Capítulo XII

No sábado, com efeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete de volta da rua de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto, metido num fato de cheviote claro, e com o cabelo muito crescido.

- Não faças espalhafato, gritou-lhe ele, que eu estou em Lisboa incógnito!

E em seguida aos primeiros abraços declarou que vinha a Lisboa, só por alguns dias, unicamente para comer bem e para conversar bem. E contava com Carlos para lhe fornecer esses requintes, ali, no Ramalhete...

- Há cá um quarto para mim? Eu por ora estou no Hotel Espanhol, mas ainda nem mesmo abri a mala... Basta-me uma alcova, com uma mesa de pinho, larga bastante para se escrever uma obra sublime.

Decerto! Havia o quarto em cima, onde ele estivera depois de deixar a Vila Balzac. E mais sumptuoso agora, com um belo leito da Renascença, e uma cópia dos Borrachos de Velasquez.

- Óptimo covil para a arte! Velasquez é um dos Santos Padres do naturalismo... A propósito, sabes com quem eu vim? Com a Gouvarinho. O pai Tompson esteve à morte, arribou, depois o conde foi busca-la. Achei-a magra; mas com um ar ardente; e falou-me constantemente de ti.

- Ah! murmurou Carlos.

Ega, de monóculo no olho e mãos nos bolsos, contemplava Carlos.

- É verdade. Falou de ti constantemente, irresistivelmente, imoderadamente! Não me tinhas mandado contar isso... Sempre seguiste o meu conselho, hein? Muito bem feita de corpo, não é verdade? E que tal, no acto de amor?

Carlos corou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera com a Gouvarinho senão relações superficiais. Ia lá ás vezes tomar uma chávena de chá; e à hora do Chiado acontecia-lhe, como a todo o mundo, conversar com o conde sobre as misérias publicas, à esquina do Loreto. Nada mais.

- Tu estás-me a mentir, devasso! dizia o Ega. Mas não importa. Eu hei de descobrir tudo isso com o meu olho de Balzac, na segunda-feira... Porque nós vamos lá jantar na segunda-feira.

- Nós... Nós, quem?

- Nós. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me no comboio. E o Gouvarinho, como compete ao indivíduo daquela espécie, acrescentou logo que havíamos de ter também «o nosso Maia». O Maia dele, e o Maia dela... Santo acordo! Suavíssimo arranjo!

Carlos olhou-o com severidade.

- Tu vens obsceno de Celorico, Ega.

- É o fluo se aprende no seio da Santa Madre Igreja.

Mas também Carlos tinha uma novidade que o devia fazer estremecer. O Ega porém já sabia. A chegada dos Cohens, não é verdade? Lêra-o logo nessa manhã, na Gazeta Ilustrada no high-life. Lá se dizia respeitosamente que s. Exc.ªs tinham regressado do seu passeio pelo estrangeiro.

- E que impressão te fez? perguntou Carlos rindo.

O outro encolheu brutalmente os ombros:

- Fez-me o efeito de haver um cabrão mais na cidade.

E, como Carlos o acusava outra vez de trazer de Celorico uma língua imunda, o Ega, um pouco corado, arrependido talvez, lançou-se em considerações criticas, clamando pela necessidade social de dar ás coisas o nome exacto. Para que servia então o grande movimento naturalista do século? Se o vício se perpetuava, é porque a sociedade, indulgente e romanesca, lhe dava nomes que o embelezavam, que o idealizavam... Que escrúpulo pode ter uma mulher em beijocar um terceiro entre os lençóis conjugais, se o mundo chama a isso sentimentalmente um romance, e os poetas o cantam em estrofes de ouro?

- E a propósito, a tua comedia, o Lodaçal? perguntou Carlos, que entrara um instante para a alcova de banho.

- Abandonei-a, disse o Ega. Era feroz de mais... E além disso fazia-me remexer na podridão lisboeta, mergulhar outra vez na sargeta humana... Afigia-me...

Parou diante do grande espelho, deu um olhar descontente ao seu jaquetão claro e ás botas com mau verniz.

- Preciso enfardelar-me de novo, Carlinhos... O Poole naturalmente mandou-te fato de verão, hei-de querer examinar esses cortes da alta civilização... Não há que negá-lo, diabo, esta minha linha está chinfrim!

Passou uma escova pelo bigode, e continuou falando para dentro, para a alcova de banho:

- Pois, menino, eu agora o que necessito é o regime da Quimera. Vou-me atirar outra vez ás Memórias. Há de se fazer aí uma quantidade de arte colossal nesse quarto que me destinas, diante de Velasquez... E a propósito, é necessário ir cumprimentar o velho Afonso, uma vez que ele me vai dar o pão, o tecto, e a enxerga...

Foram encontrar Afonso da Maia no escritório, na sua velha poltrona, com um antigo volume da Ilustração francesa aberto sobre os joelhos, mostrando as estampas a um pequeno bonito, muito moreno, de olho vivo, e cabelo encarapinhado. O velho ficou contentíssimo ao saber que o Ega vinha por algum tempo alegrar o Ramalhete com a sua bela fantasia.

- Já não tenho fantasia, Sr. Afonso da Maia!

Então esclarecê-lo com a tua clara razão, disse o velho rindo. Estamos cá precisando de ambas as coisas, John.

Depois apresentou-lhe aquele pequeno cavalheiro, o Sr. Manuelinho, rapazinho amável da vizinhança, filho do Vicente, mestre de obras; o Manuelinho vinha ás vezes animar a solidão de Afonso - e ali folheavam ambos livros destampas e tinham conversas filosóficas. Agora, justamente, estava ele muito embaraçado por não lhe saber explicar como é que o general Canrobert (de quem estavam admirando o garbo sobre o seu cavalo empinado) tendo mandado matar gente, muita gente, em batalhas, não era melido na cadeia...

- Está visto! exclamou o pequeno, esperto e desembaraçado, com as mãos cruzadas atrás das costas. Se mandou matar gente deviam-no ferrar na cadeia!

- Hein, amigo Ega! dizia Afonso rindo. Que se há de responder a esta bela lógica? Olha, filho, agora que estão aqui estes dois senhores que são formados em Coimbra, eu vou estudar esse caso... Vai tu ver os bonecos ali para cima da mesa... E depois vão sendo horas de ires lá dentro à Joana, para merendares.

Carlos, ajudando o pequeno a acomodar-se à mesa com o seu grande volume destampas, pensava quanto o avô, com aquele seu amor por crianças, gostaria de conhecer Rosa!

Afonso no entanto perguntava também ao Ega pela comedia. O quê! Já abandonada? Quando acabaria então o bravo John de fazer bocados incompletos de obras-primas?... - Ega queixou-se do país, da sua indiferença pela arte. Que espírito original não esmoreceria, vendo em torno de si esta espessa massa de burgueses, amodorrada e crassa, desdenhando a inteligência, incapaz de se interessar por uma ideia nobre, por uma frase bem feita?

- Não vale a pena, Sr. Afonso da Maia. Neste país, no meio desta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano...

- Pois então, acudiu o velho, planta os teus legumes. É um serviço à alimentação publica. Mas tu nem isso fazes!

Carlos, muito sério, apoiava o Ega.

- A única coisa a fazer em Portugal, dizia ele, é plantar legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda cerre lá no fundo. E se se vir então que não encerra nada, demitamo-nos logo voluntariamente da nossa posição de país para que não temos elementos, passemos a ser uma fértil e estúpida província espanhola, e plantemos mais legumes!

O velho escutava com melancolia estas palavras do neto em que sentia como uma decomposição da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a glorificação da sua inércia. Terminou por dizer:

- Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!

- O Carlos já não faz pouco, exclamou Ega, rindo. Passeia a sua pessoa, a sua toilete e o seu faeton, e por esse facto educa o gosto!

O relógio Luís xv interrompeu-os - lembrando ao Ega que devia ainda, antes de jantar, ir buscar a sua mala ao Hotel Espanhol. Depois no corredor confessou a Carlos que, antes de ir ao Espanhol, queria correr ao Filon, ao fotografo, ver se podia tirar um bonito retrato.

- Um retrato?

- Uma surpresa que tem de ir daqui a três dias para Celorico, para o dia de anos duma creaturinha que me adoçou o exílio.

- Oh Ega!

- É horroroso, mas então? É a filha do padre Correia, filha conhecida como tal; além disso casada com um proprietário rico da vizinhança, reaccionário odioso... De modo que, bem vês, esta dupla peça a pregar à Religião e à Propriedade...

- Ah! nesse caso...

- Ninguém se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres democráticos!

Na segunda-feira seguinte chuviscava quando Carlos e Ega, no coupé fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. Desde a chegada da condessa Carlos vira-a só uma vez, em casa dela; e fora uma meia hora desagradável, cheia de mal-estar, com um ou outro beijo frio, e recriminações infindáveis. Ela queixara-se das cartas dele, tão raras, tão secas. Não se puderam entender sobre os planos desse verão, ela devendo ir para Sintra onde já alugara casa, Carlos falando no dever de acompanhar o avô a Santa Olavia. A condessa achava-o distraído: ele achou-a exigente. Depois ela sentou-se um instante sobre os seus joelhos e aquele leve e delicado corpo pareceu a Carlos de um fastidioso peso de bronze.

Por fim a condessa arrancara-lhe a promessa de a ir encontrar, justamente nessa segunda-feira de manhã, a casa da titi, que estava em Santarém; - porque tinha sempre o apetite perverso e requintado de o apertar nos braços nús, em dias que o devesse receber na sua sala, mais tarde, e com cerimónia. Mas Carlos faltara, - e agora, rodando para casa dela, impacientavam-no já as queixas que teria de ouvir nos vãos de janela, e as mentiras chochas que teria de balbuciar...

De repente o Ega, que fumava em silêncio, abotoado no seu paletó de verão, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sério:

- Dize-me uma coisa, se não é um segredo sacrosanto... Quem é essa brasileira com quem tu agora passas todas as tuas manhãs?

Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.

- Quem te falou nisso?

- Foi o Dâmaso que mo disse. Isto é, o Dâmaso que mo rugiu... Porque foi de dentes rilhados, a dar murros surdos num sofá do Grémio, e com uma cor de apoplexia, que ele me contou tudo...

- Tudo o quê?

- Tudo. Que te apresentara a uma brasileira a quem se atirava, e que tu, aproveitando a sua ausência, te meteras lá, não saias de lá...

- Tudo isso é mentira! exclamou o outro, já impaciente.

E Ega, sempre risonho:

- Então «que é a verdade», como perguntava o velho Pilatus ao chamado Jesus Cristo?

- É que há uma senhora a quem o Dâmaso supunha ter inspirado uma paixão, como supõe sempre, e que, tendo-lhe adoecido a governante inglesa com uma bronquite, me mandou chamar para eu a tratar. Ainda não está melhor, eu vou vê-la todos os dias. E Madame Gomes, que é o nome da senhora, que nem brasileira é, não podendo tolerar o Dâmaso, como ninguém o tolera, tem-lhe fechado a sua porta. Esta é a verdade; mas talvez eu arranque as orelhas ao Dâmaso!

Ega contentou-se em murmurar:

- E aí está como se escreve a história... vá-se lá a gente fiar em Guizot!

Em silêncio, até casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a sua cólera contra o Dâmaso. Aí estava pois rasgada por aquele imbecil a penumbra suave e favorável em que se abrigara o seu amor! Agora já se pronunciava o nome de Maria Eduarda no Grémio: o que o Dâmaso dissera ao Ega, repeti-lo-hia a outros, na Casa Havaneza, no restaurante Silva, talvez nos lupanares: e assim o interesse supremo da sua vida seria daí por diante constantemente perturbado, estragado, sujo pela tagarelice reles do Dâmaso!

- Parece-me que temos cá mais gente, disse o Ega, ao penetrarem na ante-câmara dos Gouvarinhos, vendo sobre o canapé um paletó cinzento e capas de sonhem.

A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada «do busto», vestida de preto, com uma tira de veludo em volta do pescoço picada de três estrelas de diamantes. Uma cesta de esplêndidas flores quasi enchia a mesa, onde se acumulavam também romances ingleses, e uma Revista dos Dois Mundos em evidencia, com a faca de marfim entre as folhas. Além da boa D. Maria da Cunha e da baronesa de Alvim, havia uma outra senhora, que nem Carlos nem Ega conheciam, gorda e vestida de escarlate; e de pé, conversando baixo com o conde, de mãos atrás das costas, um cavalheiro alto, escaveirado, grave, com uma barba rala, e a comenda da Conceição.

A condessa, um pouco corada, estendeu a Carlos a mão amuada e frouxa: todos os seus sorrisos foram para o Ega. E o conde apoderou-se logo do querido Maia, para o apresentar ao seu amigo o Sr. Sousa Neto. O Sr. Sousa Neto já tinha o prazer de conhecer muito Carlos da Maia, como um médico distinto, uma honra da Universidade... E era esta a vantagem de Lisboa, disse logo o conde, o conhecerem-se todos de reputação, o poder-se ter assim uma apreciação mais justa dos caracteres. Em Paris, por exemplo, era impossível; por isso havia tanta imoralidade, tanta relaxação...

- Nunca sabe a gente quem mete em casa.

O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divã, mostrando as estrelinhas bordadas das meias, fazia-as rir com a história do seu exílio em Celorico, onde se distraia compondo sermões para o abade: o abade recitava-os; e os sermões, sob uma forma mística, eram de facto afirmações revolucionarias que o santo varão lançava com fervor, esmurrando o púlpito... A senhora de vermelho, sentada defronte, de mãos no regaço, escutava o Ega, com o olhar espantado.

- Imaginei que V. Exa.ª tinha ido já para Sintra, veio dizer Carlos à senhora baronesa, sentando-se junto dela. V. Exc.ª é sempre a primeira...

- Como quer o senhor que se vá para Sintra com um tempo destes?

- Com efeito, está infernal...

- E que conta de novo? perguntou ela, abrindo lentamente o seu grande leque preto.

- Creio que não há nada de novo em Lisboa, minha senhora, desde a morte do Sr. D. João VI.

- Agora há o seu amigo Ega, por exemplo.

- É verdade, há o Ega... Como o acha V. Exc.ª, senhora baronesa?

Ela nem baixou a voz para dizer:

- Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e não gosto dele, não posso dizer nada...

- Oh senhora baronesa, que falta de caridade!

O escudeiro anunciara o jantar. A condessa tomou o braço de Carlos, - e, ao atravessar o salão, entre o frouxo murmúrio de vozes e o rumor lento das caudas de seda, pôde dizer-lhe asperamente:

- Esperei meia hora; mas compreendi logo que estaria entretido com a brasileira...

Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel cor de vinho, escurecida ainda por dois antigos painéis de paisagem tristonha, a mesa oval, cercada de cadeiras de carvalho lavrado, ressaltava alva e fresca, com um esplêndido cesto de rosas entre duas serpentinas douradas. Carlos ficou à direita da condessa, tendo ao lado D. Maria da Cunha, que nesse dia parecia um pouco mais velha, e sorria com um ar cansado.

- Que tem feito todo este tempo, que ninguém o tem visto? Perguntou-lhe ela, desdobrando o guardanapo.

- Por esse mundo, minha senhora, vagamente...

Defronte de Carlos, o Sr. Sousa Neto, que tinha três enormes corais no peitilho da camisa, estava já observando, enquanto remexia a sopa, que a senhora condessa, na sua viagem ao Porto, devia ter encontrado nas ruas e nos edifícios grandes mudanças... A condessa, infelizmente, mal tinha saído durante o tempo que estivera no Porto. O conde, esse, é que admirara os progressos da cidade. E especificou-os: elogiou a vista do Palácio de Cristal; lembrou o fecundo antagonismo que existe entre Lisboa e Porto; mais uma vez o comparou ao dualismo da Áustria e da Hungria. E através destas coisas graves, lançadas de alto, com superioridade e com peso, a baronesa e a senhora de escarlate, aos dois lados dele, falavam do convento das Selesias.

Carlos, no entanto, comendo em silêncio a sua sopa, ruminava as palavras da condessa. Também ela conhecia já a sua intimidade com a «brasileira». Era evidente pois que já andava ali, difamante e torpe, a tagarelice do Dâmaso. E quando o criado lhe ofereceu Sauterne, estava decidido a bater no Dâmaso.

De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia, pachorrenta e cantada:

- O Sr. Maia é que deve saber... O Sr. Maia já lá esteve.

Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora de escarlate que lhe falava, sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buço forte de quarentona pálida. Ninguém lha apresentara, ele não sabia quem era. Sorriu também, perguntou:

- Onde, minha senhora?

- Na Rússia.

- Na Rússia?... Não, minha senhora, nunca estive na Rússia.

Ela pareceu um pouco desapontada.

- Ah, é que me tinham dito... Não sei já quem me disse, mas era pessoa que sabia...

O conde ao fundo explicava-lhe amavelmente que o amigo Maia estivera apenas na Holanda.

- País de grande prosperidade, a Holanda!... Em nada inferior ao nosso... Já conheci mesmo um holandês que era excessivamente instruído...

A condessa baixara os olhos, partindo vagamente um bocadinho de pão, mais séria de repente, mais seca, como se a voz de Carlos, erguendo-se tão tranquila ao seu lado, tivesse avivado os seus despeitos. Ele, então, depois de provar devagar o seu Sauterne, voltou-se para ela, muito naturalmente e risonho:

- Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo ideia de ir à Rússia. Há assim uma infinidade de coisas que se dizem e que não são exactas... E se se faz uma alusão irónica a elas, ninguém compreende a alusão nem a ironia...

A condessa não respondeu logo, dando com o olhar uma ordem muda ao escudeiro. Depois, com um sorriso pálido:

- No fundo de tudo que se diz há sempre um facto, ou um bocado de facto que é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim basta-me...

- A senhora condessa tem então uma credulidade infantil. Estou vendo que acredita que era uma vez uma filha dum rei que tinha uma estrela na testa...

Mas o conde interpelava-o, o conde queria a opinião do seu amigo Maia. Tratava-se do livro de um inglês, o major Brat, que atravessara a África, e dizia coisas perfidamente desagradáveis para Portugal. O conde via ali só inveja - a inveja que nos têm todas as nações por causa da importância das nossas colónias, e da nossa vasta influência na África...

- Está claro, dizia o conde, que não temos nem os milhões, nem a marinha dos ingleses. Mas temos grandes glorias; o infante D. Henrique é de primeira ordem; e a tomada de Ormuz é um primor... E eu que conheço alguma coisa de sistemas coloniais, posso afirmar que não há hoje colónias nem mais susceptíveis de riqueza, nem mais crentes no progresso, nem mais liberais que as nossas! Não lhe parece, Maia?

- Sim, talvez, é possível... Há muita verdade nisso...

Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o monóculo no olho e sorrindo para a baronesa, pronunciou-se alegremente contra todas essas explorações da África, e essas longas missões geográficas... Porque não se deixaria o preto sossegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia à ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrario, davam ao Universo uma deliciosa quantidade de pitoresco! Com a mania francesa e burguesa de reduzir todas as regiões e todas as raças ao mesmo tipo de civilização, o mundo ia tornar-se numa monotonia abominável. Dentro em breve um touriste faria enormes sacrifícios, despesas sem fim, para ir a Tumbuctu - para quê? Para encontrar lá pretos de chapéu alto, a ler o Jornal dos Debates!

O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, saindo do seu vago abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:

- Este Ega! Este Ega! Que graça! Que chic!

Então Sousa Neto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega esta pergunta grave:

V. Exc.ª pois é em favor da escravatura?

Ega declarou muito decididamente ao Sr. Sousa Neto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido, quem era seriamente temido... Por isso ninguém agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse licito dar vergastadas... Só houvera duas civilizações em que o homem conseguira viver com razoável comodidade: a civilização romana, e a civilização especial dos plantadores da Nova Orleans. Porque? porque numa e noutra existira a escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!...

Durante um momento o Sr. Sousa Neto ficou como desorganizado. Depois passou o guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou o Ega:

- Então V. Exc.ª nessa idade, com a sua inteligência, não acredita no Progresso?

- Eu não senhor.

O conde interveio, afável e risonho:

- O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem razão, tem realmente razão, porque os faz brilhantes...

Estava-se servindo Jambon aux épinards. Durante um momento falou-se de paradoxos. Segundo o conde, quem os fazia também brilhantes e difíceis de sustentar, excessivamente difíceis, era o Barros, o ministro do reino...

- Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Neto.

- Sim, pujante, disse o conde.

Mas ele agora não falava tanto do talento do Barros como parlamentar, como homem de estado. Falava do seu espírito de sociedade, do seu esprit...

- Ainda este inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante! Até foi em casa da Sr.ª D. Maria da Cunha... V. Exc.ª não se lembra, Sr. D. Maria? Esta minha desgraçada memória! Ó Tereza, lembras-te daquele paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?... Enfim, um paradoxo muito difícil de sustentar... Esta minha memória!... Pois não te lembras, Tereza?

A condessa não se lembrava. E enquanto o conde ficava remexendo ansiosamente, com a mão na testa, as suas recordações, - a senhora de escarlate voltou a falar de pretos, e de escudeiros pretos, e duma cozinheira preta que tivera uma tia dela, a tia Vilar... Depois queixou-se amargamente dos criados modernos: desde que lhe morrera a Joana, que estava em casa havia quinze anos, não sabia que fazer, andava como tonta, tinha só desgostos. Em seis meses já vira quatro caras novas. E umas desleixadas, umas pretenciosas, uma imoralidade!... Quasi lhe fugiu um suspiro do peito, e trincando desconsoladamente uma migalhinha de pão:

- Ó baronesa, ainda tens a Vicenta?

- Pois então não havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta... A Sr.ª D. Vicenta, se faz favor.

A outra contemplou-a um instante, com inveja daquela felicidade.

- E é a Vicenta que te penteia?

Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas sempre caturra. Agora andava com a mania de aprender francês. Já sabia verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizer j'aime, tu aimes...

- E a senhora baronesa, acudiu o Ega, começou por lhe mandar ensinar os verbos mais necessários.

Está claro, dizia a baronesa, que aquele era o mais necessário. Mas na idade da Vicenta já de pouco lhe poderia servir!

- Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cair o talher. Agora me lembro!

Tinha-se lembrado enfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros que os cães, quanto mais ensinados... Pois, não, não era isto!

- Esta minha desgraçada memória!... E era sobre cães. Uma coisa brilhante, filosófica até!

E, por se falar de cães, a baronesa lembrou-se do Tomy, o galgo da condessa; perguntou por Tomy. Já o não via há que tempos, esse bravo Tomy! A condessa nem queria que se falasse no Tomy, coitado! Tinham-lhe nascido umas coisas nos ouvidos, um horror... Mandara-o para o Instituto, lá morrera.

- Está deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se para Carlos.

- Deliciosa.

E a baronesa, do lado, declarou também a galantine uma perfeição. Com um olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e apressou-se a responder ao Sr. Sousa Neto, que, a propósito de cães, lhe estava falando da Sociedade protectora dos animais. O Sr. Sousa Neto aprovava-a, considerava-a como um progresso... E, segundo ele, não seria mesmo de mais que o governo lhe desse um subsidio.

- Que eu creio que ela vai prosperando... E merece-o, acredite a senhora condessa que o merece... Estudei essa questão, e de todas as sociedades que ultimamente se têm fundado entre nós, à imitação do que se faz lá fora, como a Sociedade de Geografia e outras, a Protectora dos animais parece-me decerto uma das mais úteis.

Voltou-se para o lado, para o Ega:

- V. Exc.ª pertence?

- Á Sociedade protectora dos animais?... Não senhor, pertenço a outra, à de Geografia. Sou dos protegidos.

A baronesa teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se extremamente sério: pertencia à Sociedade de Geografia, considerava-a um pilar do Estado, acreditava na sua missão civilizadora, detestava aquelas irreverências. Mas a condessa e Carlos tinham rido também: - e de repente a frialdade que até aí os conservara ao lado um do outro reservados, numa cerimónia afectada, pareceu dissipar-se ao calor desse riso trocado, no brilho dos dois olhares encontrando-se irresistivelmente. Servira-se o Champagne, ela tinha uma corzinha no rosto. O seu pé, sem ela saber como, roçou pelo pé de Carlos; sorriram ainda outra vez; - e, como no resto da mesa se conversava sobre uns concertos clássicos que ia haver no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma repreensão amável:

- Que tolice foi essa da brasileira?... Quem lhe disse isso?

Ela confessou-lhe logo que fora o Dâmaso... O Dâmaso viera contar-lhe o entusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãs inteiras que lá passava, todos os dias, à mesma hora... Enfim o Dâmaso fizera-lhe claramente entrever uma liaison.

Carlos encolheu os ombros. Como podia ela acreditar no Dâmaso? Devia conhecer-lhe bem a tagarelice, a imbecilidade...

- É perfeitamente verdade que eu vou a casa dessa senhora, que nem brasileira é, que é tão portuguesa como eu; mas é porque ela tem a governante muito doente com uma bronquite, e eu sou o médico da casa. Foi até o Dâmaso, ele próprio, que lá me levou como médico!

No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do doce alívio que se fazia no seu coração.

- Mas o Dâmaso disse-me que era tão linda!...

Sim, era muito linda. E então? Um médico, por fidelidade ás suas afeições, e para as não inquietar, não podia realmente, antes de penetrar na casa duma doente, exigir-lhe um certificado de hediondez!

- Mas que está ela cá a fazer?...

- Está à espera do marido que foi a negócios ao Brasil, e vem ai... É uma gente muito distincta, e creio que muito rica... Vão-se brevemente embora, de resto, e eu pouco sei deles. As minhas visitas são de médico; tenho apenas conversado com ela sobre Paris, sobre Londres, sobre as suas impressões de Portugal...

A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo belo olhar com que ele lhas murmurava: e o seu pé apertava o de Carlos numa reconciliação apaixonada, com a força que desejaria pôr num abraço - se ali lho pudesse dar.

A senhora de escarlate, no entanto, recomeçara a falar da Rússia. O que a assustava é que o país era tão caro, corriam-se tantos perigos por causa da dinamite, e uma constituição fraca devia sofrer muito com a neve nas ruas. E foi então que Carlos percebeu que ela era a esposa de Sousa Neto, e que se tratava dum filho deles, filho único, despachado segundo secretario para a legação de S. Petersburgo.

- O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz do leque. É um horror de estupidez... Nem francês sabe! De resto não é pior que os outros... Que a quantidade de monos, de sensaborões e de tolos que nos representam lá fora até faz chorar... Pois o menino não acha? Isto é um país desgraçado.

- Pior, minha cara senhora, muito pior. Isto é um país cursi.

Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu sorriso cansado; a senhora de escarlate calara-se, já preparada, tendo mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhoras ergueram-se, no momento em que o Ega, ainda acerca da Rússia, acabava de contar uma história ouvida a um polaco, e em que se provava que o Czar era um estúpido...

- Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o conde, já de pé.

Os homens, sós, acenderam os seus charutos; o escudeiro serviu o café. Então o Sr. Sousa Neto, com a sua chávena na mão, aproximou-se de Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera em fazer o seu conhecimento...

- Eu tive também em tempos o prazer de conhecer o pai de V. Exc.ª... Pedro, creio que era justamente o Sr. Pedro da Maia. Começava eu então a minha carreira publica... E o avô de V. Exc.ª, bom?

- Muito agradecido a V. Exc.ª

Pessoa muito respeitável... O pai de V. Exc.ª era... Enfim, era o que se chama «um elegante». Tive também o prazer de conhecer a mãe de V. Exc.ª...

E de repente calou-se, embaraçado, levando a chávena aos lábios. Depois, lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a propósito da secretária da legação da Rússia, com quem ele encontrara nessa manhã o conde conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garços... E o conde, que a admirava também, gabava-lhe sobretudo o espírito, a instrução. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser bela, e depois ser estúpida... O conde afirmou logo com exuberância que não gostava também de literatas: sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na biblioteca...

- No entanto é agradável que uma senhora possa conversar sobre coisas amenas, sobre o artigo duma Revista, sobre... Por exemplo, quando se publica um livro... Enfim, não direi quando se trata dum Guizot, ou dum Jules Simon... Mas, por exemplo, quando se trata dum Feuilet, dum... Enfim, uma senhora deve ser prendada. Não lhe parece, Neto?

Neto, grave, murmurou:

- Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter algumas prendas...

Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas literárias, sabendo dizer coisas sobre o Sr. Tiers, ou sobre o Sr. Zola, é um monstro, um fenómeno que cumpria recolher a uma companhia de cavalinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.

- V. Exc.ª decerto, Sr. Sousa Neto, sabe o que diz Proudhon?

Não me recordo textualmente, mas...

Em todo o caso V. Exc.ª conhece perfeitamente o seu Proudhon?

O outro, muito secamente, não gostando decerto daquele interrogatório, murmurou que Proudhon era um autor de muita nomeada.

Mas o Ega insistia, com uma impertinência pérfida:

- V. Exc.ª leu evidentemente, como nós todos, as grandes paginas de Proudhon sobre o amor?

O Sr. Neto, já vermelho, pousou a chávena sobre a mesa. E quis ser sarcástico, esmagar aquele moço, tão literário, tão audaz.

- Não sabia, disse ele com um sorriso infinitamente superior, que esse filósofo tivesse escrito sobre assuntos escabrosos!

Ega atirou os braços ao ar, consternado:

- Oh Sr. Sousa Neto! Então V. Exc.ª, um chefe de família, acha o amor um assunto escabroso?!

O Sr. Neto encordoou. E muito direito, muito digno, falando do alto da sua considerável posição burocrática:

- É meu costume, Sr. Ega, não entrar nunca em discussões, e acatar rodas as opiniões alheias, mesmo quando elas sejam absurdas...

E quasi voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Carlos, desejando saber, numa voz ainda um pouco alterada, se ele agora se fixava algum tempo mais em Portugal. Então, durante um momento, acabando os charutos, os dois falaram de viagens. O Sr. Neto lamentava que os seus muitos deveres não lhe permitissem percorrer a Europa. Em pequeno fora esse o seu ideal; mas agora, com tantas ocupações publicas, via-se forçado a não deixar a carteira. E ali estava, sem ter visto sequer Badajoz...

- E V. Exc.ª de que gostou mais, de Paris ou de Londres?

Carlos realmente não sabia, nem se podia comparar... Duas cidades tão diferentes, duas civilizações tão originais...

- Em Londres, observou o conselheiro, tudo carvão...

Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carvão, sobretudo nos fogões, quando havia frio...

O Sr. Sonsa Neto murmurou:

- E o frio ali deve ser sempre considerável... Clima tão ao norte!...

Esteve um momento mamando o charuto, de pálpebra cerrada. Depois, fez esta observação sagaz e profunda:

- Povo pratico, povo essencialmente pratico.

- Sim, bastante pratico, disse vagamente Carlos, dando um passo para a sala, onde se sentiam as risadas cantantes da baronesa.

- E diga-me outra coisa, prosseguiu o Sr. Sousa Neto, com interesse, cheio de curiosidade inteligente. Encontra-se por lá, em Inglaterra, desta literatura amena, como entre nós, folhetinistas, poetas de pulso?...

Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu, com descaro:

- Não, não há disso.

- Logo vi, murmurou Sousa Neto. Tudo gente de negócio.

E penetraram na sala. Era o Ega que assim fazia rir a baronesa, sentado defronte dela, falando outra vez de Celorico, contando-lhe uma soirée de Celorico, com detalhes picarescos sobre as autoridades, e sobre um abade que tinha morto um homem e cantava fados sentimentais ao piano. A senhora de escarlate, no sofá ao lado, com os braços caídos no regaço, pasmava para aquela veia do Ega como para as destrezas dum palhaço. D. Maria, junto da mesa, folheava com o seu ar cansado uma Ilustração; e vendo que Carlos ao entrar procurara com o olhar a condessa, chamou-o, disse-lhe baixo que ela fora dentro ver Charlie, o pequeno...

- É verdade, perguntou Carlos, sentando-se ao lado dela, que é feito dele, desse lindo Charlie?

- Diz que tem estado hoje constipado, e um pouco murcho...

- A Sr.ª D. Maria também me parece hoje um pouco murcha.

- É do tempo. Eu já estou na idade em que o bom humor ou o aborrecimento vêm só das influências do tempo... Na sua idade vem de outras coisas. E a propósito de outras coisas: então a Cohen também chegou?

Chegou, disse Carlos, mas não também. O também. O também implica combinação... E a Cohen e o Ega chegaram realmente ambos por acaso... De resto isso é história antiga, é como os amores de Helena e de Páris.

Nesse instante a condessa voltava de dentro, um pouco afogueada, e trazendo aberto um grande leque negro. Sem se sentar, falando sobretudo para a mulher do Sr. Sousa Neto, queixou-se logo de não ter achado Charlie bem... Estava tão quente, tão inquieto... Tinha quasi medo que fosse sarampo.- E voltando-se vivamente para Carlos, com um sorriso:

- Eu estou com vergonha... Mas se o Sr. Carlos da Maia quisesse ter o incomodo de o vir ver um instante... É odioso, realmente, pedir-lhe logo depois de jantar para examinar um doente...

- Oh senhora condessa! exclamou ele, já de pé.

Seguiu-a. Numa saleta, ao lado, o conde e o Sr. Sousa Neto, enterrados num sofá, conversavam fumando.

- Levo o Sr. Carlos da Mala para ver o pequeno...

O conde erguera-se um pouco do sofá, sem compreender bem. Já ela passara. Carlos seguiu em silêncio a sua longa cauda de seda preta através do bilhar, deserto, com o gás aceso, ornado de quatro retratos de damas, da família dos Gouvarinhos, empoadas e sorumbáticas. Ao lado, por traz de um pesado reposteiro de fazenda verde, era um gabinete, com uma velha poltrona, alguns livros numa estante envidraçada, e uma escrivaninha onde pousava um candeeiro sob o abat-jour de renda cor de rosa. E ai, bruscamente, ela parou, atirou os braços ao pescoço de Carlos, os seus lábios prenderam-se aos dele num beijo sôfrego, penetrante, completo, findando num soluço de desmaio... Ele sentia aquele lindo corpo estremecer, escorregar-lhe entre os braços, sobre os joelhos sem força.

- Amanhã, em casa da titi, ás onze, murmurou ela quando pôde falar.

- Pois sim.

Desprendida dele, a condessa ficou um momento com as mãos sobre os olhos, deixando desvanecer aquela lânguida vertigem, que a fizera cor de cera. Depois, cansada e sorrindo:

- Que doida que eu sou... Vamos ver Charlie.

O quarto do pequeno era ao fundo do corredor. E ai, numa caminha de ferro, junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno, fresco, com um bracinho caído para o lado, os seus lindos caracóis loiros espalhados no travesseiro como uma auréola de anjo. Carlos tocou-lhe apenas no pulso; e a criada escocesa, que trouxera uma luz de sobre a cómoda, disse, sorrindo tranquilamente:

- O menino nestes últimos dias tem andado muitíssimo bem...

Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa, já com a mão no reposteiro, estendeu ainda a Carlos os seus lábios insaciáveis. Ele colheu um rápido beijo. E, ao passar na antecâmara, onde Sousa Neto e o conde continuavam enfronhados numa conversa grave, ela disse ao marido:

- O pequeno está a dormir... O Sr. Carlos da Maia achou-o bem.

O conde de Gouvarinho bateu no ombro de Carlos, carinhosamente. E durante um momento a condessa ficou ali conversando, de pé, a deixar-se serenar, pouco a pouco, naquela penumbra favorável, antes de afrontar a luz forte da sala. Depois, por se falar em higiene, convidou o Sr. Sousa Neto para uma partida de bilhar; mas o Sr. Neto, desde Coimbra, desde a Universidade, não pegara num taco. E ia-se chamar o Ega quando apareceu Teles da Gama, que chegava do Price. Logo atrás dele entrou o conde de Steinbroken. Então o resto da noite passou-se no salão, em redor do piano. O ministro cantou melodias da Finlândia. Teles da Gama tocou fados.

Carlos e Ega foram os derradeiros a sair, depois de um brandy and soda, de que a condessa partilhou, como inglesa forte. E em baixo, no pátio, acabando de abotoar o paletó, Carlos pôde enfim soltar a pergunta que lhe faiscara nos lábios toda a noite:

- Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quis saber se em Inglaterra havia também literatura?

Ega olhou-o com espanto:

- Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?

- Não sei... Há tanta gente capaz...

E o Ega radiante:

- Oficial superior duma grande repartição do Estado!

- De qual?

- Ora de qual! De qual há de ser?... Da Instrucção publica!

Na tarde seguinte, ás cinco horas, Carlos, que se demorara de mais em casa da titi com a condessa, retido pelos seus beijos intermináveis, fez voar o coupé até à rua de S. Francisco, olhando a cada momento o relógio, num receio de que Maria Eduarda tivesse saído por aquele lindo dia de verão, luminoso e sem calor. Com efeito à porta dela estava a carruagem da Companhia; e Carlos galgou as escadas, desesperado com a condessa, sobretudo consigo mesmo, tão fraco, tão passivo, que assim se deixara retomar por aqueles braços exigentes, cada vez mais pesados, e já incapazes de o comover...

- A senhora chegou agora mesmo, disse-lhe o Domingos, que voltara da terra havia três dias, e ainda não cessara de lhe sorrir.

Sentada no sofá, de chapéu, tirando as uvas, ela acolheu-o com uma doce cor no rosto, e uma carinhosa repreensão:

- Estive à espera mais de meia hora antes de sair... É uma ingratidão! Imaginei que nos tinha abandonado!

- Porquê? Está pior, miss Sarah?

Ela olhou-o, risonhamente escandalizada. Ora, miss Sarah! Miss Sarah ia seguindo perfeitamente na sua convalescença... Mas agora já não eram as visitas de médico que se esperavam, eram as de amigo; e essa tinha-lhe faltado.

Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, que folheava junto da mesa um livro novo destampas; e a ternura, a gratidão infinita do seu coração, que não ousava mostrar à mãe, pô-la toda na longa carícia em que envolveu a filha.

- São histórias que a mamã agora comprou, dizia Rosa, séria e presa ao seu livro. Hei de tas contar depois... São histórias de bichos.

Maria Eduarda erguera-se, desapertando lentamente as fitas do chapéu.

- Quer tomar uma chávena de chá conosco, Sr. Carlos da Maia? Eu vinha morrendo por uma chávena de chá... Que lindo dia, não é verdade? Rosa, fica tu a contar o nosso passeio enquanto eu vou tirar o chapéu...

Carlos, só com Rosa, sentou-se junto dela, desviando-a do livro, tomando-lhe ambas as mãos.

- Fomos ao Passeio da Estrela, dizia a pequena. Mas a mamã não se queria demorar, porque tu podias ter vindo!

Carlos beijou, uma depois da outra, as duas mãozinhas de Rosa.

- E então que fizeste no Passeio? perguntou ele, depois dum leve suspiro de felicidade que lhe fugira do peito.

- Andei a correr, havia uns patinhos novos...

- Bonitos?...

A pequena encolheu os ombros:

- Chinfrinzitos.

Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa tão feia?

Rosa sorriu. Fora o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras coisas assim, engraçadas... Dizia que a Melanie era uma gaja... O Domingos tinha muita graça.

Então Carlos advertiu-a que uma menina bonita, com tão bonitos vestidos, não devia dizer aquelas palavras... Assim falava a gente rôta.

- O Domingos não anda roto, disse Rosa muito séria.

E subitamente, com outra ideia, bateu as palmas, pulou-lhe entre os joelhos, radiante:

- E trouxe-me uns grilos da Praça! O Domingos trouxe-me uns grilos... Se tu soubesses! Niniche tem medo dos grilos! Parece incrível, hein? Eu nunca vi ninguém mais medrosa...

Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um ar grave:

- É a mamã que lhe dá tanto mimo. É uma pena!

Maria Eduarda entrava, agitando ainda de leve o ondeado do cabelo: e, ouvindo assim falar de mimo, quis saber quem é que ela estragava com mimo... Niniche? Pobre Niniche, coitada, ainda essa manhã fora castigada!

Então Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as mãos:

- Sabes como a mamã a castiga? exclamava ela, puxando a manga de Carlos. Sabes?... Faz-lhe voz grossa... Diz-lhe em inglês: Bad dog! dreadful dog!

Era encantadora assim, imitando a voz severa da mamã, com o dedinho erguido, a ameaçar Niniche. A pobre Niniche, imaginando com efeito que a estavam a repreender, arrastou-se, vexada, para debaixo do sofá. E foi necessário que Rosa a tranquilizasse, de joelhos sobre a pele de tigre, jurando-lhe, por entre abraços, que ela nem era mau cão, nem feio cão; fora só para contar como fazia a mamã...

- Vai-lhe dar água, que ela deve estar com sede, disse então Maria Eduarda, indo sentar-se na sua cadeira escarlate. E dize ao Domingos que nos traga o chá.

Rosa e Niniche partiram correndo. Carlos veio ocupar, junto da janela, a costumada poltrona de reps. Mas pela primeira vez, desde a sua intimidade, houve entre eles um silêncio difícil. Depois ela queixou-se de calor, desenrolando distraidamente o bordado; e Carlos permanecia mudo, como se para ele, nesse dia, apenas houvesse encanto, apenas houvesse significação numa certa palavra de que os seus lábios estavam cheios e que não ousavam murmurar, que quasi receava que fosse adivinhada apesar dela sufocar o seu coração.

- Parece que nunca se acaba, esse bordado! disse ele por fim, impaciente de a ver, tão serena, a ocupar-se das suas lãs.

Com a talagarça desdobrada sobre os joelhos, ela respondeu, sem erguer os olhos:

- E para que se há de acabar? O grande prazer é anda-lo a fazer, pois não acha? Uma malha hoje, outra malha amanhã, torna-se assim uma companhia... Para que se há de querer chegar logo ao fim das coisas?

Uma sombra passou no rosto de Carlos. Nestas palavras, ditas de leve acerca do bordado, ele sentia uma desanimadora alusão ao seu amor, - esse amor que lhe fora enchendo o coração à maneira que a lã cobria aquela talagarça, e que era obra simultânea das mesmas brancas mãos. Queria ela pois conserva-lo ali, arrastado como o bordado, sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado também no cesto da costura, para ser o desafogo da sua solidão?

Disse-lhe então, comovido:

- Não é assim. Há coisas que só existem quando se completam, e que só então dão a felicidade que se procurava nelas.

- É muito complicado isso, murmurou ela, corando. É muito subtil...

- Quer que lho diga mais claramente?

Nesse instante Domingos, erguendo o reposteiro, anunciou que estava ali o Sr. Dâmaso...

Maria Eduarda teve um movimento brusco de impaciência:

- Diga que não recebo!

Fora, no silêncio, sentiram bater a porta. E Carlos ficou inquieto, lembrando-se que o Dâmaso devia ter visto em baixo, passeando na rua, o seu coupé. Santo Deus! O que ele iria tagarelar agora, com os seus pequeninos rancores, assim humilhado! Quasi lhe pareceu nesse instante a existência do Dâmaso incompatível com a tranquilidade do seu amor.

- Aí está outro inconveniente desta casa, dizia no entanto Maria Eduarda. Aqui ao lado desse Grémio, a dois passos do Chiado, é demasiadamente acessível aos importunos. Tenho agora de repelir quasi todos os dias este assalto à minha porta! É intolerável.

E com uma súbita ideia, atirando o bordado para o açafate, cruzando as mãos sobre os joelhos:

- Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar... Não me seria possível arranjar por aí uma casinhola, um cotage, onde eu fosse passar os meses de verão?... Era tão bom para a pequena! Mas não conheço ninguém, não sei a quem me hei de dirigir...

Carlos lembrou-se logo da bonita casa do Craft, nos Olivais - como já noutra ocasião em que ela mostrara desejos de ir para o campo. Justamente, nesses últimos tempos, Craft voltara a falar, e mais decidido, no antigo plano de vender a quinta, e desfazer-se das suas colecções. Que deliciosa vivenda para ela, artística e campestre, condizendo tão bem com os seus gostos! Uma tentação atravessou-o, irresistivel.

- Eu sei com efeito duma casa... E tão bem situada, que lhe convinha tanto!...

- Que se aluga?

Carlos não hesitou:

- Sim, é possível arranjar-se...

- Isso era um encanto!

Ela tinha dito - «era um encanto». E isto decidiu-o logo, parecendo-lhe desamorável e mesquinho o ter-lhe sugerido uma esperança, e não lha realizar com fervor.

O Domingos entrara com o tabuleiro do chá. E enquanto o colocava sobre uma pequena mesa, defronte de Maria Eduarda, ao pé da janela, Carlos, erguendo-se, dando alguns passos pela sala, pensava em começar imediatamente negociações com o Craft, comprar-lhe as colecções, alugar-lhe a casa por um ano, e oferece-la a Maria Eduarda para os meses de verão. E não considerava, nesse instante, nem as dificuldades, nem o dinheiro. Via só a alegria dela passeando com a pequena, entre as belas árvores do jardim. E como Maria Eduarda deveria ser mais grandemente formosa no meio desses móveis da Renascença, severos e nobres!

- Muito açúcar? perguntou ela.

- Não... Perfeitamente, basta.

Viera sentar-se na sua velha poltrona; e, recebendo a chávena de porcelana ordinária com um filetesinho azul, recordava o magnífico serviço que tinha o Craft, de velho Wedgewood, oiro e cor de fogo. Pobre senhora! tão delicada, e ali enterrada entre aqueles reps, maculando a graça das suas mãos nas coisas reles da mãe Cruges!

- E onde é essa casa? perguntou Maria Eduarda.

- Nos Olivais, muito perto daqui, vai-se lá numa hora de carruagem...

Explicou-lhe detalhadamcnte o sítio,- acrescentando, com os olhos nela, e com um sorriso inquieto:

- Estou aqui a preparar lenha para me queimar!... Porque se for para lá instalar-se, e depois vier o calor, quem é que a torna a ver?

Ela pareceu surpreendida:

- Mas que lhe custa, a si, que tem cavalos, que tem carruagens, que não tem quasi nada que fazer?...

Assim ela achava natural que ele continuasse nos Olivais as suas visitas de Lisboa! E pareceu-lhe logo impossível renunciar ao encanto desta intimidade, tão largamente oferecida, e decerto mais doce na solidão de aldeia. Quando acabou a sua chávena de chá - era como se a casa, os móveis, as árvores fossem já seus, fossem já dela. E teve ali um momento delicioso, descrevendo-lhe a quietação da quinta, a entrada por uma rua de acácias, e a beleza da sala de jantar com duas janelas abrindo sobre o rio...

Ela escutava-o, encantada:

- Oh! isso era o meu sonho! Vou ficar agora toda alterada, cheia de esperanças... Quando poderei ter uma resposta?

Carlos olhou o relógio. Era já tarde para ir aos Olivais. Mas logo na manhã seguinte cedo, ia falar com o dono da casa, seu amigo...

- Quanto incomodo por minha causa! disse ela. Realmente! como lhe hei de eu agradecer?...

Calou-se; mas os seus belos olhos ficaram um instante pousados nos de Carlos, como esquecidos, e deixando fugir irresistivelmente um pouco do segredo que ela retinha no seu coração.

Ele murmurou:

- Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse outra vez assim.

Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda.

- Não diga isso...

- E que necessidade há que eu lho diga? Pois não sabe perfeitamente que a adoro, que a adoro, que a adoro!

Ela ergueu-se bruscamente, ele também: - e assim ficaram, mudos, cheios de ansiedade, trespassando-se com os olhos, como se se tivesse feito uma grande alteração no Universo, e eles esperassem, suspensos, o desfecho supremo dos seus destinos... E foi ela que falou, a custo, quasi desfalecida, estendendo para ele, como se o quisesse afastar, as mãos inquietas e tremulas:

- Escute! Sabe bem o que eu sinto por si, mas escute... Antes que seja tarde há uma coisa que lhe quero dizer...

Carlos via-a assim tremer, via-a toda pálida... E nem a escutara, nem a compreendera. Sentia apenas, num deslumbramento, que o amor comprimido até aí no seu coração irrompera por fim, triunfante, e embatendo no coração dela, através do aparente mármore do seu peito, fizera de lá ressaltar uma chama igual... Só via que ela tremia, só via que ela o amava... E, com a gravidade forte dum acto de posse, tomou-lhe lentamente as mãos, que ela lhe abandonou, submissa de repente, já sem força, e vencida. E beijava-lhas ora uma ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:

- Meu amor! meu amor! meu amor!

Maria Eduarda caíra pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as mãos, erguendo para ele os olhos cheios de paixão, enevoados de lágrimas, balbuciou ainda, debilmente, numa derradeira suplicação:

- Há uma coisa que eu lhe queria dizer!...

Carlos estava já ajoelhado aos seus pés.

- Eu sei o que é! exclamou, ardentemente, junto do rosto dela, sem a deixar falar mais, certo de que adivinhara o seu pensamento. Escusa de dizer, sei perfeitamente. É o que eu tenho pensado tantas vezes! É que um amor como o nosso não pode viver nas condições em que vivem outros amores vulgares... É que desde que eu lhe digo que a amo, é como se lhe pedisse para ser minha esposa diante de Deus...

Ela recuava o rosto, olhando-o angustiosamente, e como se não compreendesse. E Carlos continuava mais baixo, com as mãos dela presas, penetrando-a toda da emoção que o fazia tremer:

- Sempre que pensava em si, era já com esta esperança duma existência toda nossa, longe daqui, longe de todos, tendo quebrado todos os laços presentes, pondo a nossa paixão acima de todas as ficções humanas, indo ser felizes para algum canto do mundo, solitariamente e para sempre... Levamos Rosa, está claro, sei que não se pode separar dela... E assim viveríamos sós, todos três, num encanto!

- Meu Deus! Fugirmos? murmurou ela, assombrada.

Carlos erguera-se.

- E que podemos fazer? Que outra coisa podemos nós fazer, digna do nosso amor?

Maria não respondeu, imóvel, a face erguida para ele, branca de cera. E pouco a pouco uma ideia parecia surgir nela, inesperada e perturbadora, revolvendo todo o seu ser. Os seus olhos alargavam-se, ansiosos e refulgentes.

Carlos ia falar-lhe... Um leve rumor de passos na esteira da sala deteve-o. Era o Domingos que vinha recolher a bandeja do chá: e durante um momento, quasi interminável, houve entre aqueles dois seres, sacudidos por um ardente vendaval de paixão, a caseira passageira dum criado arrumando chávenas vazias. Maria Eduarda, bruscamente, refugiou-se detrás das bambinelas de cretone com o rosto contra a vidraça. Carlos foi sentar-se no sofá, a folhear ao acaso uma Ilustração, que lhe tremia nas mãos. E não pensava em nada, nem sabia onde estava... Ainda na véspera, havia ainda instantes, conversando com ela, dizia cerimoniosamente «minha cara senhora»: depois houvera um olhar; e agora deviam fugir ambos, e ela tornara-se o cuidado supremo da sua vida, e a esposa secreta do seu coração.

- V. Exc.ª quer mais alguma coisa? perguntou Domingos.

Maria Eduarda respondeu sem se voltar:

- Não.

O Domingos saiu, a porta ficou cerrada. Ela então atravessou a sala, veio para Carlos, que a esperava no sofá, com os braços estendidos. E era como se obedecesse só ao impulso da sua ternura, acalmadas já todas as incertezas. Mas hesitou de novo diante daquela paixão, tão pronta a apoderar-se de todo o seu ser, e mumurou, quasi triste:

- Mas conhece-me tão pouco!... Conhece-me tão pouco, para irmos assim ambos, quebrando por tudo, criar um destino que é reprovável...

Carlos tomou-lhe as mãos, fazendo-a sentar ao seu lado, brandamente:

- O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer mais nada na vida!

Um instante Maria Eduarda ficou pensativa, como recolhida no fundo do seu coração, escutando-lhe as derradeiras agitações. Depois soltou um longo suspiro.

- Pois seja assim! Seja assim... Havia uma coisa que eu lhe queria dizer, mas não importa... É melhor assim!...

E que outra coisa podiam fazer? perguntava Carlos radiante. Era a única solução digna, séria... E nada os podia embaraçar; amavam-se, confiavam absolutamente um no outro; ele era rico, o mundo era largo...

E ela repetia, mais firme agora, já decidida, e como se aquela resolução a cada momento se cravasse mais fundo na sua alma, penetrando-a toda e para sempre:

- Pois seja assim! É melhor assim!

Um momento ficaram calados, olhando-se arrebatadamente.

- Dize-me ao menos que és feliz, murmurou Carlos.

Ela lançou-lhe os braços ao pescoço: e os seus lábios uniram-se num beijo profundo, infinito, quasi imaterial pelo seu êxtase. Depois Maria Eduarda descerrou lentamente as pálpebras, e disse-lhe, muito baixo:

- Adeus, deixa-me só, vai.

Ele tomou o chapéu, e saiu.

No dia seguinte Craft, que havia uma semana não ia ao Ramalhete, passeava na quinta antes de almoço - quando apareceu Carlos. Apertaram as mãos, falavam um instante do Ega, da chegada dos Cohens. Depois, Carlos, fazendo um gesto largo que abrangia a quinta, a casa, todo o horizonte, perguntou rindo:

- Você quer-me vender tudo isto, Craft?

O outro respondeu, sem pestanejar, e com as mãos nas algibeiras:

- A la disposicion de ustêd...

E ali mesmo concluíram a negociação, passeando numa ruazinha de buxo por entre os gerânios em flor.

Craft cedia a Carlos todos os seus móveis antigos e modernos por duas mil e quinhentas libras, pagas em prestações: só reservava algumas raras peças do tempo de Luís XV, que deviam fazer parte dessa nova colecção que planeava, homogénea, e toda do século XVIII. E como Carlos não tinha no Ramalhete lugar para este vasto bric-à-brac, Craft alugava-lhe por um ano a casa dos Olivais, com a quinta.

Depois foram almoçar. Carlos nem por um momento pensou na larga despesa que fazia, só para oferecer uma residência de verão, por dois curtos meses - a quem se contentaria com um simples cotage, entre árvores de quintal. Pelo contrario! quando repercorreu as salas do Craft, já com olhos de dono, achou tudo mesquinho, pensou em obras, em retoques de gosto.

Com que alegria, ao deixar os Olivais, correu à rua de S. Francisco, a anunciar a Maria Eduarda que lhe arranjara enfim definitivamente uma linda casa no campo! Rosa, que da varanda o vira apear-se, veio ao seu encontro ao patamar: ele ergueu-a nos braços, entrou assim na sala, com ela ao colo, em triunfo. E não se conteve; foi à pequena que deu logo «a grande novidade», anunciando-lhe que ia ter duas vacas, e uma cabra, e flores, e árvores para se balouçar...

- Onde é? Dize, onde é? exclamava Rosa, com os lindos olhos resplandecentes, e a facesinha cheia de riso.

- Daqui muito longe... Vai-se numa carruagem... Vêem-se passar os barcos no rio... E entra-se por um grande portão onde há um cão de fila.

Maria Eduarda apareceu, com Niniche ao colo.

- Mamã, mamã! gritou Rosa correndo para ela, dependurando-se-lhe do vestido. Diz que vou ter duas cabrinhas, e um balouço... É verdade? Dize, deixa ver, onde é? Dize... E vamos já para lá?

Maria e Carlos apertaram a mão, com um longo olhar, sem uma palavra. E logo junto da mesa, com Rosa encostada aos seus joelhos, Carlos contou a sua ida aos Olivais... O dono da casa estava pronto a alugar, já, numa semana... E assim se achava ela de repente com uma vivenda pitoresca, mobilada num belo estilo, deliciosamente saudável...

Maria Eduarda parecia surpreendida, quasi desconfiada.

- Há de ser necessário levar roupas de cama, roupas de mesa...

- Mas há tudo! exclamou Carlos alegremente, há quasi tudo! É tal qual como num conto de fadas... As luzes estão acesas, as jarras estão cheias de flores... É só tomar uma carruagem e chegar.

- Somente, é necessário saber o que esse paraíso me vai custar...

Carlos fez-se vermelho. Não previra que se falasse em dinheiro - e que ela quereria decerto pagar a casa que habitasse... Então preferiu confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft, havia quasi um ano, andava desejando desfazer-se das suas colecções, e alugar a quinta: o avô e ele tinham repetidamente pensado em adquirir grande parte dos móveis e das faianças, para acabar de mobilar o Ramalhete, e ornamentar mais Santa Olavia; e ele enfim decidira-se a fazer essa compra desde que entrevira a felicidade de lhe poder oferecer, por alguns meses de verão, uma residência graciosa, e tão confortável...

- Rosa, vai lá para dentro, disse Maria Eduarda, depois de um momento de silêncio... Miss Sarah está à tua espera.

Depois, olhando para Carlos, muito séria:

- De sorte que, se eu não mostrasse desejos de ir para o campo, não tinha feito essa despesa...

- Tinha feito a mesma despesa... Tinha também alugado a casa por seis meses ou por um ano... Onde possuía eu agora de repente um sítio para meter as coisas do Craft? O que não fazia talvez era comprar conjuntamente roupas de cama, roupas de mesa, mobílias dos quartos dos criados, etc...

E acrescentou, rindo:

- Ora se me quiser indemnizar disso podemos debater esse negócio...

Ela baixou os olhos, reflectindo, lentamente.

- Em todo o caso seu avô e os seus amigos devem saber daqui a dias que me vou instalar nessa casa... E devem compreender que a comprou para que eu lá me instalasse...

Carlos procurou o seu olhar que permanecia pensativo, desviado dele. E isto inquietou-o - o vê-la assim retrair-se àquela absoluta comunhão de interesses em que a queria envolver, como esposa do seu coração.

- Não aprova então o que fiz? Seja franca...

- Decerto... Como não hei de eu aprovar tudo quanto faz, tudo quanto vem de si? Mas...

Ele acudiu, apoderando-se das suas mãos, sentindo-se triunfar:

- Não há mas! O avô e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa no campo, inútil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto, se quiser, meteremos nisto tudo o meu procurador... Minha cara amiga, se fosse possível que a nossa afeição se passasse fora do mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas, seria delicioso... Mas não pode ser!... Alguém tem de saber sempre alguma coisa; quando não seja senão o cocheiro que me leva todos os dias a sua casa, quando não seja senão o criado que me abre todos os dias a sua porta... Há sempre alguém que surpreende o encontro de dois olhares; há sempre alguém que adivinha de onde se vem a certas horas... Os deuses antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que os tornava invisíveis. Nós não somos deuses, felizmente...

Ela sorriu.

- Quantas palavras para converter uma convertida!

E tudo ficou harmonizado num grande beijo.

Afonso da Maia aprovou plenamente a compra das colecções do Craft. «É um valor, disse ele ao Vilaça, e acabamos de encher com boa arte Santa-Olavia e o Ramalhete.»

Mas o Ega indignou-se, chegou a falar em «desvario», despeitado por essa transacção secreta para que não fora consultado. O que o irritava sobretudo era ver, nesta aquisição inesperada de uma casa de campo, outro sintoma do grave e do fundo segredo que pressentia na vida de Carlos: e havia já duas semanas que ele habitava o Ramalhete e Carlos ainda não lhe fizera uma confidência!... Desde a sua ligação de rapazes em Coimbra, nos Paços de Cela, fora ele o confessor secular de Carlos: mesmo em viagem, Carlos não tinha uma aventura banal de hotel, de que não mandasse ao Ega «um relatório». O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao principio tentara, frouxamente, guardar um mistério delicado, já o conhecia todo, já lera as cartas da Gouvarinho, já passara pela casa da titi...

Mas do outro segredo não sabia nada - e considerava-se ultrajado. Via rodas as manhãs Carlos partir para a rua de S. Francisco, levando flores; via-o chegar de lá, como ele dizia, «besuntado de êxtase»; via-lhe os silêncios repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao mesmo tempo sério e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente amado... E não sabia nada.

Justamente alguns dias depois, estando ambos sós, a falar de planos de verão, Carlos aludiu aos Olivais, com entusiasmo, relembrando algumas das preciosidades do Craft, o doce sossego da casa, a clara vista do Tejo... Aquilo realmente fora obter por uma mão cheia de libras um pedaço do paraíso...

Era à noite, no quarto de Carlos, já tarde. E o Ega, que passeara com as mãos nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu os ombros, impaciente, farto daqueles louvores eternos a casinhola do Craft.

- Essa concepção do paraíso, exclamou ele, parece-me dum estofador da rua Augusta! Como natureza, couves galegas; como decoração, os velhos cretones do gabinete, desbotados já por três barrelas... Um quarto de dormir lúgubre como uma capela de santuário... Um salão confuso como o armazém dum cara-de-pau, e onde não é possível conversar... A não ser o armário holandês, e um ou outro prato, tudo aquilo é um lixo arqueológico... Jesus! o que eu odeio bric-à-brac!

Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquilamente, e como reflectindo:

- Com efeito esses cretones são medonhos... Mas eu vou mandar remobilar, tornar aquilo mais habitável.

Ega estacou no meio do quarto, com o monóculo a faiscar sobre Carlos.

- Habitável? Vais ter hospedes?

- Vou alugar.

- Vais alugar! A quem?

E o silêncio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrete com os olhos no tecto, enfureceu Ega. Cumprimentou quasi até ao chão, disse sarcasticamente:

- Peço perdão. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de querer arrombar uma gaveta fechada... O aluguel dum prédio é sempre um desses delicados segredos de sentimento e de honra em que não deve roçar nem a asa da imaginação... Fui rude... Irra! Fui bestialmente rude!

Carlos continuava calado. Compreendia bem o Ega - e quasi sentia um remorso daquela sua rígida reserva. Mas era como um pudor que o enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome de Maria Eduarda. Todas as suas outras aventuras as contara ao Ega; e essas confidências constituíam talvez mesmo o prazer mais sólido que elas lhe davam. Isto, porém, não era «uma aventura». Ao seu amor misturava-se alguma coisa de religioso; e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar sobre a sua fé... Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma tentação de falar dela ao Ega, e de tornar vivas, e como visíveis aos seus próprios olhos, dando-lhes o contorno das palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas que lhe enchiam o coração. Além disso, Ega não saberia tudo, mais tarde ou mais cedo, pela tagarelice alheia? Antes lho dissesse ele, fraternalmente. Mas hesitou ainda, acendeu outra cigarrete. Justamente o Ega tomara o seu castiçal, e começava a: acende-lo a uma serpentina, devagar e com um ar amuado.

- Não sejas tolo, não te vás deitar, senta-te ai, disse Carlos.

E contou-lhe tudo miudamente, difusamente, desde o primeiro encontro, à entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.

Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá. Supusera um romancesinho, desses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo: e agora, só pelo modo como Carlos falava daquele grande amor, ele sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se daí por diante, e para sempre, o seu irreparável destino. Imaginara uma brasileira polida por Paris, bonita e fútil, que tendo o marido longe, no Brasil, e um formoso rapaz ao lado, no sofá, obedecia simplesmente e alegremente à disposição das coisas: e saia-lhe uma criatura cheia de carácter, cheia de paixão, capaz de sacrifícios, capaz de heroismos. Como sempre, diante destas coisas patéticas, murchava-lhe a veia, faltava-lhe a frase; e quando Carlos se calou, o bom Ega teve esta pergunta chocha:

- Então estás decidido a safar-te com ela?

- A safar-me, não; a ir viver com ela longe daqui, decididíssimo!

Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um fenómeno prodigioso, e murmurou:

- É de arromba!

Mas que outra coisa podiam eles fazer? daí a três meses talvez, Castro Gomes chegava do Brasil. Ora nem Carlos, nem ela, aceitariam nunca uma dessas situações atrozes e reles em que a mulher é do amante e do marido, a horas diversas... Só lhes restava uma solução digna, decente, seria - fugir.

Ega, depois de um silêncio, disse pensativamente:

- Para o marido é que não é talvez divertido perder assim, de uma vez, a mulher, a filha, e a cadelinha...

Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto. Sim, também ele já pensara nisso... E não sentia remorsos - mesmo quando os pudesse haver no absoluto egoísmo da paixão... Ele não conhecia intimamente Castro Gomes: mas tinha podido adivinhar o tipo, reconstrui-lo, pelo que lhe dissera o Dâmaso, e por algumas conversas com miss Sarah. Castro Gomes não era um esposo a sério: era um dândi, um fútil, um gomeux, um homem de sport e de cocotes... Casara com uma mulher bela, saciara a paixão, e recomeçara a sua vida de club e de bastidores... Bastava olhar para ele, para a sua toilete, para os seus modos - e compreendia-se logo a trivialidade daquele carácter...

- Que tal é como homem? perguntou Ega.

- Um brasileirito trigueiro, com um ar espartilhado... Um rastaquouère, o verdadeiro tiposinho do Café de la Paix... É possível que sinta, quando isto vier a suceder, um certo ardor na vaidade ferida... Mas é um coração que se há de consolar facilmente nas Folies Bergères.

Ega não dizia nada. Mas pensava que um homem de club, e mesmo consolável nas Folies Bergères, pode todavia amar muito sua filha... Depois, atravessado por uma outra ideia, acrescentou:

- E teu avô?

Carlos encolheu os ombros:

- O avô tem de se afligir um pouco para eu poder ser profundamente feliz; como eu teria de ser desgraçado toda a minha vida se quisesse poupar ao avô essa contrariedade... O mundo é assim, Ega... E eu, nesse ponto, não estou decidido a fazer sacrifícios.

Ega esfregou lentamente as mãos, com os olhos no chão, repetindo a mesma palavra, a única que lhe sugeria todo o seu espírito perante aquelas coisas veementes:

- É de arromba!