Capítulo XIII

Carlos, que almoçara cedo, estava para sair no coupé, e já de chapéu - quando Baptista veio dizer que o Sr. Ega, desejando falar-lhe numa coisa grave, lhe pedia para esperar um instante. O Sr. Ega ficara a fazer a barba.

Carlos pensou logo que se tratava da Cohen. Havia duas semanas que ela chegara a Lisboa, Ega ainda a não vira, e falava dela raramente. Mas Carlos sentia-o nervoso e desassossegado. Todas as manhãs o pobre Ega mostrava um desapontamento ao receber o correio, que só lhe trazia algum jornal cintado, ou cartas de Celorico. Á noite percorria dois, três teatros, já quasi vazios naquele começo de verão; e ao recolher era outra desconsolação, quando os criados lhe afirmavam, com certeza, que não viera carta alguma para s. Exc.ª Decerto Ega não se resignava a perder Rachel, ansiava por a encontrar; e roía-o o despeito de que ela, de qualquer modo, lhe não tivesse mostrado que no seu coração permanecia ao menos a saudade das antigas felicidades... Justamente na véspera Ega aparecera à hora do jantar, transtornado: cruzara-se com o Cohen na rua do Ouro, e parecera-lhe que «esse canalha» lhe atirara de lado um olhar atrevido, sacudindo a bengala; o Ega jurava que se «esse canalha» ousasse outra vez fita-lo, despedaçava-o, sem piedade, publicamente, a uma esquina da Baixa.

Na ante-câmara o relógio bateu dez horas, Carlos impaciente ia a subir ao quarto do Ega. Mas nesse instante o correio chegava, com a Revista dos Dois Mundos, e uma carta para Carlos. Era da Gouvarinho. Carlos acabava de a ler - quando o Ega apareceu, de jaquetão, e em chinelas.

- Tenho a falar-te numa coisa grave, menino.

- Lê isto primeiro, disse o outro, passando-lhe a carta da Gouvarinho.

A Gouvarinho, num tom amargo, queixava-se que, já por duas vezes, Carlos faltara ao rendez-vous em casa da titi, sem lhe ter sequer escrito uma palavra; ela vira nisto uma ofensa, uma brutalidade; e vinha agora intima-lo, «em nome de todos os sacrifícios que por ele fizera», a que aparecesse na rua de S. Marçal, domingo ao meio dia, para terem uma explicação definitiva antes dela partir para Sintra.

- Excelente ocasião de acabar! exclamou Ega, entregando a carta a Carlos, depois de respirar o perfume do papel. Não vás, nem respondas... Ela parte para Sintra, tu para Santa Olavia, não vos vedes mais, e assim finda o romance. Finda como todas as coisas grandes, como o Império Romano, e como o Reno, por dispersão, insensivelmente...

- É o que eu vou fazer, disse Carlos, começando a calçar as luvas. Jesus! Que mulher maçadora!

- E que desavergonhada! Chamar a essas coisas «sacrifícios!...» Arrasta-te duas vezes por semana a casa da titi, regala-se lá de extravagâncias, bebe champagne, fuma cigarretes, sobe ao sétimo céu, delira, e depois põe dolorosamente os olhos no chão, e chama a isso «sacrifícios...» Só com um chicote!...

Carlos encolheu os ombros, com resignação, como se nas condessas de Gouvarinho, e no mundo, só houvesse incoerência e dolo.

- E que é isso que tu me tinhas a dizer?

Ega então tomou um ar grave. Escolheu lentamente na caixa uma cigarrete, abotoou devagar o jaquetão.

- Tu não tens visto o Dâmaso?

- Nunca mais me apareceu, disse Carlos. Creio que está amuado... Eu sempre que o encontro, aceno-lhe de longe amigavelmente com dois dedos...

- Devia ser antes com a bengala. O Dâmaso anda ai, por toda a parte, falando de ti e dessa senhora, tua amiga... A ti chama-te pulha, a ela pior ainda. É a velha história; diz que te apresentou, que te meteste de dentro, e como para essa senhora é uma questão de dinheiro, e tu és o mais rico, ela lhe passou o pé. Vês daí a infamiasinha. E isto tagarelado pelo Grémio, pela Casa Havaneza, com detalhes torpes, envolvendo sempre a questão de dinheiro. Tudo isto é atroz. Trata de lhe pôr cobro.

Carlos, muito pálido, disse simplesmente:

- Há de se fazer justiça.

Desceu, indignado. Aquela torpe insinuação sobre «dinheiro» parecia-lhe poder ser castigada só com a morte. E um instante mesmo, com a mão no fecho da portinhola do coupé, pensou em correr a casa do Dâmaso, tomar um desforço brutal.

Mas eram quasi onze horas, e ele tinha de ir aos OIivais. No dia seguinte, sábado, dia belo entre todos e solene para o seu coração, Maria Eduarda devia enfim visitar a quinta do Craft: e ficara combinado, na véspera, que passariam lá as horas do calor, até tarde, sós, naquela casa solitária e sem criados, escondida entre as árvores. Ele pedira-lho assim, hesitante e a tremer: ela consentira logo, sorrindo e naturalmente. Nessa manhã ele mandara aos Olivais dois criados para arejar as salas, espanejar, encher tudo de flores. Agora ia lá, como um devoto, ver se estava bem enfeitado o sacrário da sua deusa... E era através destes deliciosos cuidados, em plena ventura, que lhe aparecia outra vez, suja e empanando o brilho do seu amor, a tagarelice do Dâmaso!

Até aos Olivais, não cessou de ruminar coisas vagas e violentas que faria para aniquilar o Dâmaso. No seu amor não haveria paz, enquanto aquele vilão o andasse comentando sordidamente pelas esquinas das ruas. Era necessário enxovalha-lo de tal modo, com tal publicidade, que ele não ousasse mais mostrar em Lisboa a face bochechudo, a face vil... Quando o coupé parou à porta da quinta, Carlos decidira dar bengaladas no Dâmaso, uma tarde, no Chiado, com aparato...

Mas depois, ao regressar da quinta, vinha já mais calmo. Pisara a linda rua de acácias que os pés dela pisariam na manhã seguinte: dera um longo olhar ao leito que seria o leito dela, rico, alçado sobre um estrado, envolto em cortinados de brocatel cor de ouro, com um esplendor sério de altar profano... daí a poucas horas, encontrar-se-iam sós naquela casa muda e ignorada do mundo; depois, todo o verão os seus amores viveriam escondidos nesse fresco retiro de aldeia; e daí a três meses estariam longe, na Itália, à beira dum claro lago, entre as flores da Isola Bela... No meio destas voluptuosidades magníficas, que lhe podia importar o Dâmaso, gorducho e reles, palrando em calão nos bilhares do Grémio! Quando chegou à rua de S. Francisco resolvera, se visse o Dâmaso, continuar a acenar-lhe, de leve, com a ponta dos dedos.

Maria Eduarda fora passear a Belém com Rosa deixando-lhe um bilhete, em que lhe pedia para vir à noite faire un bout de causerie. Carlos desceu as escadas, devagar, guardando esse bocadinho de papel na carteira como uma doce relíquia; e saia o portão, no momento em que o Alencar desembocava defronte, da travessa da Parreirinha, todo de preto, moroso e pensativo. Ao avistar Carlos, parou de braços abertos; depois vivamente, como recordando-se, ergueu os olhos para o primeiro andar.

Não se tinham visto desde as corridas, o poeta abraçou com efusão o seu Carlos. E falou logo de si, copiosamente. Estivera outra vez em Sintra, em Colares com o seu velho Carvalhosa: e o que se lembrara do rico dia passado com Carlos e com o maestro em Sitiais!... Sintra uma beleza. Ele, um pouco constipado. E apesar da companhia do Carvalhosa, tão erudito e tão profundo, apesar da excelente música da mulher, da Julinha (que para ele era como uma irmã), tinha-se aborrecido. Questão de velhice...

- Com efeito, disse Carlos, pareces-me um pouco murcho... Falta-te o teu ar aureolado.

O poeta encolheu os ombros.

- O Evangelho lá o diz bem claro... Ou é a Bíblia que o diz...? Não; é S. Paulo... S. Paulo ou Santo Agostinho?... Enfim a autoridade não faz ao caso. Num desses santos livros se afirma que este mundo é um vale de lágrimas...

- Em que a gente se ri bastante, disse Carlos alegremente.

O poeta tornou a encolher os ombros. Lágrimas ou risos, que importava?... Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na véspera ele dissera isso mesmo em casa dos Cohens...

E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braço de Carlos:

- E agora por falar nos Cohens, dize-me uma coisa com franqueza, meu rapaz. Eu sei que tu és íntimo do Ega, e, que diabo, ninguém lhe admira mais o talento do que eu!... Mas, realmente, tu aprovas que ele, apenas soube da chegada dos Cohens, se viesse meter em Lisboa? Depois do que houve!...

Carlos afiançou ao poeta que o Ega só no dia mesmo da chegada, horas depois, soubera pela Gazeta Ilustrada a vinda dos Cohens... E de resto se não pudessem habitar, conjuntas na mesma cidade, as pessoas entre as quais tivesse havido atritos desagradáveis, as sociedades humanas tinham de se desfazer...

Alencar não respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com a cabeça baixa. Depois parou de novo, franzindo a testa:

- Outra coisa em que te quero falar. Houve entre ti e o Dâmaso alguma pega? Eu pergunto-te isto porque noutro dia, lá em casa dos Cohens, ele veio com uns ditos, umas insinuações... Eu declarei-lhe logo: «Dâmaso, Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, é como se fosse meu irmão.» E o Dâmaso calou-se... Calou-se, porque me conhece, e sabe que eu nestas coisas de lealdade e de coração sou uma fera!

Carlos disse simplesmente:

- Não, não há nada, não sei nada... Nem sequer tenho visto o Dâmaso.

- Pois é verdade, continuou Alencar tomando o braço de Carlos, lembrei-me muito de ti em Sintra. Até fiz lá um coisita que me não saiu má, e que te dediquei... Um simples soneto, uma paisagem, um quadrosinho de Sintra ao pôr do sol. Quis provar aí a esses da Ideia Nova, que, sendo necessário, também por cá se sabe cinzelar o verso moderno e dar o traço realista. Ora espera ai, eu te digo, se me lembrar. A coisa chama-se - Na estrada dos Capuchos...

Tinham parado à esquina do Seixas; e o poeta tossira já de leve, antes de recitar, - quando justamente lhes apareceu o Ega, vindo de baixo, vestido de campo, com uma bela rosa branca no jaquetão de flanela azul.

Alencar e ele não se encontravam desde a fatal soirée dos Cohens. E ao passo que o Ega conservava um ressentimento feroz contra o poeta vendo nele o inventor dessa pérfida lenda da «carta obscena»- Alencar odiava-o pela certeza secreta de que ele fora o amante amado da sua divina Rachel. Ambos se fizeram pálidos; o aperto de mão que deram foi incerto e regelado; e ficaram calados, todos três, enquanto Ega nervoso levava uma eternidade a acender o charuto no lume de Carlos. Mas foi ele que falou, por entre uma fumaça, afectando uma superioridade amável:

- Acho-te com boa cor, Alencar!

O poeta foi amável também, um pouco de alto, passando os dedos no bigode:

- Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos dás essas Memórias homem?

- Estou à espera que o país aprenda a ler.

- Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, ele ocupa-se da Instrucção publica... Olha, ali o tens tu, grave e oco como uma coluna do Diário do Governo...

O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, por onde o Gouvarinho descia, muito devagar, a conversar com o Cohen; e ao lado deles, de chapéu branco, de colete branco, o Dâmaso deitava olhares pelo Chiado, risonho, ovante, barrigudo, como um conquistador nos seus domínios. Já aquele arzinho gordo de tranquilo triunfo irritou Carlos. Mas quando o Dâmaso parou defronte, no outro passeio, todo de costas para ele, ostentando rir alto com o Gouvarinho, não se conteve, atravessou a rua.

Foi breve, e foi cruel: sacudiu a mão do Gouvarinho, saudou de leve o Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Dâmaso friamente:

- Ouve lá. Se continuas a falar de mim e de pessoas das minhas relações, do modo como tens falado, e que não me convém, arranco-te as orelhas.

O conde acudiu, metendo-se entre eles:

- Maia, por quem é! Aqui no Chiado...

- Não é nada, Gouvarinho, disse Carlos detendo-o, muito sério e muito sereno. É apenas um aviso a este imbecil.

- Eu não quero questões, eu não quero questões!... balbuciou o Dâmaso, lívido, enfiando para dentro duma tabacaria.

E Carlos voltou, com sossego, para junto dos seus amigos, depois de ter saudado o Cohen e sacudir a mão ao Gouvarinho.

Vinha apenas um pouco pálido: mais perturbado estava o Ega, que julgara ver de novo, num olhar do Cohen, uma provocação intolerável. Só o Alencar não reparara em nada: continuava a discursar sobre coisas literárias, explicando ao Ega as concessões que se podiam fazer ao naturalismo...

- Fiquei aqui a dizer ao Ega... É evidente que quando se trata de paisagem é necessário copiar a realidade... Não se pode descrever um castanheiro a priori, como se descreveria uma alma... E lá isso faço eu... Aí está esse soneto de Sintra que eu te dediquei, Carlos. É realista, está claro que é, realista... Pudera, se é paisagem! Ora eu vo-lo digo... Ia justamente dize-lo, quando tu apareceste, Ega... Mas vejam lá vocês se isto os massa...

Qual maçava! E até, para o escutarem melhor, penetraram na rua de S. Francisco, mais silenciosa. Aí, dando um passo lento, depois outro, o poeta murmurou a sua écloga. Era em Sintra, ao pôr do sol: uma inglesa, de cabelos soltos, toda de branco, desce num burrinho por uma vereda que domina um vale; as aves cantam de leve, há borboletas em torno das madressilvas; então a inglesa pára, deixa o burrinho, olha enlevada o céu, os arvoredos, a paz das casas; - e ai, no ultimo terceto, vinha «a nota realista» de que se ufanava o Alencar:

Ela olha a flor dormente, a nuvem casta,

Enquanto o fumo dos casais se eleva

E ao lado o burro, pensativo, pasta.

- Aí têm vocês o traço, a nota naturalista... Ao lado o burro, pensativo, pasta... Eis aí a realidade, está-se a ver o burro pensativo... Não há nada mais pensativo que um burro... E são estas pequeninas coisas da natureza que é necessário observar... Já vêem votos que se pode fazer realismo, e do bom, sem vir logo com obscenidades... Vocês que lhes parece o soneto?

Ambos o elogiaram profundamente - Carlos arrependido de não ter completado a humilhação do Dâmaso, dando-lhe bengaladas; Ega pensando que decerto, numa dessas tardes, no Chiado, teria de esbofetear o Cohen. Como eles recolhiam ao Ramalhete, Alencar, já desanuviado, foi acompanha-los pelo Aterro. E falou sempre, contando o plano de um romance histórico, em que ele queria pintar a grande figura de Afonso de Albuquerque, mas por um lado mais humano, mais íntimo: Afonso de Albuquerque namorado: Afonso de Albuquerque, só, de noite, na popa do seu galeão, diante de Ormuz incendiada, beijando uma flor seca, entre soluços. Alencar achava isto sublime.

Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir à rua de S. Francisco - quando o Baptista veio dizer que o Sr. Teles da Gama lhe desejava falar com urgência. Não o querendo receber, ali, em mangas de camisa, mandou-o entrar para o gabinete escarlate e preto. E veio daí a um instante encontrar Teles da Gama admirando as belas faianças holandesas.

- Você, Maia, tem isto lindíssimo, exclamou ele logo. Eu pelo-me por porcelanas... Hei de voltar um dia destes, com mais vagar, ver tudo isto, de dia... Mas hoje venho com pressa, venho com uma missão... Você não adivinha?

Carlos não adivinhava.

E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em que transparecia um sorriso:

- Eu venho aqui perguntar-lhe da parte do Dâmaso, se você hoje, naquilo que lhe disse, tinha intenção de o ofender. É, só isto... A minha missão é apenas esta: perguntar-lhe se você tinha intenção de o ofender.

Carlos olhou-o, muito sério:

- O quê!? Se tinha intenção de ofender o Dâmaso quando o ameacei de lhe arrancar as orelhas? De modo nenhum: tinha só intenção de lhe arrancar as orelhas!

Teles da Gama saudou, rasgadamente:

- Foi isso mesmo o que eu respondi ao Dâmaso: que você não tinha senão essa intenção. Em todo o caso, desde este momento, a minha missão está finda... Como você tem isto bonito!... O que é aquele prato grande, majólica?

- Não, um velho Nevers. Veja você ao pé... É Tetis conduzindo as armas de Aquiles... É esplêndido; e é muito raro... Veja você esse Deft, com as duas tulipas amarelas... É um encanto!

Teles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades, tomando o chapéu de sobre o sofá.

- Lindíssimo tudo isto!... Então só intenção de lhe arrancar as orelhas? nenhuma de o ofender?...

- Nenhuma de o ofender, toda de lhe arrancar as orelhas... Fume você um charuto.

- Não, obrigado...

- Cálice de cognac?

- Não! abstenção total de bebidas e águas ardentes... Pois adeus, meu bom Maia!

- Adeus, meu bom Teles...

Ao outro dia, por uma radiante manhã de julho, Carlos saltava do coupé, com um molho de chaves, diante do portão da quinta do Craft. Maria Eduarda devia chegar ás dez horas, só, na sua carruagem da Companhia. O hortelão, dispensado por dois dias, fora a Vila Franca; não havia ainda criados na casa; as janelas estavam fechadas. E pesava ali, envolvendo a estrada e a vivenda, um desses altos e graves silêncios de aldeia, em que se sente, dormente no ar, o zumbir dos moscardos.

Logo depois do portão, penetrava-se numa fresca rua de acácias, onde cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, aparecia o quiosque, com tecto de madeira, pintado de vermelho, que fora o capricho de Craft, e que ele mobilara à japonesa. E ao fundo era a casa, caiada de novo, com janelas de peitoril, persianas verdes, e a portinha ao centro sobre três degraus, flanqueados por vasos de louça azul cheios de cravos.

Só o meter a chave devagar e com uma inútil cautela na fechadura daquela morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu as janelas: e a larga luz que entrava pareceu-lhe trazer uma doçura rara, e uma alegria maior que a dos outros dias, como preparada especialmente pelo bom Deus para alumiar a festa do seu coração. Correu logo à sala de jantar, a verificar se, na mesa posta para o lunch, se conservavam ainda viçosas as flores que lá deixara na véspera. Depois voltou ao coupé a tirar o caixote de gelo, que trouxera de Lisboa, embrulhado em flanela, entre serradura. Na estrada, silenciosa por ora, ia só passando uma saloia montada na sua égua.

Mas apenas acomodara o gelo - sentiu fora o ruído lento da carruagem. Veio para o gabinete forrado de cretones, que abria sobre o corredor; e ficou ali, espreitando da porta, mas escondido, por causa do cocheiro da Companhia. daí a um instante viu-a enfim chegar, pela rua de acácias, alta e bela, vestida de preto, e com um meio-véu espesso como uma mascara. Os seus pésinhos subiram os três degraus de pedra. Ele sentiu a sua voz inquieta perguntar de leve:

- Êtes-vous là?

Apareceu - e ficaram um instante, à porta do gabinete, apertando sofregamente as mãos, sem falar, comovidos, deslumbrados.

- Que linda manhã! disse ela por fim, rindo e toda vermelha.

- Linda manhã, linda! repetia Carlos, contemplando-a, enlevado.

Maria Eduarda resvalara sobre uma cadeira, junto da porta, num cansaço delicioso, deixando acalmar o alvoroço do seu coração.

- É muito confortável, é encantador tudo isto, dizia ela olhando lentamente em redor os cretones do gabinete, o divã turco coberto com um tapete de Brousse, a estante envidraçada cheia de livros. Vou ficar aqui adoravelmente...

- Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo, murmurou Carlos, esquecido a olhar para ela. Ainda nem lhe beijei a mão...

Maria Eduarda começou atirar o véu, depois as luvas, falando da estrada. Achara-a longa, fatigante. Mas que lhe importava? Apenas se acomodasse naquele fresco ninho nunca mais voltava a Lisboa!

Atirou o chapéu para cima do divã - ergueu-se, toda alegre e luminosa.

- Vamos ver a casa, estou morta por ver essas maravilhas do seu amigo Craft!... É Craft que se chama? Craft quer dizer indústria!

- Mas ainda nem sequer lhe beijei a mão! tornou Carlos, sorrindo e suplicante.

Ela estendeu-lhe os lábios, e ficou presa nos seus braços.

E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabelo, dizia-lhe quanto era feliz e quanto a sentia agora mais sua entre estes velhos muros de quinta que a separavam do resto do mundo...

Ela deixava-se beijar, séria e grave:

- E é verdade isso? É realmente verdade?...

Se era verdade! Carlos teve um suspiro quasi triste:

- Que lhe hei de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa antiga que já Hamlet disse: que duvide de tudo, que duvide do sol, mas que não duvide de mim...

Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada.

- Vamos ver a casa, disse ela.

Começaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia: mas os quartos em cima, alegres, esteirados de novo, forrados de papéis claros, abriam sobre o rio e sobre os campos.

- Os seus aposentos, disse Carlos, hão de ser em baixo, está visto, entre as coisas ricas... Mas Rosa e miss Sarah ficam aqui esplendidamente. Não lhe parece?

E ela percorria os quartos, devagar, examinando a acomodação dos armários, palpando a elasticidade dos colchões, atenta, cuidadosa, toda no desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma alteração. E era realmente como se aquele homem que a seguia, enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio.

- O quarto com as duas janelas, ao fundo do corredor, seria o melhor para Rosa. Mas a pequena não pode dormir naquele enorme leito de pau preto...

- Muda-se!

- Sim, pode mudar-se... E falta uma sala larga para ela brincar, ás horas do calor... Se não houvesse o tabique entre os dois quartos pequenos...

- Deita-se abaixo

Ele esfregava as mãos, encantado, pronto a refundir toda a casa; e ela não recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus.

Desceram à sala de jantar. E ai, diante da famosa chaminé de carvalho lavrado, flanqueada à maneira de cariátides pelas duas negras figuras de Núbios, com olhos rutilantes de cristal, Maria Eduarda começou a achar o gosto do Craft excêntrico, quasi exótico... Também Carlos não lhe dizia que Craft tivesse o gosto correcto dum ateniense. Era um saxónio batido dum raio de sol meridional: mas havia muito talento na sua excentricidade...

- Oh, a vista é que é deliciosa! exclamou ela chegando-se à janela.

Junto do peitoril crescia um pé de margaridas, e ao lado outro de baunilha que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete de relva, mal aparada, um pouco amarelada já pelo calor de julho; e entre duas grandes árvores que lhe faziam sombra, havia ali, para os vagares da sesta, um largo banco de cortiça. Um renque de arbustos cerrados parecia fechar a quinta daquele lado como uma sebe. Depois a colina descia, com outras quintarolas, casas que se não viam, e uma chaminé de fabrica; e lá no fundo o rio rebrilhava, vidrado de azul, mudo e cheio de sol, até ás montanhas de além-Tejo, azuladas também na faiscação clara do céu de verão.

- Isto é encantador! repetia ela.

- É um paraíso! Pois não lhe dizia eu? É necessário pôr um nome a esta casa... Como se há de chamar? Vila-Marie? Não. Château-Rose... Também não, credo! Parece o nome dum vinho. O melhor é baptiza-la definitivamente com o nome que nós lhe dávamos. Nós chamávamos-lhe a Tóca.

Maria Eduarda achou originalíssimo o nome de Tóca. Devia-se até pintar em letras vermelhas sobre o portão.

- Justamente, e com uma divisa de bicho, disse Carlos rindo. Uma divisa de bicho egoísta na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!

Mas ela parara, com um lindo riso de surpresa, diante da mesa posta, cheia de fruta, com as duas cadeiras já chegadas, e os cristais brilhando entre as flores.

- São as bodas de Caná!

Os olhos de Carlos resplandeceram.

- São as nossas!

Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um morango, depois a escolher uma rosa.

- Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo? Nós temos gelo, temos tudo! Não nos falta nada, nem a benção de Deus... Uma gotinha de champagne, vá!

Ela aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus lábios se encontraram, apaixonadamente.

Carlos acendeu uma cigarrete, continuaram a percorrer a casa. A cozinha agradou-lhe muito, arranjada à inglesa, toda em azulejos. No corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panóplia de tourada, com uma cabeça negra de touro, espadas e garrochas, mantos de seda vermelha, conservando nas suas pregas uma graça ligeira, e ao lado o cartaz amarelo de la corrida, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a como um quente lampejo de festa e de sol peninsular...

Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lho foi mostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova, recebendo a claridade duma sala forrada de tapeçarias, onde desmaiavam na trama de lá os amores de Vénus e Marte: da porta de comunicação, arredondada em arco de capela, pendia uma pesada lâmpada da Renascença, de ferro forjado: e, àquela hora, batida por uma larga faixa de sol, a alcova resplandecia como o interior de um tabernáculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tectos, de um brocado amarelo, cor de botão de ouro; um tapete de veludo do mesmo tom rico fazia um pavimento de ouro vivo sobre que poderiam correr nús os pés ardentes duma deusa amorosa - e o leito de dossel, alçado sobre um estrado, coberto com uma colcha de cetim amarelo bordada a flores de ouro, envolto em solenes cortinas também amarelas de velho brocatel, - enchia a alcova, esplêndido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas de uma paixão trágica do tempo de Lucrécia ou de Romeu. E era ali que o bom Craft, com um lenço de seda da índia amarrado na cabeça, ressonava as suas sete horas, pacata e solitariamente.

Mas Maria Eduarda não gostou destes amarelos excessivos. Depois impressionou-se, ao reparar num painel antigo, defumado, resultando em negro do fundo de todo aquele ouro - onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida, gelada no seu sangue, dentro dum prato de cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor, com um ar de meditação sinistra, os seus dois olhos redondos e agourentos... Maria Eduarda achava impossível ter ali sonhos suaves.

Carlos agarrou logo na coluna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor; e propôs-lhe mudar aqueles brocados, forrar a alcova de um cetim cor de rosa e risonho.

- Não, venho-me a acostumar a todos esses duros... Somente aquele quadro, com a cabeça, e com o sangue... Jesus, que horror!

- Reparando bem, disse Carlos, creio que é o nosso velho amigo S. João Baptista.

Para desfazer essa impressão desconsolada levou-a ao salão nobre, onde Craft concentrara as suas preciosidades. Maria Eduarda, porém, ainda descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.

- É para ver de pé, e de passagem... Não se pode ficar aqui sentado, a conversar.

- Mas esta é matéria-prima! exclamou Carlos. Com isto depois faz-se uma sala adorável... Para que serve o nosso génio decorativo?... Olhe o armário, veja que centro! Que beleza!

Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armário, o «móvel divino» do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseática, luxuoso e sombrio, tinha uma majestade arquitectural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Mateus, imagens rígidas, envolvidas nessas roupagens violentas que um vento de profecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um troféu agrícola com molhos de espigas, foices, cachos de uvas e rabiças de arados; e, à sombra destas coisas de labor e fartura, dois Faunos, recostados em simetria, indiferentes aos heróis e aos santos, tocavam num desafio bucólico a frauta de quatro tubos.

- Então, hein? dizia Carlos. Que móvel! É todo um poema da Renascença, Faunos e Apóstolos, guerras e geórgicas... Que se pode meter dentro deste armário? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como num altar-mór.

Ela não respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas do passado, duma beleza fria, e exalando a indefinida tristeza de um luxo morto: finos móveis da Renascença italiana, exilados dos seus palácios de mármore, com embutidos de Cornalina e agata que punham um brilho suave de jóia sobre a negrura dos ébanos ou cetim das madeiras cor de rosa; cofres nupciais, longos como baús, onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Príncipes, pintados a púrpura e ouro, com graças de miniatura; contadores espanhóis empertigadas, revestidos de ferro brunido e de veludo vermelho, e com interiores misteriosos, em forma de capela, cheios de nichos, de claustros de tartaruga... Aqui e além, sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de cetim toda recamada de flores e de aves de ouro; ou sobre um bocado de tapete do Oriente de tons severos, com versículos do Alcorão, desdobrava-se a pastoral gentil dum minuete em Citera sobre a seda de um leque aberto...

Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, numa poltrona Luís xv, ampla e nobre, feita para a majestade das anquinhas, recoberta de tapeçaria de Beauvais, de onde parecia exalar-se ainda um vago aroma de empoado.

Carlos triunfava, vendo a admiração de Maria. Então, ainda considerava uma extravagância aquela compra, feita num rasgo de entusiasmo?

- Não, há aqui coisas adoráveis... Nem eu sei se me atreverei a viver uma vida pacata de aldeia no meio de todas estas raridades...

- Não diga isso, exclamava Carlos rindo, que eu pego fogo a tudo!

Mas o que lhe agradou mais foram as belas faianças, toda uma arte imortal e frágil espalhada por sobre o mármore das consolas. Uma sobretudo atraiu-a, uma esplêndida taça persa, dum desenho raro, com um renque de negros ciprestes, cada um abrigando uma flor de cor viva: e aquilo fazia lembrar breves sorrisos reaparecendo entre longas tristezas. Depois eram as aparatosas majólicas, de tons estridentes e desencontrados, cheias de grandes personagens, Carlos V passando o Elba, Alexandre coroando Roxane; os lindos Nevers, ingénuos e sérios; os Marselhas, onde se abre voluptuosamente, como uma nudez que se mostra, uma grossa rosa vermelha; os Derby, com as suas rendas de ouro sobre o azul-ferrete de céu tropical; os Wedgewood, cor deleite e cor de rosa, com transparências fugitivas de concha na água...

- Só um instante mais, exclamou Carlos vendo-a outra vez sentar-se, é necessário saudar o génio tutelar da casa!

Era ao centro, sobre uma larga peanha, um ídolo japonês de bronze, um deus bestial, nú, pelado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso, com o ventre ovante, distendido na indigestão de todo um universo - e as duas perninhas bambas, moles e flácidas como as peles mortas dum feto. E este monstro triunfava, encanchado sobre um animal fabuloso, de pés humanos, que dobrava para a terra o pescoço submisso, mostrando no focinho e no olho oblíquo todo o surdo ressentimento da sua humilhação...

- E pensarmos, dizia Carlos, que gerações inteiras vieram ajoelhar-se diante deste ratão, rezar-lhe, beijar-lhe o umbigo, oferecer-lhe riquezas, morrer por ele...

- O amor que se tem por um monstro, disse Maria, é mais meritório, não é verdade?

- Por isso não acha talvez meritório o amor que se tem por si...

Sentaram-se ao pé da janela, num divã baixo e largo, cheio de almofadas, cercado por um biombo de seda branca, que fazia entre aquele luxo do passado um fofo recanto de conforto moderno: e como ela se queixava um pouco de calor, Carlos abriu a janela. Junto do peitoril crescia também um grande pé de margaridas; adiante, num velho vaso de pedra, pousado sobre a relva, vermelhejava a flor dum cacto; e dos ramos de uma nogueira caia uma fina frescura.

Maria Eduarda veio encostar-se à janela, Carlos seguiu-a; e ficaram ali juntos, calados, profundamente felizes, penetrados pela doçura daquela solidão. Um pássaro cantou de leve no ramo da árvore; depois calou-se. Ela quis saber o nome de uma povoação que branquejava ao longe ao sol na colina azulada. Carlos não se lembrava. Depois brincando, colheu uma margarida, para a interrogar: Ele m'aime, un peu, beaucoup... Ela arrancou-lha das mãos.

- Para que precisa perguntar ás flores?

- Porque ainda mo não disse claramente, absolutamente, como eu quero que mo diga...

Abraçou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Então Carlos, com os olhos mergulhados nos dela, disse-lhe baixinho e implorando:

- Ainda não vimos a saleta de banho...

Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaçada pelo salão, depois através da sala de tapeçarias onde Marte e Vénus se amavam entre os bosques. Os banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por um velho tapete vermelho da Caramania. Ele, tendo-a sempre abraçada, pousou-lhe no pescoço um beijo longo e lento. Ela abandonou-se mais, os seus olhos cerraram-se, pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente e cor de ouro: Carlos ao passar desprendeu as cortinas do arco de capela, feitas de uma seda leve que coava para dentro uma claridade loura: e um instante ficaram imóveis, sós enfim, desatado o abraço, sem se tocarem, como suspensos e sufocados pela abundância da sua felicidade.

- Aquela horrível cabeça! murmurou ela.

Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E então todo o rumor se extinguiu, a solitária casa ficou adormecida entre as árvores, numa demorada sesta, sob a calma de julho...

Os anos de Afonso da Maia foram justamente no dia seguinte, domingo. Quasi todos os amigos da casa tinham jantado no Ramalhete; e tomara-se o café no escritório de Afonso, onde as janelas se conservavam abertas. A noite estava tépida, estrelada e sereníssima. Craft, Sequeira e o Taveira passeavam fumando no terraço. Ao canto dum sofá Cruges escutava religiosamente Steinbroken que lhe contava, com gravidade, os progressos da música na Finlândia. E em redor de Afonso, estendido na sua velha poltrona, de cachimbo na mão, falava-se do campo.

Ao jantar Afonso anunciara a intenção de ir visitar, para o meado do mês, as velhas árvores de Santa Olavia; e combinara-se logo uma grande romaria de amizade ás margens do Douro. Craft e Sequeira acompanhavam Afonso. O marquês prometera uma visita para agosto «na companhia melodiosa», dizia ele, do amigo Steinbroken. D. Diogo hesitava, com receio da longa jornada, da humidade da aldeia. E agora tratava-se de persuadir Ega a ir também, com Carlos - quando Carlos acabasse enfim de reunir esses materiais do seu livro que o retinham em Lisboa «á banca do labor...» Mas o Ega resistiu. O campo, dizia ele, era bom para os selvagens. O homem, à maneira que se civiliza, afasta-se da natureza; e a realização do progresso, o paraíso na Terra, que pressagiam os Idealistas, concebia-o ele como uma vasta cidade ocupando totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e além um bosquesinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes para perfumar o altar da Justiça...

- E o milho? A bela fruta? A hortaliçasinha? perguntava Vilaça, rindo com malícia.

Imaginava então Vilaça, replicava o outro, que daqui a séculos ainda se comeriam hortaliças? O habito dos vegetais era um resto da rude animalidade do homem. Com os tempos o ser civilizado e completo vinha a alimentar-se unicamente de productos artificiais, em frasquinhos e em pílulas, feitos nos laboratórios do Estado...

- O campo, disse então D. Diogo, passando gravemente os dedos pelos bigodes, tem certa vantagem para a sociedade, para se fazer um bonito pic-nic, para uma burficada, para uma partida de croquet... Sem campo não há sociedade.

- Sim, rosnou o Ega, como uma sala em que também há árvores ainda se admite...

Enterrado numa poltrona, fumando languidamente, Carlos sorria em silêncio. Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo esparsamente a tudo, com um ar luminoso e de deliciosa lassidão. E então o marquês, que já duas vezes, dirigindo-se a ele, encontrara a mesma abstracção radiosa, impacientou-se:

- Homem, fale, diga alguma coisa!... Você está hoje com um ar extraordinário, um arzinho de beato que se regalou de papar o Santíssimo!

Todos em redor, com simpatia, se afirmaram em Carlos: Vilaça achava-lhe agora melhor cara, cor de alegria: D. Diogo, com um ar entendido, sentindo mulher, invejou-lhe os anos, invejou-lhe o vigor. E Afonso reenchendo o cachimbo olhava o neto, enternecido.

Carlos ergueu-se imediatamente, fugindo àquele exame afectuoso.

- Com efeito, disse ele, espreguiçando-se de leve, tenho estado hoje lânguido e mono... É o começo do verão... Mas é necessário sacudir-me... Quer você fazer uma partida de bilhar, ó marquês?

- Vá lá, homem. Se isso o ressuscita...

Foram, Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquês parando, e como recordando-se, perguntou sem rebuço ao Ega noticias dos Cohens. Tinham-se encontrado? Estava tudo acabado? Para o marquês, uma flor de lealdade, não havia segredos: Ega contou-lhe que o romance findara, e agora o Cohen, quando o cruzava, baixava prudentemente os olhos...

- Eu perguntei isto, disse o marquês, porque já vi a Cohen duas vezes...

- Onde? foi a exclamação sôfrega do Ega.

- No Price, e sempre com o Dâmaso. A ultima vez foi já esta semana. E lá estava o Dâmaso, muito chegadinho, palrando muito... Depois veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e sempre de olho nela... E ela de lá, com aquele ar de lambisgóia, de luneta nele... Não havia que duvidar, era um namoro... Aquele Cohen é um predestinado.

Ega fez-se lívido, torceu nervosamente o bigode, terminou por dizer:

- O Dâmaso é muito íntimo deles... Mas talvez se atire, não duvido... São dignos um do outro.

No bilhar, enquanto os dois carambolavam preguiçosamente, ele não cessou de passear, numa agitação, trincando o charuto apagado. De repente estacou em frente do marquês, com os olhos chamejantes:

- Quando é que você a viu ultimamente no Price, essa torpe iliba de Israel?

- Terça-feira, creio eu.

O Ega recomeçou a passear, sombrio.

Nesse instante Baptista, aparecendo à porta do bilhar, chamou Carlos em silêncio, com um leve olhar. Carlos veio, surpreendido.

- É um cocheiro de praça, murmurou Baptista. Diz que está ali uma senhora dentro duma carruagem que lhe quer falar.

- Que senhora?

Baptista encolheu os ombros. Carlos, de taco na mão, olhava para ele, aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria... Que teria sucedido, santo Deus, para ela vir numa tipóia, ás nove da noite, ao Ramalhete!

Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapéu baixo; e assim mesmo, de casaca, sem paletó, desceu numa grande ansiedade. No peristilo topou com Euzebiosinho que chegava, e sacudia cuidadosamente com o lenço a poeira dos botins. Nem falou ao Euzebiosinho. Correu ao coupé, parado à porta particular dos seus quartos, mudo, fechado, misterioso, aterrador...

Abriu a portinhola. Do canto da velha traquitana, um vulto negro, abafado numa mantilha de renda, debruçou-se, perturbado, balbuciou:

- É só um instante! Quero-lhe falar!

Que alívio! Era a Gouvarinho! Então, na sua indignação, Carlos foi brutal.

- Que diabo de tolice é esta? Que quer?

Ia bater com a portinhola; ela empurrou-a para fora, desesperada; e não se conteve, desabafou logo ali, diante do cocheiro, que mexia tranquilamente na fivela dum tirante.

- De quem é a culpa? Para que me trata deste modo?... É só um instante, entre, tenho de lhe falar!...

Carlos saltou para dentro, furioso:

- Dá uma volta pelo Aterro, gritou ao cocheiro. Devagar!

O velho calhambeque desceu a calçada; e durante um momento, na escuridão, recuando um do outro no assento estreito, tiveram as mesmas palavras, bruscas e coléricas, através do barulho das vidraças.

- Que imprudência! que tolice!...

- E de quem é a culpa? De quem é a culpa?

Depois, na rampa de Santos, o coupé rolou mais silenciosamente no macadame. Carlos então, arrependido da sua dureza, voltou-se para ela, e com brandura, quasi no tom carinhoso de outrora, repreendeu-a por aquela imprudência... Pois não era melhor ter-lhe escrito?

- Para quê? exclamou ela. Para não me responder? Para não fazer caso das minhas cartas, como se fossem as de um importuno a pedir-lhe uma esmola!...

Sufocava, arrancou a mantilha da cabeça. No vagaroso rolar do coupé, sem ruído, ao longo do rio, Carlos sentia a respiração dela, tumultuosa e cheia de angustia. E não dizia nada, imóvel, num infinito mal-estar, entrevendo confusamente, através do vidro embaciado, na sombra triste do rio adormecido, as mastreações vagas de faluas. A parelha parecia ir adormecendo; e as queixas dela desenrolavam-se, profundas, mordentes, repassadas de amargura.

- Peço-lhe que venha a Santa Isabel, não vem... Escrevo-lhe, não me responde... Quero ter uma explicação franca consigo, não aparece... Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem um aceno... Um desprezo brutal, um desprezo grosseiro... Eu nem devia ter vindo... Mas não pude, não pude!... Quis saber o que lhe tinha feito. O que é isto? Que lhe fiz eu?

Carlos percebia os olhos dela, faiscantes sob a névoa de lágrimas retidas, suplicando e procurando os seus. E sem coragem sequer de a fitar, murmurou, torturado:

- Realmente, minha amiga... As coisas falam bem por si, não são necessárias explicações.

- São! É necessário saber se isto é uma coisa passageira, um amuo, ou se é uma coisa definitiva, um rompimento

Ele agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave, afectuosa ainda, de lhe dizer que todo o seu desejo dela findara. Terminou por afirmar que não era um amuo. Os seus sentimentos tinham sido sempre elevados, não cairia agora na pieguice de ter um amuo...

- Então é um rompimento?...

- Não, também não... Um rompimento absoluto, para sempre, não...

- Então é um amuo? Porquê?

Carlos não respondeu. Ela, perdida, sacudiu-o pelo braço.

- Mas fale! Diga alguma coisa, santo Deus! Não seja cobarde, tenha a coragem de dizer o que é!

Sim, ela tinha razão... Era uma cobardia, era uma indignidade, continuar ali, gauchemente, dissimulado na sombra, a balbuciar coisas mesquinhas. Quis ser claro, quis ser forte.

- Pois bem, aí está. Eu entendi que as nossas relações deviam ser alteradas...

E outra vez hesitou, a verdade amoleceu-lhe nos lábios, sentindo aquela mulher ao seu lado a tremer de agonia.

- Alteradas, quero dizer... Podíamos transformar um capricho apaixonado, que não podia durar, numa amizade agradável, e mais nobre...

E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe fáceis, hábeis, persuasivas, através do rumor lento das rodas. Onde os podia levar aquela ligação? Ao resultado costumado. A que a um dia se descobrisse tudo, e o seu belo romance acabasse no escândalo e na vergonha; ou a que, envolvendo-os por muito tempo o segredo, ele viesse a descair na banalidade duma união quasi conjugal, sem interesse e sem requinte. De resto era certo que, continuando a encontrarem-se, aqui, em Sintra, noutros sítios, a sociedadesinha curiosa e mexeriqueira viria a perceber a sua afeição. E havia por acaso nada mais horroroso, para quem tem orgulho e delicadeza de alma, do que uns amores que todo o publico conhece, até os cocheiros de praça? Não... O bom senso, o bom gosto mesmo, tudo indicava a necessidade duma separação. Ela mesmo mais tarde lhe seria grata... Decerto, esta primeira interrupção dum habito doce era desagradável, e ele estava bem longe de se sentir feliz. Fora por isso que não tivera a coragem de lhe escrever... Enfim deviam ser fortes, e não se verem pelo menos durante alguns meses... Depois, pouco a pouco, o que era capricho frágil, cheio de inquietação, tornar-se-hia uma boa amizade, bem segura e bem duradoura.

Calou-se; e então, no silêncio, sentiu que ela, caída para o canto do coupé, como uma coisa miserável e meio morta, encolhida no seu véu, estava chorando baixo.

Foi um momento intolerável. Ela chorava sem violência, mansamente, com um choro lento, que parecia não dever findar. E Carlos só achava esta palavra banal e desenxabida:

- Que tolice, que tolice!

Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fabrica do gás. Um Americano passou alumiado, com senhoras vestidas de claro. Naquela noite de verão e de estrelas, havia gente vagueando tranquilamente entre as árvores. Ela continuava a chorar.

Aquele pranto triste, lento, correndo a seu lado, começou a comove-lo; e ao mesmo tempo quasi lhe queria mal por ela não reter essas lágrimas infindáveis que laceravam o seu coração... E ele que estava tão tranquilo, no Ramalhete, na sua poltrona, sorrindo a tudo, numa deliciosa lassidão!

Tomou-lhe a mão, querendo calma-la, apiedado, e já impaciente.

- Realmente não tem razão. É absurdo... Tudo isto é para seu bem...

Ela leve enfim um movimento, enxugou os olhos, assoou-se doloridamente por entre longos soluços... E de repente, num arranque de paixão, atirou-lhe os braços ao pescoço, prendendo-se a ele com desespero, esmagando-o contra o seu seio.

- Oh meu amor, não me deixes, não me deixes! Se tu soubesses! És a única felicidade que eu tenho na vida... Eu morro, eu mato-me!... Que te fiz eu? Ninguém sabe do nosso amor... E que soubesse! Por ti sacrifico tudo, vida, honra, tudo! tudo!...

Molhava-lhe a face com o resto das suas lágrimas; e ele abandonava-se, sentindo aquele corpo sem colete, quente e como nú, subir-lhe para os joelhos, colar-se ao seu, num furor de o repossuir, com beijos sôfregos, furiosos, que o sufocavam... Subitamente a tipóia parou. E um momento ficaram assim - Carlos imóvel, ela caída sobre ele e arquejando.

Mas a tipóia não continuava. Então Carlos desprendeu um braço, desceu o vidro; e viu que estavam defronte do Ramalhete. O homem obedecendo à ordem, dera a volta pelo Aterro, devagar, subira a rampa, retrocedera à porta da casa. Durante um instante Carlos teve a tentação de descer, acabar ali bruscamente aquele longo tormento. Mas pareceu-lhe uma brutalidade. E desesperado, detestando-a, berrou ao cocheiro:

- Outra vez ao Aterro, anda sempre!...

A tipóia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a rolar; de novo as pedras da calçada fizeram tilintir os vidros; de novo, mais suavemente, desceram a rampa de Santos.

Ela recomeçara os seus beijos. Mas tinham perdido a chama que um instante os fizera quasi irresistiveis. Agora Carlos sentia só uma fadiga, um desejo infinito de voltar ao seu quarto, ao repouso de que ela o arrancara para o torturar com estas recriminações, estes ardores entre lágrimas... E de repente, enquanto a condessa balbuciava, como tonta, pendurada do seu pescoço, - ele viu surgir na alma, viva e resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquila àquela hora na sua sala de reps vermelho, fazendo serão, confiando nele, pensando nele, relembrando as felicidades da véspera, quando a Toca, cheia de seus amores, dormia, branca entre as árvores... Teve então horror à Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repeliu-a para o canto do coupé.

- Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas relações estão acabadas, não temos mais nada que nos dizer!

Ela ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve um riso nervoso, repeliu-o também, freneticamente, pisando-lhe o braço.

- Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brasileira! Eu conheço-a, é uma aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem lhe pague as modistas!...

Ele voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; e na tipóia escura, onde já havia um vago cheiro de verbena, os olhos de ambos, sem se verem, dardejavam o ódio que os enchia... Carlos bateu raivosamente no vidro. A tipóia não parou. E a Gouvarinho, do outro lado, furiosa, magoando os dedos, procurava descer a vidraça.

- É melhor que saia! dizia ela sufocada. Tenho horror de me achar aqui, ao seu lado! Tenho horror! Cocheiro! cocheiro!

O calhambeque parou. Carlos pulou para fora, fechou de estalo a portinhola; e sem uma palavra, sem erguer o chapéu, virou costas, abalou a grandes passadas para o Ramalhete, tremulo ainda, cheio de ideias de rancor, sob a paz da noite estrelada.