história – a libertação de uma raça! Madame Sara, como Joana d’Arc, arranca à opressão dos Ingleses um precioso bocado da França. Com pequeninas diferenças (que nada importam em questões de heroísmo) ela é a Pucelle de Melburne. E notai mesmo a superioridade humanitária de Sara. A Virgem de Orleães desoprimiu a França derramando o sangue dos Ingleses e Borgonheses, e muitas canadas desse sangue pela sua mão, porque a forte virgem não desgostava das rijas cutiladas. Madame Bernhardt, ao contrário, não libertou os seus irmãos matando – mas morrendo! Morrendo no quinto acto da Dama das Camélias, no quinto acto do Hernâni, no quinto acto da Fedra! Morrendo sempre, pelo punhal, pelo veneno, pela tuberculose! E a cada sacrifício da sua vida correspondia um benefício para a sua pátria! Quanto mais ela desabava morta no tablado, com aquele sublime morrer que é só dela – mais a colónia francesa, levantando a cabeça, se afirmava e estendia o seu domínio! De tal sorte que se ela não cessasse de morrer por ter findado a sua escritura, a Austrália seria hoje uma província de França, exclusivamente francesa, onde o último inglês estaria comendo o último canguru a sombra do último eucalipto!

Mas atravessemos os mares e observemos os triunfos novos com que Madame Sara Bernhardt é acolhida no Canadá. «Aí (conta a sonora artista, em frases que humildemente copio) o meu trenó andava sempre seguido e acompanhado por todos os senadores e deputados! Sem dúvida este cortejo é raro! Mas não há ainda aqui nada de exótico ou de sombrio. Ao contrário! É um claro, delicado, alegre quadro de neve e de representação nacional. A neve, toda branca, sob um céu todo branco, cobre o Canadá: envolta em peles, Madame Bernhardt ocupa soberanamente um trenó dourado que fende finamente a neve: e em torno dela, sobre patins ligeiros, de mãos na cinta, a assembleia legislativa desliza pela dura neve em curvas airosas, com garbo parlamentar, segundo a ordem do dia. Porque, notai bem o que especializa Madame Bernhardt. Não são dois ou três deputados galanteadores, ou algum senador desgarrado que segue o trenó de Sara. Não, são os senadores e deputados reunidos em assembleia! Quem vai correndo no sulco branco, através da neve branca, é o poder legislativo! De outro modo não haveria (conforme acentua Madame Bernhardt) a intenção social e nacional de lhe dar preito a ela, como a altíssima representante da França. E bem podemos, pois, pensar que as duas câmaras electivas seguiam Madame Bernhardt funcionando, providas do seu presidente e dos secretários, e da tribuna, e do copo de água, e que celebravam em torno do trenó divino, na carreira jovial, a sua sessão ordinária. Naquele puríssimo ar, sob o fino sol que arranca um fulgor argênteo à neve, enquanto o trenó corria, e com ele corria a representação nacional, proveitosamente se cruzavam as interpelações, as moções, as remessas para a mesa, as emendas ao orçamento, as afirmações tranquilizadoras do ministério «que há-de sempre manter a ordem», e os apartes vibrantes de uma oposição irritada! Abafada, com uma nobre elegância, em espessas peliças, imperialmente reclinada naquele trenó que é um trono, correndo as pálpebras langorosas, num sorriso indulgente, Madame Bernhardt recolhe silenciosamente (para a transmitir à França) esta homenagem imensa da constituição do Canadá! E por vezes mesmo, sem querer, ao saudar um membro do Parlamento, com um jeito do regalo, ela choca e derruba um projecto de lei, um fecundo projecto de lei, que por sobre o trenó ia voando da câmara electiva para a câmara j alta, e que cai, fica perdido na neve, enquanto o triunfante cortejo rola, e legisla, e já se perde nos horizontes encaramelados onde se agita, negro sobre a alvura, o braço do presidente, que repica a campainha, porque Madame Bernhardt vai para o ensaio e a sessão está encerrada! Contemplemos ainda um instante este quadro consolador, o mais belo, talvez, de que se ufana a história constitucional do século XIX, e embarquemos de novo, descendo ao longo da luminosa costa do Pacífico.

Estamos no Chile e Madame Bernhardt está connosco. «Aí (diz ela no seu Exame de Consciência e em palavras impressionantes que eu, com pena rendida, traslado) as senhoras mais distintas e os homens mais elegantes da sociedade chilena recitavam diante de mim, para me prestar homenagem, folhetins inteiros de Jules Lemâitre no Journal des Debats que eles tinham aprendido de cor! «Ah, meus amigos! Desde que pisámos a América do Sul já as coisas se vão estragando – e não nos encontramos aqui diante de manifestações tão naturais e tão socialmente singelas como as do Canadá e as da Austrália. Considerai este quadro, que me parece inquietante. Um largo salão, bem alumiado, senhoras decotadas, com flores nas tranças, nos olhos um fulgor redobradamente chileno, e o doce peito nacarado a arfar. Em frente, noutra ala, cavalheiros elegantes, talvez condecorados, sorrindo, com o sorrir lívido e arrepanhado de atrapalhação (essa atrapalhação que vós reconheceis, a atrapalhação de manhã de exame!) e palpando no bolso traseiro da casaca o jornal que decoraram. No fundo, mamãs gordas de nariz pensativo. Entre as portas, papás, passando sobre a calva uma lenta mão que a ansiedade humedece. Dez horas. Um rolar de coche. Madame Sara Bernhardt entra, arrastando um desses tremendos vestidos de um esplendor quase furioso, compostos especialmente para a repúblicas espanholas do Pacífico. E imedia-tamente as lindas damas decotadas, os cavalheiros condecorados, erguendo o braço direito, recitam, num coro largo, os folhetins de Jules Lemaitre no Journal des Debats! Não sei se havia acompanhamento de orquestra. Madame Bernhardt, no Exame de Consciência, não alude à orquestra. Era, pois, um recitativo seco, em que os barítonos exprimiam o que nos folhetins de Lemaitre há sempre de filosófico, e os sopranos, de rutilantes olhos, exprimiam o que neles há de ornadamente melódico. No meio da sala, sob o lustre, Madame Bernhardt respirava o aroma intelectual e crítico daquela personagem estupenda. Os folhetins de Lemaitre ocupavam então no Journal des Debats duas páginas, e por doze colunas se alastravam. Certamente, de vez em quando, os criados circulavam, oferecendo aos coristas arquejantes água nevada e azucarillos. Depois de novo os braços se erguiam, o coro majestoso recomeçava e através das janelas abertas os periódicos melódicos de Lemaitre rolavam, lentamente se esvaíam na noite estrelada do Sul, como um incenso de fabricação francesa ofertado ao génio da terra francesa. E, sempre no meio da sala, Madame Bernhardt, imóvel no seu mirabolante vestido de exportação, com um sorrir divinal, aquele sorrir que hoje é só dela, depois de ter sido de Melpómene, aprovando a boa pronúncia e a boa memória da próspera nação chilena...

Meus amigos, fujamos deste espectáculo horrífico! Depressa, corramos ao cais de Santiago! Depressa, trepemos ao tombadilho do paquete que fumega! O mar é benigno porque sabe quem sobre ele vai navegar... Já estamos passando o estreito de Magalhães, e ao longe, na costa, avistamos os fogos dos Patagónios. Na Patagónia... Mas deixai que eu consulte o Exame de Consciência, glorioso roteiro desta jornada gloriosa. Não! Na Patagónia. Madame Bernhardt, que vai connosco, não teve nenhuma ovação, nem sob a forma de folhetins, nem sob a forma de sessão legislativa. A proa do nosso paquete já rasga firmemente as águas onde se balançaram, hesitantes, as caravelas de Pedro Álvares. Eis o Rio de Janeiro. Salve, terra amável! O pão de Açúcar surge todo cor-de-rosa com uma fronte que a alegria ilumina...

Mas a folha do meu bilhete findou – necessito outra folha. Assim, folha com folha, se faz um bosque: um bosque onde eu me quereria esconder para não presenciar os casos estranhos e sombrios que, com Sara e por Sara, se vão passar nesta terra que é quase a minha terra.

Mas aí vem a catraia da Alfândega, e a Dama das Camélias, D. Sol, Fedra, outras ainda, tocantes ou terríveis, todas numa só, desembarcaram.

 

III

 

Enfim eis Madame Bernhardt nessas terras tão famosas de Santa Cruz, que (segundo se depreende do seu Exame de Consciência) ela, à maneira dos Sousas e dos Anchietas, foi simultaneamente conquistar e civilizar. E eu tenho pressa de chegar também ao caso estranho, à homenagem estranha que ela de vós recebeu, oh!, meus amigos, tal como vem nesse Exame de Consciência. com uma simplicidade, um tom de grave modéstia, que são deliciosamente tocantes. «No Brasil (diz Madame Bernhardt, em palavras que copio e que desejo fiquem para sempre adicionadas à história da república), no Brasil os estudantes arrancavam os sabres e distribuíam cutiladas, porque os não deixavam desengatar os meus cavalos, meter os ombros nos varais e puxar eles a minha carruagem!

Aqui está! É simplesmente esta beleza! E agora dizei se tal caso não ultrapassa em estranheza sombria todos os casos passados com Sara na sua imortal missão através da América! Ele contém todos os horrores. E a arma furiosamente arrancada! É o golpe e o sangue pingando! É toda uma mocidade, primavera sagrada, que se engata aos varais de uma caleche e puxa trotando! Porque vós não puxastes... E o que torna o vosso acto humanamente atroz (por ser tão contrário à leis sagradas da humanidade nas suas relações com os veículos de rodas) é que vós não puxastes envolvidos e como impelidos por um sentimento universal e congénere. Se todo o Brasil, num unânime entusiasmo, bradasse – puxemos! – vós poderíeis muito justificadamente, como cidadãos de uma república, obedecer a essa ardente decisão da soberania popular. Mas não! Ao contrário! Houve alguém, e alguém muito respeitável (como observou e contou Madame Bernhardt), que vos queria impedir de meter os ombros livres aos varais, e puxar! Quem foi esse alguém? O Estado, ciumento de que puxásseis a um carro que não era o carro dele? O génio da liberdade, indignado? Simplesmente a polícia zelosa, para obstar a que nas ruas se estabelecesse uma confusão deplorável entre as funções que pertencem aos cavalos e as funções que pertencem aos estudantes? Não sei, Madame Bernhardt não o revela – mas houve alguém. Houve um peito generoso que se colocou entre vós – e os arreios que apetecíeis. Vós trespassastes esse peito com um ferro iracundo – e correstes para os arreios! E pois para esse degradante fim que a mocidade académica do Brasil arranca as espadas que lhe pendem da cintura airosa?... Mas sossegai – eu não lançarei aqui um paralelo sublime entre aqueles que se batem para sacudir um jugo e aqueles que se batem para obter um freio!

E não me digais, contritos, que Madame Sara é mulher, e que tem génio, e que visitou a Academia, e que vós contais vinte estouvadas primaveras, e que o sol do Brasil escalda – e que todas estas circunstâncias estonteadoras vos precipitaram (uma noite em que o vinho de Colares estava especialmente fresco e saboroso) da intelectualidade na cavalidade! Ocas desculpas, meus doces amigos. Quando eu era estudante, também Coimbra foi visitada por belos, génios, sob o sol exaltador de Maio, estando já desabrochada a flor do Ponto. Veio um prestidigitador; veio um rabequista; veio a divina Gabriela, que já me não recordo se dançava na corda, se representava melodramas, mas que era divina. Nós acolhemos todos esses génios soberbamente, como homens livres. Convidámos o rabequista a cear, na taverna do Cavalheiro, essa sardinha e esse bife sombrio que, desde os tempos de el-rei D. Dinis, a Academia de Coimbra oferece às almas onde descobre verdadeira grandeza. Nessa ceia, justamente, o Colares esteve, como nunca, fresco e saboroso – e mais tarde, alta noite, na Couraça dos Apóstolos, sob o luar enfiado de Maio, espancámos o rabequista. À divina Gabriela dedicámos sonetos excelsos, de subtil e coruscante rima. Depois um belo moço passou, cravou em Gabriela um olhar fatal e negro e Gabriela seguiu o belo moço para uma casinha branca que ficava entre as acácias de Santa Clara, onde a vida lhe correu, submissa e doce, consertando a roupa branca do belo moço que passara. Assim Coimbra, no seu tempo, tratava os génios que a visitavam, exactamente como Jerusalém tratava os profetas que a ela vinham – e que logo eram submetidos pela sua força, ou corrompidos e presos pelo encanto da sua graça. Decerto, ninguém na Europa quereria que vós espancásseis Sara. Esses desastres são mais adequados aos rabequistas. Mas seria honroso para o Brasil e para a sua mocidade que Sara, a triunfal, se quedasse entre vós, com o coração vencido, nalguma clara chácara, entre mangueiras, consertando roupa branca! Não!, em vez disso, depois de duras cutiladas naqueles que vos queriam salvar do humilhante serviço – desengatastes as éguas de Sara, lançastes aos ombros democráticos os tirantes de Sara, e puxastes a caleche de Sara, trotando, talvez relinchando!

Caso horrífico – e inesperadamente novo. Que o céu seja ardente ou gélido, por toda a parte a mocidade é excessiva e fantasista. Em Coimbra eu assisti aos delírios mais variados – e de todos partilhei. Fizemos três revoluções; derrubámos reitores excelentes, só pelo prazer de derrubar e exercer a força demagógica; proclamámos uma manhã a libertação da Polónia, mandando um cartel de desafio ao czar; penetrámos, em comissão, num cemitério para intimar a morte a que nos revelasse o seu segredo; destruímos uma noite, através da cidade, todos os mastros e arcos de buxo e molhos de bandeiras e obeliscos de lona, erguidos para celebrar não sei que glória nacional, porque eles contrariavam as leis da nossa estética; abandonámos a Universidade, num clamoroso êxodo, para ir fundar nos arredores do Porto uma civilização mais ou menos em harmonia com o nosso horror aos compêndios; atacámos e dispersámos procissões por as não considerar suficientemente espiritualistas; organizámos uma associação secreta para renovar a guerra dos titãs e destronar Jeová... Fomos medonhos – e quase todos os anos nos batemos com as tropas que o Governo mandava para nos manter dentro da decência e do raciocínio. Na realidade (com excepção de estudar) tudo fizemos – mas nunca metemos os ombros aos varais de carros, nunca puxámos...

E todavia, todavia... Sim!, puxámos! Nem eu desejo esconder esse facto, que nos honra. Puxámos, em 1867. Puxámos uma pesada caleche forrada de damasco azul, a galope, relinchando de puro entusiasmo... Mas sabeis vós quem nós assim puxávamos através das históricas ruas de Coimbra? O vigésimo oitavo rei de Portugal, que descera do seu trono oito vezes secular para visitar a Academia. E sabeis vós o que fizera esse rei para que nós assim o puxássemos com tão quadrupedante e relinchante amor? Esse rei magnânimo, logo ao entrar em Coimbra, por aquela Ponte Velha, que foi talvez o mais doce, poético e encantado lugar da Terra, ergueu a sua mão real e concedeu à Academia oito dias de feriado! Oito dias de feriado!... Desde logo (como compreendeis) este nobre rei tomou para nós as proporções augustas de um Trajano, de um Tito, de um Marco Aurélio, de um desses imperantes providenciais, a quem Deus, por suas próprias mãos, compõe uma alma especialmente virtuosa para que eles tornem os povos ditosos. Um tão imenso benfeitor não poderia ser puxado através das ruas de Coimbra pelos mesmos animais inferiores que puxam os ónibus, as carroças do lixo ou as vitórias da burguesia iletrada. A sua grandeza moral competiam, como à glória de Alexandre, o Grande, ao entrar em Babilónia, fulvas parelhas de leões de juba heróica. Em Coimbra, porém (pelo menos no meu tempo), não abundavam os leões. Os únicos animais supe-riores e heróicos éramos nós, os estudantes. Os lentes, esses sempre os considerámos como animais inferiores e, além disso, irracionais. De sorte que não hesitámos perante este serviço de cocheira. E para que esse nobilíssimo rei fosse nobremente puxado – puxámos nós, com nobreza. Metendo os ombros aos varais cumprimos um alto dever cívico, porque conservámos àquele rei admirável, que nos dera oito dias de feriado, o prestígio e o brilho vitorioso que lhe falhariam se o puxassem simples cavalos sem educação, sem exames de latim e lógica, sem noções de direito romano, sem opiniões metafísicas, sem luvas, sem ideal!

Aqui estão os motivos transcendentes por que nós puxávamos a carruagem. Mas vós, desgraçados!... Madame Bernhardt não vos deu oito dias, nem mesmo um solitário e curto dia de feriado – e vós desengatais os cavalos da Dama das Camélias e trotais sob as rédeas de Fedra! Que fareis vós, então, quando de novo possuirdes um imperador ou um rei, e esse imperante, na sua amorosa visita de reconciliação à mocidade, vos der oito, ou talvez (porque no Brasil é tudo grande) dezasseis dias de feriado! Dezasseis dias! Oh!, meus irmãos de além-mar – dezasseis dias! Que fareis então, nesse deslumbramento incomparável? Decentemente não podeis prestar a esse imperante magnífico as horas que destes a uma bela dama, só porque ela recitava Racine – pondo os seus moribundos olhos em alvo. Vós desperdiçastes assim, com uma simples actriz ambulante, a homenagem que a humanidade (pelo menos deste lado do Atlântico) reserva para os profetas, os enviados de Deus, os grandiosos dadores de feriados!

E o mais desgraçado é que agora toda a cómica genial ou dançarina sublime que vá ao Brasil espera a vassalagem que prestastes a Sara e que Sara papagueou logo estridentemente ao mundo, em cima da coluna triunfal do Figaro. Certamente em breve recebereis a visita da falada Réjane, de Hading, a bela, ou da muito garota e muito plangente Ivette Guibert. E, arrepiado de horror, já daqui vejo essa Guibert, horas depois de desembarcar na vossa terra, descendo as escadas do hotel, calçando aquelas imensas luvas pretas que são a parte mais considerável do seu talento, e dizendo risonhamente ao criado:

– Estou pronta... Mande engatar os estudantes.

E por fim, para findar, sabeis vós qual é o verdadeiro e íntimo horror do vosso caso? E que vós nunca arrancastes essas espadas (que de resto não usais) e nunca na realidade puxastes a essa carruagem que Madame Bernhardt concebeu. Mas todos vós, que tendes algumas noções, mesmo incertas, de metafísica, conheceis o grande princípio de Kant. Este ultraprofundo filósofo estabeleceu que para nada importa a existência ou não existência das coisas – e só importa a crença ou não crença que os homens têm nas coisas. Assim é perfeitamente indiferente que Cristo, como Cristo, existisse realmente numa certa província romana que se chamava a Judeia: o que importa, e importou para a transformação do mundo, foi que os homens acreditassem na existência de Cristo, como Cristo. No universo não existe, com certeza, senão o pensamento – e desde que o pensamento se concretiza e cria um ser ou um facto, esse facto ou esse ser existem, e de uma existência indestrutível, porque participa da indestrutibilidade do pensamento. Ora, hoje toda a Europa culta que lê o Figaro claramente e firmemente crê que vós puxastes a essa carruagem que o fogoso pensamento de Sara criou, para sua maior glória. E, portanto, segundo esse sólido princípio de Kant que todas as escolas reconhecem – vos puxastes... E agora, para todo o sempre, na Europa que lê o Figaro a ideia de estudantes do Brasil se ligará a arreios, a freios e a uma caleche cheia de Bernhardt, que rola, num trote entusiástico, levando entre os varais, em vez de burros, doutores.

Tal é a derradeira criação da pérfida Sara! Quando ela voltar ao Brasil não lhe arranqueis o coração pelas costas. E depois considerai que a inspirada senhora necessitava justificar a cruz da Legião de Honra – e deslumbrar, com uma estupenda lista de triunfos, o Estado, que lha devia resvalar entre o prato e o guardanapo. Por isso no Brasil ela vos atrelou à sua carruagem! Por isso na Canadá arrastou atrás do seu trenó o poder legislativo! Por isso forçou aquelas pobres senhoras do Chile a recitar os folhetins do bom Jules Lemaitre, que é influente na Revista dos Dois Mundos e portanto nos ministérios... E tudo debalde, oh gentil D. Sol! O Estado, obtuso e duro, não se comoveu, não foi ao Grand Hôtel, pé ante pé, meter entre o guardanapo e o prato de Sara a cruz da Legião de Honra. Madame Bernhardt necessita portanto apresentar outra lista de triunfos ainda mais decisivos, de homenagens ainda mais prodigiosas! E para o ano, quando voltar a estação das apoteoses e das cruzes, a boa Madame Bernhardt, rigidamente sincera e verídica, trepará de novo à alta coluna do Figaro, e publicará, perante a Europa atónita, outro Exame de Conciência, em que dirá, com palavras que para sempre ressoarão através da história:

— «Nos Estados Unidos do Norte, todas as manhãs, antes de almoço, eu trotava pelas avenidas de Washington montada no presidente MacKinley!»

 

 

REVOLTA DE ESTUDANTES

 

Paris está em revolta – quase se podia dizer em revolução. Tem havido com efeito todas as cenas clássicas das revoluções parisienses: assalto à Prefeitura de polícia: bar-ricadas feitas com ónibus derrubados: incêndios de quiosques; destruição de cafés; comités em permanência; corte de canos de gás, lançando em treva ruas e bulevares; polícias arremessados ao Sena; e clamores de «viva a anarquia!» Nada falta.

Dizem (talvez exageradamente) que os mortos são quase trinta e que os feridos excedem dois mil!

Porquê esta revolta assim sangrenta? Por causa de uma mulher nua e de um senador pudibundo! Não é decerto a primeira vez, desde Helena de Tróia, que os homens se entretrucidam por causa da nudez de uma mulher. Mas é certamente a vez primeira que uma cidade levanta barricadas por causa da pudicícia de um senador. A história é grotesca e lamentável. Os estudantes da Escola de Belas-Artes de Paris organizam todos os anos um baile, que não é público, e que pelos elementos que o constituem se intitula o «Baile das Quatro Artes». E sempre uma festa extremamente fantasista. E onde se poderá produzir mais naturalmente a fantasia do que num baile de artistas, moços e livres, que nos domínios da imaginação têm mesmo o direito nato de serem fantásticos? Ora este ano os escultores do atelier de Falguière resolveram aparecer no baile levando em triunfo sobre um andor, como uma deusa de beleza, e na atitude de Diana armando o arco, uma certa Sara Brown, que é dos mais lindos e perfeitos modelos de Paris. Escuso acrescentar que essa Sara, na sua qualidade de Diana, ia pouco vestida. Na verdade, para cobrir o esplendor do seu corpo, que tem sido reproduzido largamente no mármore e na tela, ela levava apenas (anacronismo deplorável) meias de seda preta e sapatos. Seria de mais, na Grécia, e no tempo de Diana. Em Paris, em 1893, é talvez pouco – e uma leve túnica, um véu, um cendal, teriam poupado os desastres e o sangue. No entanto, da parte dos estudantes não havia, nesta exibição triunfal da bela Sara, nenhuma intenção.

Eram artistas que em sua casa, numa festa particular onde só se podia penetrar por convite, celebravam com honras pagãs um tipo perfeito de beleza feminina. Penso mesmo que eles mostraram pouca fantasia e invenção – porque repetiram numa noite de festa as ocupações habituais dos dias de escola. A sua profissão, como artistas e escultores, é contemplar, compreender, reproduzir a forma humana. E levando consigo para o baile o modelo nu numa atitude de estátua, estes rapazes transformavam a festa em atelier e não estavam fazendo uma pândega – mas estudando uma lição.

Não pensou, porém, assim o senador Berenger. E aqui aparece este terrível homem.

O senador Berenger é o presidente da Liga contra a Indecência nas Ruas. Os fins desta associação, para quem conhece Paris, e sobretudo a linha dos bulevares da Madalena à Bastilha, não necessitam de ser explicados – nem justificados. E uma útil associação, quase providencial. E quem tenha filhas, e por vezes necessite atravessar com elas os bulevares, deve concorrer, com a sua quota mensal, para a força, eficácia e desenvolvimento da Liga. O seu único defeito é o seu presidente – porque este homem excessivo, que tem setenta anos e uma pudibundice maníaca, não só investe, em nome da Liga contra todas as indecências incontestáveis e patentes das ruas – mas contra todo o acto humano que vagamente se lhe afigure revelar uma tendência impudica. E para este ancião, catónico e caturra, tudo no universo é impudicícia. Uma senhora, para atravessar a lama, levanta um pouco a saia – imediatamente Berenger chama um polícia. Na vidraça de um livreiro, sobre a capa ilustrada de um romance, há uma imagem um pouco decotada – logo Berenger, com os cabelos eriçados de horror, querela do livreiro e do livro. Por trás de uma porta soa o rumor de um beijo – sem demora Berenger pretende arrombar a porta e autuar o cupido. Ultimamente chamou aos tribunais o autor de um livro científico, de medicina, por indecente! É ele que conspira para que se cubram com grossas camisas de lona todas as estátuas antigas do Museu do Louvre e se Berenger triunfasse veríamos nas igrejas S. Sebastião metido castamente dentro de uma longa sobrecasaca de pano preto. Até a nudez dos animais o indigna – e afirmam os seus amigos que ele se prepara a apresentar um projecto de lei para que todos os cães e cavalos de Paris andem de tanga! O seu horror, que lhe amargura a velhice, é que haja dois sexos. Berenger queria que houvesse um só – o neutro. E não podendo realizar esta reforma na humanidade – trabalha para a realizar na gramática. Assim ele evitará o afrontoso escândalo de haver substantivos masculinos e femininos, vivendo promiscuamente, fechados no mesmo dicionário, e fazendo talvez lá dentro poucas-vergonhas! Tal é Berenger.

Imaginem, pois, o furor deste varão castíssimo ao saber do Baile das Quatro Artes, e da bela Sara nua! Trémulo, pulou à tribuna do Senado, e trovejou! Dali correu aos tribunais e querelou! E eis a pobre Sara, a gentil Diana, e os estudantes requintadamente estéticos que a tinham conduzido em triunfo – citados perante o correccional como promotores de indecências públicas.

O furor pudico de Berenger fora grande – mas como dizer o furor artístico dos estudantes? Havia neles muitos sentimentos ofendidos – sentimentos de arte, sentimentos de classe, sentimentos de liberdade, sentimentos de tradição escolar e de tradição estética. E a ideia de que este velho caturra arrastava aos tribunais, como obscenos, artistas de vinte anos, que, à maneira dos seus antigos confrades da Grécia e da Itália, celebravam, numa festa particular, toda sua e somente escolar, a beleza de um modelo, que eles todos os dias copiam na escola, e que o seu mestre Falguière já reproduziu em mármores ilustres – pareceu intolerável. Daí ódio imenso a Berenger. E, portanto, troça imensa organizada contra Berenger. Não sei como procedem os estudantes de São Paulo ou do Rio, para celebrar as suas grandes troças oficiais. Em Coimbra é uma enorme multidão armada de tambores, panelas, latas, ferragens, apitos estridentes, buzinas horrendas, que, alta noite, se acerca da casa do «troçado» e rompe bruscamente num charivari descomunal, que não cessa, vai mesmo crescendo demoniacamente, até que o «troçado» fuja pelos telhados, ou morra de terror, ou se humilhe e implore absolvição. Em Paris a grande troça escolar é feita por meio do monómio, que é uma longa bicha de mil ou dois mil estudantes, serpenteando pelas ruas, berrando o nome do «troçado» e intimando as populações a que o «vilipendiem». E há alguma coisa de imponente e de dramático nesta imensa fila escura, semelhante de longe a uma cobra infindável, que se estende, coleia pelas vielas estreitas do Bairro Latino, e clama, como ultimamente, no mesmo compasso lento e sinistro: «Vilipendiai Berenger! Vilipendiai Berenger!»

Ora, quando um destes monómios, domingo passado, ia vilipendiando Berenger, teve um conflito com a polícia. Ou antes, ao que parece, o monómio findara, os estudantes tinham-se estabelecido no Café d’Harcourt, para descansar e refrescar, quando a polícia, despropositadamente, invadiu o café, fez um rolo medonho e brutal. E por grande desgraça, na balbúrdia foi morto um pobre rapaz, que tomava pacificamente o seu bock, que não era estudante, e apenas amigo e camarada de estudantes.

Daqui imediatamente se seguiram todos os incidentes tradicionais de uma revolta académica: imensa excitação; formação de um comité de resistência; intimação ao Governo para que demitisse o prefeito da polícia, responsável pela injustificada brutalidade dos seus agentes; e perante a recusa do Governo, a desordem nas ruas, o assalto à Prefeitura, os recontros sangrentos com as forças policiais, o Bairro Latino em estado de sítio e metade de Paris cheio de baionetas.

O estudantes, geralmente, têm a revolta muito fácil, mas muito curta. E desde que os barulhos são feitos unicamente por estudantes, a ordem renasce de repente, quando uma madrugada eles se sentem esfalfados de tanto berro e de tanto encontrão, e recolhem-se a casa para mudar de roupa e de entusiasmo. Mas em Paris, desgraçadamente, mais que em nenhuma outra cidade, há uma verdadeira classe revolucionária, que é composta das derradeiras, das mais baixas, mais viciosas e mais violentas camadas do proletariado. São os selvagens da civilização (a frase é conhecida). E são eles que tornam qualquer motim em Paris excessivamente perigoso, porque acodem logo a agravá-lo, introduzindo nele a violência bestial, o furor de destruição e a desordem por amor da desordem. Que o motivo do tumulto seja uma justa teoria política, ou uma indignação humanitária, ou um entusiasmo patriótico, o «selvagem», que nada sabe de pátria, nem de humanidade, nem de justiça, corre logo com o seu cacete, a sua faca e a sua lata de petróleo, ávido de desancar, de queimar, demolir.

E foi justamente o que sucedeu nesta simpática arruaça dos estudantes, onde a legítima cólera não excluía uma alegre moderação. O selvagem apareceu e logo tudo tomou um carácter feroz e sangrento. Desde esse momento, o Governo exerceu uma repressão especial – não prudente e adequada a estudantes, mas implacável e adequada a bandidos. E daí se seguiram todos esses incidentes, de que os jornais contam a crónica lamentável, e que pela audácia dos tumultuosos e pela imensa brutalidade da polícia deram por triste resultado, ao que se diz, trinta mortos e dois mil feridos.

E porquê? Por causa do bailarico das Quatro Artes! Por causa também deste calor temeroso que excita os temperamentos. E hoje um facto cientificamente explicado que as revoltas populares só se dão, sobretudo nos países do Norte, durante os meses quentes do ano. O termómetro com quarenta graus à sombra, uma atmosfera pesada e eléctrica, leva as multidões a enfurecer-se por coisas que, durante o Inverno e com as ruas cheias de neve, as deixaria indiferentes. E não compreendo como se não tentou ainda, de um modo metódico (porque casual e irregularmente já se tem feito), sufocar as arruaças por meio de água fria. O sistema já o possuímos, admiravelmente organizado, no serviço de incêndios. Uma. revolta é sempre comparada em literatura a um grande incêndio. E não há motivo para que se não apague, na realidade, por meio de bombas. Três ou quatro bombas a vapor, esguichando sobre uma multidão formidáveis e irresistíveis jactos de água fria, seriam, a meu ver, mais eficazes do que cargas da cavalaria. Uma carga irrita sempre aqueles contra quem ela se dá – e o instinto da coragem, o desespero da desforra, o fundo de heroísmo que têm em si todas as multidões, impele à resistência e à luta. Mas o desforço, a resistência são impossíveis contra uma bomba de incêndio a esguichar. O homem acutilado pela polícia quer acutilar também, porque tem uma arma igual e se sente bravo. O homem alagado, encharcado, perde todo o valor porque se sente grotesco. Não vê ante si outro homem sobre quem se vingue: – vê apenas um longo esguicho de água que o ensopa e o constipa. E uma humilhação acabrunhadora. Não se pode apedrejar um esguicho, nem esfaquear um esguicho.

Diante de um esguicho – só resta fugir para secar. Além disso, as plebes têm um horror imenso à água fria – e tal que afrontaria uma bala, larga a correr diante de um duche. Acresce ainda que não há ninguém que não receie a água, desde que está vestido. Nu, o homem marcha ainda para o elemento líquido. Mas de casaco e de chapéu – não o acomete.

A bomba de incêndio, adoptado este método, não só operaria como afugentadora, mas como sedativa. Calmaria e exaltação e com ela a revolução. E depois seria uma repressão perfeitamente doce, humanitária. Não mais feridos, nem mortos. Apenas molhados. Quando muito, endefluxados. Findo o motim, os vencidos iriam tomar um grande suadouro e a ordem ficaria satisfeita. Ao século XIX competia, dado o seu espírito humanitário, fazer esta reforma considerável na supressão das revoluções.

 

 

 

AS CATÁSTROFES E AS LEIS DE EMOÇÃO

 

Desde que não conversamos, meus amigos, este nosso Velho Mundo e os outros mais velhos que se estendem para Oriente têm sido visitados por males inumeráveis, uns trazidos pelas violências da Natureza, outros pela violência dos homens, porque o consciente e o inconsciente (se é que este realmente existe) rivalizaram, como sempre, na produção da dor.

No Japão foi um desses pavorosos «macaréus», que tanto assustavam os nossos navegadores do século XVI, invadindo em desmedido vagalhão léguas de costa e lambendo aldeias, cidades, centenas de milhares de criaturas, como se fossem apenas conchas e areia leve. Na China a costumada trasbordação de rios, afogando nessa noite quinhentos mil chineses, um milhão de chineses, todo um imenso e escuro formigueiro chinês, com a simplicidade com que entre nós um riacho, depois da chuvas, alaga um feijoal em uma horta ribeirinha. Na Índia a peste junta com a fome, à velha maneira oriental, com esse horrendo feitio das expiações bíblicas em que os esfaimados findam por comer os cadáveres, e os pestíferos, aos centos, agonizam à beira dos caminhos, em breve todos brancos de ossadas. Na Arménia uma prodigiosa matança de trezentos mil cristãos, metodicamente dirigida pelas autoridades muçulmanas, com muita ordem, muito vagar, horas regulamentares para assassinar e para descansar e uma escrupulosa escrituração. Na Turquia e na Grécia uma guerra, que não ressuscitou a luta clássica do orientalismo e do helenismo (porque já não há orientais e ainda menos helenos), mas renovou uma briga entre a cruz e o crescente, briga toda concebida no espírito do século XIX, racionalista e positiva, em que os príncipes cristãos (até o papa) se colocaram num utilitário entusiasmo do lado do crescente, de sorte que a cruz teve de fugir com um dos braços partidos por esses caminhos tessálicos por onde outrora o Grego costumava alegremente acossar o Persa numeroso. Na ilha de Creta, tão querida a Júpiter, horrores inenarráveis, sob a vigilância pensativa e paternal de seis esquadras da Europa. Em Espanha bombas e suplícios. E enfim neste Paris o dia doloroso em que a ciência, sob a forma de um cinematográfico, queimou por seu turno, num vasto auto-de-fé, a religião, representada por piedosas senhoras que celebravam uma festa de devoção e caridade católica...

Mas eu não sei, meus amigos, se estas desgraças realmente vos interessam, vos comovem – porque a distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som. A mesma dura lei física rege desgraçadamente a acústica e a sensibilidade. É sempre em ambas o idêntico e tão racional princípio das ondulações, que vão decrescendo à maneira que se afastam do seu centro, até que docemente se imobilizam e morrem: se elas traziam um som que vinha vibrando – o som cala quando elas param: se traziam um terror que vinha tremendo – o terror finda quando elas findam.

Bruscas, grossas, frementes, rápidas em torno ao choque que as produziu, essas ondulações não são mais, nos horizontes remotos, do que um vago, quase liso arfar, que mal se diferença da inércia. Senão vede! Em Pequim, subitamente, uma tarde, ribomba um pavoroso trovão – e ao mesmo tempo pega fogo na vistosa cabaia de um mandarim muito ilustre, que morre queimado. Por todo Pequim a impressão é tremenda. Até o imperador, filho do Sol, nos seus grandes jardins, estremeceu, aterrado com aquele imprevisto troar de um céu puro: e nas vielas mais sórdidas os coolies mais piolhentos interromperam um momento o seu negro trabalho para lamentar com exclamações o mandarim muito ilustre. Mas aí está! A vinte ou trinta léguas de Pequim o terrifico trovão foi apenas um rumor que se confundiu com o rolar das carroças nas lajes – e, quando se contou nas lojas loquazes dos barbeiros o desastre do mandarim em chamas, só algum nédio funcionário, com sabão na bochecha, murmurou oficialmente algum «ah!» desinteressado e mole...

É que o som do trovão e a emoção do desastre vieram trazidos por ondulações, que, a trinta léguas de Pequim, seu centro vivo, já se alisavam, imobilizavam, morriam.

E quando aqui na Europa, de manhã, sabemos pelo telégrafo bisbilhoteiro do mandarim e do trovão, nem o nosso ouvido sente o mais ténue som, nem o nosso coração a mais ténue piedade.

Não ondularam até nós as ondulações acústicas e emotivas. E é com absoluta placidez que murmuramos: «Houve em Pequim um grande trovão; e – tem graça! – ardeu um mandarim!»

Mas então essa confraternidade humana – pela sublime força da qual nada do que é humano deve ser alheio ao homem? Não existe? Oh, certamente – mas para todo o homem, mesmo o mais culto, a humanidade consiste essencialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro. Todos os outros restantes, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente desarmonizando em relação ao seu sentimento, de sorte que os mais remotos já quase os não distinguem da Natureza inanimada. Quando qualquer de nós, no seu quieto e salubre bairro, ouve contar que uma furiosa peste matou trinta mil patagónios, fica exactamente penetrado daquela quantidade de compaixão que o invadiria ao saber que um furacão derrubara trinta mil árvores de um bosque. E de um bosque muito longínquo, de uma região muito desconhecida! Porque se as árvores destruídas fossem as do nosso doce Bosque de Bolonha, que nós amamos, tão ornadas e verdes em Maio, tão puramente vestidas de branca neve quando o Inverno se faz elegante e fino – a nossa mágoa teria uma intensidade infinitamente mais viva do que com a aniquilação desses vastos milhares de patagónios.

E esta estreiteza da emoção deriva de leis tão fatais que não se dá somente nas almas de caridade estreita – mas ainda nas mais ternas e nas mais largas, naquelas que parecem abrigar na sua amplidão do padecer humano... O bom senhor S. Vicente de Paulo, a quem o encontro de uma criancinha tremendo de frio ao canto de uma rua arrancava prantos desolados, que corriam enquanto ele corria com a criancinha sofregamente apertada nos seus braços, só teria um pálido e resignado suspiro quando ouvisse que, também na Tartária, em outras vielas regeladas, outras criancinhas tiri-tavam e choravam – se é que a homem tão ocupado com as misérias de França restava tempo para suspirar com as misérias da Tartária. E até talvez o muito divino S. Francisco, o adorável pobrezinho de Assis, irmão de todos os seres e para quem os próprios passarinhos das veigas de Itália eram irmãos muito queridos, não sentisse a sua costumada ternura, tão alvoroçada e activa, pelos pobres da Noruega, e não se reconhecesse inteiramente irmão dos pardaizinhos da Finlândia!

A superior sapiência das nações já formulou esta lei naquele seu fino adágio: «O coração não sente o que os olhos não vêem.» Para chorar é necessário ver. A mais pequenina dor que diante de nós se produza e diante de nós gema, põe na nossa alma uma comiseração e na nossa carne um arrepio, que lhe não dariam as mais pavorosas catástrofes passadas longe, noutro tempo ou sob outros céus. Um homem caído a um poço na minha rua mais ansiadamente me sobressalta que cem mineiros sepultados numa mina da Sibéria – e um carro esmagando a pata de um cão, em frente à nossa janela, é um caso infinitamente mais aflitivo do que a heróica e adorável Joana d’Arc queimada na praça de Ruão!

A distância e o tempo fazem das mais grossas tragédias ligeiras notícias – onde nenhum espírito são, bem equilibrado, encontra motivo de angústia ou pranto. Hoje certamente ninguém, a não ser algum velho e alto dignitário da Igreja ou do Estado, assistiria, com os olhos secos e o coração quieto, ao suplício de Joana d’Arc – mas nenhum fisiologista garantiria a sanidade intelectual de um sujeito que, na solidão da sua alcova, com as janelas cerradas, se desfizesse em lágrimas por os Ingleses terem outrora supliciado Joana d’Arc.

No entanto, vós observais, amigos, que já repetidamente chorastes (porque sois bons) com dores humanas, não somente sucedidas longe do vosso bairro, mas fora do vosso século; e algum mesmo me mostrará, como emblema irrecusável da confraternidade humana, o lenço sentidamente humedecido na véspera ao escutar os adeuses de Luís XVI aos filhos na prisão do Templo, ou mesmo a antiga Inês de Castro balbuciando as suas súplicas aos pés do antigo Afonso IV!

Decerto! E mesmo já muitas vezes tereis sufocado generosos soluços com misérias e tormentos de criaturas que só viveram no mundo aéreo da imaginação e do sonho. Mas quando, onde foi que assim vos comovestes, tão humanamente? Quando? Onde? No teatro, ou nas páginas de um romance, ou mesmo através dos sinceros versos de um poema, quando a arte, encarnando os seres dolorosos que concebeu ou ressuscitando com flagrante e magnífica realidade as figuras mortas da história, torna durante um momento essas criaturas, não somente vossas contemporâneas, mas vossas vizinhas, moradoras no bairro em que morais, respiradoras do ar que respirais, e pertencentes portanto àquela porção de humanidade próxima e tangível, cujas dores se partilham, porque confinam com as nossas... E depois, tal sujeito – que choramingou, no fundo do seu camarote, assistindo à morte da Dama das Camélias, morta pela milésima vez, na sua alcova de lona e papelão – recolherá a casa e lerá no jornal, com absoluta indiferença, mastigando a torrada, que duzentas mulheres, com os filhinhos nos braços, morreram afogadas num naufrágio, longe, nos mares da Indochina! Sim, amigos, essas duzentas mães afogadas nas vagas indochinesas certamente vos serão estranhas, e como não existentes! Se elas tivessem naufragado nos mares dos Açores, já sem dúvida tão patética nova vos arrancaria algum vago murmúrio de simpatia. Mas se elas houvessem perecido, elas e os pobres filhinhos, na baía do Rio de Janeiro, que incomparável catástrofe – e como vós correríeis pelas ruas, pálidos cheios de espanto!

Que digo eu? Para vos comover nem seriam necessárias duzentas desgraçadas – bastaria que naufragassem duas, se vós as conhecêsseis de nome e de rosto! Porque, segundo a cruel lei física que regula os fenómenos da emoção – um empregado da Alfândega que caiu de um barco e desapareceu na baía do Rio de Janeiro vale, para o habitante do Rio, mil pescadores despedaçados sobre os rochedos nas costas da Islândia!

Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração!

Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa outras senhoras costuravam.

Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com um sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela violência da Natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a Terra.

Ela lia as catástrofes lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. «Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas...» As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa – e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio trasbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados...». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!» A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas... Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma então teve um «oh!» de dolorida surpresa. No Sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilando causara três mortes, onze ferimentos...» Uma curta emoção, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses... Todos lamentaríamos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.

A leitora, tão cheia de graça, virou a página do jornal doloroso, e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno.... E, de repente, solta um grito, leva as mãos à cabeça:

– Santo Deus!...

Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:

– Foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista... Esta manhã! Desmanchou um pé!

Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.

As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltrona; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.

Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume.