Crónicas de Londres

 

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Londres, 14 de Abril de 1877

 

Estamos, parece, nas vésperas da guerra.

A Turquia deu ao ultimato da Rússia uma verdadeira resposta turca – verbosa, altiva, teimosa, cheia do espírito de fatalismo muçulmano: recusa tudo: fazer concessões ao Montenegro, desarmar, mandar embaixadores a Sampetersburgo, aceitar as intervenções alheias, renovar quaisquer garantias, quase discutir: desprende-se assim violentamente das combinações diplomáticas, carrega a espingarda e espera. Era fácil prever esta reacção do orgulho turco.

Há um ano que a Sublime Porta vive num estado de humilhação permanente. A Europa tem-na tratado como um seu subalterno dependente e inconsciente: impõe-lhe constituições, governa as suas finanças, discute a sua administração, usa da sua capital como de uma sala de hotel para instalar conferências, manda comissões impertinentes investigar os seus massacres domésticos, dá razão às províncias que se insurreccionam, força-a a constantes renovações do funcionalismo, censura as suas despesas, decide nos seus tribunais, obriga-a a nomear um parlamento, repreende-a, diz-lhe «chut!», desacredita-a, ralha-lhe, ameaça-a, não admite que ela tenha um espírito de raça, uma tradição histórica, uma necessidade religiosa e trata-a absolutamente como se ela fosse uma povoação de negros perdida no Sul da África.

Esta situação não podia durar. O Turco é inteligente, orgulhoso, bravo, teimoso, fanático; um dia viria em que, enfastiado de ver em roda de si tantos pedagogos a querer dirigi-lo e tantos ferrabrases a franzirem-lhe a testa – devia necessariamente dar dois passos a trás e meter a espingarda à cara.

Foi o que sucedeu.

Aceitando tacitamente a guerra, a Sublime Porta foi hábil. Qualquer nova concessão que fizesse seria inútil: a Rússia sempre quis a guerra; através das declarações adocicadas de paz, da proposta de conferências, das esperanças nas soluções diplomáticas a Rússia ia lenta e seguramente preparando a guerra. A Turquia não a podia evitar; e indo, decisivamente, ao encontro dela mostra ao menos um sentimento de dignidade e de força.

Além disso impelia-a a grande corrente do sentimento nacional; a cólera pública, excitada pelos ulemás, pelo partido da Velha, Turquia. é tão forte que concessões demasiadas ou a demonstração evidente de uma submissão à Europa faria correr um grande risco à dinastia dos Osmanlis.

O actual grão-vizir tinha de mais a mais um interesse de ambição pessoal em se mostrar resistente e enérgico: é que, tendo substituído Midhat Paxá exilado tinha de mostrar as fortes qualidades que o sentimento geral atribui a Midhat: Midhat tem um grande partido, não só em Constantinopla mas em todo o império; ele é considerado como homem capaz de fazer face à Europa, de manter a dignidade da raça turca e de saber morrer com honra: ora o actual grão-vizir quer provar, para se manter, que não é um patriota inferior a Midhat: ninguém, na diplomacia, duvida que esta razão de política pessoal influiu poderosamente para a altiva resposta da Turquia ao ultimato da Rússia. Acresce a estas uma outra razão: é que a Turquia não pode licenciar o seu exército e que para o fazer viver tem de o fazer combater. Os Turcos têm quase duzentos mil homens mobilizados, reunidos na fronteira, com grandes esforços e sacrifícios nos dois últimos anos. Que se faria a este exército desmobilizando-o? Num país em que não há caminhos de ferro, quase não há estradas, estes homens, pertencendo às províncias mais afastadas do império, como poderiam voltar às suas casas? O Estado não tem dinheiro para os transportar. Com que recursos pessoais empreenderão eles a viagem? Nesta época do ano, os trabalhos do campo estão feitos; o Estado não tem trabalho que lhes dar, em que se ocupariam eles? A maior parte, em dois anos de acampamento, têm perdido o hábito do trabalho agrícola; o instinto da raça é militar: todo o turco ganha facilmente o hábito de ser soldado; perde mais facilmente o hábito de ser cultivador.

Este exército desmobilizado dispersar-se-ia através de províncias pobres, assoladas pela insurreição, e seria um elemento de desordem, de pilhagem, de deboche, e a renovação das cenas da Bulgária: assim o sentimento nacional, estreitas questões de ambição pessoal, inextricáveis dificuldades financeiras – aí está o que leva a Turquia à guerra.

O imperador da Rússia, por seu lado, é impelido também pelo entusiasmo público.

Um retraimento agora poderia causar como na Turquia um abalo revolucionário em toda a Rússia. E um ódio nacional: os jornais, pela exaltação da sua cólera, pelas narrações permanentes das crueldades e das opressões turcas sobre os cristãos; os comités de Moscovo pela sua vasta influência; o sacerdócio russo por uma prédica irritada e fanática mantêm o espírito nacional num furor permanente contra o Turco; a guerra e considerada santa, sem nenhuma ideia de conquista, de anexação; é possível que a plebe e a rica burguesia mercantil de Moscovo e das cidades pensem em Constantinopla; mas as classes militares, a aristocracia, sabem bem que nem a Inglaterra nem a Áustria lhes permitiriam aumentar o território: e realmente por um puro sentimento, pela libertação dos cristãos que se batem. E no fundo os dois governos – russo e turco são impelidos por um fanatismo contrario.

Qual será o resultado da luta? A desproporção de forças na fronteira é grave: os Russos têm duzentos e setenta e cinco mil homens de infantaria, vinte mil cavalos e novecentas peças de artilharia. Os Turcos têm cento e cinquenta mil homens de infantaria, três mil cavalos e duzentos e dezasseis canhões. Este número inferior é compensado por esta consideração: que o Turco é atacado e o Russo ataca – ora é conhecido que o Russo é o mais vagaroso e insuficiente dos exércitos de ataque e o Turco é um admirável soldado de defesa. Ninguém como ele para manter uma posição: é ainda uma qualidade que a sua religião lhe deu: a impassibilidade.

Os Russos decerto podem mobilizar rapidamente grandes forças, mas aos Turcos basta-lhes levantar o estandarte do Profeta para que todo o maometanismo, sejam quais forem as dissidências de seita, corra às armas.

Kalil Paxá, o embaixador da Turquia em Paris, dizia há dias, como o velhaco sorriso de velho maometano:

– Nós esperamos: e a verdadeira guerra havemos de fazê-la com a Arábia e a Índia.

Uma das infelicidades da Turquia é talvez não ter realizado a sua aliança com a Pérsia. A Pérsia podia fazer uma terrível diversão sobre a fronteira asiática da Rússia, e obrigá-la a dividir as suas forças. Mas a aliança persa, segundo os bem informados, foi concluída com a Rússia e o exército persa está armado, disciplinado, instruído, comandado pela Rússia.

Que fará a Inglaterra? Há aqui mesmo mil opiniões. A mais geral, há tempos, era a de absoluta indiferença.

«A Rússia», dizia-se, «não se atreve a tentar uma anexação: mas mesmo que ela vá a Constantinopla, que importa à Inglaterra?» O caminho da Índia não fica por isso menos livre. Além disso, é digno que a Inglaterra tome o partido de massacradores fanáticos e de devedores insolúveis? E depois de que serve fazermos esforços para conservar a integridade de um país que todos os dias, pela sua relaxação e a sua imprevidência se vai desorganizando a si mesmo? Que se lucrou com o dinheiro, o sangue, que se prodigalizou na guerra de 52? Para que se há-de intervir num duelo que a história e a fé tornam inevitáveis? Assim se falava. Hoje, porém, perante a crise, a linguagem mudou. «Não se poderia realmente compreender», diz-se agora, «que a guerra não tenha como resultado, dada a vitória da Rússia, uma anexação de território»: daí a desmembração do império e o Russo em Constantinopla: mas então, a Rússia estaria no Mediterrâneo, com um dos fortes portos do mar: o poder inglês teria uma diminuição e a sua posse sobre a Índia, um primeiro perigo. Dai vem-se à conclusão que é necessária fatalmente a intervenção. Diz-se mesmo que à mais pequena escaramuça perdida pelos Turcos – a Inglaterra ocupará Constantinopla. A esquadra, reforçada, está em caminho de Bezoka-Bay – que é a antecâmara de Constantinopla.

Que a Inglaterra concorreu de certo modo para a guerra é evidente: concorreu com os seus meetings sentimentais e humanitários no Verão passado, dando ânimo aos Russos para seguirem a sua ideia agressiva: concorreu com a presença da esquadra em Constantinopla pouco depois, dando ânimo aos Turcos para resistirem à pressão pacifica da Europa: concorreu depois com a ideia do protocolo que, sendo um reconhecimento tácito da justiça e da força da Rússia, lhe deu um aumento de exigência e de hostilidade – e, sendo uma nova humilhação imposta à Turquia, a tomou mais despeitada e mais difícil de condescendências.

É provável, porém, que a guerra não rompa por estas semanas próximas. No protocolo dizia-se que, dado o caso de uma recusa da parte da Turquia, as potências acordariam numa decisão ulterior a tomar: mas esta decisão, sejam quais forem as combinações diplomáticas que a precedam, terá sempre este resultado – deixar a Turquia em frente da Rússia – e o resultado final, portanto, será igualmente a guerra.

En attendant, o ministro das Finanças apresenta o seu orçamento organizado como se a Inglaterra não tivesse a menor probabilidade de uma complicação militar. E um orçamento cheio de confiança, pacífico e próspero.

A despesa é calculada em setenta e Oito milhões setecentas e noventa e quatro mil e quarenta e quatro libras. A receita é calculada em setenta e nove milhões e vinte mil libras! O Tesouro tem, pois, o saldo a favor de duzentas e vinte e seis mil libras!

Apesar deste orçamento invejável, a situação comercial e industrial da Inglaterra não é boa: em todo o reino há uma depressão na actividade. As indústrias do carvão e do ferro têm tido no Norte um período terrível de estagnação. Muitos altos-fornos estão apagados, muitos trabalhos de exploração carvoeira suspensos. Há milhares de homens sem trabalho.

Para se ver a declinação geral do movimento comercial, basta dizer que as grandes companhias de navegação entre a Inglaterra e os Estados Unidos – a Inman, White Star, Guion National – reduziram o número de viagens de paquetes – e que em lugar de saídas semanais têm apenas saídas quinzenais.

Acresce que, na maior parte das indústrias, a progressão crescente das exigências dos operários, justamente neste momento de crise, aumenta as dificuldades: é pelo menos o que afirmam os industriais.

O movimento crescente para a redução das horas de trabalho afecta, dizem eles, certas indústrias mortalmente: uma grande firma do Norte, exploradora de vastas minas de carvão, que empregava três mil operários, cessou os seus trabalhos, que não podem sem perda, afiançam eles na sua declaração, continuar sob o regime das horas reduzidas.

 

Começa a falar-se, com seriedade e espanto, numa nova descoberta americana, o telefone: é um telégrafo para a transmissão do som. Esta ideia, que nasceu em 1861, tem tido um progresso tão fecundo que há dois meses já se apresentaram perante as provas públicas dois sistemas rivais. O mais perfeito, parece. é o do Dr. Bell. O seu aparelho, que tem a aparência de um sistema telegráfico e um princípio electromagnético, trans-mitiu sons, numa última experiência, feita a cento e quarenta e três milhas; não só o som da voz chega perfeitamente claro, mas distinguem-se as inflexões mais leves. A experiência foi realizada em Boston e Conway, e àquela forte distância distinguia-se uma rabeca de um violoncelo; o rumor, as conversações, as risadas das pessoas que estavam junto do aparelho em Boston eram ouvidas em Conway com a distinta e exacta nitidez com que se ouve numa torrinha o que se canta no palco. Calcula-se que se poderá fazer chegar o som a transatlânticas distancias. Em Filadélfia organiza-se um concerto experimental, em que o público estará a cinquenta milhas dos artistas.

 

As novidades literárias são escassas. Ruskin, o célebre critico de arte, publicou um livro, que tem causado uma singular surpresa: é um livro íntimo, uma confissão, uma confidência –de quê? De sentimentos? De aventuras? De sofrimentos ou felicidades pessoais? Não: de despesas de casa! Não sabe a gente se há-de achar este livro um começo de imbecilidade senil ou um resto amável de candura infantil. A alta situação literária e crítica de Ruskin, personalidade original de grande relevo, aumenta o espanto. Imaginem o Sr. Alexandre Herculano publicando, de Vale de Lobos, um panfleto de duzentas páginas em que explicasse o que gasta em seus róis, quanto lhe custa a lavadeira, o que emprestou a fulano, a última conta do alfaiate, etc., etc. Uma coisa curiosa se vê no livro de Ruskin – é que gastou em poucos anos uma fortuna de duzentas mil libras! Parte por uma alta filantropia e uma santa caridade – e parte não sabe como; porque, diz ele, viveu quinze anos com tão sórdida economia, privando-se tão asperamente, que apenas gastava, pobre dele, trinta contos de réis por ano! Agora, diz, restam-lhe duzentos e cinquenta contos: acha que não vale a pena conservar uma soma tão mesquinha. Mete na carteira quinze contos para ir viajar este ano, e do resto faz duas partes –uma para dispersar em caridade, outra para empregar de modo que tenha para todo o futuro mil e quinhentos mil réis por ano: porque, diz ele, descobriu que todo o homem que não pode viver com este rendimento não é digno de possuir a vida.

 

Uma outra curiosidade é a nova revista mensal O Século XIX. Tem por colaboradores os mais altos nomes de Inglaterra, desde Gladstone, que será em breve o primeiro-ministro, até ao cardeal Manning – que pode vir a ser o futuro papa. A originalidade desta revista é que os seus directores pediram a todos os homens ilustres de Inglaterra – políticos, filósofos, professores, críticos – que lhe escrevessem a sua opinião individual sobre esta tese: «Que influência exerce sobre a moral a diminuição da crença religiosa?» Cada um dos homens ilustres deve responder num período curto, sintético, que se grave com a precisão de uma definição e a profundidade de uma máxima. A colecção destas definições filosóficas, reunidas nas últimas páginas de cada número sob o nome de Symposium. é altamente interessante: até aqui a declaração mais explícita é a do professor Fawcet, que diz: «A crença em Deus deve ser para os que a possam gozar um delicado prazer do espírito, mas a moral está acima e fora desses refinamentos da inteligência.».

 

A season – os três meses elegantes e aristocráticos de Londres – começa lentamente a organizar-se. Ordinariamente, a aristocracia inglesa, depois da Páscoa, vai a Paris: o príncipe de Gales é o primeiro. Passou-se o Inverno no campo, nos castelos, na caça, e antes do encontro oficial em Londres, vai-se respirar a Paris uma larga golfada de civilização: vê-se o último tom das toilettes, os cortes da Primavera na Lafferrière e no Worth, folheia-se o último livro de Goncourt, faz-se uma passagem nos salões do Eliseu, vê-se a novidade da Páscoa na Comédie Française, vai-se ao Café Anglais e à Maison d’Or, à vontade, de chapéu, o que é para uma lady inglesa uma adorável extravagância, e volta-se à representação pesada e solene de Londres. O tempo, porém, tem estado áspero, havendo frio, com o vento do sudoeste que tem um gume gelado, e o Hyde Park tem ainda a parda tristeza da sua solidão de Inverno. A great attraction desta season será, parece, Orleans Club. É um clube de campo: está à beira do Tamisa, numa paisagem amável, nas verduras de um vasto parque. Era uma propriedade do duque de Aumale. Os prazeres do clube serão piquenique no campo, tiro aos pombos, pescas, pólo, críquete, almoços na relva, bailes de musselina, soirées no parque, etc. Todos os dias dois four-in-hand, conduzidos por membros do clube, levarão a Orleans House os sócios e as convidadas, porque uma feição delicada de Orleans Club é que será também um clube feminino, o que lhe trará inevitavelmente, por um tempo, o encanto e, mais tarde, a ruma.

Um outro clube original está em via de organização. E o clube dos torneios. Este deverá ter uma casa ao pé do Hyde Park, onde às cinco horas se serve o chá às senhoras, entre o campo: o fim principal deste clube será formar torneios e caçadas ao falcão. Faz ligeiramente sorrir o programa gótico e feudal deste clube londrino. A caça ao falcão pode conceber-se desde que se vistam os criados com as cores usadas na partida dos pajens do século XIV, se lhes borde no peito, sobre a seda, os escudos de armas e se lhes deixem crescer os cabelos louros em anéis. Assim poderão levantar no punho o carrancudo falcão com o seu capacete de pele de búfalo e a caça pode ter um aspecto suportavelmente feudal. Mas um torneio! Negociantes da City e banqueiros de capacete e armadura, dando-se golpes de montante, numa quinta particular, ao pé da estação de caminho de ferro! Singular diversão! O último torneio que houve em Inglaterra foi há trinta anos no Castelo de Egliton. Tinha sido aclamada rainha da beleza legendária Lady Seymoun. As festas foram esplêndidas. Ficaram célebres as pessoas do elegante marquês de Londonderry. Houve um episódio. Um homem baixo e grosso, de nariz espesso e fortes bigodes, todo coberto de uma armadura aparatosa, caiu na arena, estatelado, esperneando; levantaram-no e sacudiram-no; estava são, só um pouco humilhado: damas e cavaleiros riram; era um estrangeiro, sem grande importância: quatro anos depois era imperador dos Franceses!

 

Uma curiosidade de Londres – foi o desafio a andar entre o célebre caminhador O’Leary e o seu rival Welton. O desafio foi em Albert Hall e durou seis dias – durante esse tempo, os andarilhos tiveram apenas algumas horas de descanso! O’Leary ganhou, tendo andado quinhentas e vinte milhas; Welton perdeu por dez milhas. O’Leary caminhava com os cotovelos apertados aos rins, calado, olhar direito, tendo agarrado em cada mão, com uma força convulsiva, uma varinha. Welton caminhava bamboleando-se, falando, com um chicote numa das mãos, a outra à cinta – e para se excitar fez-se tocar constantemente à banda alemã de instrumentos de metal uma marcha estridente. Trinta mil pessoas assistiram sucessivamente a este singular desafio. O que se provou? Incontestavelmente que a constituição humana tem um prodigioso poder de resistência, e que esta máquina de carne e ossos não é inferior às de Birmingham. Mas o que é estranho é que no tempo dos caminhos de ferro – se exerça essa preciosa força de resistência, numa arte inútil, obsoleta, quase bárbaras marchas!

 

O grande teatro da Alhambra representa uma peça fantástica, cortada de bailados, que tem, em Inglaterra, uma singular qualidade – e imoral! É a primeira vez que vejo num palco inglês o amante idealizado e o marido apupado! Milhares de pessoas vão sucessivamente saborear aquele escandalozinho gigante. Vejam a censura inglesa! Admite esta farsa impudente, povoada de mulheres quase nuas, e recusa a Dama das Camélias! Mas é que em Inglaterra não existe censura; Lord Chambellan, um velho caturra de outras idades, excêntrico e variável, é a censura. Governa despoticamente do meio do seu mau humor os teatros de Londres, e com tanta inteligência que permite as farsas imorais de um rabiscador idiota – e impede a representação da obra de Dumas, da Academia Francesa!

 

 

II

Londres, 14 de Maio [de 1877]

 

Lembram-se, decerto, de eu lhes dizer na minha última carta que o soldado russo era o mais vagaroso dos soldados de ataque; aí têm a prova: há um mês que começou a guerra, e nem no Danúbio, nem na Ásia Menor, tem havido um facto decisivo: as estradas da România, é verdade, têm estado quase impraticáveis pelas chuvas incessantes e pelos temporais tão oportunos que parecem estar às ordens do sultão e pertencer ao estado-maior turco; é verdade que na Ásia Menor as dificuldades de transporte e de trânsito para um forte exército invasor são consideráveis: todavia repete-se um facto histórico e militar: toda a invasão russa é sempre uma campanha protraída e monótona.

No Danúbio tem havido apenas alguns duelos de artilharia entre os fortes das duas margens, com resultados (consoladores para os humanitários) de algum cavalo morto ou de algum tecto de colmo queimado.

O facto mais enérgico foi a passagem de Hobart Paxá, a bordo de um navio turco, através do fogo das baterias russas. À chegada dos Russos à România e aos portos do Danúbio, Hobbart Paxá estava, em serviço de inspecção, a bordo de um navio de guerra – no Alto Danúbio –, e ficou portanto bloqueado pela instalação fortificada das vanguardas russas. Com uma decisão destemida, toda a força de caldeira, todos os fogos acesos, esperando a cada momento tocar algum torpedo e ir pelos ares, raspou-se à razão de quinze milhas por hora, sob um fogo desesperado dos Russos, incólume e com bandeira alta.

Hobbart Paxá é certamente uma das figuras mais salientes e mais originais desta guerra. E inglês e par de Inglaterra: é filho do conde de Buckinghamshire e herdou o titulo há anos, quando tomou assento na Câmara dos Lordes. Entrou na marinha e pouco tempo depois fez-se frade. Serviu a Turquia na insurreição de Creta, e na guerra dos Estados Unidos quebrou muitas vezes, a bordo do seu navio corsário, o bloqueio do Sul. Agora é paxá e almirante turco. E um homem inteligente, heróico, com sérias qualidades de organizador. Tem quarenta e cinco anos, a barba toda espessa, o olhar agudo, o sobrolho carregado e um certo ar de bonomia altiva. E um aventureiro de bem – ou antes, uma heroicidade disponível, que procura emprego.

Na Ásia Menor a marcha dos Russos tem encontrado dificuldades: tudo o que têm adiantado são duas milhas alemãs; é incontestável que em encontros parciais, mas violentos, os Turcos têm tido vantagens; as forças voluntárias turcas organizam-se com um impulso fanático e duplicam a resistência.

Hoje dizia-se que algumas tribos do Cáucaso se tinham insurreccionado – o que podia cortar as comunicações do exército russo e isolá-lo na Ásia: esta noticia harmoniza-se com o despacho que diz ter o czar ordenado a mobilização do quarto, sétimo e décimo primeiro corpos de exército. Todos os correspondentes são uniformes em elogiar a organização dos Russos: boa cavalaria, equipamentos perfeitos, uma admirável administração, uma disciplina exacta, pagam tudo em ouro na România – e só o que é fornecido pela municipalidade é pago em letras, a três meses. Os Românicos recebem-nos fraternalmente: duvida-se todavia que lhes possam ser de utilidade na guerra. Certamente o príncipe Carlos é prussiano, da Casa de Hohenzollern, bravo, e deseja ardentemente uma reputação militar: mas um românico é apenas um soldado de aparato: admirável nos jardins ou nos cates, com os seus uniformes pesados de bordaduras – não tem as qualidades de resistência, de fé e de tenacidade que fazem o bom soldado. No entanto, são vinte ou trinta mil homens – e quando não sirvam senão para guarnecer os territórios que os Russos forem ocupando são já de uma grande vantagem; são outros tantos milhares de russos desembaraçados das funções ociosas de guarnição e prontos para a campanha activa. O resultado definitivo da guerra não me parece duvidoso: esta é a sétima ou oitava guerra turco-russa – e se os Turcos não têm aprendido nada, os Russos têm aprendido tudo. O Turco é decerto o mesmo soldado bravo, sofredor, activo de outrora; mas a guerra hoje não é uma questão de bravura ou de arranque individual; é uma ciência com processos científicos – e neste ponto a inferioridade turca é absoluta. Desde as pontes importantes que se esquecem de cortar até aos monitores que deixam afundar sem razão – são verdadeiramente os antigos turcos, enchendo o seu cachimbo no momento do perigo e confiando em Alá.

Aqui, naturalmente, a grande preocupação é a atitude futura da Inglaterra; e não é fácil perceber, através das discussões difusas dos jornais e dos debates confusos do parlamento – qual é a verdadeira vontade do país: eu penso que, como o ministério, o país quer intervir. O ministério naturalmente declara, na câmara e nos jornais, a sua neutralidade: mas e realmente uma neutralidade a que declara que conservará a espada na bainha – se os Russos se abstiverem de ideias de conquista? E uma neutralidade condicional. É, rigorosamente, um começo de intervenção. E depois, por esta condição – a abstenção de conquista –, vem pôr de antemão uma condição que a lógica dos factos tomaria mais tarde ou mais cedo inaceitável.

A Rússia pode agora, decerto, declarar que não pretende territórios: mas depois de os ter ocupado terá força, renunciamento bastante para os restituir? Todo o estado vitorioso exige forçosamente, em definitiva, uma compensação aos sacrifícios da guerra: dinheiro ou terreno: ora a Turquia não tem dinheiro, logo há-de pagar com províncias. E isto é tão certo – que o exército russo na Ásia Menor vai acompanhado de uma corte numerosa de funcionários civis, prontos a organizar o país à russa, a maneira que ele for conquistado. De modo que, apenas os Russos se estendam na Ásia Menor ou marchem sobre Constantinopla – a Inglaterra tem de dizer o seu «alto lá».

Em qualquer destes casos, é a Índia que seria ameaçada, ou directamente ou no caminho que lá leva: daí a necessidade imediata de aumentar, num pé-de-guerra paralelo ao da Rússia, o exército da Índia, o que seria um encargo intolerável para a Índia e uma negação dos princípios económicos do Estado. A fazer tal, a Inglaterra prefere fazer a guerra.

Junte-se a isto que a Rússia, desde a sua marcha progressiva na Ásia, e o inimigo natural da Inglaterra: que a Inglaterra quer mostrar a sua força e a sua influência; que está despeitada pela maneira falaz e tortuosa por que a Rússia conduziu as negociações anteriores à guerra – e sentir-se-á a popularidade da ideia da intervenção. Além disso a imprensa ministerial, em artigos frenéticos, pede claramente a guerra: e o Punch tinha razão outro dia – representando as penas aguçadas do Daily Telegraph, do Morning Post, do Pall Mall, espicaçando o enorme Leão Britânico para o fazer erguer-se e rugir.

Este sentimento julgo-o geral: há porém uma corrente de paixão que já por duas vezes tem atravessado o país e que o conserva por um, dois dias, num estado de excitação, desejando a destruição da Turquia, como um pais bárbaro, massacrado, fora da civilização.

Nesses dias fala-se em dar apoio à Rússia: repetem-se as lágrimas choradas sobre os massacres da Bulgária: pede-se que a frota vá bombardear Constantinopla. Esta exaltação de sentimento é levantada artificialmente por Gladstone e pela porção dos liberais que o seguem. A sua eloquência apaixonada, a sua convicção contagiosa, a altura do seu carácter, arrastam um momento: Gladstone quer que se abandone a Turquia, que se faça uma aliança com a Rússia, que se divida o Império Otomano. E por algum tempo todo o mundo pensa assim.

Mas a exaltação abate-se, a sensibilidade recrescida acalma – a razão prática readquire os seus direitos, e o pais, arrefecido, continua a pensar que o sentimento perturba tudo e não edifica nada, que a sã política do ministério é a antiga tradição da Inglaterra – e que se alguma coisa há a fazer é dar um golpe na Rússia.

 

A opinião está muito preocupada também de um certo azedume de relações entre a Alemanha e a França. A Alemanha parece querer renovar as antigas reclamações a respeito dos armamentos consideráveis da França. Não é já hoje um segredo para ninguém que a meia demissão do príncipe de Bismarck foi sobretudo causada pela resistência que ele encontrava no imperador em tomar uma atitude francamente hostil à França. Bismarck e Moltke são a alma do partido da guerra – e, se não fosse a forte influência do partido da paz, quem sabe por que novas catástrofes teria passado o Ocidente da Europa. Este partido da paz é representando na corte pelo príncipe imperial e inspirado pela princesa, a Inglesa, como lhe chamam em Berlim: inteligente, instruída, enérgica, correspondendo-se com os homens mais ilustres da Inglaterra, ela tem uma grande influência, naturalmente, em seu marido e, além disso, no imperador. É diz-se, uma das colunas da paz. Um incidente curioso, que me foi particularmente contado, revela de resto a fragilidade desta situação: por ocasião dos anos do imperador da Alemanha tem sido costume do marechal Mac Mahon mandar um ajudante de ordens, com felicitações. Este ano o ajudante tardava. Grande alegria do partido da guerra. Era uma insolência francesa! Era uma desfeita! Era o primeiro acto hostil da desforra! O príncipe imperial, assustado, vendo o seu pai descontente, mandou um telegrama para Paris, pedindo que o ajudante partisse logo e explicando que comentários perigosos se estavam formando. O ajudante, o marquês de Abzac, estava já em caminho: chegou na véspera dos anos do imperador! Desconsolação do partido da guerra! Triunfo do partido da paz – que levou o imperador a dar uma grã-cruz ao marquês de Abzac.

No entanto, a França prepara tranquilamente a sua Exposição. Uma das curiosidades será a colecção de preciosidades que o príncipe de Gales trouxe da Índia. Ele mesmo foi examinar em Paris o lugar que lhe estava marcado. Diz-se que nessa noite, estando no palco do Théâtre Français e falando-se das peças novas que iriam por ocasião da Exposição, uma linda actriz lhe perguntou bruscamente:

– E crê vossa alteza que a Exposição terá lugar?

O príncipe, um pouco embaraçado, reflectiu e respondeu:

– Com toda a certeza.

O Transval, como sabem, foi anexado. Era previsto.

Não se sabem ainda as razões detalhadas que levaram Sir Theophilus Storey a este passo extremo – mas parece que a dissolução da república era iminente: os bóeres tinham provocado uma guerra e recusavam-se a pagar os impostos para a sustentar: a república, sem meios, sem soldados, estava na véspera de uma invasão: todo o mundo bárbaro que a cerca, estava em armas: era de temer à primeira insurreição que houvesse no Sul de África um levantamento selvagem, em massa. Foi talvez para evitar este grave perigo – que Sir Theophilus Storey interveio. O território do Transval é grande como todo o reino de Itália e não tem mais de um milhão de habitantes. Parece que a anexação foi tranquila, além, naturalmente, dos protestos platónicos. Na acta de anexação o Transval é declarado estado livre, com toda a autonomia do governo local: as línguas holandesa e inglesa são consideradas igualmente oficiais: certos impostos são abolidos – e parece que o sentimento pacífico é tão grande que não foi necessária ainda a presença de tropas inglesas. É mais um grosso bocado do globo que entra para a vastidão da Inglaterra! Por esta ocasião alguns jornais têm falado de Lourenço Marques.

Pintam-no como um país fértil, rico, de grande futuro, em plena anarquia: funcionários, instituições, edifícios, serviços públicos, actividade local – tudo é descrito como num estado desolador de dissolução e de inércia. O Pall Mall, jornal do governo, tem insistido nestes detalhes.

De resto não é raro encontrarmos nos jornais ingleses estas pinturas falsamente carregadas de civilização portuguesa na África: e têm elas tomado um tal carácter de exageração injusta que ingleses estabelecidos na África têm julgado do seu dever estabelecer a justa verdade, e ultimamente nos jornais do Cabo encontravam-se apreciações extremamente favoráveis sobre o funcionalismo português em África – apresentando-o como ilustrado, de vistas liberais e de uma grande benevolência.

 

As novidades literárias são escassas. Relêem-se os livros velhos – sobretudo os que dizem respeito ao Oriente, à Turquia e à Rússia: em todas as lojas de livros se vêem edições recentes do Alcorão traduzido; e, como a Turquia é preocupação do momento, as revistas literárias dedicam artigos sólidos, laboriosamente compilados pelo método inglês, à literatura e poesia turcas.

Tem-se lido muito, todavia, o novo livro do deputado Jeckins, autor de Xinx’s Baby; este novo romance ou panfleto romantizado chama-se Devil’s Chain («Cadeia do Diabo») e tem-se vendido em pouco tempo vinte mil exemplares! É uma pintura violenta, colérica, da embriaguez em Inglaterra: este grande vício nacional, e as suas fatalidades, está contado em episódios lúgubres, num estilo concentrado e nervoso, a largos traços, de um modo impressionador: vêem-se todas as classes, todos os caracteres, todas as idades, virgens, mães, sacerdotes, operários, juizes, lordes, ministros de Estado, a Inglaterra inteira, arrastada pelo brande, pelo gim, pela aguardente, à perdição, ao vício, à miséria, à desonra, ao crime, à morte! E um pais todo que rola para o abismo, cambaleando de bêbedo. É a grande Cadeia do Diabo! Satanás prende-os uns aos outros por um vício comum – o álcool – e, a grandes vergastadas, vai-os atirando para o inferno.

E, no meio desta catástrofe, um só homem prospera, engorda, sorri e triunfa – o destilador, o preparador do álcool, o dono das mil tabernas. Mas lá lhe vem o seu castigo: o único filho, o único herdeiro, de copo de aguardente em copo de gim, vem a morrer, miserável, num quarto de acaso, vagamente cumpliciado num crime!

O livro perde pela sua exageração bíblica. Tratado com mais realidade, causaria mais convicção.

 

A season vai monótona. Janta-se pouco, recebe-se pouco, dança-se pouco. O tempo tem estado áspero. A grande attraction é naturalmente a exposição anual de pinturas. Não se pode ver em detalhe, porque nestes primeiros tempos a multidão toma às vezes as proporções confusas de uma bernarda.

Empurra-se, escorrega-se, pisa-se, vai-se, é-se levado – e vêem-se de longe, nas paredes, as cores reluzir vagamente e os dourados dos caixilhos cintilar: mais nada.

A primeira impressão, porém, é que a exposição é medíocre: milhares de quadros, imenso talento despendido, uma extraordinária habilidade de execução – mas nenhuma obra que faça pensar.

Os assuntos não têm ideia: são motivos, pretextos para correr: basta dizer que os dois grandes pintores de Inglaterra, Leighton e Millais – um expõe uma «menina vendo-se a um espelho», o outro «um veterano»! E o que estes dois grandes artistas têm a dizer este ano! Quando a gente, no colégio, aprende aguarela, copia assuntos com mais ideia e mais intenção.

 

Os concertos wagnerianos têm tido um sucesso. São compostos das principais partes das óperas de Wagner, sobretudo da sua última trilogia heróica, Os Nibelungos: muitos dos cantores que executaram a ópera em Bayreuth vieram a Londres – entre eles Madame Madonna, a prima-dona do maestro, a favorita, a sua grande interpretadora.

Nestes concertos, naturalmente, fala-se muito de Wagner, das suas excentricidades, do seu orgulho, do seu génio, dos seus hábitos. Um artista que esteve em casa dele em Bayreuth, conta-me alguns traços curiosos. O maestro trabalha num salão enorme, com janelas imensas que abrem sobre um jardim, em cima de uma mesa de mármore. Está às vezes quinze a vinte dias sem escrever uma nota: de repente a imaginação vem: o maestro sente-a, e veste imediatamente o seu fato de trabalho. E um costume de veludo, à maneira dos camponeses alemães da Renascença. Abre todas as janelas e escreve doze a quinze horas a fio, atirando os papéis de música para o chão, até haver em toda a sala uma camada espessa. Não emenda, nem corrige. Quando não trabalha passeia só pelos campos adoráveis de Bayreuth, com dois enormes cães terra-nova, que o não deixam. Quando em Bayreuth ele entra num café, todo o mundo o segue, se descobre e deixa de fumar!

 

Não há por ai ninguém que queira ir explorar a Roidaima? A Roidaima é a grande maravilha geográfica destes tempos. Viajantes exploradores, na Guiana Inglesa, encontraram ultimamente uma montanha de granito, na forma de um dado colossal: os lados são perfeitamente a pique, perpendiculares: o plano superior está a uma altura de alguns mil pés: com fortes óculos de alcance vê-se que há, em cima, uma floresta, e deduz-se, por pássaros de várias formas que se vêem voar, que além de toda uma flora é toda uma vida animal: haverá homens?

Nunca ninguém lá subiu, nunca ninguém de lá desceu; que mistério há ali? Desde o começo do mundo aquele país aéreo está intacto, inexplorado, virgem. É decerto habitado: provam-no as arvores, os pássaros, a água doce que cai em cascatas pelo lado do monte: a largura em cima é de duas léguas.

Que espécie de homens habitam ali? Que raça? Que língua falam? Desde Adão, segundo a Bíblia, ou desde o primeiro macaco, segundo Darwin – habita ali uma tribo, uma nação.

Que civilização tem? Que estranhos animais se encontrarão ainda lá? Que estranhas árvores? Os jornais ingleses pedem, à uma, que se organize uma exploração, com balões, para subir lá e ver! Confesso que é tentador: quantas maravilhas a ciência poderá ali encontrar! É bem possível que lá vivam muitas das raças animais que no resto do globo desapareceram.

E que sensação a do explorador que, ao descer da barquinha do balão, ao aportar àquele mundo aéreo – visse um ser felpudo, um imenso macaco humano, fazendo pastar tranquilamente um rebanho de mastodontes?

 

 

III

Londres, 30 de Maio de 1877

 

Um jornal satírico de Londres, o Fun, publicava há dias o seguinte anúncio:

 

DEZ LIBRAS DE RECOMPENSA!!

aos

exércitos russo e turco, oferecidas pelos correspondentes

dos jornais e repórteres,

se

os ditos exércitos se comprometerem ao seguinte:

travar uma batalha digna de um telegrama.

 

A monotonia da guerra, com efeito, faz a infelicidade dos correspondentes: eu mesmo estive demorando uns dias esta carta na esperança que os Russos ou Turcos, na Ásia ou no Danúbio, me oferecessem caritativamente algum episódio comovente ou algum feito decisivo. Mas nada!

Os Russos continuam a remeter para o Danúbio uma corrente copiosa e infindável de regimentos: Mas, à parte alguns duelos matinais de artilharia entre as duas margens, a campanha europeia do Danúbio – é como um livro de que apenas se escreveu o título. As pessoas ávidas de emoções e que desejam ter os nervos numa sobre-excitação interessante estão descontentes: a guerra apresenta a sensaboria de uma parada; algumas, mais desconfiadas, receiam um logro e que os diplomatas comecem a tratar da paz antes de os generais terem travado a guerra.

Não se perde por esperar, porém, e eu penso que, antes de pouco, a Turquia oferecerá amplamente motivos de sensações. A situação dos Turcos, com efeito, apresenta-se precária. Na Ásia, no Danúbio, em Constantinopla, por todo o império, aparecem, como as primeiras nódoas num corpo que gangrena, os primeiros indícios da catástrofe.

Na Ásia Menor os Russos prosperam. A tomada de Ardahan compromete consideravelmente a situação dos Turcos. A guarnição de Ardahan era de oito mil homens e parece que a resistência foi débil e ligeiramente covarde. Os Russos, senhores de Ardahan, podem fazer marchar com segurança uma outra coluna de exército sobre Erzerum. Os Turcos aí não podem oferecer uma defesa valiosa; diz-se mesmo que já abandonaram Erzerum e formaram mais para oeste um campo entrincheirado; se assim é, tomada a fortaleza de Kars e ocupada Erzerum, a Arménia está nas mãos dos Russos, e a campanha da Ásia Menor findou. Alguns telegramas de Constantinopla dizem, é verdade, que os Turcos retomaram Ardahan; mas esta notícia foi mandada para Constantinopla por chefes turcos, que dizem tê-la recebido do kamaikan de Daghestan, que declara tê-la recebido do kamaikan de uma outra tribo, que afirma tê-la ouvido dizer a um circassiano! E aqui está o sistema de informações do Ministério da Guerra em Constantinopla! Parece de uma ópera cómica, com música de Offenbach! O movimento de insurreição no Cáucaso com que os Turcos tanto contavam, abortou miseravelmente: algumas tribos circassianas, com efeito, levantaram-se mas sem organização, sem táctica, e em número muito diminuto para embaraçarem seriamente os Russos; o movimento foi facilmente dominado; diz-se que os Russos fizeram nos primeiros dias uma repressão sanguinária e feroz das tribos rebeldes: para assustar as populações faziam passar os revoltosos feitos prisioneiros, através das aldeias, carregados de grilhões, espicaçados pelas lanças dos cossacos e conduzidos como animais ferozes.

A tomada de Sokum Kale pelos turcos, que eles tanto cantaram, é, no fim de tudo, um feito insignificante, inútil e, por assim dizer, platónico. Sokum é uma pequena aldeia marítima, com casebres de pau, deliciosa como situação pitoresca, entre as suas colinas e os seus bosques de laranjeiras, mas inteiramente destituída de qualquer importância estratégica. Nas províncias do Sul da Ásia Menor, as tribos beduínas, inimigas do Turco, começam a mostrar uma agitação inquietadora; têm aparecido em força junto de Jerusalém e em todo o vale do Jordão; os governadores locais pedem reforços para Constantinopla; uma insurreição beduína seria, neste momento; mais uma complicação infeliz, na lista terrível das complicações infelizes da Turquia.

Em Constantinopla, «está-se com a cabeça perdida»: o ministério, a câmara, o sultão, os softas, tudo está numa excitação aguda de desconfiança. O público não confia nem nos generais, nem no ministro da Guerra; diz-se que o ministério, que sabe os podres, não confia no exército, que nem está armado nem equipado, nem preparado, e que a passagem do Danúbio pelos Russos será o começo da catástrofe; o sultão vive num estado de excitação cerebral, tanto mais perigosa que as grandes doenças nervosas são hereditárias na família dos Osmanlis; e, quando soube da queda de Ardahan teve um ataque violento de raiva epiléptica; percorria as salas, dando gritos, rojava-se e dilacerava o fato. Os softas, isto é, a parte inteligente, activa, empreendedora da população, preparam-se, evidentemente; têm feito compras consideráveis de armas, especialmente revólveres; já têm organizado, como devem saber pelo telégrafo, manifestações e esboços de sedições. Isto obrigou o Governo a declarar Constantinopla em estado de sítio: o fim desta medida é sobretudo apreender as armas que os softas têm ultimamente adquirido; mas, num país muçulmano, este fim é difícil de atingir; as armas são guardadas ou nas mesquitas ou nos quartos das mulheres, e como estes dois lugares são para o muçulmano invioláveis a apreensão das armas é impossível. Ora é evidente que a hostilidade dos softas não é só dirigida contra os ministros, mas contra o próprio sultão – de facto contra a dinastia; e, portanto, é fácil de ver que perigo corre a família dos Osmanlis, e com ela o velho regime turco.

A Grécia não podia deixar, no meio de todas as amarguras por que passa a Turquia, de vir ajuntar a sua gota de fel. Em Atenas repetem-se as manifestações belicosas contra a Turquia, e é de crer que o novo Governo, formado de elementos favoráveis à guerra e sob a pressão de um forte sentimento nacional, se lance na contenda e aproveite o grande embaraço turco para ajustar certas contas históricas com a Porta. Assim, por todos os lados, a situação da Turquia se escurece; é este o momento que se escolheu para dar ao sultão um sobrenome dinástico sabem que nome se adoptou? O Vitorioso!

Os Russos, por seu lado, acumulam, no Danúbio uma invasão esmagadora: parece que o plano é fazer passar o Danúbio, em vários pontos, a todo o exército, e ferir simultaneamente um golpe irresistível. A demora das operações não tem sido causada somente pelas chuvas embaraçosas e pelas inundações teimosas; tem tido a sua razão no desejo de se preparar com elementos tão completos e uma organização tão vigorosa que a campanha não seja depois senão uma série de fáceis vitórias. Estas vitórias, verdade seja, o público russo começa a impacientar-se por as não ver realizadas; e todo o estado-maior e a corte começam também a sentir a necessidade de as não protrair mais; e sabem porquê? Porque os médicos as julgam indispensáveis à saúde do imperador. Desde a sua volta a Sampetersburgo, o imperador Alexandre sofre de uma grande irritabilidade nervosa e de uma espécie de inquietação alucinada, que enche de susto toda a corte. Tem durante todo o dia uma impaciência febril por telegramas; exige que os mais insignificantes detalhes do que se passa no exército lhe sejam telegrafados de minuto a minuto, exprime desconfianças injustas e mostra-se sem razão descontente com a marcha da guerra. Os médicos julgam que só uma boa vitória russa poderá acalmar esta excitação, e não será de admirar que os Russos apressem os seus movimentos, porque (o que não tem nada de estranho num país em que o imperador é tudo, e o resto nada) os planos do estado-maior devem, de ora em diante, ter em vista as receitas dos médicos.

O que eu ainda não pude tirar a claro é qual é o verdadeiro sentimento do povo russo. Alguns correspondentes dizem que a Rússia considera esta guerra como santa, e arde no mais fanático entusiasmo; outros pintam o povo russo como extremamente descontente, indiferente à guerra, e pensando que, quando tudo está por reformar na Rússia, é insensato querer ir fora reformar a Turquia.

Pelo que tenho ouvido a alguns russos, não me parece que o entusiasmo público seja grande. As doações espontâneas para a guerra não significam nada: as que vêm das municipalidades são quase impostas à força pelo Governo, as que vêm dos particulares são um meio astucioso de obter mercês, condecorações e privilégios.

A guerra foi declarada por três motivos: primeiro, para satisfazer as classes militares (tão preponderantes na Rússia), por uma campanha de conquista; segundo, para evitar a bancarrota e salvar as dificuldades financeiras por estes empréstimos feitos em nome da guerra santa; terceiro, porque o Governo turco concedeu uma constituição.

A constituição turca, na verdade, fez uma grande impressão em toda a Rússia: humilhou-a. O Turco, o bárbaro, o infiel tinha uma constituição – essa alta expressão da civilização política – enquanto o Russo, o santo russo, vivia ainda sob o bel-prazer imperial. Toda a nação sentia isto amargamente; por se ter atrevido a dizê-lo, muito encapotadamente, o Golos foi suspenso por dois meses. Um certo estremecimento de independência e liberalismo percorreu todo o império – e o Governo sentiu bem que para distrair a atenção do interior era necessário fazer a guerra. E, com efeito, foi depois da constituição turca que a política russa se mostrou mais teimosa e, sob as suas aparências, mais ávida de conflito.

Não creio, porém, que propriamente na massa do povo russo houvesse um desejo pela guerra: a sua simpatia pelo irmão eslavo, se existe, é muito limitada, ou pelo menos o proletário russo sabe perfeitamente que o eslavo, sob o domínio turco, é mais feliz que ele sob o domínio do czar, e não se julga portanto obrigado a dar-lhe uma grande comiseração.

A burguesia, mais educada e sem grande ardor religioso, não vê na guerra senão uma oneração suplementar de impostos e de despesas. As conquistas e os aumentos territoriais são-lhe indiferentes: como é um zero no Estado, não lhe importa o engrandecimento do Estado.

Julgo, portanto, que se exagera grandemente o entusiasmo russo pela guerra santa. Não falo, naturalmente, no exército; e, todavia, no exército mesmo tem havido aparências de insubordinação: um regimento circassiano foi de repente mandado recolher à Rússia, por mostrar tendências rebeldes. Os regimentos circassianos estavam, diz-se, sob a persuasão de que se iam bater contra os húngaros, não contra os maometanos; quando, porém, viram realmente qual era o inimigo estavam mais dispostos a unir-se a ele que a combatê-lo. Outros actos desagradáveis têm sido praticados no exército russo: assim o comissário-geral dos Fornecimentos acaba de ser fuzilado sem processo. Este funcionário estimável introduziu na farinha tal quantidade de cal – que realmente não era possível deixar de lhe meter algumas balas no peito. Uma certa quantidade de cal na farinha, como uma certa quantidade de pau-campeche no vinho – são procedimentos razoáveis, que dão honra, grandes proveitos e ordinariamente uma condecoração. Mas uma tal porção de cal que torna a farinha mais própria para pintar paredes que para fazer pão é realmente abusivo, e o Conselho de Guerra foi apenas justo dando àquele funcionário uma disponibilidade... na eternidade.

 

Continua-se aqui comentando com grande azedume o golpe de estado de Mac Mahon. Aquele acto importuno, violento, grosseiro na sua forma, tem provocado a reprovação da Europa inteira. É necessário realmente que os juizes sejam bem estreitos, a paixão partidária bem feroz, o bom senso bem pervertido – para que, em plena paz, em plena prosperidade, no meio do mais sábio trabalho de reorganização, se lance gratuitamente uma nação, ainda convalescente, nas agitações da incerteza e nos perigos da revolução.

A imprensa inglesa tem sido cruel para o marechal: debaixo das formas solenes do artigo de fundo inglês, conservadores e liberais dão claramente a entender que o marechal provou não ter nenhuma inteligência e ter muito pouca dignidade. O Economist, há dias, dizia que. «falando verdade o marechal não era inteiramente estúpido»... E esta é a concessão mais lisonjeira que lhe tem sido feita. O marechal, por aquele acto, de que tomou perante a França a responsabilidade exclusiva, preparou a sua queda. De facto, que ele obtenha do Senado a dissolução da câmara, ou que a câmara se dissolva por iniciativa da maioria – em definitivo, quem tem de dizer a última palavras é o país.

O conflito hoje é entre o marechal e o mundo conservador, devoto e aristocrático que ele representa – e a república. A França tem de decidir. Ora se a França, nas últimas eleições, decidiu pela república, porque não há-de agora decidir pela república igualmente? Se alguma mudança houve, foi para maior consolidação do espírito republicano: a república mostrou-se moderada, trabalhadora, iniciadora; sob o seu regi-me a França recuperou-se, pagou, reorganizou-se; o país acostumou-se a ela; o homem do campo, que sempre lhe foi hostil, é-lhe agora dedicado, vendo a forte riqueza que ela estava criando à França; as classes burguesas aderiram-se a ela, e a França fez-se uma alma republicana. E claro portanto que, sejam quais forem as pressões ministeriais, as eleições novas decidirão pela república contra o marechal. Isto é, mandarão àcâmara uma maioria republicana e radical. Dará um xeque ao marechal. E só resta a Mac Mahon demitir-se ou dar um golpe de estado, destruindo a constituição e a república. Um golpe de estado em favor de quem? Em seu favor? Mac Mahon não é da massa de que se fazem os reis e os imperadores. Em favor do conde de Chambord? Mas ele mesmo disse – que no dia em que o conde de Chambord viesse com a sua bandeira branca os chassepots se disparariam por si mesmo. Em favor do filho de Napoleão? Mas podia o marechal contar com o exército para um golpe de estado bonapartista? Não.

Depois da guerra, se parte do exército é ainda, por um resto de hábito e de tradição, bonapartista, a maior parte, a melhor, a mais instruída, a mais moça, é republicana, e tentar uma restauração imperial seria inaugurar a guerra civil. Que lhe restará então senão retirar-se? E a maioria radical da nova câmara poderá então escolher Gambetta.

O marechal, julgando arrancar a França aos radicais, está simplesmente preparando o meio de lha entregar legalmente. En attendant, o primeiro resultado deste acto extraordinário é excitar a desconfiança de todos os governos europeus: cada um vê no novo ministério de Broglie um perigo clerical: a Espanha vê o apoio dado às tentativas carlistas; a Itália vê a organização de uma cruzada a favor do papa; a Alemanha vê a possibilidade de uma guerra de desforra num interesse dinástico. Aversão dentro, desconfiança fora – aí está o que inspira o ministério da reacção.

Bons auspícios para começar um governo!

 

Graves notícias industriais do Norte da Inglaterra. No condado de Northumberland, quinze mil mineiros de carvão declararam-se em greve. Os patrões, em presença da depressão comercial e da estagnação geral das indústrias, vendo que com os salários actuais não poderiam continuar a exploração das minas sem perda, propuseram uma redução de dez por cento no salário dos homens. A proposta foi recusada e – o que é pior e contra a tradição e o costume estabelecido – recusaram-se a sujeitar a disputa ao tribunal de arbitragem. Isto é novo e mostra da parte dos operários um sentimento de hostilidade e de azedume que se não esperava. A greve portanto declarou-se no dia 28. Quinze mil homens em greve representa neste distrito cinquenta mil pessoas sem pão. Os últimos anos têm sido maus, e decerto não têm permitido aos operários fazer economias para esta contingência; por outro lado, os cofres das Uniões estão empobrecidos; os mineiros dos outros distritos carvoeiros, escasso auxílio podem mandar aos seus companheiros de Northumberland; e, se esta greve se demorar, portanto os sofrimentos serão terríveis. Todas as indústrias param com esta resolução fatal: de facto todas dependem do carvão, e esgotada que seja a reserva têm de cessar, de modo que a greve de uma classe produz a falta de trabalho a todas as outras, e são alguns centos de mil pessoas que vão ficar na necessidade e na desconsolação.

 

Não há novidades literárias – a não ser a usual publicação de novelas. A novela tomou-se em Inglaterra um género de comércio – como o chá ou como o tabaco. Lê-se uma novela como se fuma, ou como se bebe uma chávena de chá; centenares de sujeitos, e sobretudo de senhoras, empregam-se na confecção deste produto. O assunto é sempre o mesmo: os embaraços que dois namorados novos, religiosos, patriotas e moralistas encontram na sua união – e por fim resultado feliz pelo casamento ou fatal pela morte. Esta acção passa-se ordinariamente em Inglaterra no primeiro volume, em

Veneza ou em Florença ou em Paris no segundo, e o terceiro é originariamente dedicado à pintura da vida do campo. O estilo é ordinariamente de um tom corredio e monótono como um fio de água morna que sai de uma torneira. Há sempre nestes trabalhos uma grande pretensão à observação e um abuso considerável de frases francesas. Publica-se disto às dúzias por semana.

Os jornais ordinariamente só dão notícia de alguma – que por certas qualidades revela um talento nascente – ou das que são tão extraordinariamente más que a sua exposição interessa como o estudo de um fenómeno curioso. Li uma deste género, publicada a semana passada: chama-se Gabriel e Eu. E uma autobiografia. «Gabriel» é um padre e «Eu» é a sua mulher Inês. É ela que conta a sua existência de namorada e de esposa – e tão singular é a acumulação de pieguice, de incongruências, de insensatezes, de sensaborias – que os três volumes tornam-se realmente uma leitura extraordinariamente interessante como estudo de um curioso caso de imbecilidade humana.

 

Os teatros não dão nada de notável.. Uma companhia francesa representa na Gayty o Ami Fritz, a célebre comédia de Erkmann-Chatrian, que fez antes da sua aparição um escândalo tão feio e teve depois um êxito tão pronunciado. É uma espécie de idílio alsaciano em que se comem imensos jantares, se bebem tonéis de cerveja – e um gordo e glutão bom rapaz ama a casa com uma doce rapariga. Mais nada. Tudo isto entre jardim e pomar, com quadros pitorescos dos costumes alsacianos e representado com aquela fina arte que é o segredo e a glória do Théâtre Français.

É uma peça boa para Paris para descansar os paladares abrasados: depois de peças ardentes de Dumas & Cª, depois de todos os picantes e todos os salgados da opérette – aquele bom amigo Fritz, cheio de bondade, de apetite e de sentimento, repousa e refresca. Mas em Londres – os paladares não estão esquentados, e não necessitam esta calma frescura; pelo contrário: o muito leite que têm bebido faz-lhes desejar alguma coisa que raspe. Por isso o Ami Fritz tem tido apenas um sucesso agradável, enquanto que os Dominós Cor-de-Rosa, que se dão no Criterion, têm um sucesso monstruoso. É picante. E o inglês está-se tornando ávido de picante.

 

A season continua, como dizem aqui, dull – isto é, faz bocejar. Uma das causas desta monotonia é sem dúvida a ausência e dispersão da família real.

A corte é o centro da season: sem ela o high-life de Londres está como uma vela a que falta o vento.

A princesa de Gales está em Atenas: o príncipe de Edimburgo no Egipto, o duque de Connaught na Irlanda e a rainha na Escócia. A sua partida para a Escócia foi mesmo origem de um artigo do Spectator que me ia matando de espanto. A imprensa inglesa não fala da família real senão de joelhos: imagine-se, pois, o horror, a estranheza, a boca-aberta que me causou o Spectator, dizendo, com uma frieza extraordinária e amarga – que a partida da rainha, para o fundo da Escócia, no momento de uma tão grande crise na Europa era uma alta inconveniência; que o seu primeiro-ministro, cheio de gota e de confiança na sua soberana, era obrigado a fazer todas as semanas uma longa jornada de caminho de ferro para ouvir uma palavra escassa dos reais lábios; e, continuando num tom de fria ironia à inglesa, terminava por dizer que desgraçadamente as pessoas reais julgavam que o que lhes convinha a elas convinha à nação; mas que a verdade era que nada desabitua da realeza como a ausência do rei – e que saber viver sem ver o aspecto do trono é o primeiro passo para a educação republicana! Apanha!

O Spectator, como sabem, é um dos primeiros jornais da Inglaterra.

 

É esta monotonia da season que obriga os rapazes a inventarem alguma coisa de original e de pitoresco. Dois lordes, menores de vinte e cinco anos, descobriram o seguinte: vestirem-se de padres – e irem, por todas as tabernas do Strand, beber, gritar e dar o espectáculo curioso de dois jovens eclesiásticos ébrios. Esta maneira nova de desacreditar o clero não tinha ainda lembrado aos radicais.

Honra seja aos dois jovens lordes, que inventaram tão delicadamente esta nova táctica revolucionária!

 

 

 

 

 

 

IV

Londres, 4 de Julho de 1877

 

Ei-los enfim do outro lado do Danúbio! Depois de ter coqueteado, por espaço de dois meses, com os Turcos, o grão-duque Nicolau decidiu-se enfim, na noite de 26 de Julho, pelas onze horas, a fazer atravessar em botes uma divisão junto a Simnitza e a começar a sério a destruição do Império Otomano. A cena, ao que parece, pelas descrições do capitão-poeta que manda as suas impressões para o Times, teve uma grandeza sinistra: o lugar de embarque da divisão é coberto de arvoredos – e o silêncio grave dos movimentos de tropa, a decoração da noite muito escurecida de nuvens e alumiada por um luar lívido, a ansiedade da aventura, tudo concorreu para dar àqli2le movimento histórico um tom trágico.

O grão-duque passou o rio num barco com as tropas. Os Turcos fizeram sobre as jangadas um fogo fraco e preguiçoso, que tinha o ar melancólico de ser «por honra da firma». As baterias russas bem depressa fizeram calar aquele protesto indolente; os primeiros regimentos que desembarcaram repeliram os Turcos das colinas, ocuparam as melhores posições e procedeu-se logo à construção de uma ponte de barcos, por onde no dia seguinte, com a agradável tranquilidade de um passeio militar, atravessaram trinta mil russos! Quase ao mesmo tempo, noutro ponto do rio, em Petroceni, uma outra divisão russa passou para o território turco. Aí a resistência foi também Superficial e pró-forma, e agora os Russos têm um caminho Seguro para lançar, em terra otomana, uma invasão irresistível.

O que significa esta frouxa defesa dos Turcos? Foram surpreendidos? Calcularam mal o ponto provável da passagem e acumularam forças em ponto errado? Resolveram uma táctica de abstenção? Preferem encontrar os Russos no interior, nas suas colinas fortificadas? Não se sabe. Muitos querem dizer que os Turcos estão desmoralizados, que sentem a inutilidade da resistência e que procuram tirar o melhor partido possível da guerra, deixando-se suavemente corromper pelo dinheiro russo. Diz-se que alguns generais chegaram a esta conclusão que, sendo impossível salvar a pátria, é conveniente com tempo engordar a bolsa. Diz-se que larga soma de dinheiro moscovita tem sido remetida para os paxás que comandam na margem turca do Danúbio; que os oficiais superiores, sabendo isto, perdem o espírito de resistência e abandonam-se às doçuras da indisciplina; e que a totalidade do exército turco está positivamente a fingir que defende o império. Mas realmente o comportamento dos oficiais turcos na Ásia – que se estão batendo com bravura, com desespero e, coisa rara, com inteligência, contradiz profundamente esta interpretação; e eu penso que a táctica dos Turcos é retirarem-se para as fortalezas dos Balcãs, onde o grande espírito de defesa do soldado otomano pode ser aproveitado com vantagens fecundas.

Logo depois da passagem do Danúbio, o czar fez uma proclamação aos Búlgaros; este documento é regularmente »antipático. Fala nos «antepassados», nos séculos de sofrimento»; tem frases antiquadas sobre o «suor do trabalhador» e a «honra da esposa»: abunda em preceitos de amor cristão e é, na sua totalidade, tortuoso como uma mentira, sendo melífluo como um sermão! A opinião em Inglaterra irrita-se com este tom hipócrita do soldado que põe o capuz de missionário. Nada realmente é mais repugnante do que ver o lobo fazer tagatés ao cordeiro. «Reuni-vos sob a bandeira russa!», exclama o czar; o que quer dizer: «Vinde ser uma Polónia número dois, meus filhos!»

E eu imagino que este tom adocicado do salvador que chega com centenares de mil homens deve fazer passar um frio na espinha dorsal do salvado!

No Montenegro a guerra continua tão desastrosa para uns como para outros. Os Montenegrinos, apesar da sua coragem heróica,, de um espírito sublime de sacrifício, não podem nada contra a esmagadora superioridade do número. Os Turcos têm no Montenegro sessenta mil homens, isto é, metade de toda a população do Montenegro: o país, com efeito, tem pouco mais de cento e dezassete mil habitantes! Contra isto não se resiste. Por outro lado, os Turcos têm ali uma força empenhada em conquistar desfiladeiros nus e colinas selvagens, sem utilidade, que, bem utilizada na Ásia, poderia ter mudado as condições da guerra.

Na Ásia é incontestável que os Turcos têm tido vantagens; os Russos foram repelidos e perderam posições: as operações russas têm sido dirigidas com o vagar e a pacatez costumadas; isto deu tempo aos Turcos de se organizarem, de fomentarem insurreições entre as tribos desafectas aos Russos, de formarem legiões curdas e de melhorarem uma situação militar que parecia perdida. Atribui-se esta reacção inteligente a um oficial (não se diz se estrangeiro, se turco) que ultimamente dirige a campanha da Rússia: Mukhtar Paxá conserva o comando, mas o tal misterioso oficial é quem dirige, organiza e decide: cobre-o o mais impenetrável incógnito; ninguém o avista, ninguém o conhece; é uma espécie de espírito inspirado; mas na verdade é que a sua presença tem sido para os Turcos um começo de felicidade e quase de desforra.

Isto não impede que em Constantinopla a inquietação seja grande. A posição do sultão é terrível; em primeiro lugar, o ex-sultão Murad está inteiramente restabelecido e ocupa-se de política, o que dá aos seus partidários uma esperança e um pretexto para se agitarem. Se o ex-sultão Murad, que foi deposto por doença, está bom, não há razão para que continue excluído do trono que legitimamente lhe pertencia. Daqui uma conspiração perpétua dos seus partidários. Por outro lado, o actual sultão tem apenas um apoio, um amigo – o grão-vizir Redif Paxá. Este apoio decerto é fone: Redif é tudo – e a polícia, é o dinheiro, é o sacerdócio, é a imprensa; tudo domina, tudo influi, de tudo dispõe. Mas os ódios que tem criado são enormes no palácio, mesmo todos os desastres da guerra lhe são atribuídos. Diz-se que há dias se passou na presença do sultão uma cena horrível. Redif Paxá, com uma impudência de intrigante, estava dizendo ao sultão – que tanto na Ásia como no Danúbio tudo ia às mil maravilhas; o irmão do sultão, Nureddin Effendi, que estava presente, ergueu-se como um tigre e gritou-lhe na cara:

– Mentes! Es um infame! E a tua presença aqui é uma vergonha.

Isto deu origem a uma cena medonha. O sultão foi então informado de tudo que ignorava e vivamente solicitado de demitir Redif.

De sorte que o pobre homem vê-se neste dilema pavoroso: se conserva Redif, a indignação cresce e à primeira notícia de derrota há uma revolução; se o demite, perde o seu único apoio, e os amigos do ex-sultão Murad, ex-doente, reclamarão logo a »sua reinstalação no trono.

Tudo isto traz o palácio no ar e Constantinopla num estado de desvario. Como sabem, um dos actos da ditadura de Redif foi a prorrogação do parlamento turco: as câmaras estavam-se tomando um formidável centro de oposição: houve tantos discursos francos e atrevidos na câmara, aprovaram-se tantas ordens do dia, condenando os desperdícios e as desorganizações, houve tantas propostas para julgar os empregados corruptos e os generais idiotas que a corte começou a ver na câmara um inimigo e o povo uma esperança.

Portanto a corte tratou de se desembaraçar das câmaras. Daqui novo descontentamento contra o sultão.

Estes detalhes são importantes, porque eles formam a curiosa história de uma decadência... e é interessante seguir a vida política e social de Constantinopla para estudar como acaba uma dinastia maometana.

No quartel-general russo houve um incidente infeliz. O grão-duque Nicolau, comandante-chefe, recebeu o coronel Wellesley, adido militar inglês, attaché ao exército do Danúbio, com uma descortesia tão manifesta, que Lorde Derby imediata-mente pediu explicações. O czar então recebeu o coronel Wellesley e, pelo seu acolhimento cordial e distinto, apagou a impressão que fez na sociedade inglesa a grosseria do grão-duque. Diz-se a este respeito, à boca pequena, que o coronel Wellesley tem um defeito: não retém as suas pilhérias. Tem espírito e espalha-o. Em Sampetersburgo não se privava, em todos os salões, de fazer as mais malignas observações sobre a Rússia, os Russos e, especialmente, o estado-maior.

Na Rússia, por trás de cada parede está o ouvido da polícia. O imperador soube isto e encarregou o grão-duque de mostrar ao engraçado coronel que os seus ditos eram um pouco deslocados em território russo; ele mesmo, mais tarde, por um acolhimento gentil, dissipou a nuvem que aquela lição pudesse causar em Londres. O coronel fica assim avisado, e tudo serena.

Aqui crê-se geralmente que o Governo inglês pedirá brevemente à câmara um crédito suplementar de cinco milhões para o orçamento da guerra. Isto causa inquietação. Os amigos do Governo tratam de explicar este pedido como uma precaução prudente, semelhante à que se teve no tempo da guerra franco-prussiana.

A independência da Bélgica esteve então ameaçada, e Gladstone pediu à câmara um crédito de alguns milhões, para habilitar o Governo a ocupar Anvers se fosse necessário.

Hoje, diz-se, o canal de Suez pode ser ameaçado e é preciso estar habilitado para fazer uma ocupação imediata. Os inimigos do Governo, porém, afirmam que este crédito é uma visível preparação de intervenção, que tem por fim habilitar Disraeli a levar por diante os seus planos aventurosos de guerra e de conquista. Diz-se que o conselho de ministros em que ele fez este pedido foi tempestuoso; que parte dos seus colegas se opuseram energicamente, e que daqui resultaram graves desinteligências no ministério e um germe de crise próxima.

 

Uma historieta política que tem chique. Parece evidente que Burghers, presidente da República do Transval, tinha pelo príncipe de Bismarck um fanatismo extraordinário e que, num ímpeto de entusiasmo, escreveu ao príncipe oferendo-lhe, de mão a mão, a República do Transval. O príncipe, espantado, embaraçado com o presente, não querendo p república para nada, participou isto ao Governo inglês; à vista disto, o Governo inglês, vendo aos seus pés uma república sem dono, oferecida por um, recusada por outro, fez o que era natural – suprimiu o presidente Burghers e meteu no bolso a república.

Os dois grandes escândalos da quinzena foram provocados por dois livros: um de ordem religiosa e outro de ordem moral. Ambos eles são graves sintomas, e a excitação que os dois casos tem provocado na imprensa, nas revistas e na opinião prova que se vê nesses dois livros mais do que expressões individuais e isoladas de opiniões nocivas.

O que causou mais barulho foi o livro de ordem religiosa, o Priest in Absolution; este livro, que se deveria chamar «O Padre e a Confissão», é simplesmente uma exposição do velho sistema católico, a dominação do padre na família pela sua influência na mulher. Ensina-se nele como o padre se deve apossar do espírito fraco da esposa ou da filha, dominá-lo, reinar nele, e por ele estar senhor da fortuna, das opiniões, dos actos do homem. Podem imaginar o alarido que o descaramento desta doutrina, impressa em panfleto, causou na protestante Inglaterra.

Há anos que a mão do catolicismo romano, do catolicismo do Syllabus, se estende lentamente sobre a Inglaterra, para se apossar dela. Como um vírus venenoso que lenta e obscuramente se espalhe nas veias e nos tecidos de um corpo são – o espírito ultramontano penetra surdamente toda a Inglaterra.

Em todas as igrejas, em todos os ritos, se sente esta lenta absorção. A evolução começa lentamente sempre pela decoração das igrejas e pela cerimónia do culto: a antiga nudez severa dos templos protestantes considera-se excessivamente fria e tendente a arrefecer o zelo e a assiduidade; por isso, pensa-se que as flores, a música, os cantos, as armações, deveriam ser introduzidas como um meio de atracção e como um acréscimo de adoração: os padres, então, imaginam que o roupão branco, que é a vestimenta protestante, é de uma simplicidade muito secular e principiam a cobrir-se de vestimentas complicadas e simbólicas do culto romano. Imediatamente as cerimónias simples e severas do protestantismo começam a ser sobrecarregadas com o aparatoso cerimonial da celebração católica; depois vem-se exigir aos fiéis uma atitude diferente: as genuflexões, as pancadas no peito e o rosário tornam-se obrigatórios; daí vêm certas celebrações em comum muito semelhantes às novenas, aos meses de Maria. Logo exige-se a confissão secreta, a penitência; formam-se sociedades de adorações, e pouco a pouco, por este processo, cada templo protestante se vai convertendo numa igreja católica. Debalde a Igreja oficial protesta, condena, grita.

A conversão vai-se fazendo lentamente mas seguramente. As mulheres, sobretudo, são a grande alma do movimento: a inglesa é sensível, exaltada, voluptuosa, e bem depressa encontra na nova cerimónia à romana um encanto, uma ternura, uma poesia, que não lhe dão a seca prédica protestante, numa casa nua e alumiada a gás. Por isso, tantas mulheres se convertem. Além disso, na alta sociedade, ser católico começa a ser elegante.

As grandes famílias aristocráticas de Inglaterra, Norfolk, Ripon, Bute, são católicas e, para serem recebidos nos seus círculos íntimos, os ambiciosos da sociedade não têm dúvida em se converter. Mas este movimento, ao menos até aqui, tem sido tímido, oculto, e acanhado: o Priest in Absolution é a sua primeira exposição pública; é uma espécie de grito místico lançado pela seita: «Comecemos pelas mulheres e a sociedade é nossa!» Toda a Inglaterra protestante e sensata tremeu de furor: a opinião geral é que para os jesuítas não se deve empregar o argumento, mas a força. O Punch, como crítica do livro, apresenta a forte figura simbólica de John Bull agarrando o jesuíta pelas orelhas, arrastando-o para longe para o sovar à vontade! Os jornais têm visos de cólera. Tem havido interpelações ao Governo sobre a publicação do livro – e todo este barulho tem lançado uma grande luz sobre a sociedade católica que o publicou e que se chama Sociedade da Santa Cruz.

Eu estou habilitado a dizer-lhes quais são os estatutos desta sociedade, pois que li fragmentos, e verão por eles qual é o espírito dela e o seu objecto. A sociedade foi formada há doze anos e compõe-se de bispos, vigários, diáconos e todos os que se preparam para as ordens santas. Pela regra dos estatutos, cada membro é obrigado a confessar-se todas as vezes que julgue a consciência sobrecarregada; fazer um retiro todos os anos; benzer tudo o que comer; nunca se levantar mais tarde que as sete e meia da manhã; nunca comer com prazer, mas só com necessidade; vestir com pobreza; não ir a teatros nem bailes, nem concertos, nem outros lugares de escândalo; nem falar mal de ninguém, a não ser quando isto for um dever (!); evitar as conversações frívolas e a sociedade das mulheres; nunca encarar com o rosto ou com o corpo das mulheres (!)..., etc., etc.

Vêem por estas recomendações o espírito geral da sociedade, e o que ela queria fazer da Inglaterra, se a sua influência penetrasse o povo; e é realmente inaudito que uma seita queira converter o país mais sensato, mais liberal, mais moderno, mais activo – numa espécie de Espanha devota e lúgubre do tempo de Fernando VII! Diz-se que diante da condenação geral que a opinião deu ao livro, a Sociedade da Santa Cruz o vai retirar da circulação e de certo modo renegá-lo. Isto não desculpa o espírito da sociedade e aumenta-lhe o descrédito porque lhe revela a hipocrisia.

O outro livro, Frutos da Filosofia, de que se tem vendido, diz-se, milhões de exemplares, é uma exposição semimédica e semiobscena dos meios de impedir a gravidez! Com um impudor estupendo, este folheto que a Inglaterra inteira está neste momento devorando começa por dizer que nada mais desagradável do que ter filhos; em primeiro lugar, que é um terrível encargo individual, em segundo lugar, porque o aumento da população, em desproporção com os meios de subsistência em Inglaterra, pode trazer a ruína do país. E daí segue-se, num estilo bem trabalhado e técnico, uma série de receitas medonhas para esterilizar a mulher, ou pior ainda... A gravidade do facto – é que este livro vende-se aos milhões de exemplares e que a avidez do público mostra que ele está convencido da sua utilidade e deseja aprender os seus processos. Os autores, ou antes os reprodutores, porque o livro é quase todo composto por um especialista americano, foram condenados; mas o escândalo e a publicidade do processo tiveram apenas como resultado dar ao livro uma fama insensata e enriquecer os editores, e espalhá-lo de tal modo que é raro encontrar um sujeito que não o tenha no bolso da sobrecasaca, como um manual cómodo e à mão de desmoralização e de deboche.

 

Passemos à sociedade. O leão do dia em Londres é o general Grant, ex-presidente dos Estados Unidos. Festas, bailes, recepções, solenidades, tudo o que se pode fazer para celebrar um herói lhe tem sido prodigalizado, com uma abundância forçada, ia quase a dizer afectada. O ministro dos Estados Unidos deu-lhe um grande jantar, a que assistiu o príncipe de Gales. A feição característica deste jantar foi que, sendo dado pelo ministro americano, na legação americana, a um presidente americano, havia tudo, excepto americanos! Diz-se que a razão é que o ministro não encontrara em toda a colónia americana que habita Londres ninguém à altura de se sentar à mesa com o príncipe de Gales! Isto tem causado em Londres uma doce hilaridade. O que mais impressiona, parece, no general Grant é a sua taciturnidade. E quase impossível arrancar-lhe uma palavra. Tem atravessado as festas, os bailes, os jantares, com os lábios cerrados como um trapista. No jantar que lhe deu o duque de Wellington esteve, até à sobremesa, imóvel e mudo: e de repente, dirigindo-se ao duque, perguntou-lhe no meio de um silêncio solene:

– Qual foi o maior número de soldados que seu pai comandou, duque?

O duque disse que, aproximadamente, duzentos mil homens.

– E eu meio milhão – respondeu Grant.

E desde então, há quinze dias, não tornou a falar.

Madame Grant tem divertido a sociedade inglesa com alguns equívocos que se tornarão históricos. Há dias dizia no salão do príncipe de Gales:

– Tive ontem o prazer de conhecer um dos grandes homens de Inglaterra, ao que me dizem, o senhor Blackstone.

Todo o mundo arregalou os olhos. Blackstone! Quem seria?

Descobriu-se, depois de grandes averiguações, que Blackstone era simplesmente – Gladstone!

Um cancã de sociedade: diz-se que o príncipe de Gales estivera há dias para morrer. Depois da corrida de Ascot, tinha ido visitar um amigo a Temple House, um esplêndido parque, ao pé de Ascot.

Tinha estado a fumar um cigarro, conversando à sombra de um cedro do Líbano – e acabava de se levantar quando, com um estalo formidável, o cedro partiu e desabou!

Um minuto mais cedo e o príncipe de Gales estava com os seus antepassados. Será agoiro?

 

O imperador do Brasil continua a ser favorito, como aqui se diz, da sociedade de Londres. A sua actividade sobretudo é admirada: a pé desde as seis da manhã, não há instituição, museu, galeria, biblioteca, palácio, hospital, curiosidade, homem ilustre, que não visite, que não estude.

Em todas as sociedades de que é feito membro tem sempre uma palavra interessante a dizer, uma comunicação curiosa a fazer. Com tudo isto, uma simplicidade quase plebeia. A sua comitiva, porém, que ele traz nesta roda-viva há um ano, começa a perder a cabeça, de fadiga e de estonteamento: no dia em que suas majestades tomavam o trem de Paris para Londres, a alguém da comitiva ia esquecendo na plataforma da estação uma pequena mala contendo jóias no valor de cento e vinte mil libras! Felizmente, segundos antes da partida do trem, a imperatriz deu pela falta, e as jóias continuam a adornar as toilettes de sua majestade.

 

Diz-se geralmente que, em Portugal, o público tem ideia de que o Governo deve fazer tudo, pensar em tudo, iniciar tudo; tira-se daqui a conclusão que somos um povo sem poderes iniciadores, bons para ser tutelados, indignos de uma larga liberdade e inaptos para a independência. A nossa pobreza relativa é atribuída a este hábito político e social de depender para tudo do Governo, e de volver constantemente as mãos e olhos para ele como para uma Providência sempre presente. Pois bem: em Inglaterra, país de iniciativa individual, de alta independência pessoal, o público considera o parlamento como uma espécie de pai benévolo que tudo deve fazer, tudo remediar, tudo compor. As petições feitas por indivíduos ao parlamento sobre negócios particulares – contam-se por milhares e milhares em cada sessão. Estas petições são metidas em grandes sacos e remetidas para as fábricas de papel, onde vão ser matéria-prima para petições futuras; mas algumas, por mais curiosas, são conhecidas e fazem a felicidade dos jornais satíricos. Assim tem causado hilaridade a petição muito séria e muito grave de uma família de rendeiros que reclama ao parlamento contra o seguinte escândalo: um empregado da polícia, seu vizinho, fez uma armadilha no quintal e matou-lhe dois gatos! A família pede à câmara dos deputados que a indemnize, processe a polícia e lhe substitua os gatos!

Há agora um costume, nas inculcadeiras de criadas em Londres, de que se fala muito e que me parece suficientemente impudente. As inculcadeiras têm álbuns com as fotografias das criadas, para que o patrão, ou a patroa, possa ver se a cara lhe convém, antes de saber se lhes convêm os serviços.

Até aqui muito bem. Uma cara simpática a servir à mesa do almoço, com uma fresca touca branca, é certamente preferível ao carão macilento de uma matrona azedada. Mas – coisa suspeita! – a maior parte destas fotografias têm os braços nus e o colo decotado!!! Que lhes parece? E para que é necessário, antes de tomar uma criada, saber se ela tem os braços redondos e o seio bonito?

Sobretudo – quando este álbum é destinado a ser examinado não só pelos patrões (e então ainda se compreende) mas pelas patroas! A Inglaterra, positivamente, vai à vela!

 

Na Escócia, os jornais vêm cheios de detalhes sobre o caso de Miss Grant. Miss Grant era há anos filha de um pobre caseiro, numa aldeia da Escócia, que por morte de um tio, de quem ninguém já se lembrava e que vivia na Índia, se achou, uma bela manhã de Abril, senhora de uma fortuna prodigiosa: além das propriedades riquíssimas, só em dinheiro recebeu esta gentil lavradeira a bagatela romanesca de trezentas mil libras!

Era bonita e esperta. Começou a viver com grande luxo, fez um palácio para os pais, e era feliz – quando aparece em cena uma linda rapariga, chamada Miss Temple. Desde esse dia, Miss Grant começa a mostrar-se excêntrica: em primeiro lugar, consegue que Miss Temple deixe pai, mãe, rompa com todas as suas relações e venha viver com ela; em seguida, as duas gentis criaturas fazem um contrato público pelo qual se Comprometem a nunca casar e a viverem sempre juntas: finalmente, Miss Grant faz um testamento pelo qual, no caso de morrer primeiro, deixaria a Miss Temple um milhão de libras se a mesma Miss Temple nunca a deixasse e se comprometesse a repelir toda a corte e casamento. O romance seguia encantadoramente quando, o ano passado, Miss Temple, muito ingrata, muito desprendida, casou. Miss Grant não destruiu o testamento, mas caiu numa melancolia mórbida e, há meses, morreu de paixão.

Um obscuro cirurgião de uma aldeia da Escócia herdou, ab intestado, aquela colossal fortuna. Mas agora a família Temple quer que o testamento se considere válido, faz processo e esperam-se revelações extraordinárias, que farão escândalo em toda a Inglaterra.

 

 

 

 

 

V

Londres, 1 de Agosto [de 1877]

 

Desde que os Russos estão do lado de lá dos Balcãs, no caminho que leva a Constantinopla, todo o interesse da última semana se tem resumido nesta interrogação: que vai fazer a Inglaterra? Londres ficou atónita segunda-feira passada, quando soube que o Governo ia mantas tropas para o Mediterrâneo. «E a guerra!«, exclamava-se por toda a parte. Não era a guerra ainda, mas era aviso ao leitor. O leitor, neste caso, é o czar. Com efeito, depois de muitas ordens e contra-ordens, que mostravam uma grande vacilação, três mil homens foram remetidos para Malta e Gibraltar, e instruções dadas a outros corpos para estarem preparados, inclusive o Corpo de Administração Militar, que só acompanha as divisões expedicionárias. Isto tinha uma feição singularmente guerreira. Soube-se logo que na Câmara dos Lordes e na Câmara dos Comuns o ministério seria interrogado sobre a significação destes preparativos – e havia uma curiosidade pungente em escutar a resposta de Lord Derby.

Lord Derby deu a única resposta que se podia dar – diplomática e reservada. Declarou que as tropas são simplesmente para reforçar as guarnições de Malta e de Gibraltar, que, nesta ocasião em que a região mediterrânea está num estado de perturbação, necessitavam ser fortemente completadas. Esta resposta naturalmente não significava nada – senão que a verdade não podia ser dita.

Realmente Gibraltar só pode ser atacada por terra, pela Espanha, e não consta que a Espanha tenha a mínima intenção de declarar a guerra à Inglaterra; enquanto a Malta, só pode ser atacada por mar – e não é portanto de nenhuma utilidade aumentar a força de terra; sobretudo se se considerar que, entre as tropas enviadas a Malta e a Gibraltar, vai o 17º de Lanceiros, e que realmente não se concebe para que possa servir em Malta ou em Gibraltar um forte regimento de cavalaria. Não está nos hábitos da guerra opor a navios couraçados os regimentos de lanceiros. Era evidente, portanto, que a expedição ia simplesmente a Gibraltar e a Malta para estar mais perto do seu verdadeiro destino; e este destino, ninguém o ignora, é Galípoli.

A pequena península onde está Galípoli, que domina a entrada dos Dardanelos, pode ser, em poucos dias, convertida num campo entrincheirado, inacessível por terra, inexpugnável por mar, onde a Inglaterra se poderia estabelecer – e, senhora daquela posição formidável, ditar as suas condições, se se tratasse de paz, ou preparar os seus movimentos, se se tratasse de guerra.

Isto, porém, não parece tão fácil. Com que carácter vai a Inglaterra estabelecer-se em Galípoli? Como aliada da Turquia? Mas então tem de o manifestar claramente, por algum acto público de aliança, e por este facto lança-se isolada em uma guerra contra a Rússia, sem estar de modo nenhum preparada militarmente para esta eventualidade temerária. Vai simplesmente a Galípoli como neutral? Mas consentirão os Turcos que uma nação neutral se estabeleça com armas e bagagens no seu território? Não é natural; os Turcos estão extremamente despeitados com a Inglaterra e com a sua atitude indiferente; sempre acreditaram que a Inglaterra, declarada a guerra, os ajudaria e seguiria, sem hesitar, a sua política tradicional. Consideram-se logrados; e não é presumível que lhe permitissem um desembarque em Galípoli sem que a Inglaterra lhes prometesse uma aliança decidida: haveria, com efeito, alguma coisa de monstruoso, da parte da Inglaterra, em ocupas Galípoli pelos seus próprios interesses, sem se dignar ajudar o dono do território quando ele está em perigo. Os Turcos nunca consentiriam nesta humilhação; resistiriam e, como não duvidam de nada, fariam fogo sobre o primeiro navio inglês que se aproximasse de Galípoli, com tanta mais vontade quanto maior é o despeito que lhes causa a neutralidade inglesa. Portanto, a Inglaterra só pode ir a Galípoli – ou como aliada ou como inimiga do Turco. No primeiro caso, provoca uma guerra gratuita, sem estar preparada para tal; no segundo, tem de ajudar à destruição do Império Turco, renegando a sua política e combatendo os seus próprios interesses.

Leio em muitos jornais e ouço muitos políticos dizerem que a ocupação de Galípoli é um acto de profunda política; que os Turcos serão fatalmente batidos e que a Bulgária e a Bósnia deverão ser arrancadas ao domínio turco; que, assim, os Turcos serão zero na Europa, e o território que lhes for deixado, cercado por todos os lados de inimigos, oferecendo poucas condições de defesa e enormes facilidades de ataque, será inteiramente impotente para formar uma barreira séria em torno de Constantinopla; que Constantinopla ficará assim à mercê da menor invasão e que, portanto, os Dardanelos, o mar da Mármara e o mar Negro não terão quem os defenda, porque o Turco na Europa não será mais que uma sombra! Portanto, dizem, logo que a Inglaterra esteja estabelecida em Galípoli ela fará as vezes do Turco, e guardará a passagem dos Dardanelos.

Tudo isto é muito engenhoso; mas, pergunto, para quem guardará ela os Dardanelos? Se não for para si somente, de que lhe serve guardá-los e defendê-los? E se for para si somente então declara a guerra ao mundo inteiro. Se a Inglaterra pode fazer passar os Dardanelos aos seus navios de guerra, é claro que os tratados que fecharam os estreitos estão despedaçados e que, portanto, todas as nações têm direito de os usar. Suponhamos que uma fragata alemã ou francesa se apresenta para passar os Dardanelos: que fará a Inglaterra? Fazer-lhe fogo? Então é a guerra contra a Europa e a América. Permitir a passagem? Mas então com que fins se estabelece como guarda dos estreitos? Se todo o mundo pode passar, é inútil que alguém os guarde. Isto parece-me lógico.

A expedição, portanto, a Galípoli parece-me cercada de tantas dificuldades e semente de tantas complicações que realmente não creio que o Governo a decida tão facilmente.

A remessa de tropas é apenas, a meu ver, um destes movimentos que às vezes faz um homem para mostrar que não dorme, que está alerta e que não será prudente meter-lhe a mão na algibeira. E a prova é que ontem o Governo, interpelado sobre se levantaria créditos suplementares para fazer face à expedição de tropas, declarou que não: que Malta e Gibraltar se achavam agora devidamente defendidas, e que, este ano, não se tornaria a falas em remessa de gente, nem havia ocasião de pedir, pelo Ministério da Guerra, fundos excepcionais. No entanto, com esta terrível questão do Oriente, a gente nunca está sossegada e, quando menos espera, no terreno mais seguro abre-se uma fenda, e de trás da parede mais inofensiva sai uma descarga.

O grande acontecimento da quinzena é a formidável insurreição operária que rebentou nos Estados Unidos. As companhias de caminhos de ferro de Baltimore e Ohio reduziram os salários dos empregados de dez por cento e aumentaram duas horas de trabalho por dia. Isto originou uma greve. As companhias recrutaram novo pessoal, mas os grevistas atacaram estes intrusos, espancaram a polícia que os defendia e, final-mente,. resistiram à Guarda Nacional. O movimento, então, espalhou-se como fogo em restolho: dez estados tomaram parte na resistência, a greve estendeu-se a cinquenta mil milhas de caminho de ferro, a população baixa tomou o partido dos grevistas e esteve-se em véspera de uma temerosa guerra civil. Houve verdadeiras batalhas entre os insurrectos e a tropa, e pode-se fazer uma ideia do desastre sabendo que só em Pittsburgh os prejuízos causados pela insurreição elevam-se a três mil e seiscentos contos!

Infelizmente as tropas dos Estados Unidos estão muito espalhadas, ocupadas sempre em escaramuças com os índios do interior; e como a maior parte dos caminhos de ferro estavam inúteis não foi possível enviá-las logo para os pontos ameaçados; por outro lado, a Guarda Nacional, composta da plebe, simpatizava por quase toda a parte com a insurreição, ou pelo menos não a atacou com energia. Felizmente, porém, os cidadãos, vendo o perigo, organizaram-se em comités, armaram-se, improvisaram-se em exército e conseguiram dominas a insurreição.

Tem-se procurado investigar as causas que quase tornaram uma greve numa guerra civil, e tem-se dito geralmente que o motivo principal foi o ódio que existe na América contra as companhias de caminhos de ferro.

Com efeito, o seu enorme poder, a sua maneira despótica de servir o público, o excesso das suas tarifas, as vergonhosas especulações que elas fazem, a pouca atenção que dão à segurança dos passageiros, as fraudes que se cometem no transporte de mercadorias – tudo isto tem-lhes alienado as simpatias da nação.

Lembram-se, decerto, que a agitação grangista teve há anos por origem a organização de uma forte resistência contra a tirania das companhias; os preços excessivos por que elas transportavam todos os produtos agrícolas, sobretudo os grãos do interior da América para os portos do Atlântico, absorvendo o melhor do produto das lavouras, chegaram a causar uma tal oposição que se falou por esse tempo em revolução da parte da população agrícola do Oeste. Não é sem razão, pois, que se pensa que as simpatias que a população mostrou pela causa dos grevistas foram devidas a este sentimento de hostilidade.

Isto, porém, não basta para explicar uma tão formidável insurreição, uma insurreição que fez milhões e milhões de prejuízos, que dispunha de artilharia, que formou campos entrincheirados e que se preparava simplesmente para sustentar uma guerra civil. A explicação, enquanto a mim, é esta: a greve foi desenvolvida e transformada em revolta pelo imenso partido socialista ou comunista.

Este partido, na América, é muito diferente dos socialistas europeus: aqui o socialismo é um sistema social, político, moral, religioso. Na América o socialismo é uma hostilidade bruta e instintiva contra todo o que possui e que acumula; lá não há ideias, há apetites insatisfeitos. E o chamar realmente a esses grupos socialistas é um erro que cometem frequentemente os jornais europeus; na América dão-lhes um nome mais exacto, chamam-lhes os roughs, isto é, a rudez, a canalha. Esta multidão violenta é, sobretudo, estrangeira; não se deve esquecer que a América é um refúgio, um asilo, o último recurso de tudo o que a Europa tem de gente aventureira, turbulenta, descontente, ávida e viciosa. A Irlanda, a França, a Alemanha mesmo, mandam o que têm de pior – a par, já se vê, de muito trabalhador honesto e útil. Esta multidão que vai procurar trabalho tem a mania de se acumular nas cidades; ser-lhe-ia fácil encontrar emprego altamente remunerado no interior, nos estados agrícolas tão faltos de braços; mas os seus hábitos, os seus vícios, a antipatia pela lavoura, prende-os às cidades. Aí, naturalmente, o trabalhador é menos necessitado, e portanto milhares desses emigrantes encontram-se na miséria, na ociosidade e na desesperação. Nova Iorque, Filadélfia, San Francisco, Baltimore, Chicago, transbordam desta canalha. Ora justamente sucede que, nestes últimos tempos, a crise prolongada dos negócios, na América, tem dado a esta população dias muito prolongados de miséria; e já há tempos se notava nela uma funda e crescente irritação. O sentimento que a domina é uma espécie de cólera bruta contra uma sociedade rica, onde eles são mendigos – e contra um mundo que goza, e no meio do qual eles sofrem.

A greve veio, a propósito, oferecer-lhes um meio de desforra. Logo que viram que ela se espalhava, tomava proporções revolucionárias, disparava os primeiros tiros, a canalha juntou-se-lhe com entusiasmo. Em Nova Iorque, em Chicago, em Pittsburgh, apareceram logo chefes agitadores que impeliram as massas descontentes à revolta. O que queriam eles? Nada. Destruir, vingar-se vagamente. E tanto isto é assim que em todos os pontos mais atacados a revolta teve um carácter bruto de violência ao acaso, destruíam, queimavam, abatiam sem discriminar, na excitação da cólera satisfeita, sem outro fim do que dar cabo de uma sociedade onde se achavam mal. Em Pittsburgh, por exemplo, a destruição foi estúpida e bestial: escangalhar, escangalhar! – era o programa. Certas barbaridades extraordinárias revelam a loucura de uma plebe insensata: em Pittsburgh, depois de aprisionar destacamentos de Guarda Nacional, fechavam-nos em casas e procuravam queimá-los vivos! Ao mesmo tempo, e por toda a parte, se saqueava e se assassinava! E o Governo teve que empregar contra esta insurreição da cólera uma repressão de tirano. Colocava-se artilharia nas ruas e varria-se a canalha! As correspondências que devem conter os terríveis detalhes da insurreição ainda não chegaram à Europa; mas receia-se que o desastre, a destruição de propriedades, a perda de vidas, serão maiores do que os telegramas indicam, e que esta fatal revolta seja mais terrível ainda por ser um sintoma e mostrar a existência de um elemento que pode causar aos Estados Unidos, tarde ou cedo, uma pavorosa crise social.

 

Nos últimos três dias tem-se aqui recebido, da Índia, noticias de um carácter aterrador. A fome ameaça, com uma intensidade crescente. Só em Madras e em Mysore, o Governo está dando rações mesquinhas (por não poder ser doutro modo) a um milhão e duzentos mil esfomeados! E a proporção da mortalidade cresce de um modo que, se isto dura por mais oito meses, a população do Sul da Índia sofrerá uma diminuição sem antecedentes na história.

A opinião, em Inglaterra, está-se preocupando muito com o aspecto da política francesa. O dia das eleições ainda não está fixado; mas as dificuldades crescem para o Governo, porque a famosa aliança dos conservadores falhou. Os legitimistas estão furiosos, porque vêem que a política do Governo tende para uma vitória eleitoral dos bonapartistas; os bonapartistas gritam contra o marechal, por ele não permitir que, antes de 1880, se reclame abertamente o império; os orleanistas estão desinquietos com a influência dos bonapartistas – que poderia, no caso do triunfo do império, resultar num segundo desterro para os príncipes de Orleães – e queixam-se da parcialidade que o ministério mostra contra eles na escolha dos candidatos oficiais. Todos gritam, e no entanto os republicanos ganham em força, em união, em táctica e em influência. Daqui vêm os boatos recentes de novo golpe de estado. Mas em favor de quem? E aqui que eu vou surpreender os leitores da Actualidade... «em favor do filho de Mac Mahon!» E pelo menos o que se diz em Paris e o que se imprime em Londres! No entanto, a mim parece-me que «mac mahonismo por direito hereditário» e muito cómico para poder ser verosímil.

A Whitehall Review, o mais elegante jornal hebdomadário de Londres, um órgão de alta sociedade, publica no seu último número, num lugar proeminente, a declaração seguinte:

 

«Pede-se-nos para declarar que Sir Chames Tempest se valerá dos únicos meios que a Igreja Católica lhe fornece para se lavar da desonra que foi lançada sobre ele e a sua família, e que intentará uma separação judicial. Igualmente se nos pede para declarar que Sir Charles Tempest não foi a Paris em perseguição dos fugitivos, mas ficou tranquilamente na sua propriedade de Northamptonshire, sendo o último a saber do que se passava –tão pouco suspeitava o infeliz gentleman a existência do mal.»

E o jornal acrescenta, como por sua conta e risco: «A esposa infiel e o seu amante estão em Paris. Todas as simpatias estão com o infeliz Sir Charles.»

 

Este extraordinário parágrafo, que tão estranho parece aos nossos hábitos meridionais, é a conclusão de um facto que tem causado grande escândalo. É simples em si, como verão. A mulher de Sir Tempest fugiu (como tantas outras fogem hoje em dia) com um amante – ele mesmo casado com uma adorável senhora de vinte e dois anos, íntima amiga da princesa de Gales.

O que fez escândalo foi pertencer a fugitiva a uma das mais respeitáveis famílias católicas de Inglaterra e passar por ser uma das mulheres mais sérias da aristocracia inglesa. O facto em si, digo, é banal, e não merece uma linha de comentário: a grande sensação provém de que alguns jornais, por esta ocasião, lembraram-se de fazer uma espécie de revista retrospectiva da moralidade inglesa durante os últimos dez anos e chegaram à conclusão, muito exacta, que neste último período a imoralidade, sobretudo na sociedade mais rica, tem tomado tais proporções que Paris, Madrid, Viena, Nápoles, as cidades clássicas do adultério e do escândalo, ficam humildemente na sombra perante a colossal corrupção de Londres. Que tudo quanto o vício tem inventado de mais mórbido e de mais excêntrico floresce em Londres era sabido; mas supunha-se (os estrangeiros supunham, ao menos) que a sociedade cultivada tinha no mais alto grau as qualidades de honestidade, de fidelidade, de pudor, de probidade doméstica, que foram sempre um dos grandes orgulhos ingleses. Pois bem, pelo que dizem os mais bem informados, os últimos dez anos têm trazido uma transformação dissolvente da honestidade inglesa. Os adultérios, as fugas, os raptos, as seduções, os divórcios, os crimes de família, acumulam-se de ano para ano, dando à alta sociedade inglesa o aspecto sucessivamente decomponente de um fruto que apodrece. Enquanto a mim, sempre o pensei: mas não esperava vê-lo impresso e com cores tão carregadas nas mais sérias revistas e pelos moralistas mais estimados.

Basta observar um pouco as maneiras da inglesa moderna para se ver que ela poderá ser tudo – uma hábil cavaleira, uma excelente caçadora, um forte cocheiro, uma adorável amante, uma excelente atiradora à pistola, um óptimo companheiro de viagem, um atrevido parceiro para uma partida de bacará –, tudo, menos uma esposa e uma mãe. A maneira como se vestem, o atrevimento dos olhares, o hábito das conversações picantes, o vício do namoro, o gosto pelas bebidas fortes, a paixão pelos exercícios masculinos, a avidez de independência, o desdém público – tudo revela, a quem as conhece, uma tendência irresistível para o amor livre. A isto junte-se o temperamento ardente, uma imaginação excitada, uma natureza voluntária – e compreender-se-á a situação. A única coisa que retém ainda é o medo da opinião, do escândalo, da impressão; no dia em que este salutar receio diminuir, ou por cair em descrédito ou por o impulso da paixão ser mais forte – a Inglaterra voltará aos tempos mais devassos da sua história, e repetir-se-á a época fatal dos Stuarts.

Contra esta corrupção a corte procura reagir por uma áspera severidade: assim é sabido que, quando se apresentou à rainha o programa do último concerto real em Windsor, ela mesma, por seu punho, riscou o nome de Madame Adelina Patti, declarando que nunca admitiria no paço uma mulher que conhecidamente tinha um amante; o que não impede que as aventuras amorosas de Madame Patti lhe tenham dado em Londres uma espécie de auréola heróica – a ponto que a sua simples aparição em cena é saudada por aclamações que parecem dirigir-se menos à cantora ilustre que à heroína célebre de um drama conjugal.

Sinto não ter novidades literárias ou dramáticas a dar-lhes. As últimas semanas têm sido estéreis: o abuso das controvérsias políticas parece ter diminuído a produção artística – e as forças intelectuais, que em tempos calmos se empregam no romance ou no poema, voltam-se neste período de excitação pública para o artigo de jornal ou para o capítulo de revista.

A grande novidade em Londres é a chegada de um hóspede ilustre – o Sr. Pongo. Quem é o Sr. Pongo? É uma personagem em que todo o mundo fala, por quem as mulheres andam entusiasmadas, cuja fotografia se vende a cada canto e cujas acções mais insignificantes são registadas em tipo graúdo pelos jornais mais sérios.

O Sr. Pongo não é um príncipe, nem um general, nem um escritor, nem um descobridor, nem sequer um rabequista – é simplesmente um macaco! Mas que macaco! É um gorilha: o primeiro, o único que tem vindo à Europa!

Este ilustre hóspede, que esteve primeiro em Berlim, que deu lugar a troca de notas diplomáticas entre o Governo inglês e o alemão a respeito da sua posse, chegou a Londres, onde é objecto de um fanatismo insensato. O Sr. Pongo (é assim que é geralmente conhecido) tem quatro anos de idade, ainda não entrou no período de dentição, já tem três pés e três quartos de altura e os seus músculos são de uma extrema força e agilidade. Comia ordinariamente farináceos e frutas, mas ultimamente o seu guarda, tendo-lhe dado um pedaço de bife, notou que Pongo o devorava com singular apetite. Começaram a dar-lhe carne e água; come tudo o que come um gentleman: o seu almoço é como o de qualquer de nos – ovos e costeletas ou beefsteak.

Ao princípio só bebia água, mas veio-se à conclusão que poderia beber tudo – desde Bordéus até Moet et Chandon; a sua bebida favorita, porém, é a cerveja. Depois dos repastos dão-lhe um charuto, que ele fuma, deitando o fumo pelo nariz. A sua fisionomia e tão inteligente, tão viva, que, sem falar, compreende-se tudo o que ele quer dizer, pela vivacidade brilhante do olhar e pelo movimento dos beiços.

Apesar de não se exprimir, parece compreender certas expressões humanas: assim, quando ouve uma boa gargalhada, exalta-se, aplaude com as mãos, ri e parece cheio de júbilo. Mas o que há nele de mais humano é o instinto, próprio de crianças, de levar tudo à boca: assim, se lhe dão um lápis, antes de tratas de escrevinhar, leva o lápis à boca – como um baby.

O gorilha é, como sabem, o animal do qual o homem provém directamente, segundo as teorias modernas. Até aqui nunca fora possível caçar um vivo – e explica-se o interesse fanático que excita em Londres a presença deste nosso venerável antepassado.

Milhares de pessoas afluem a admirar esta espécie de homem primitivo, que há alguns mil anos era o que havia de mais perfeito na superfície da Terra e era então o rei da Criação! Quem sabe se daqui a alguns mil anos, quando a raça humana, tal qual é hoje, tiver quase desaparecido para dar lugar a uma forma humana mais perfeita, um sábio então não encontrará, nos desertos ou nos bosques, um último homem e não virá expô-lo, em triunfo, nalguma Londres dessa época? E os seres mais perfeitos de então virão contemplar com espanto o seu antepassado, o homem, como nós contemplamos hoje o nosso antepassado, o gorilha!

Segundo os especialistas, o que há de mais extraordinário neste gorilha é que não tem pêlo, o que prova, creio, que a sua raça é justamente a imediata antes do homem...

Realmente, a não ser a sua cor escura, nada o distingue de um homem feio, com uma barba por baixo do queixo. O Sr. Pongo, naturalmente, não está preso: vive num pequeno parque (no Aquário de Westminster) que lhe foi destinado.

A multidão não parece importuná-lo: de resto, todas as medidas estão tomadas para que o não molestem. O sentimento geral, quando a gente o vê, é de pasmo e de melancolia. A sua face, a sua figura, os seus gestos, a maneira de se sentar, de passear encostado à bengala, são tão humanos – ia quase a dizer, tão modernos – que sentimos uma espécie de veneração por aquele avô da raça humana e um certo desdém por nós mesmos, que há alguns mil anos éramos apenas aquilo!.

O que mais o importuna, a meu entender, são as mulheres. As inglesas, que positivamente são doidas, estão apaixonadas, em massa, pelo gorilha. Um jornal, hoje, contava que ontem foi necessário arrancá-lo dos braços de uma senhora, que o devorava de beijos e não o queria largar, declarando que era encantador. O gorilha, que é ainda infante e não chegou à idade do Sentimento, parece apreciar mediocremente estes excessos de ternura. Noutro dia, encheu de bofetadas uma miss que lhe estava a «fazer olho». E esta lição de moralidade e de conveniência, dada por um macaco a uma senhora, aumentou singularmente o meu respeito pelo simpático Pongo.

O único receio do povo de Londres é que ele morra.

Receia-se o Inverno, mas, até agora, dorme bem, almoça o seu beefsteak, janta sopa, roast-beef e sobremesa, fuma três ou quatro charutos por dia, palita os dentes, dorme a sesta – e faz tudo o que faz qualquer inglês, excepto ter uma opinião sobre a questão do Oriente, o que é, penso eu, uma qualidade a seu favor!

 

 

 

 

VI

Londres, 15 de Agosto de 1877

 

Devo dar nesta correspondência, como fez a rainha no discurso de encerramento das câmaras, o lugar proeminente à preocupação do dia – a fome na Índia. Uma calamidade, a maior decerto por que tem passado a Índia desde que a Inglaterra a governa e que pode arrastar graves consequências políticas, ameaça o vasto território da presidência de Madras. Dezoito milhões de habitantes têm fome!

O ano passado as colheitas da Índia do Sul falharam, mas então os celeiros estavam bem providos, a população tinha economias, o gado de transporte abundava, o tesouro do Governo não se esvaziava e a catástrofe combateu-se com vantagem; depois, calculava-se que a colheita deste ano seria imensa, e a escassez de que se sofria seria compensada» pela abundância de que se ia gozar. Quando viesse a monção do sudoeste, a chuva cairia, a colheita seria rica, podia-se esperar!

Sucede, porém, que a monção falha, a chuva não vem, a colheita perde-se e a fome declara-se. A grande fome é sucedida por uma fome maior, e diante da calamidade os celeiros acham-se vazios, as economias da população exaustas, o tesouro do Governo gasto e a esperança perdida. E o que é mais: o ano de sofrimento, com uma alimentação escassa, enfraqueceu a população moralmente e fisicamente; a nova fome encontra os corpos alquebrados e as almas sucumbidas. Isto explica porque já têm morrido nas primeiras semanas de escassez quinhentas mil pessoas!

A presidência de Madras é um vasto território cheio de aldeias: o número dos proletários, dos que não têm nenhuma espécie de propriedade, sobe a cinco milhões: esta parte da população é a primeira, naturalmente, a sucumbir à necessidade. Os que possuem, isto é, os que têm uma pouca de terra ou gado, poderão durante algum tempo fazer face à escassez, sobretudo vendendo as suas jóias, que são na Índia o emprego natural das economias; mas, findo este recurso, morto todo o gado pela falta de pastos, tendo os preços duplicado – estes doze milhões de homens ficam no mesmo estado de miséria que os cinco milhões de proletários, e toda a população, ou tem de ser sustentada pelo Governo ou de morrer irremediavelmente. Mas pode o Governo realmente alimentar dezoito milhões de habitantes com cereal importado? E como há-de transportá-lo para o interior de um território largo como três ou quatro vezes Portugal»? Não há caminhos de ferro, quase todo o transporte é feito em carros de bois, mas, se os homens morrem por falta de pão, os bois estão morrendo rapidamente por falta de pastos. Os transportes escasseiam como o alimento. De sorte que, em certas partes mais retiradas do território, a população – dizem os jornais – tem «fatalmente de ser abandonada à fome». Isto é horrível.

As descrições que começam a chegar do aspecto do distrito fazem estremecer: a perder de vista, a terra seca, exausta, tem uma cor quase negra; não se descobre nenhuma verdura. A água dos poços, salobra e infecta, dá doenças terríveis aos que a bebem. Só se vê gente lívida, de uma magreza de esqueleto, com o tremor da febre, em andrajos. O colmo, que forma os tectos das casas, foi por toda a parte tirado para substituir a forragem do gado de todos os pontos. Milhares e milhares de pessoas vêm emigrando acossadas pela fome, implorando desesperadamente socorro dos empregados do Governo. E começa a aparecer uma doença própria da fome, que é a formação de pústulas na pele!

Nesta crise o governador do estado, o duque de Buckingham, presidiu a um grande meeting em Madras, onde se resolveu pedir auxílio à Inglaterra; a organização administrativa, que obriga cada estado da Índia a prover às suas próprias necessidades, não pode ser respeitada nesta desgraça. E necessário recorrer ao resto da Índia, à Inglaterra, a todo o vasto Império Britânico, e, se for necessário, estender a mão à caridade do mundo»

É justo dizer-se que a imprensa inglesa pede com grande energia que todos os recursos da Inglaterra sejam postos em acção para fornecimento rápido de alimento, ainda que se gastem milhões. Reclama-se que se encham de cereal os depósitos; que se estabeleçam caminhos de ferro de campanha, para levar socorro aos pontos mais remotos; que se formem serviços de transporte de carros puxados por homens; que se promova um vasto sistema de poços artesianos; que se levantem grandes acampamentos-asilos – onde os esfomeados recebam rações; que se inste fortemente com a caridade de todo o império – e, enfim, que se faça tudo o que pode dar o dinheiro! Se a calamidade se pode combater com libras esterlinas, diz-se que se empenhe a luta. Libras esterlinas não faltam!

 

E que me dizem à campanha do Danúbio? Positivamente, os Turcos são um povo de surpresas. Há dois meses, entusiastas da Rússia diziam-nos: «Vão ver, vão ver, o que é uma guerra rápida e uma lição tremenda! A Rússia vai mandar dois exércitos: um à Ásia, outro ao Danúbio; um conquista a Arménia, outra entra em Constantinopla; e o Império Otomano esfarela-se como um torrão seco!»

E os melhores amigos da Turquia calavam-se, receando bem que esta profecia atrevida se realizasse em quatro semanas...

Com efeito, uma invasão preparada, de há muito apregoada, ornada de proclamações e coberta de bênçãos, começa a mover-se e, como um rio que se bifurca, corre de um lado sobre a Ásia, do outro sobre o Danúbio. E a profecia começa sinistramente a realizar-se! Em quatro semanas o exército russo, com uma tranquilidade de parada e, por assim dizer, a divertir-se, quase que conquista a Arménia. E os entusiastas da Rússia a gritar logo: «Que lhes dizíamos nós? Lá devorámos a Arménia.»

As igrejas de Sampetersburgo ressoavam de te Deum, e o czar começava a fazer a lista dos funcionários que deviam ir administrar a nova conquista e levar às populações arménias as doçuras da tirania russa.

De repente, zás! Sem se saber como, de manhã para a noite, Muktar Paxá aparece – e os Russos vitoriosos, os Russos conquistadores, começam a recuar, a perder terreno, a abandonar posições, a levantar os cercos começados; a retirada transforma-se em debandada; Muktar Paxá, sempre, sem se saber muito bem como, vai-os levando, de derrota em derrota, até os sacudir, com o sabre sobre a ilharga, para lá da fronteira persa! E a Arménia estava livre!

Os entusiastas da Rússia mordiam um pouco o beiço; mas, com o seu aplomb ordinário, recomeçavam: «É verdade, é uma derrota. Mas também, a falar verdade, nós não queríamos a Arménia para nada. A campanha da Arménia era uma diversão. O verdadeiro fim, o objecto da guerra é Constantinopla. A verdadeira luta é aqui no Danúbio, na Bulgária. Vão ver. Vão ver como em duas semanas nós estamos em Constantinopla!»

E os apaixonados da Turquia, ainda os mais ingénuos, pensavam com terror que era bem possível que assim fosse. A Turquia estava tão pobre! O seu exército tão mal comandado! A sua administração tão corrupta! O seu armamento tão incompleto! A sua vitalidade tão debilitada!... Com efeito, a Rússia põe-se em movimento, e a nova profecia começa a ter uma realização maravilhosa. Em duas semanas os Russos atravessam o Danúbio, estabelecem-se na Bulgária, dirigem-se para os Balcãs, passam os Balcãs como numa mágica e começam a preparar a marcha triunfal sobre Constantinopla. «Que lhes dizíamos nós?», exclamam os russófilos. «Lá vão eles. Além de amanhã, o estandarte russo flutuará em Santa Sofia!»

Sampetersburgo recomeçava os seus te Deum, o czar reescrevia as suas listas de funcionários, a Europa estremecia. Pensava-se em intervir. Positivamente, santo Deus!, o fim da Turquia chegou!... A Áustria, assustada com o novo vizinho que se instala, começa a mobilizar: a Inglaterra manda três mil homens para Malta e fala em ocupar Galípoli: a Grécia agita-se, como um abutre que esvoaça sobre um ferido que vai morrer, e o sultão faz à pressa as suas malas, para passar para a Ásia, de volta aos lugares originários da sua raça – com o Alcorão, o serralho, o estandarte do Profeta e o seu cozinheiro francês!

De repente, sem se saber como também, os Russos sofrem o desastre medonho de Plevna; no dia seguinte, são batidos em Lotcha; no outro dia, em Osman Bazar. Osman Paxá acossa-os contra o Danúbio; o general Gurko, que passava os Balcãs, é derrotado; o exército que ocupava a Bulgária tem de evacuar aos pedaços; cercos importantes são levantados, campos formidáveis desfeitos. E o que se tinha passado na Arménia repetiu-se no Danúbio! A invasão que falhou na Ásia, falhou na Europa! Sampetersburgo engole os seus te Deum, o czar rasga as listas, a Áustria respira e desmobiliza, o sultão desfaz as malas – e os Turcos, espantados, olhando em roda de si, acham-se vitoriosos na Ásia e na Europa!

A que se deve esta prodigiosa aventura? A muitas causas, creio eu. Mas a primeira, a principal, a causa-mãe, é que os Russos desprezaram os Turcos de mais: não lhes supunham – nem coragem, nem estratégia, nem armamento, nem dinheiro, nem actividade, nem dedicação. Entenderam que um punhado de russos podia ir e comer províncias como bagos de uvas. Portanto mandavam forças incompletas, dividiam-nas, dispersavam-nas, iam para diante, à tonta, com uma bravura de guerrilha e uma imprudência de estudantes quando de repente se encontraram diante de exércitos mais numerosos, com generais mais hábeis, planos mais definidos; o resultado é a derrota!

Acresce a isto que no exército russo tudo é mau, excepto o soldado e a arma. Os generais são estúpidos, a administração é corrupta. Quando o soldado se bate, é sacrificado pela inépcia dos chefes, quando se não bate, é esfomeado pela fraude do comissariado. O que se conta dos planos dos grão-duques que comandam é tão atroz como o que se diz dos administradores que fornecem. O desastre de Plevna é um erro idiota do grão-duque: mandar milhares de soldados atacar posições elevadas, entrincheiradas, ocupadas por artilharia e por um número superior de gente – é o mesmo que condenar soldados à morte em conselho de guerra. Por outro lado, deixá-los um e dois dias sem ração, sem água, ou com mantimentos podres e água insalubre, sem tendas e sem provisões – e o mesmo que espalhar voluntariamente num exército os germes de uma epidemia. Em qualquer dos casos, é crime!

O que perdeu a Rússia, nesta campanha de quatro meses, foi o excesso impaciente de ambição: quiseram fazer ao mesmo tempo muitas coisas brilhantes: atravessar o Danúbio, cercar Rustchuk, invadir a Bulgária, passar os Balcãs, investir Sistova. Para todas estas empresas tiveram que dividir o exército, fraccioná-lo, enfraquecê-lo. Em lugar de conservar na mão um grosso cacete sólido, desfizeram-no numas poucas de frágeis bandines.

Os Turcos, bons estratégicos, reuniram fortes massas e foram quebrando e destruindo uma a uma estas forças dispersas. Os Russos, reconhecendo agora o seu erro, concentram-se no Danúbio e preparam-se para uma acção mais concreta. Mas e tarde: o Inverno adianta-se, e esta campanha de Verão, com os sacrifícios que custou, os milhões que absorveu, as vidas que destruiu – está perdida: é como uma bola de sabão quebrada, que produz nada, nada, nada!

De quem é a culpa? Do regime russo, incontestavelmente do absolutismo. Num país em que nada depende do mérito e tudo depende da posição do nascimento, o resultado é este: em lugar de dar o comando a um estratégico, dá-se a um grão-duque idiota, porque é grão-duque; em lugar de confiar a administração a uma inteligência, confia-se a um príncipe, porque é príncipe. O grão-duque é batido sempre e o príncipe desorganiza tudo. É lógico. E todos os correspondentes ingleses, os mais hábeis, os mais experientes de coisas militares, são acordes em dizer que, se a administração militar continua nas mesmas mãos inábeis e se os planos da campanha continuam a ser feitos pelos grão-duques, a Rússia pode sofrer a desfeita histórica de ser posta fora dos domínios turcos, à coronhada!

Em Sampetersburgo começa-se a murmurar com muito despeito da direcção da campanha. E é bem possível que um desastre militar fosse a origem de uma transformação social. O Russo é já bastante instruído para saber perfeitamente que vive sob um regime odioso. As conspirações repetidas que, de tempos a tempos, vêm abortar nas mãos da Polícia são as explosões impacientes e extemporâneas de um forte sentimento, que trabalha surdamente a massa da nação. Esta guerra actual foi considerada sem entusiasmo: viam-se muito bem os sacrifícios que ela custava, sem se ter uma grande fé nas vantagens que ela traria.

Mas, depois de começada, naturalmente, o grande orgulho nacional exaltou-se e interessou-se. Se a Rússia agora se visse derrotada pelo Turco, isto é, pelo seu inimigo de raça e de religião, pelo desprezado Turco, atribuiria logo a derrota aos erros do Governo e aos vícios do regime, e uma grande revolução seria provável.

Não é de espantar que o mesmo exército concorresse para essa revolução. O exército conhece as suas altas qualidades e está descontente pela má direcção que o leva aos desastres» Além disso, para a multidão de oficiais, moços, entusiastas, instruídos, apaixonados de ideias modernas, esta campanha é um complemento de educação liberal.

Em primeiro lugar, acostumam-se a ver de perto os vícios da administração. As falsificações dos comissariados, a vergonhosa qualidade das rações, a insuficiência dos socorros sanitários, a desorganização das ambulâncias, das pagadorias, de tudo; os hospitais apinhados, a imbecilidade visível dos generais – não são condições favoráveis para aumentar o respeito pelo regime autocrático. Além disso, o país em que operam é um ninho de republicanos, de socialistas, de descontentes. Belgrado, Bucareste, etc.», fervilham de espíritos revolucionários: o contacto com esse mundo, com a multidão de correspondentes, de jornalistas, a leitura mais assídua dos periódicos, etc., são outras tantas ocasiões de fazer no espírito dessa mocidade militar um lento trabalho de oposição ao regime que os governa tão mal! E esta classe enérgica voltaria à Rússia cheia de esperanças de emancipações e de ideias de democracia.

Talvez as pessoas que me lêem creiam que isto são hipóteses fantasmagóricas. Pois bem, que me expliquem então este facto, que vários correspondentes ingleses testemunham. Há semanas dava-se num teatro de Bucareste uma representação a que assistiu grande número de oficiais. Uma actriz francesa tinha que dizer uma canção num dos actos da peça: no momento em que a orquestra preludiava e ela ia gorjear o seu couplet, uma voz gritou:

A Marselhesa. A Marselhesa!

E imediatamente, numerosos oficiais russos, fardados, esqueceram-se, gritando com frenesi:

A Marselhesa, A Marselhesa!

Ora justamente, A Marselhesa é proibida em Bucareste. Grande embaraço nos bastidores. A mocidade militar berrava, uivava, gania:

A Marselhesa, A Marselhesa!

Alguns bancos começavam a perder os pés e as travessas. O chefe da orquestra, assustado, fez um sinal: A Marselhesa rompeu, a actriz segue cantando com grande vigor e os oficiais, delirantes, fazem uma ovação à cantora–e à cantiga!

No outro dia o teatro foi fechado a pedido do grão-duque Nicolau!

 

As câmaras encerraram-se sem ter feito nada de glorioso: e, a respeito de câmaras e de constitucionalismo, deixem-me contar-lhes o caso da eleição de Lord Burghley, que é um exemplo curioso do valor que tem em Inglaterra a representação parlamentar. E mais uma ilusão a perder sobre esta pobre Inglaterra!

O circulo de Northamptonshire fica vago pela morte do ministro da Marinha, Mr. Ward Hunt. No círculo, um dos grandes personagens é o marquês de Exeter – o qual, nesta circunstância, tratou de fazer nomear, segundo a tradição das velhas famílias inglesas, seu filho primogénito, Lord Burghley. Os influentes do circulo (os influentes conservadores, naturalmente) aplaudiram a escolha: não trataram de saber se Lord Burghley tinha aptidões, prática ou conhecimento qualquer das coisas públicas; era um lorde, filho de um pai conservador, rico, deveria possuir um dia grandes propriedades no circulo, podia votar – era o que bastava! Quer, porém, a etiqueta eleitoral que o candidato faça um discurso de profissão de fé aos seus eleitores nas vésperas de eleição. Sucede tambén que Lord Burghley é um rapaz de vinte e oito anos, foi militar e até agora a sua ocupação tem sido valsar, folgar, caçar e cumprir os deveres gentis de um janota de Londres.

Podia-se, pois, recear que o seu discurso aos eleitores não tivesse nem uma grande altura política, nem um grande valor oratório: mas, realmente, não se supunha que o mancebo pudesse juntar numa oração de um quarto de hora tantas coisas singulares. Começou este moço por dizer – «que realmente não entendia nada, mas absolutamente nada, a respeito de política! Que os seus princípios não importavam também, porque os que lhe queriam bem votariam por ele, sem fazer caso dos princípios!» Depois deste exórdio, o candidato deu a sua opinião a respeito da questão do Oriente, e exprimiu-se assim: «Enquanto à questão do Oriente e se a Inglaterra deve fazer guerra, parece-me que a maior parte dos que me escutam têm amigos no exército e não gostariam de saber que esses amigos tinham tido os narizes rachados, ou as orelhas cortadas; por mim», exclamou, «se há uma coisa a que eu ponha objecção é a que me esborrachem o nariz ou que me cortem as orelhas»» Que lhes parece»? Mas aí vai o melhor: Um eleitor então fez-lhe várias perguntas a respeito das suas ideias sobre a administração local: o nobre lorde fitou-o e respondeu atónito: «Administração local»? É a primeira vez que ouço falar em semelhante coisa!» Gargalhada estridente. O mancebo enfurece-se e grita «que não tem obrigação de saber nada a respeito dessa trapalhada, porque foi tomado de surpresa nesta eleição e só teve um dia para decorar alguma coisa!»

– Basta! Basta! – gritaram alguns.

– Também me parece que basta, porque realmente estou farto da maçada! – exclamou o elegante lorde»

No dia seguinte, os influentes do círculo publicaram a seguinte extraordinária declaração, de que dou um resumo:

 

«Que sentiam muito ter aconselhado Lord Burghley a fazer um discurso, porque, tendo sua senhoria tido muito pouco tempo para se preparar para discussões políticas, não pudera responder decentemente às perguntas que lhe tinham sido dirigidas pelos principais eleitores. Mas que afirmavam que sua senhoria daria um excelente deputado!».

 

Isto parece fantástico.

Os amigos do candidato liberal estavam radiosos; era impossível que depois daquele discurso, em que Lord Burghley se declarou, ingenuamente, idiota, sua senhoria tivesse um voto, não contando com o seu! Não se podia realmente supor que um dos círculos mais ricos, mais importantes, mais progressivos da Inglaterra, que até aí fora representado pela alta capacidade de Mr. Ward Hunt, o ministro da Marinha, mandasse ao parlamento um sujeito – que «nunca ouviu falar de semelhante coisa», referindo-se à administração local. Pois bem: dada a votação, verificou-se que Lord Burghley era deputado por uma maioria de mil e quinhentos votos! Os jornais dizem, com razão, que isto faz desesperar de tudo. Porque enfim que razão tiveram para preferir aquele estúrdio imbecil ao seu opositor, um homem instruído, digno, com uma educação política e uma prática administrativa? A razão decrépita, obsoleta, feudal – de que Lord

Burghley é um lorde, filho de lorde, da antiga família Cecil, milionário, proprietário... e foram levados pelo prejuízo tradicional, que lhes fez admirar, venerar, servir e preferir a tudo aquela família ilustre que reina no condado e que lhes faz a honra de lhes aceitar uma renda enorme em troco da licença que lhes outorga de lavrarem a terra e de lhe mandarem as melhores frutas ao castelo!... Que o lorde seja estúpido, infame, devasso, que importa»? É o lorde. Como tal, é ele que deve administrar, ser deputado, general e almirante.». E quando se lhe fala em administração local, nada mais natural que ele encolha os ombros e declare que nunca ouviu falar em semelhante coisa!... Também não tem obrigação».

É o lorde!

 

Um processo instaurado contra três agentes de policia, implicados numa grande fraude financeira e acusados de terem feito escapar um certo número de falsários notáveis, tem chamado as atenções críticas para a organização da polícia inglesa. E reconhece-se com melancolia que, neste ponto, a Inglaterra está muito abaixo, como sistema e como pessoal, das nações continentais.

Os agentes da policia (detectives) são decerto suficientes, como estratégia e como finura para capturar o ladrão vulgar, bronco e assustado, que abre com chave falsa uma porta traseira ou vasculha as algibeiras de um sujeito distraído: mas desde que se trata de um criminoso astuto, com meios, vastas relações, inventivo e expedito, o detective actual é invariavelmente logrado. Isto provém de que são escolhidos sem educação. A policia é uma ciência que devia ter a sua aprendizagem, os seus compêndios, a sua prática. Mas aqui tudo o que se exige num detective é que ele conheça bem Londres e que tenha uma certa coragem; ora os grandes ladrões conhecem Londres ainda melhor e são, por profissão, mais destemidos! O perigo dá-lhes a invenção, a ideia, a faísca; e enquanto o detective vai farejando e seguindo antiquados e rotineiros meios de caça (que os criminosos sabem de cor e que evitam a rir) o pássaro desaparece. Em França, na Áustria, na Itália, a polícia é composta de homens que recebem na prefeitura uma educação demorada, que trabalham ao principio sob a direcção de chefes hábeis e que se vão assim iniciando lentamente nas tácticas, nas regras, nos segredos, nas invenções recentes da profissão: ganham deste modo um tacto, um hábito de expediente rápido, um faro, um espírito de intriga e de enredo, uma percepção repentina, um talento inventivo, que os tornam temíveis.

Enquanto ao polícia ordinário, o policeman, que vigia a rua, pode dizer-se que em Inglaterra, pouco a pouco, um sistema errado tem-nos tornado inúteis para tudo que não seja policiar o movimento das ruas, dar indicações a quem não conhece a cidade e acompanhar os bêbados mais sonolentos. Não se lhes peça mais nada. Isto provém de que ultimamente todos os comissários e chefes de policia são antigos oficiais do exército; e o seu primeiro cuidado é, por consequência, com o hábito do regimento, dar à força policial. à sua disposição, um aspecto militar» Escolhem os homens não pela sua aptidão, mas pela sua estatura. Contanto que sejam enormes, barbados, de movimentos secos, direitos como um poste e agranadeirados, não se lhes reclama mais nada» Fardam-nos, ensinam-lhes a marchar com tesura e entregam-lhes a protecção da cidade. Isto explica porque se vê a cada esquina de Londres um policeman colossal, hercúleo, imóvel, rolando em roda olhares severos, e na esquina oposta, risonho, um pickpocket – é que se procurou um tambor-mor e não um hábil.

Os comissários têm orgulho nestas colecções de corpanzis, fazem manobras a desfilar a dois de fundo, e no entanto o cidadão é roubado e assassinado com um doce sossego de facínora. É que estes gigantes são ordinariamente estúpidos, como todos os gigantes. Naquela imensa massa de músculos e osso, há lá no alto, num canto, um bocadinho de miolos, bastante para que ele saiba distinguir o nome das ruas. De resto, força de braço, sério! Se se trata de levantas um bêbado, bem! Agarram nele, como numa pele, metem-no debaixo do braço e vão a marche-marche; mas se se trata de descobrir um crime, boas noites! O gigante, a quem se pede um esforço do intelecto, arregala os olhos e baba-se!

O herdeiro presuntivo do herdeiro presuntivo, isto é, o filho mais velho do príncipe de Gales, está perigosamente doente há semanas, com uma febre tifóide. Recentemente uma recaída tem-no colocado em perigo. O que me espanta é a indiferença gelada que o público inglês, sempre tão sôfrego de fazer espalhafato com o seu amor à dinastia, tem mostrado por esta infeliz criança. Nem uma linha oratória nos jornais, nem uma expressão dedicada de simpatia, nada! Apenas, nas notícias da corte, as quatro palavras secas que o declaram mal. Não me espanta menos ler logo, mais abaixo, nessas notícias, as caçadas, os jantares, as corridas de que o príncipe de Gales é o centro glorioso: enfim, a realeza tem certas escravidões de etiqueta, que não deixa tempo aos deveres da paternidade, ou às inquietações do sentimento. Mas porque é que, na ocasião em que o príncipe está pior, a princesa de Gales, sua mãe, uma senhora de tão altas virtudes, um carácter tão nobre, tão dedicado, vai para o Teatro do Criterion ouvir as pilhérias de uma farsa picante – os Dominós Cor-de-Rosa. Decerto não é por sua vontade; a princesa de Gales tem as qualidades antigas da mãe de família romana: o seu desejo seria criar seus filhos e fiar o linho. Mas porque vai então ao Criterion? Ingleses, a quem tenho feito esta pergunta, encolhem misteriosamente os ombros e murmuram: «A etiqueta!»

 

Nenhuma novidade literária, a não ser o livro de Gallenga, o correspondente do Times em Constantinopla, sobre alguns dos episódios mais característicos da questão do Oriente. Este livro, que é a reprodução da sua correspondência, tem um lado curioso: mostra o poder, em Inglaterra, de um correspondente de jornal. Gallenga convenceu-se em Constantinopla que o embaixador inglês, Sir G. Elliot, não representava com vanta-gem os interesses britânicos na Turquia. Apenas formou esta ideia, dirigiu-se à embaixada e intimou o embaixador para mudar rapidamente uma política que ele, correspondente do Times, julgava nociva.

O embaixador não o mandou expulsar pelo mordomo, porque isso seria insultar o Times, o que equivale a ofender a City, o que significa injuriar a Inglaterra, mas contentou-se em resmungar monossílabos com os olhos fitos obstinadamente no fogão, que, sendo Verão, estava apagado. Gallenga, como ele diz, escandalizou-se com aquela falta de atenção às suas observações e com aquele costume ridículo de olhar para um fogão apagado. Deixou a embaixada, veio para o seu hotel e começou aquela série de correspondências, que revolveram profundamente a opinião e obrigaram o Governo a demitir o embaixador! Gallenga, agora, no seu livro, conta esta curiosa campanha, todo enlevado num doce júbilo!

Feliz Gallenga!

Outro dia entrei por acaso no primeiro tribunal de Londres onde o lord chief justice, o primeiro magistrado da Inglaterra, estava resumindo um caso de tentativa de assassinato. O réu, um homem grosso, de barba amarelada, foi condenado a trabalhos públicos por toda a vida; depois de ler a sentença, o lord chief justice parou um momento, fitou o réu e, com aquele largo e pomposo gesto que todo Londres conhece, exclamou:

– Aí está! Vivereis em servidão penal! Não tivestes a inteligência de prever as consequências que vos traria a vossa conduta, e é deplorável que não tivésseis a coragem de deixar este mundo antes do que incorrer nesta pena infamante!

Se isto não é descompor um réu por ele se não ter suicidado, então não sei o que é. Fiquei atónito. Meditem bem nisto: censurar o réu, asperamente, por ele não ter tomado arsénico, ou se não ter enforcado com a gravata! Não, realmente é das coisas mais singulares de que podem rezar os anais da magistratura europeia!

 

Notícias do amigo Pongo.

Está óptimo. Como parecia aborrecer-se bastante, os sábios, que o vigiam zelosamente, resolveram cercá-lo de alguma sociedade. Vieram dos jardins zoológicos três chimpanzés para lhe fazerem – ia quase a dizer, a partida de whist –, para lhe fazerem companhia ao jantar e falarem das queridas florestas de África. Um dos chimpanzés é engraçado como um clown e estroina como um lorde: desde a sua chegada, a casa do amigo Pongo ressoa de gritos, vacila com os pulos, vibra de toda a ágil, espirituosa, ladina inquietação do faceto chimpanzé. Pongo aprecia esta vivacidade, e tem por ele uma estima reflectida e protectora: faz em geral, aos seus três hóspedes, as honras da casa com benevolência, mas as delicadezas mais especiais são para esse chimpanzé: se lhe dão charutos, oferece-lhe sempre o maior; há dias deram-lhe um chapéu e o excelente Pongo foi logo enterrá-lo na cómica cabeça do seu amigo, recuando um pouco, depois de saborear a pilhéria daquela toilette humana. Quando bebe, passa-lhe logo em seguida o copo, gravemente, com um sorriso. Agora uma coisa extraordinária: Mr. Pongo detesta Darwin!

Darwin é, como sabem (é quase ridículo lembrá-lo), o grande filósofo e naturalista que primeiro estabeleceu a teoria da descendência do homem, e declarou-o nascido directamente do macaco. Parecia natural que Pongo, vendo pela primeira vez o sábio ilustre que lhe deu uma tão alta posição na criação, fazendo-o pai do género humano, lhe daria ao menos um shake-hands cordial. Pois não senhor! Detesta-o. Com uma ingratidão africana, apenas o avista, franze a testa, arreganha os dentes, fita-o, volta-lhe as costas. E todavia se há uma bela e doce fisionomia, é a de Darwin com a sua longa barba branca! A amizade de Pongo é pelo ilustre professor Tyndall: quando o vê, atira-se- lhe aos braços e, com uma ideia infame da limpeza do grande sábio, começa a catá-lo com frenesi! E o que Tyndall ri! Comoveu-me, há dias, ver Darwin, e Tyndall, e Fawcett, e outros sábios famosos, honra e esplendor da humanidade, virem fazer a sua visita de amizade a este venerável avô da raça humana! Mas francamente, a atitude do gorilha para com Darwin chocou-me. Estimo-o talvez menos. E a única explicação é esta: Pongo conhece que Darwin o declarou pai do homem: e Pongo, que já tem viajado bastante, que esteve em Berlim, que conhece a população toda de Londres, que tem feito observações prolongadas sobre o homem, está furioso com Darwin e com a sua teoria. «O quê!», pensa ele; «isto, este ser de chapéu alto e luneta no olho, que paga um xelim para me vir ver, é que é o meu descendente? E a isto que Darwin chama um gorilha aperfeiçoado? Mas esse sábio não tem então escrúpulo em lançar uma nódoa infamante na respeitável classe dos gorilhas? Esse sábio é um mau homem!» E volta-lhe as costas. A razão é clara: ele não o considera um observador profundo, acha-o um reles caluniador!

 

 

VII

Londres, 1 de Setembro de 1877

 

Há oito dias que dura a batalha de Chipka. Pela tenacidade heróica, é, creio, o maior duelo militar dos tempos modernos. Chipka é uma das passagens, uma das portas abertas naquela grande parede dos Balcãs, que defende a Turquia turca. Não é propriamente um desfiladeiro, como a Porta de Ferro, ou os outros passes; é um vale formado pela interrupção da cordilheira, de quase cem milhas de largura: não um vale plano, docemente cavado e por toda a parte praticável, mas um vale rugoso com colinas ásperas, precipícios, rochas e, a espaços, espessamente arborizado. Foi por ali que o general Gurko passou, há um mês, triunfantemente, na sua marcha para Constantinopla! Essa aventura, tão interessante pelo romanesco como ridícula pela estratégia, falhou; mas os Russos conservaram-se senhores da passagem, e tinham ali uma guarnição de três mil homens, Foi contra esta fraca força, bem entrincheirada todavia, que Suleiman Paxá arremessou todo o seu exército. Os Russos foram logo poderosamente reforçados, e desde então uma luta colérica, desesperada, heróica, redemoinha por todo o vale, sem que os Russos tenham sido desalojados, sem que os Turcos hajam enfraquecido por um momento a violência do ataque! Batem-se com fuzilaria, com artilharia, a baioneta, desde os primeiros clarões da madrugada; e, como as noites são de luar – o claro luar do Sul da Europa –, o duelo não cessa com a noite. Nos primeiros dois dias, as tropas não dormiram, nem cozinharam. Agora os regimentos revezam-se, e como os dois lados estão constantemente recebendo reforços, o combate sustenta-se numa fúria crescente.

Para quê semelhante luta, pergunta-se com espanto. Compreende-se, até certo ponto, porque os Russos defendem Chipka: conquistaram aquela posição, não se querem deixar expulsar sem resistência, é natural; abandoná-la sem luta a Suleiman Paxá era uma prova de desalento, que faria nas tropas russas, já desanimadas, a impressão repetida de uma nova derrota.

Além disso, Chipka domina toda a região de Grabova, onde vivem nas aldeias cristãs alguns milhares de búlgaros; estes interessantes eslavos, quando viram os Russos senhores de Chipka e se julgaram implicitamente vitoriosos, apressaram-se a destruir a população turca pelo processo sumário de queimar os homens em fogueiras, violar as mulheres até à morte e degolar corajosamente as crianças. Ora se os Russos se retiram de Chipka e os Turcos a ocupam, tornando-se senhores da região, é evidente que farão passar aos búlgaros um quarto de hora desagradável, o que, no fundo, é odiosamente justo. Portanto, os Russos, sustentando-se em Chipka, procuram salvar os búlgaros desta temerosa represália; se tanto é que esta consideração humanitária é bastante para explicar a resistência russa.

Mas, os amigos dos Russos explicam-na assim, e e lisonjeiro para a humanidade que essa seja a razão exacta.

Mas porque atacam os Turcos a passagem de Chipka? Que lhes importa que três mil homens ocupem sem utilidade e sem vantagem aquele vale? Se Suleiman Paxá se quer vir juntar do lado de cá dos Balcãs com Osmand Paxá, porque não atravessou por alguma das outras passagens que estão livres, em lugar de escolher justamente aquela que os Russos ocupam? E se não queria deixar atrás de si aquele núcleo de força inimiga, porque não fez cercar as posições russas em lugar de as atacar? Quatro ou cinco mil turcos em redor de Chipka, bem fortificados e ocupando as alturas, seriam bastantes para terem os Russos inúteis e fechados, como pássaros numa gaiola. Mas não; ataca Chipka e perde já perto de vinte mil homens naquela tentativa insensata. Pergunta-se geralmente: porquê?

Eu estou habilitado a dar a minha interpretação; não a garanto, mas foi-me revelada por pessoa que está muito informada da política miúda e das intrigas de Constantinopla. Suleiman Paxá atacou Chipka porque isso lhe foi ordenado pelo sultão. Esta batalha monstruosa, em que já morreram vinte mil turcos, não foi decidida num conselho de guerra, foi resolvida no serralho. Desde que o general Gurko ocupou há um mês Chipka, passando os Balcãs, entrando na Romélia e fazendo pisar assim às tropas russas o solo sagrado da Turquia turca, um terror pueril mas indominável apossou-se do sultão.

Via já os Russos em Constantinopla, os seus palácios do Bósforo saqueados, o serralho disperso e vendido a retalho pelos mercados da Pérsia e da Arábia, ele mesmo talvez prisioneiro na Sibéria. Debalde o corpo diplomático e ministros o tranquilizavam: o seu terror crescia todos os dias, excitado pelo pavor das mulheres. Realmente é difícil que um sultão se conserve a sangue-frio, sentindo em roda de si os gemidos de angústia, os gritos de medo das suas três mil concubinas! Um coro lacrimoso de mulheres soluçantes amolece o temperamento mais resistente. Uma bela manhã o sultão declara que abandonava Constantinopla e que se ia refugiar na Ásia, em Brussa; esta resolução tinha-lhe sido inspirada por Mahmed Paxá, o seu favorito, um intrigante tortuoso e covarde, que domina pelas mulheres e que representa na política turca o verdadeiro elemento asiático – a intriga do serralho. Os ministros, o divan, ficaram aterrados com esta resolução fantástica, e iam empregar talvez meios extremos de coerção, quando a vitória de Plevna, a vitória de Lochta, a vitória do rio Lon, sobretudo a retirada do general Gurko, vieram dar um certo alento ao sultão: desfizeram-se as malas momentaneamente; mas o serralho conservou um terror oculto daqueles três mil ou quatro mil homens que tinham ficado em Chipka, que eram uma ameaça permanente, e com a mão do inimigo ainda estendida para Constantinopla.

À maneira que os dias decorriam e que aquela força se ia mantendo em Chipka, impassível e teimosa, a inquietação no serralho crescia. Chipka tomou-se um pesadelo: aqueles malditos regimentos estabelecidos às portas da Romélia e comendo tranquilamente o seu rancho traziam o palácio numa atroz irritação nervosa. Porque se não iam também? Que faziam ali com os seus olhos azuis de eslavos fitos em Constantinopla?

Por fim, o sultão e o serralho perdiam o sono, o apetite, o gozo tranquilo dos prazeres do amor. Aquilo não podia durar. E uma manhã o sultão escrevia directamente a Suleiman: que fizesse todos os sacrifícios, abandonasse todos os planos, mas que lhe sacudisse aqueles russos de Chipka, para ele poder, enfim, dormir, comer e saborear os encantos do sentimento. E ai está porque já lá vão vinte mil turcos – para acalmar os nervos do sultão!

Esta batalha de Chipka deu lugar ao maior feito jornalístico de que há memória – o telegrama do correspondente do Daily News, o célebre jornal de Londres.

Este rapaz, porque tem apenas vinte e quatro anos, que se chama Forbes e que já era ilustre por correspondências admiráveis (telegrafadas), sobretudo a que descrevia a passagem do Danúbio e a que contava a batalha de Plevna, logo que soube que havia combate em Chipka e antevendo a importância da luta, partiu do quartel-general russo onde se achava e chegou, a marchas forçadas, a Chipka, no segundo dia de batalha: ali esteve três dias tomando notas e estudando a situação, ora a cavalo, ora nas trincheiras, sempre no meio do fogo, até que adquiriu a noção exacta da contenda; voltou sem descansar, rebentando cavalos, para o quartel-general russo; aí o czar interrogou-o, e foi ele o primeiro a dar detalhes da batalha ao Estado-Maior; e, imediatamente, por meios que ele não revela, mas que constituem toda uma campanha, conseguiu mandar ao Daily News um telegrama de seis colunas e meia (como esta página de Actualidade em letra miúda) descrevendo o combate, e os seus episódios, com um vigor, um colorido, um realismo, que fazem deste telegrama uma maravilha de informação e um primor de literatura. Que diferença dos magros e melancólicos telegramas que a Agência Havas fornece, por grosso, aos jornais de aí. Mas também nós não tiramos, como o Daily News, duzentos mil exemplares por dia!

 

O processo feito a Gambetta é aqui motivo de um espanto extremo. Há, todavia, na crítica dos jornais ingleses, conservadores e radicais, mais desdém que indignação; o facto é classificado com uma profusão de epítetos infamantes, que se podem resumir neste: disparate idiota.

Como! O Governo processa um homem político por um discurso da mais moderada oposição parlamentar, pronunciado numa reunião particular? Como! Tendo os jornais de França publicado por inteiro ou por extractos esse documento o Governo só processa a Repúblique Française? Como! Na véspera das eleições, quando a sua prudência devia procurar chamar todos os sufrágios, irrita e desespera o país por um acto tão inconstitucional, alienando de si as simpatias mais conservadoras? Como! Querendo aniquilar o radicalismo, dá-lhe as honras de uma perseguição injusta, o que é o mesmo que criar-lhe uma propaganda gratuita? Como! Sendo-lhe indispensável pôr na sombra a influência de Gambetta, procura dar-lhe a maior glória e torná-lo, pelo martírio, quase augusto? Como! Desejando abafar-lhe a voz, dá-lhe ocasião de fazer uma defesa que ecoará em toda a França e em toda a Europa? Mas estão idiotas! O doutrinarismo de M. de Broglie emparveceu-o e o bonapartismo de M. de Fourton ensandeceu-o. Aí está como falam os jornais ingleses.

Não creio porém que estejam na verdade. M. de Broglie e M. de Fourton são tudo menos tolos. Os tolos não são usualmente primeiros-ministros de França. M. de Broglie e M. de Fourton são simplesmente lógicos. Realmente o que pretendem eles? Impor à França um governo militar, ditatorial, despótico, reaccionário e clerical, de que Mac Mahon seja o Deus e eles seus profetas.

Mas enquanto houver em França uma coisa que se chama a constituição é forçoso, por mais M. de Broglie que se seja, governar dentro da constituição; pode-se torná-la elástica, interpretá-la com todas as subtilezas maquiavélicas e todas as tortuosidades jesuíticas, alargar-lhe as costuras, torcê-la até quase a quebrar, fazer-lhe espremer as decisões mais absurdas, violá-la mesmo um pouco aqui e acolá, mas há uma coisa que se não pode fazer: é atirá-la para debaixo da mesa, para os papéis sujos!

E enquanto a constituição for a lei da França o Governo não pode ser uma ditadura. Mas como se há-de então suprimir esta constituição atravancadora e impertinente? Por um golpe de estado. E o motivo para um golpe de estado? Há muitos, mas o melhor – é a insurreição. E onde está a insurreição? Provoca-se. E por este declive lógico que o Governo decidiu processar Gambetta. O que se pretende é irritar os republicanos, até lhes fazer perder a cabeça e os levar às barricadas. Para isso, um processo como este de Gambetta, algumas violências mais, uma perseguição sistemática à imprensa, meia dúzia de actos bem inconstitucionais e, pensam os homens ilustres da direita, é impossível que Paris, Lião ou Marselha não saiam para a rua. E então, dada a insurreição, espantada a França, o Governo atira a constituição pelos ares, assume a ditadura para salvar a ordem e fez-se a escamoteação. É este, parece-me, o fim do Governo. Somente, para lograr um francês, não há como outro francês. E o francês tem sobretudo a paixão de lograr o Governo. Os republicanos sentem perfeitamente a que terreno o ministério os quer chamar, e com uma virtude maliciosa conservam-se teimosamente na ordem, embrulham-se na legalidade, abraçam-se sofregamente na constituição. E dá-se o espectáculo curioso de velhos conspiradores, insurrectos de profissão, defendendo com grande pompa e com ardor a ordem, e o ministério, composto de conservadores, fermentando tortuosamente a insurreição.

E se este sistema continuar, o ministério será logrado: pode perseguir, irritar e vexar; os republicanos sorrirão, cumprimentarão e volverão olhos devotos. resignados, para a estátua da lei; e quando chegarem as eleições mandarão, com bonomia, quatro-centos deputados republicanos! E o ministério, não tendo podido vencer pela insurreição e não podendo viver pela legalidade, tem de se dobrar ou de se safar! E aqui está o que é uma alta comédia política.

 

Esta estação é para tudo, em Inglaterra, um tempo de férias. A gente rica, que é a que faz tudo em Inglaterra, não faz nada neste mês senão caçar, viajar no continente, banhar-se no mar salgado, ou bordejar nos iates.

Não há política, não se escreve, não se inventa, não se intriga. O bem e o mal estão em férias. Londres está absolutamente deserta, isto é, dos seus quatro milhões de habitantes, apenas lhe restam três milhões novecentos e cinquenta mil. Mas justamente os cinquenta mil que faltam é que são Londres; são os políticos, os estadistas, os romancistas, os pintores, os filósofos, os inventores, os elegantes, os cantores, as cocotes e os lordes. O que resta é a vil e escura multidão, que redemoinha na City labutando e traficando. Não conta. Os palácios estão fechados, o parlamento cerrado, as óperas mudas, as galerias desertas, os ateliers abandonados, os clubes solitários, as escolas em férias, a imprensa ociosa, os parques lúgubres, a vida dispersa. Não tenho por isso nenhum livro a criticar, nenhum escândalo a contar, nenhuma obra de arte a celebrar. Nada, nada, nada!

É nesta ociosidade e nesta melancólica escassez que às vezes me entretenho a seguir o novo divertimento que tem por nome os casos difíceis. Este exercício do intelecto, que é feito por meio dos jornais, não os grandes jornais políticos e literários mas os pequenos jornais de escândalo, de mexerico, de pilhéria, ou de curiosidade, este divertimento, digo, consiste no seguinte: o jornal propõe aos seus leitores a solução de um caso difícil da vida e na semana seguinte publica a resposta obtida. É muito interessante ler estas opiniões, que formam positivamente um guia social nas dificuldades humanas. Assim, por exemplo, há dias um destes, o Vanity, propunha o seguinte caso:

Miss A. recebe no mesmo dia duas propostas de casamento: uma de João, que ela ama e que é pobre, outra de Paulo, que ela não ama e que é muito rico, bastante agradável e simpático, e por quem ela tem uma estima completa. Que deve fazer Miss A.?

Vamos lá, qual é a opinião dos leitores da Actualidade? Hem?

Querem saber a opinião em Inglaterra?

O jornal fez a pergunta a semana passada, sábado. Pois bem: imediatamente, de todos os pontos de Inglaterra, das vilas e das cidades, de nobres e de plebeus, pelo telégrafo e pelo correio, vieram centenares, milhares, dezenas de milhares de respostas! E todas a mesma. Qual? Esta:

«Que case com Paulo e que se arranje depois com João!»

O Diabo, no inferno, deu uivos de prazer com esta decisão tão unânime.

Outro jornal apresentava há dias um caso difícil, que eu proponho igualmente aos leitores da Actualidade, pedindo que enviem ao jornal as suas respostas e suplicando à redacção que as publique integralmente.

É um caso interessante, que nos pode acontecer a todos, e de uma solução difícil. Eu modifico-o um pouco, porque tal como aparece no jornal inglês não seria bem compreendido em Portugal. Ei-lo:

A. convida para jantar na sua casa de rapaz solteiro o amigo João e o amigo Pedro, para as seis horas. As seis horas menos um quarto o amigo João chega e conta a A. que nessa manhã teve uma questão seriíssima com o amigo Pedro, que a honra não lhes permite uma reconciliação e que, se se encontrarem, é para se dilacerarem. Neste momento dão seis horas e entra o amigo Pedro. Que deve fazer o infeliz A.?

 

P. S. – Um amigo meu que se interessa vivamente pelos casos difíceis corre, neste momento, todo alvoroçado, a comunicar-me uma resposta, uma nova solução dada ao caso de Miss A.

É tão profunda, tão profundamente moderna, que a transcrevo integralmente:

«Se Miss A. ama João, que é pobre, e é amada por Paulo, que é rico (reparem bem!) – case com João e entenda-se depois com Paulo!»

Esta resposta, que vem num jornal muito elegante de Londres, é das coisas mais hábeis que tenho lido nos meus tenros anos! Sobretudo se se reparar na observação que a acompanha, e que reza assim:

«Porque aconselhar Miss A. a que case com Paulo e que se arranje com João é completamente pueril.»

Pueril, é sublime!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VIII

Londres, 18 de Outubro de 1877

 

Peço aos meus leitores (se tenho dois) ou ao meu leitor (se tenho um) que não atribuam o meu silêncio de algumas semanas a uma suspensão absoluta de acontecimentos em Inglaterra e no universo. Não. O mundo tem continuado a rolar com uma tolerável regularidade e os homens, sobre ele, a fornecerem assunto a localistas e a correspondentes.

Os motivos do meu recolhimento são todos particulares. Assim, por exemplo, só a França que matéria não tem dado, nestas últimas semanas, a uma pena de boa vontade! Manifestos de sensação, tiranias de Governo, eleições impressionadoras, ameaças de golpe de estado – tudo essa boa França, que não gosta de deixar o mundo sem objecto de conversação, tem prodigalizado com a sua fecundidade de país de génio.

Aqui, em Londres, quem abrir um jornal inglês há-de pensar que no universo só existe a França: é dela que se fala, é sobre ela que se escreve; tudo o mais fica numa penumbra subalterna. As eleições de 14 de Outubro não foram para ninguém uma surpresa. A maioria republicana era certa. Podia-se supor, como sucedeu, que a pressão ministerial, tão miúda e tão pesada, tão vexatória e tão arbitrária, roubaria alguns votos aos republica-nos; mas em definitivo, a França, que é centro-esquerda, daria uma maioria mais ou menos numerosa à república. Alguns jornais dizem que a esquerda, pelo facto de não trazer à câmara os históricos e famosos trezentos e sessenta e três, sofreu uma derrota moral: eu penso que a circunstância de conseguir trazer trezentos e vinte, pouco mais ou menos, dada uma tal tirania governamental, é uma vitória eloquente.

A administração em França exerce, além da força que lhe dá a sua organização poderosa e sagaz, uma irresistível atracção sobre um povo educado na centralização. Tudo treme quando ela franze o sobrolho, e ninguém deixa de ficar enlevado quando ela sorri; em tais circunstâncias, ter-lhe resistido, como lhe resistiu, mostra na França convicções bem serias e uma vontade bem definida.

Que resta ao marechal agora? Num país sensato, como a Inglaterra, a coisa seria simples: o ministério batido seria demitido e o partido triunfante chamado ao poder, ninguém se agitaria, e a complicada máquina do Estado continuaria a rolar docemente nos seus carris. Em França, não. O ministério vencido teima, pela voz dos seus jornais, em se considerar vencedor e ameaça com baionetadas todos os que não forem dessa opinião extravagante. Consultou-se a vontade do país, e quando ele respondeu por milhões de vozes anão! o ministério diz, com um sorriso: «Bem; como o país respondeu «sim!» nós cá ficamos, para obedecer ao país.» E se o país amanhã, vendo que o «não!» que ele dissera pela boca das suas pessoas não era escutado, se resolvesse repetir o «não» pela boca das suas espingardas, o ministério traria para a rua a artilharia, conti-nuando a afirmar com tranquilidade: «Como o país insiste em dizer que «sim», nós não podemos ceder! Nós não podemos!...»

A indignação contra o marechal, aqui, continua a exprimir-se violentamente. Uma pergunta às vezes faço eu a mim mesmo, pasmado: «Será possível que o Governo francês não leia os jornais ingleses? E, se os lê, não lhe faz impressão nenhuma ver a imprensa unânime de um grande país, da Inglaterra, condenando ao longo das suas primeiras páginas a ilegalidade da sua existência? Pode-se desprezar assim a opinião de uma nação tão inteligente, tão sensata, tão positiva, tão imparcial?»

O ministério, é verdade, embirra profundamente com os jornais ingleses, a ponto de lhes proibir a venda como peçonhenta, mas o facto de lhes proibir a propaganda não obsta a que lhe deva reconhecer a sensatez: e todos os dias os jornais mostram claramente aos Srs. de Broglie e de Fourton que eles estão simplesmente levando o seu país à guerra civil e à guerra estrangeira. Que eles não o acreditem quando o lêem nos jornais radicais de Paris, compreende-se, mas que o não escutem quando são os jornais estrangeiros conservadores que o gritam por todas as linhas, é de espantar! A não ser que, ciente e conscientemente, eles queiram a guerra estrangeira e a guerra civil; nesse caso, espera-os, é de recear, uma grilheta nova e de bom ferro nas galés amáveis de Toulon.

 

As novidades daqui são escassas. Chove. O Inverno instalou-se, e vem este ano de um humor terrível: os duches que nos atira para cima, as lançadas de nordeste agudo com que nos trespassa, as rajadas com que nos sacode, não têm conta. Ouço-o todas as noites rugir e chorar, e não compreendo o que fizeram a este rabugento velho. Por ora ainda não nos cobriu de neve: é uma galanteria que guarda provavelmente para o Natal; os meteorologistas seus amigos, a quem ele faz confidências, dizem-nos que não há a esperar dele, este ano, nem demência, nem desleixo. Vem activo e mau. O que nos espera!

 

De resto o grande acontecimento é o Caso Ponge. Não sei se sabem aí deste episódio judicial. A história é simples. Um sujeito, Louis Stanton, casou por dinheiro com uma mulher e vivia por amor com outra. Para não se ver embaraçado nos seus sentimentos colocou a esposa em casa do seu irmão e foi habitar com a amante para o campo. Passado tempo, a esposa começou a definhar, a adoecer – e quando ela morreu num estado de anemia e de magreza medonhas, os médicos chamados a examinar (em vista das suspeitas nascentes) declararam que a pobre senhora fora sistematicamente morta à fome! Ergueu-se um grito de horror em toda a Inglaterra. Louis Stanton, a sua amante (uma rapariga de dezanove anos), o irmão de Louis e a cunhada foram presos, julgados e condenados à morte.

Aqui está, em resumo, o prólogo.

As audiências causaram a excitação de um drama, comovente: os depoimentos das testemunhas, as respostas dos réus, os discursos e réplicas dos advogados, as frases sempre notáveis do ilustre juiz Hawkins, eram devorados por todo o país com a sofreguidão de uma novela de sensação! O tribunal estava apinhado de celebridades, mesmo de ladies famosas, cujos lacaios traziam em cestos lanche e champanhe para sustentar as forças da dama delicada, nas fadigas daquelas longas audiências.

Desenhistas hábeis, postados em todos os cantos, esboçavam a atitude dos réus, os gestos de aflição, as convulsões da pobre amante (Alice Rhodes) – e estes desenhos eram vendidos nas ruas e encaixilhados em salões. Enfim, um verdadeiro processo de prazer.

A última audiência, de que pude surpreender, através da multidão, alguns episódios, foi trágica. Nunca ouvi nada tão poderoso como o discurso do juiz aos jurados, fazendo o sumário do processo. De pé, falou durante sete horas, com uma eloquência sombria e elevada que destilava a morte. Pareceu-me ter mais a paixão de um acusador do que a veracidade de um juiz. Mas como arte, era maravilhoso.

Quando o júri voltou com o veredicto, provando o crime, houve um momento de terrível impressão. O juiz ergueu-se, colocou sobre a cabeça um gorro negro e todo o mundo se pôs de pé, num silêncio ansioso.

Então leu, com voz lenta, a sentença de morte.

Os dois réus estavam como hirtos; mas as duas senhoras estavam sustentadas nos braços de dois comissários de polícia.

Quando o juiz Hawkins findou a leitura, ergueu o braço e disse:

– Que Deus tenha misericórdia das vossas almas.

Toda a audiência respondeu com a mesma voz lamentosa:

– Amen!

No dia seguinte um jornal, o Daily Telegraph creio eu, insinuou que lhe parecia bem pouco comprovado o crime, e bem severa a sentença. Outro jornal retomou o assunto, repetindo a mesma opinião; e depois outro, outro e outro. Imediatamente a opinião agita-se: os jornais começam a publicar cartas, que, numa argumentação cerrada e sagaz, provavam a falta de provas do homicídio; depois advogados escreveram, censurando a marcha do processo, cheio de nulidades; logo sacerdotes, membros do parlamento, mulheres, mães de família, de todas as partes de Inglaterra, cada um do seu ponto de vista, com os seus argumentos especiais, censuraram a condenação: e enfim, coisa grave, os médicos começaram a declarar que os sintomas apresentados no exame do cadáver não eram de morte por fome, mas de tubérculos no cérebro.

Imediatamente, instala-se em Canon Street Hotel uma comissão de pessoas importantes para obter da rainha a comutação da pena: fazem-se meetings, abrem-se petições à assinatura pública, e toda a Inglaterra, profundamente revolvida por esta agitação, pede o perdão para os réus! Em vista disto, o Governo perdoa!

Ao princípio foi um clamor de triunfo. Mas depois vem a reflexão. Que tinha feito a Inglaterra? Tinha destruído a sentença de um tribunal, com uma agitação popular. Mas então a lei, os códigos, a justiça, os magistrados, as fórmulas, tudo é inútil, só quem decide em último recurso é a imprensa e o público. Todo o mundo estava um pouco embaraçado com a vitória. E então francamente cada um começou a considerar que se tinha ido longe no movimento apaixonado da sensibilidade.

A rainha tinha-se talvez apressado de mais a perdoar. A administração da justiça passara, por um golpe de estado popular, das mãos da magistratura para as mãos do público; a instituição do júri é inútil; os processos ociosos; os crimes seriam condenados ou absolvidos segundo o bom ou mau humor da opinião.

Se basta fazer meetings para perdoar um réu, nada impede hoje uma absolvição permanente para o crime. E aqui têm este grande país que, depois de ter feito comutar uma pena por sentimentalismo, desejaria aqui vê-la aplicada por legalidade. Singular situação, não é verdade? E exclusivamente inglesa! Enquanto a mim penso que os réus não eram absolutamente culpados: houve negligência em tratar a pobre senhora, mas não houve intenção de a matar; por outro lado, parece-me que o exemplo é mau e que abala toda a constituição da Inglaterra esta obediência do Governo às impressões da multidão. Em todo o caso, aí dirão consigo, «antes tremelique a constituição que se enforquem quatro inocentes!»

 

E do Oriente? Depois de uma suspensão de hostilidades, imposta pela neve e pela chuva, os Turcos foram horrivelmente batidos na Ásia. Muktar Paxá perdeu dezenas de canhões, milhares de prisioneiros e fugiu para Kars derrotado. E um desastre, mas facilmente reparável. Em virtude da estação, os Russos não se podem aproveitar da sua vitória: vem tarde, se Muktar Paxá fugiu e não se lhe pode opor, lá está o Inverno para substituir o general vencido e pôr barreiras de gelo e de torrentes onde faltam as barreiras de homens. Kars, que Muktar Paxá protegia, fica em todo o caso protegida pelo mesmo, e não é nesta campanha que os Russos poderão ocupar aquela fortaleza, chave da Arménia.

De resto, no Danúbio, silêncio, expectativa, frio e doenças, nos exércitos ociosos.

 

Novidades literárias ou teatrais, zero. A Inglaterra intelectual ou dorme ou trabalha em silêncio. A costumada produção de novelas, sim, essa continua regular como a fabricação do pão, para manter vibrantes os nervos das misses e das ladies.

 

Notícias comerciais tristes: uma estagnação total dos negócios: uma pausa terrível na estrutura industrial.

Este Inverno vem carrancudo: que nos reserva ele? Por toda a parte inquietações, apreensões, necessidades...

 

Fez excelente efeito aqui a maneira inteligente e delicada por que Stanley, ao fim da sua épica viagem através de África, foi recebido pelos Portugueses. Tudo se passou com excelente gosto. Não era natural realmente que o recebessem à paulada; mas era de recear, com a indiferença nacional, que ele passasse despercebido ou que o incomodassem, pedindo-lhe o passaporte. Felizmente, a recepção foi digna e honrosa para nós. Ainda há portugueses em Portugal!

 

 

IX

Londres, 10 de Dezembro [de 1877]

 

É impossível começar uma correspondência – é quase impossível começar uma carta particular – sem falar da França. A questão do Oriente está no último plano: apenas a gente se lembra que há algures um país assolado pela guerra, milhares de homens que morrem, guarnições esfomeadas, generais heróicos, cidades tomadas, um czar impossível e um sultão absurdo! O que lembra é a França. Quais são as notícias de França, hoje? – é a pergunta inglesa de antes de almoço.

É da França que se ocupam os literatos políticos nos seus artigos de fundo, os caricaturistas nos seus desenhos, os sacerdotes nos seus sermões e os autores de cançonetas nas suas rimas. Falemos, pois, da França. E em primeiro lugar façamos justiça ao marechal Mac Mahon. Este excelente homem não é culpado em coisa alguma do que se passa, do que se tem passado em França desde 16 de Maio: velho, um pouco reumático, entendendo alguma coisa de soldados e muito de jardinagem, ocupando-se imensamente das suas rosas e dos seus lilases e quase nada do seu país, um pouco apertado de dívidas e cheio de um humor condescendente e amável – o presidente da República não é um carácter, é um cabide.

Um grupo intrigante, fanático, egoísta, glutão de poder imoral, ridículo – se não fosse trágico –, serve-se dele como de um aparelho de pau onde dependura decisões e as suas frases.

Este grupo, que se compõe de padres astutos, de devotos elegantes, de doutrinários de salão, de alguns caducos aristocratas de outras eras e de ajudantes-de-campo crivados de dívidas, cheios de galões e abundantes de facécias, este grupo tem uma ambição decente: possuir a França – para seu uso, em primeiro lugar, e um pouco para uso do papa também. Possuir a França, dispor do seu exército, das suas finanças, de tantos empregos a dar, representá-la diante do mundo, fazer as honras da casa por ocasião da Exposição, ocupar os seus palácios, tratar de mano a mano imperadores e rainhas, entrar na história, ainda que seja com uma chave falsa – é realmente, devemos confessá-lo, muito agradável. E o marechal Mac Mahon, ou antes, o grupo que o inspira e que lhe puxa os cordéis – tem realmente toda a razão em querer guardar aposta.

Somente há uma certa entidade que se opõe a esta amável combinação e que se chama a França republicana: é quase nada: são apenas dez milhões de eleitores. Esta entidade tem a loucura de querer que a França não pertença a um grupo equívoco de batinas, e de saias, mas que se pertença a si mesma. Esta entidade é portanto considerada – no Palácio do Eliseu – como perfeitamente plebeia, impertinente, grosseira e perigosa para os interesses dos bispos e das duquesas.

Que se há-de fazer portanto a esta entidade? Esmagá-la. Como? Dar-lhe um nome feio, chamar-lhe radical, atribuir-lhe intenções criminosas e usar por isso todos os meios de a repelir – pelas eleições ao princípio, pelos tiros depois. Tentou-se primeiro a eleição: a intriga falhou: a entidade temida, a França republicana, voltou mais ameaçadora e mais forte. Que resta portanto? Tentar o tiro. E vamos ter tiros, verão.

Aqui ninguém duvida que o marechal vai obter uma segunda dissolução; a câmara dos deputados é natural recusar-se a obedecer, e constitui-se em convenção: o marechal manda contra a câmara alguns regimentos: que fará então o povo? Que farão então os soldados?

Esta última questão é grave: qual será a atitude do exército? Terá a obediência passiva e estúpida dos primeiros tempos do império – ou mais educado, mais saido do seio do povo, tendo simpatias republicanas, recusar-se-á a tentar a destruição da república? Esta é a questão: todas as tentativas de compromisso são efémeras: são episódios: o fundo da discussão é este – a França republicana quer que o marechal saia e o marechal não quer sair. Não quer sair porque se acha bem: a marechala quer fazer aos reis e aos príncipes as honras da Exposição: os padres que o cercam não querem que o triunfo da república inaugure uma política antipapal; o visconde de Harcourt, alma danada (ao que dizem) desta intriga, não quer perder os salões do Eliseu, onde triunfa e onde é leão; o duque de Broglie não quer abdicar da sua influência, oculta ou clara, no Governo da França: ninguém quer sair, todos se acham confortáveis no poder. E, como não podem coabitar com a república, hão-de fazer tudo para que a república saia. Para isso contam com uma espingarda: resta saber se a espingarda lhes rebentará nas mãos.

 

Os negócios da Turquia vão mal. Os generais a que o sultão concedera o título sonoro de Vitoriosos – começam regularmente a ser vencidos. Muktar Paxá, na Ásia, viu o seu exército destruído; e Osman Paxá, na Europa, teve de entregar Plevna, render-se sem condições, depois de uma luta heróica em que ele foi gravemente ferido. Faltam detalhes deste desastre, mas as suas consequências são terríveis: os Russos podem agora arremessar contra Suleiman, ou contra Mehemet-Ali, o grosso dos exércitos que cercavam Plevna. E aqueles generais acham-se diante dos números superiores de tropas exaltadas pela vitória, com boas comunicações asseguradas, e tendo ganho, numa campanha de cinco ou seis meses, uma experiência militar onde os erros se tornam mais raros. Plevna fez, no entanto, uma defesa admirável: parece que (ao contrário do que diziam os jornais amigos da Turquia, afirmando que as provisões abundavam dentro da cidade) o exército de Osman Paxá morria de fome: o primeiro grito dos soldados rendidos foi pedir pão! Compreende-se que Osman Paxá quisesse fazer uma surtida desesperada: e colhido pela frente e pela retaguarda, sucumbisse numa luta desigual. Quase cem mil homens cercavam Plevna: os reforços aglomerados ultimamente elevavam este número a cento e cinquenta mil. Osman Paxá não devia ter mais do que trinta e cinco a quarenta mil soldados, que as privações, a fome, o desalento, tornavam de pouco uso perante forças bem providas. Agora o caminho para Andrinopla está aberto, ou, pelo menos, os exércitos turcos em campanha não são bastante fortes para se oporem ao grosso do exército russo, logo que ele tenha esse objectivo. Andrinopla pode oferecer uma resistência prolongada: mas os Russos não se demorariam nas operações difíceis de um cerco de Inverno, nem quereriam renovar os assaltos mortíferos que dizimaram as suas forças nas primeiras tentativas contra Plevna: e, portanto, o mais natural é que deixem diante de Andrinopla uma força de observação, que torneiem a cidade e se dirijam a Constantinopla. E aí é que começa uma nova fase da guerra: ou campanha diplomática, ou conflito geral, ou então, a paz! É agora que se vai ver quais são as verdadeiras intenções da Rússia. Se fez a guerra com um fim puramente cristão e libertador, está já, pelas vitórias ganhas, no direito de propor a paz, impondo à Turquia condições que garantam a felicidade das populações eslavas: se porém a virem avançar para Constantinopla, então ela descobre a garra conquistadora, e resta saber o que dirão a Inglaterra e a Áustria.

 

O acontecimento mais notável da última quinzena, em Londres, foi o casamento do duque de Norfolk, o primeiro fidalgo de Inglaterra, conde-marechal do reino, chefe do partido católico. Toda a alta aristocracia papista assistiu à cerimónia, que foi celebrada na capela dos padres do Oratório, em Brompton, com um esplendor romano. A noiva é Lady Flora Hastings, filha da condessa de London, novamente convertida ao catolicismo; os presentes que recebeu são de uma prodigalidade e de um luxo incomparáveis: entre a profusão de jóias, colares de diamantes, colecções de rubis sem igual, adereços de safiras que levaram anos a coleccionar, montes de pérolas inigualáveis, apareceram dois presentes notáveis: um é uma relíquia de um santo, 5. Tomás de Aquino, creio eu; outro é um colar de diamantes e rubis que pertencia a Maria Stuart, e que entrará por herança nas jóias da Casa de Norfolk. A rainha que, nestes casamentos aristocráticos, faz, segundo a antiga tradição, um presente à noiva, desta vez absteve-se. Daqui, grande escândalo. Ordinariamente o presente da rainha é um rico xaile de caxemira: e são tantos os que distribui que parece que em Windsor ou no Palácio de S. James deve haver armazéns subterrâneos atulhados daquele vistoso artigo. Os jornais alegres perguntam todos, com grandes facécias, porque é que no casamento do primeiro nobre de Inglaterra, de um parente de reis, que na corte tem lugar antes dos príncipes, sua majestade não deu ao menos o xaile. Que dê o xaile! Que não se fique com o xaile! – grita a imprensa satírica. Porque é um erro continental supor que a rainha de Inglaterra é cercada de uma tal veneração que a pilhéria não se atreva a transpor as portas do paço. Não: a rainha, como outra qualquer mortal, é (quando isso é justo) criticada, epigramatizada e caricaturada; e nesta ocasião a ocorrência do xaile tem sido objecto da muito grossa jovialidade saxónia.

A verdade é que a rainha ofendeu todo o partido católico; diz-se que a razão da sua abstenção foi o ser Lady Flora uma nova convertida e o detestar a rainha as novas convertidas. Admite as antigas famílias católicas, mas as conversões recentes são-lhe particularmente antipáticas.

Uma condessa muito ilustre e ainda mais bonita, casada com um católico, mostrava tendência ultimamente de «passar para Roma», como aqui se diz. A rainha, na última recepção, chamou-a e disse-lhe simplesmente:

– Não há nada pior para uma senhora que abandonar a religião de seus pais.

Foi o bastante: a pobre condessa perdeu toda a veleidade de beijar a chinela do papa; ficou-se no protestantismo por ordem superior. Acho este caso delicioso. Uma devota – morrendo do desejo de ouvir uma boa missa cantada ou de seguir o mês de

Maria – é obrigada a contentar-se com a seca leitura da Bíblia para não desagradarás reais pessoas.

 

A propósito da religião, ouço dizer, mas não o garanto, que o príncipe Leopoldo, o filho mais novo da rainha, se vai fazer padre. Este moço, de uma natureza e de um temperamento diferente dos irmãos, letrado, um pouco poeta, místico e extremamente doente – daria talvez, nos tempos passados, um daqueles príncipes que edificavam um mosteiro e, na falta de um reino temporal, ali ficavam governando um pequeno povo de monges, escreviam um tratado sobre um meio de expurgar o Demónio e obtinham, pela sua parentela real, uma canonização em Roma.

 

As façanhas da força muscular repetem-se sob as formas mais inesperadas; depois dos sujeitos que nadam vinte léguas em doze horas; depois dos indivíduos que caminham em volta de um circo quinhentas milhas em três dias, temos agora um novo herói: o homem que valsa seis horas consecutivas. Este maganão é débil, esguio, alourado, frisado, com uns olhinhos vivos, ademanes nervosos e uma voz de grilo. Das seis da tarde à meia-noite, valsa, valsa, valsa, sem respirar mais alto, sem suar, sem se lhe desmanchar o frisado, cansando vinte, trinta, quarenta pares e bebendo, sempre a valsar, caldos pelo bico de um bule. É sublime e odioso. Na primeira hora, o espectáculo é trivial e pouco elegante porque o homem valsa pior que qualquer dançarino; na segunda hora, o facto começa a surpreender; na terceira hora, principia-se a achar extraordinário e não se vêem pelos cantos da sala, senão mulheres extenuadas que o maganão esfalfou, valsando, valsando; na quarta hora, o caso torna-se fenomenal, a cabeça anda à roda; na quinta hora, começa-se a ter ódio àquela personagem, que, com um sorriso ameno, gira, torneia, perpassa, delira, sempre à roda, sempre à roda; na sexta hora, a gente começa a ter vontade de matar o mariola: felizmente há policias; mas a impressão é terrível, e vem-se para a rua meio louco, sentindo as casas, os candeeiros, as carruagens, valsar, valsar com um sorriso doce e cabelos frisados. E um espectáculo medonho!

 

Agora uma notícia triste: o nosso amigo Pongo morreu, o ilustre gorilha. Foram chamados os médicos mais ilustres, mas os seus dias estavam contados pelas Parcas que se ocupam dos macacos.

Pensou-se ao princípio que o clima, a nostalgia, ou talvez o tédio o teriam morto; mas os anatomistas, que o abriram para o estudarem, mostraram que o mal que o destruiu tinha uma causa bem mais natural num macaco: dentro do estômago do ilustre Pongo acharam-se pregos, um pequeno canivete, rolhas, uma luneta, uma luva, um cabo de guarda-sol e outras curiosidades. Este avô da raça humana não tinha da escolha dos seus alimentos nem mais discernimento nem mais dignidade que um qualquer reles macaco de meia moeda o casal. Grande desilusão!

 

 

X

Londres, 21 de Dezembro [de 1877]

 

Londres foi ontem à noite agitada pelo espantoso boato de que a Inglaterra tinha comprado o Egipto!!! Nos teatros, nas ruas, nos clubes, nos restaurantes, dizia-se com uma satisfação um pouco estonteada: – Comprámos o Egipto! Demos um ror de milhões pelo Egipto!

Eu soube a notícia por um amigo meu, que à uma hora da noite se precipitou na minha sala; esguedelhado, com o laço da gravata branca para as costas, soprando como um monstro dos mares, atirou-se para uma poltrona ao pé do fogão e exclamou com palavras ofegantes:

– Acabou-se! Está terminada a crise! Acabámos agora mesmo de comprar o Egipto!...

Eu levantei a cabeça do meu trabalho e, dominando uma comoção violenta, perguntei com tranquilidade:

– Por quanto?

– Centenas de milhões. Um negócio óptimo. A questão do Oriente está acabada: agora que espatifem à vontade o Império Turco. Nós temos o que precisávamos – o Egipto e o canal de Suez! Constantinopla não nos serve para nada! E sem derramar uma gota de sangue! Derramando, sim, ondas de ouro! Mas pouh!... O ouro sobra. Além disso, o rendimento do Egipto em três ou quatro anos dá quinze por cento do capital empregado! E que golpe para a Rússia! Com o dinheiro que recebe, a Turquia paga a sua dívida, ganha crédito, equipa exércitos, continua a guerra e faz repassar o Danúbio aos Russos – a pontapés! Grande homem Lord Beaconsfield! Hem!?

Confesso francamente que dormi mal. Comprar o Egipto! O quê! A grande e bela terra dos faraós, dos Ptolomeus, dos sultões, de As Mil e Uma Noites; o Egipto de Sesóstris, de Cleópatra, e de Harun Al-Raschid; a terra monumental e hierática, o país do Nilo, das Pirâmides e dos templos maravilhosos; o vale onde está Tebas de cem portas e o Cairo de cem mesquitas; o terreno fecundo e inesgotável que alimentou o Império Romano; este país prodigioso onde a história é mais maravilhosa que a legenda, o quê! Esta nação-avó, mais antiga que Jeová, comprada, vilmente comprada como um chapéu do Roxo, ou um quarteirão de pêras da tia Vicência! É possível isto? Um sujeito de suíças e de polainas, chegando a Constantinopla e, depois de um olhar de conhecedor e de uma tossezinha de decisão, dizer sossegadamente, apontando para o Egipto:

– Isto: quanto?

– Tanto.

– Bem. Embrulhe e mande a casa!

Hão-de concordar que é forte. Que conquistassem, vá, que lhe dessem a honra de o invadir, de o assolar, de o acorrentar, compreende-se: é da tradição: o Egipto tem passado a sua existência a ser invadido: quem o quer, dá-lhe ao menos a satisfação de lutar por ele; mas comprá-lo! Dar por ele – não sangue, mas notas do Banco de Inglaterra! Chamá-lo a si e entregar um recibo... E verdadeiramente uma ideia de merceeiro! Mas que tem a sua grandeza, concordemos: uma transacção desta ordem eleva a compra e venda à altura da epopeia: e um balcão sobre o qual se regateiam destes negócios é tão poético como o campo de batalha de Tróia.

Hoje, porém, averigua-se que o boato era prematuro: alguns ainda insistem que se comprou, sim – não o Egipto, mas a ilha de Creta: a verdade, porém, é que as decisões do Governo, se estão já expressas em facto são ainda secretas – e eu apenas conto este incidente para dar a medida da excitação que existe em Londres.

Este excitement foi produzido pela convocação extraordinária do parlamento: os rumores mais fantásticos circularam logo, e os consolidados desceram três quartos por cento, o que, diga-se de passagem, custa aos possuidores de títulos a pequena soma de cinco milhões de libras esterlinas. A primeira ideia foi que o Governo ia declarar a guerra à Rússia e que reunia o parlamento para lhe pedir a aprovação constitucional desta aventura dramática: mas semelhante suposição era absurda: o Governo não pode senão expor às câmaras a gravidade da situação, apresentar a sua opinião, ver se o parlamento a aprova e perguntar-lhe se não seria conveniente colocar o exército e a armada à altura da crise. Em todo o caso as câmaras do comércio estão-se já apresentando ao Governo em favor de uma política pacífica e neutra, e nas principais cidades celebram-se meetings para lembrar a Lord Beaconsfield que o contribuinte inglês não tem a mínima intenção de pagar um xelim a mais para que o grão-turco continue a divertir-se nos langorosos ócios do serralho!

Eu julgo que o país faz bem e exprimiu com tempo e com firmeza o seu desejo de paz, porque, abandonando-se às suas próprias inspirações e aspirações, Lord Beaconsfield declararia a guerra amanhã: o seu ódio à Rússia e à raça eslava só é igualado pela sua paixão pela raça semítica e pelas nações arábicas: ama, além disso, na política, o elemento dramático e brilhante: tem o temperamento batalhador e militante que ele outrora atribuiu ao seu herói Tancredo: tem-se colocado como um antagonista histórico do czar, o que lisonjeia o seu orgulho de judeu e de plebeu: além disso, sendo um perfeito cortesão, desejaria dar à rainha Vitória o presente que mais a encantaria – uma guerra em favor da Turquia. Porque a pessoa que no reino é mais anti-russa, mais pró-turca, mais fanática da política tradicional, da aliança otomana, mais zelosa dos chamados interesses britânicos e mais pronta à guerra, é a rainha. E tem-no mostrado ultimamente de um modo tão saliente que causa alguma surpresa e muita tristeza aos que estão acostumados a vê-la observar, religiosamente, as regras mais exactas da abstenção constitucional. Em primeiro lugar a rainha publicou ultimamente um «panfleto contra a Rússia»: e eu me explico: o Sr. Theodore Martin está imprimindo uma biografia do príncipe Alberto, cujos elementos e documentos são fornecidos pela rainha: a rainha é, de facto, a colaboradora essencial deste trabalho: há páginas que estão tão profundamente impregnadas das suas opiniões, das suas simpatias, direi mesmo das suas afeições, que parece que o nome de Theodore Martin é apenas um pseudónimo literário sob o qual se oculta a rainha Vitória: ora justamente o terceiro tomo desta biografia acaba de ser publicado, e refere-se ao período da vida do príncipe no tempo da Guerra da Crimeia: as cartas do príncipe transcritas, os seus discursos, as suas opiniões, a reprodução das suas conversações, sobretudo a história da sua influência na política inglesa desse tempo, mostram que ele tinha a maior simpatia pela guerra contra a Rússia e que concorreu poderosamente para a sua realização: o volume inteiro é a apologia prolongada desta simpatia, e a rainha, por intermédio do Sr. Martin, revestindo-se das opiniões do seu marido, e fazendo, neste momento, a sua glorificação, dá claramente ao país a expressão das suas opiniões pessoais. Diz-se mesmo que, depois de um dos últimos conselhos de ministros, em que Lord Derby e Lord Salisbury tinham energicamente advogado uma política de abstenção, a rainha disse a Lord Beaconsfield, dando-lhe este terceiro volume da Vida do Príncipe Alberto:

– Peça aos seus colegas que desejam a paz que leiam este livro: têm muito que aprender aqui.

De facto o volume é um ataque terrível contra a Rússia, contra a falsidade tortuosa da sua política, a instabilidade desonesta das suas promessas e a intensidade das suas ambições.

Mas a maior demonstração da rainha em favor da guerra, foi a sua recente visita a Lord Beaconsfield: não uma visita particular, mas oficial, em cerimónia, como rainha de Inglaterra e imperatriz das Índias. Semelhante honra é tão extraordinária, tão contrária aos hábitos da corte e aos costumes da rainha, que, ao saber tal, todo o reino ficou mudo de espanto. O imperador do Brasil, o imperador da Rússia, a imperatriz da Áustria, todos os príncipes herdeiros e todas as coroas europeias têm vindo a Inglaterra, e a rainha nunca lhes fez uma visita: é inútil dizer que nunca a fez a um lorde de Inglaterra nem a nenhum dos seus primeiros-ministros, nem mesmo a Lord Granville, por quem ela tem a maior simpatia pessoal. Portanto, a sua cerimoniosa jornada a Hughender Manor, propriedade e residência castelã de Lord Beaconsfield, deu origem às interpretações mais fantásticas e aos boatos mais insensatos; mas a verdade é (e todas as pessoas razoáveis o compreendem) que a rainha, fazendo uma tal honra ao ministro que mais advoga a guerra, quis manifestar que lhe dava todo o seu apoio e que estava com ele na mais perfeita comunidade de vistas e talvez de decisões. Mas que importa toda esta manobra de ministros e da rainha se a Inglaterra quer o contrário? E quando o forte John Bull exprimir resolutamente a sua vontade, os altos personagens do ministério e da corte têm de obedecer como os bois obedecem ao carreiro.

 

Da guerra não há senão notícias mais ou menos incertas: assim não creio que se deva dar muito crédito ao espantoso boato de que Suleiman Paxá apareceu inesperadamente em Constantinopla à testa de dez mil homens, para fazer uma revolução, derrubar o Governo, exonerar o sultão e criar uma ditadura militar sob o nome do ex-sultão Murad, destinada a continuar a guerra até à última extremidade. Suleiman Paxá, é certo, pertence ao partido fanático, é uma espécie de general softa, inimigo das reformas europeias, ciumento das velhas tradições otomanas, hostil ao estrangeiro e à sua influencia: mas, por isso mesmo, creio, bastante patriota para não querer complicar a guerra estrangeira com uma revolta interior, e pôr à testa do Governo homens de quem a Europa desconfia, neste momento em que o seu país mais precisa a benevolência e a confiança da Europa.

E o mais crível é que a ele fosse a Constantinopla organizar um exército que defenda o caminho para a capital no caso que Andrinopla fosse tomada ou torneada.

Tudo isto indica que a paz ainda vem longe: a Rússia, exaltada com as suas últimas vitórias, sentindo-se fortemente apoiada pela Alemanha e tendo todas as razões para se julgar apoiada pela Áustria, alarga as suas pretensões, e quase não oculta que planeia a desmembração do Império Otomano; a Turquia, pelo seu lado, exasperada pela humilhação das derrotas, tendo adquirido com as primeiras vitórias uma extrema confiança em si mesma, animada pela atitude activa da Inglaterra, pressentindo a proximidade de uma intervenção em seu favor, objecta, mais que nunca, a meter a espada na bainha: e os sofrimentos na Bulgária e na Ásia, agora que as inclemências se vêm juntar aos desastres da guerra, ameaçam protrair-se indefinidamente. E, para haver mais uma acha na fogueira, a Sérvia acaba de lançar o seu exército de aventura sobre a Turquia meio vencida. O procedimento do príncipe Milan e do Governo sérvio é aqui julgado (mesmo pelos inimigos da Turquia) com uma severidade em que há mais desprezo que indignação. Alguns jornais mesmo afectam não tocar no assunto, como muito vil para uma pena honesta. Com efeito, a Sérvia tem-se comportado pulhamente: batida pela Turquia, quase sem esforço, tratada de covarde pelo imperador da Rússia no célebre discurso de Moscovo, aceita com reconhecimento uma paz que as nações mendigaram para ela, e obriga-se por um tratado a conservar-se neutral, forem quais forem as ocorrências: a Rússia declara a guerra, e no primeiro momento parece levar de vencida os exércitos otomanos; a Sérvia logo, com a cobardia de quem é forte para com homem derrubado, tira metade da espada fora da bainha; mas as coisas mudam, e é a Turquia que sobre toda a linha ganha vitórias decisivas; imediatamente a Sérvia esconde a espada e dá parabéns cortesãos ao sultão. Os Turcos são de novo batidos na Arménia e no Danúbio, e eis a Sérvia a menear-se num repentino impulso guerreiro; Plevna cai, e a Sérvia une-se ao imperador, que a tratou publicamente de covarde, e contra todas as leis da honra e todos os deveres da coragem vai dar na Turquia o coice do asno! Não me espanto de que o Daily Telegraph trate o príncipe Milan de biltrezito!

 

Estamos em férias do Natal; é esta a época das festas de família, do plum-pudding e de uma praga de versos, de publicações, de baladas, de contos alegóricos, de cromos-litografias, celebrando o velho ano, o bom Christmas, o ano novo e as doçuras do lar! O Natal dá lugar a uma singular espécie de literatura, que é para as letras o que o plum-pudding é para a confeitaria – um produto pesado e indigesto que todo o mundo gosta de ver sobre a mesa, em que ninguém toca e que a gente grande estima pela alegria que dá às crianças. E sobretudo para as crianças que são escritas estas poesias piegas e estas histórias de fantasmas, desenhadas estas vistas convencionais da neve e estas figuras grotescas da caridade. Os jornais ou revistas, todas as publicações, põem de parte o bom senso, a ciência ou a arte e dedicam um número a estas criancices, que se chama o «número de Natal», e que, pela venda prodigiosa que tem, constitui um dos rendimentos das publicações inglesas. Os teatros fazem o mesmo: e todos, sem excepção, representam nesta época a pantomima, espécie de mágica desordenada, cheia de transformação, de bailados e de glórias, onde aparecem simultaneamente actores, palhaços, cães sábios, virtuosos ilustres, feras, dançarmos célebres, habitantes de países exóticos (lapónios ou patagónios), macacos, esquadrões de cavalaria e cascatas naturais! Estas representações duram três meses, e toda a família verdadeiramente inglesa e que respeita as tradições vai ver a pantomima pelo menos três vezes, com todas as crianças e todos os criados: é uma solenidade doméstica.

 

De resto o tempo tem estado esplêndido, em toda a Inglaterra; neve e sol: de noite a neve cai para dar a sua beleza especial aos campos e às cidades; de dia o sol vem para iluminar a neve e fazer o ar alegre. Já se patina, porque toda a água parada está gelada. Temos tido oito a dez graus abaixo de zero (centígrados).

Depois do Natal começa a emigração da gente rica para o Sul. O lugar favorito é a formosa ilha de Wight, onde há bosques de camélias e erra no ar de Inverno uma perpétua reminiscência da Primavera. A propósito da ilha de Wight, um amigo meu que de lá veio conta-me uma deliciosa anedota sobre o ilustre Tennyson, o maior poeta de Inglaterra e do seu tempo, talvez.

Tennyson vive na ilha de Wight, no seu delicioso retiro cheio de flores e de pássaros: está velho agora, e a sua qualidade característica, que foi sempre a modéstia, tem tomado sempre com os anos uma intensidade exagerada: não há nada que o sublime poeta de Locksley Hall, de Mand e dos Idílios de El-Rei deteste mais do que ver um curioso contemplá-lo. Tennyson é pessoalmente uma figura poética, e os seus longos cabelos brancos, em anéis, a sua comprida barba nevada e a extraordinária doçura dos seus olhos exercem um encanto e provocam um respeito enternecedor em quem pela primeira vez o encontra. E portanto, natural que a sua celebridade, o fanatismo que os Ingleses, e sobretudo as inglesas, têm por ele, a beleza da sua pessoa, o exponham a ser muitas vezes objecto da curiosidade e de uma admiração impertinente. O que faz, pois, Tennyson quando passeia nos deliciosos caminhos da ilha de Wight? Que imaginam que faz? Traz um grande lenço na mão e, apenas sente passos, atira-o para cima do chapéu e cobre cuidadosamente o rosto!

Um inglês é sempre excêntrico, mesmo quando é sublime.

 

 

 

XI

Londres, 10 de Janeiro [de 1878]

 

Onde estão os tempos saudosos, em que cada telegrama nos trazia uma vitória turca? Onde estão esses dias em que os correspondentes nos pintavam as cargas irresistíveis da infantaria otomana, atroando os céus com o grito de «Alá! Alá!» e pulverizando divisões russas? Onde estão os Vitoriosos e os ghazis? Onde estão as lágrimas do imperador da Rússia choradas nas noites da derrota? Onde estão as horas alegres em que um coração liberal se regozijava, pensando que o czar e o seu Governo autoritário, despótico, teocrático, semibárbaro, humilhado pelas derrotas na Bulgária, seria na Rússia feito em pedaços por uma revolução niilista? Ai, tudo nos passou! Hoje o que se nos diz cada dia é que mais uma fortaleza turca foi tomada, mais um regimento aprisionado, mais um passe dos Balcãs atravessado, mais uma enxada cavada na sepultura da Turquia. O czar não só não é destronado, mas é recebido em Sampetersburgo com um fanatismo tão alucinado que pessoas deixam-se atropelar para se poderem prostrar, beijar-lhes as botas, tocar com a ponta dos dedos na bainha da sua espada santa! E são os ministros do sultão que dizem ao novo parlamento em Constantinopla: «Estamos perdidos, rendamo-nos!»

É doloroso ver que esta guerra injusta tem como resultado fortificar, enfatuar, perpetuar um governo inimigo de toda a liberdade, defensor de todo o despotismo, cuja justiça se chama Sibéria, cuja administração se chama Polónia, que tempera a liberdade dos jornais pelo assassinato dos jornalistas, que liberta os servos para melhor os poder explorar pelos impostos, que condena um romancista ou um poeta a prisão perpétua se o seu poema ou a sua novela desagradam à polícia, que expulsa o estrangeiro suspeito de liberalismo como se enxota um cão, que tem como sistema de governo a delação e a espionagem, que chicoteia as mulheres cujos maridos não convêm, que exila os maridos cujas mulheres convêm e que civiliza as raças de civilização inferior – destruindo-as. Eu não tenho certamente nenhuma simpatia pelo sultão: uma tão rica porção de território europeu, como a Turquia, nas mãos de uma raça preguiçosa e asiaticamente passiva é certamente uma perda para a civilização, é uma esterilização de força produtiva; mas se o golpe ao Urso Branco, ao campeão da tirania, pudesse vir da Turquia, hurra pela Turquia!, hurra pelo china ou pelo mongol!, hurra por qualquer povo negro ou nu que pudesse libertar a Rússia, a Europa, a liberdade e o pensamento desta tenebrosa entidade, o Governo do czar!

Infelizmente não nos é dada essa doce consolação. E, todavia, é neste momento ou nunca que a Rússia corre um perigo. O armistício com a Turquia está assinado, parece. O czar deve agora apresentar, necessariamente, as suas condições de paz e revelar a extensão das pretensões: se elas forem tais que prejudiquem os interesses britânicos, o Governo de Lord Beaconsfield está ligado, pelas suas declarações e pela sua honra, a fazer a guerra. E este o momento crítico. A Inglaterra há meses que diz: «Esperemos, até ver o que a Rússia quer.» A Rússia tem nestas semanas últimas de dizer o que quer. E a Inglaterra de dizer o que faz.

É evidente que uma coisa é o Governo de Inglaterra e outra coisa é a Inglaterra: que a rainha e Lord Beaconsfield desejam a guerra, pelas suas inclinações pessoais, é certo; mas estes bons desejos dos elementos decorativos da constituição não bastam; é necessário que a grande massa, o contribuinte, o eleitor se queiram bater – e é neste elemento dominante que eu vejo uma antipatia muito decidida por qualquer acção militar. O Partido Conservador, em Inglaterra, vive num estado de irritabilidade acerca de política estrangeira; é, de natureza, bélico e fanfarrão: conserva o antigo ideal da canção: «Britânia governando as ondas e árbitra das nações.» Que em qualquer ponto da Europa haja um tiro, e os conservadores ingleses querem logo mandar lá a frota, a vasta frota! Foram eles que fizeram a Guerra da Crimeia: foram eles que gritaram que a Inglaterra devia intervir, pelo Sul, na guerra da América. Fora eles que declararam que a nação estava para sempre desonrada por não ter tirado a espada em favor da França. Se a nação os tivesse escutado, tê-la-iam lançado nas aventuras mais desastrosas.

Desde o começo desta complicação do Oriente têm estado constantemente a levar a mão aos copos da espada, de testa franzida para a Rússia: e foram em parte estes actos de arreganho que provocaram a guerra; e se o Governo não tivesse recusado aceitar o memorando de Berlim, a Turquia não se teria mostrado tão resistente nas conferências de Constantinopla; se o Governo não tivesse mandado a esquadra à baia de Besika, a Turquia, que se julgou logo apoiada, não teria sido tão intratável. E agora, que a guerra está finda, põe outra vez a mão na espada a propósito das condições de paz. Resta saber se o país lhe não tirará a espada da mão. Até aqui parece muito resolvido a isso; pelo menos, a julgar pelas petições, protestos, meetings. representações, a maioria liberal da nação quer trabalhar e não guerrear; e firmemente declaram – que nenhuma condição de paz, «nenhuma exigência russa põe em perigo os interesses da Inglaterra, nem mesmo a posse de Constantinopla». E aqui está o argumento: os que querem a guerra dizem que se a Rússia for a Constantinopla, primeiro, põe em perigo a supremacia da marinha inglesa no Mediterrâneo; segundo, abala o prestígio inglês na Índia; terceiro, tornando-se uma forte potência, pode arrancar à Inglaterra o uso do canal de Suez e do seu caminho para a Índia. E, dizem os partidários da paz, nós respondemos a isto: primeiro, que a marinha inglesa é mais forte que todas as marinhas do mundo juntas, e que os Russos não têm nem dinheiro, nem os construtores para criar uma frota que tenha a décima quinta parte da força da nossa, nem num século; segundo, que os hindus não nos amam nem nos desamam pela maior ou menor protecção que nós damos aos seus correligionários maometanos na Europa; e a prova é que, meses depois de nós nos termos batido pelos maometanos da Europa, na Crimeia, os maometanos da Índia mostraram-nos a sua indelével gratidão, fazendo contra nós a mais formidável insurreição dos tempos modernos!; terceiro, que a Rússia, em Constantinopla, tornar-se-ia a mais fraca das potências ocidentais: cercada do ódio da Áustria, da rivalidade da Alemanha e da nossa contínua vigilância, a sua posição seria de um perigo permanente, obrigando-a a armamentos ruinosos, a um estado de incerteza fatal ao seu comércio. E bastaria uma frota nas alturas de Creta para a manter num estado de inacção impotente.

Há muita verdade nesta argumentação do partido da paz, e é esta a argumentação em que se baseiam as representações dos meetings. Mas são estes meetings a expressão exacta do pensamento do país?

Eu tive ocasião de assistir ao grande meeting de Newcastle. Ë verdade que era em favor da guerra. Mas não é das suas resoluções que eu quero contar, é da sua atitude. Havia todas as condições de seriedade: estavam três a quatro mil pessoas; era na sala monstro dos Paços do Concelho; falava o deputado Hammond, homem estimado. E aqui está o que se passou.

Durante um quarto de hora Hammond falou, entre aplausos dos conservadores e assobios dos radicais. Mas, nas palmas ou nos apupos, havia como uma indiferença distraída. As suas imagens mais preparadas, os adjectivos mais sonoros, não conseguiam encadear a atenção; e eu notei que parte da sua vasta audiência se voltava repetidamente para o fundo da sala, onde se eleva uma galeria em anfiteatro, naquela noite tão escura de uma multidão espessa. Era evidente que na galeria alguma coisa produzia aquele frémito de curiosidade. Eu mesmo esqueci o orador que bracejava na plataforma falando da honra da Inglaterra, e apliquei-me a descobrir o caso interessante da galeria. Até que achei. Era um homem, um velho, que estava num dos bancos da frente, imóvel, com uma larga face barbada e risonha. E verifiquei que o que produzia impressão era uma coisa que ele tinha na cabeça; evidentemente o público, como eu, desejava saber o que era, porque, estando a galeria mal alumiada, não era possível, à distância, apreciar-se: não era um chapéu redondo, nem um chapéu de bicos, nem um barrete, nem um capuz, nem um turbante, nem um capacete: o que era então? As risadas convulsivas das pessoas que na galeria o cercavam picavam mais a minha curiosidade e a de três mil pessoas que estavam em baixo, na sala. Pouco a pouco, por um movimento comunicativo, toda a gente se voltara para a galeria, estendendo o pescoço, aguçando o olhar, erguendo-se em bicos de pés; e o deputado Hammond não tinha diante de si, para receber os argumentos políticos, senão nucas e costas. O velho, decerto compreendendo que era o centro daquela curiosidade lisonjeira, ergueu-se com solenidade. Gritaram-lhe logo que viesse para os degraus de baixo! A reclamação era engenhosa; mal ele descesse, a luz de um dos lustres alumiar-lhe-ia a cabeça e poderíamos enfim saber que estranho objecto Lhe cercava as cãs. O velho condescendeu e, apenas entrou no foco de luz, uma gargalhada estridente, ecoante, trovejante, fez oscilar os muros. Tinham visto o que ele tinha na cabeça, o velho! Era uma coroa de louros! Porquê? Era um bardo? Era o Tasso? Era o nosso Camões? Quem o coroara? Que batalha ganhara? Que epopeia compusera? Era um deus marinho?

Enfim descobrimos o motivo: o respeitável ancião estava profundamente bêbado! E, vendo-se acolhido por uma aclamação tão jovial, não hesitou e falou! Falou dez minutos: salvas de palmas virgulavam-lhe cada oração; que triunfo, por Júpiter! O deputado Hammond, na plataforma, lívido, mascando uma bela imagem que começara a desenrolar, cruzava os braços com um desespero trágico: o seu olhar dizia claramente: «Povo vil, nação imunda!» Mas o povo delirava; e eu, aplicando o ouvido, pude vagamente perceber que o velho aconselhava os seus concidadãos a que fossem, em massa, à taverna dos Braços de El-Rei, onde o gim era especialmente bom e as raparigas que o serviam singularmente rechonchudas; aconselhava-o com exaltação, com a fé de um missionário; e, coroado de louro sorria, o bom velho!

Hammond não se conteve, invocou a polícia. Mas então o verás! O público, num frenesi, assobiou a polícia. O quê? Levar, expulsar um homem que tinha verdades tão proveitosas a revelar aos seus compatriotas? Não! E o velho debatia-se entre dois polícias, surpreendido, mostrando as suas cãs, a sua inocência e a sua coroa de louros. A polícia não o expulsou, mas fê-lo sentar. O deputado recomeçou. Mas ai! Quem o escutava? Todos os olhos, todos os corações, são para o bom velho que, sentado no mais alto degrau da galeria, como na glória de um trono, ostentava a sua face honesta e pacífica, com um bom sorriso jovial, coroado de louros, profundamente bêbado.

O meeting dispersou, sem se tomar nenhuma resolução: e creio que a maioria foi aos Braços de El-Rei verificar a qualidade do gim e as formas das serventes.

A Inglaterra é uma grande nação. Longe de mim apresentar este meeting como o tipo clássico dos meetings ingleses. Não. Conto apenas o que me parece ser um caso divertido.

 

Chega-me neste momento uma triste notícia. Vítor Manuel morreu: ainda ontem o seu antigo ministro, velho amigo e camarada de armas, o cavalheiresco general de La Marmora era enterrado – já hoje desaparece ele, o rei galantuomo, uma das personalidades mais interessantes da política moderna. Perde-se assim um grande patriota; porque o traço eficiente do seu carácter foi este: amar a sua pátria; não a sua pequena pátria, a Sabóia, mas a sua grande pátria, a Itália.

A sua biografia é ao mesmo tempo a crónica da Itália unida. No fim da batalha de Novara, Vítor Manuel, então moço, que se batera heroicamente, retirava-se do campo desastroso –quando de repente, estacando o cavalo e brandindo a espada para o lado onde se acendiam os fogos do acampamento austríaco, exclamou:

– Per Dio! L’Italia se farà!

E toda a sua vida foi passada a fazer a Itália. Foi este o seu pensamento central; a ele sacrificou tudo; inclinações pessoais, repugnâncias de educação, devoções secretas, até orgulhos de família; decerto lhe custou a ele, educado por padres e amigo de Pio IX, católico fervente no fundo, causar tanta amargura ao chefe da Igreja; decerto lhe doeu a ele, de uma raça tão altiva, ceder à França a Sabóia, berço da sua raça; decerto lhe foi amargo o dia em que teve de dar sua filha Clotilde ao príncipe Napoleão, ateu, de uma família de aventureiros, quase velho, de costumes tão livres. Mas a Itália exigia um sacrifício. Decerto havia nele muita ambição. A família de Sabóia é orgulhosa, e ele não seria homem se lhe não fizesse bater o coração a ideia de reinar na Itália unida, e de deixar o trono, que foi de césares e de papas, à sua raça; mas se esse orgulho concorreu para fazer uma grande nação livre, que esse orgulho seja bendito!

Pessoalmente era o tipo do fidalgo: nobre, fiel à sua palavra, bravo, de hábitos sóbrios; caçar o chamois, comer a pulenta, viver nos montes, bastava-lhe; nos jantares oficiais conversava sem tocar nos pratos, com as mãos apoiadas aos copos da espada; era um conversador fino, vivo, rápido, sobretudo quando falava no seu querido dialecto piemontês. Em campanha gostava de dormir ao relento, embrulhado numa capa. Amava o cavalo como um cavaleiro andante. Depois da batalha de Novara, quando o despótico general Radeztky veio combinar à sua tenda as condições do armistício, Vítor Manuel não quis tratar sem que lhe fosse restituído o seu cavalo favorito, que fora perdido na confusão da retirada. Este traço tem um ar de legenda heróica, que encanta. Eram estes rasgos que o faziam amado.

Fala-se, com um certo ar repreensivo, dos seus muitos amores; para mim torna-se simplesmente mais simpático; ele não era um filósofo, nem um abade, nem um místico: a sua adoração da beleza faz parte do seu carácter de herói. A fidelidade a uma só é sentimento belo, mas pertence aos tempos líricos do rei Artur e da Távola Redonda. Sir Galahad, que tinha um lírio no escudo, dizia, percorrendo o mundo à busca do Santo Graal: «Eu sou forte, porque sou virgem.» E uma santa palavra; mas Sir Galahad, a não ser em verso e interpretado por Tennyson, faz ligeiramente sorrir. E neste ponto, o rei galantuomo seguia as tradições de seus avós da Renascença, e não as dos cavaleiros do rei Artur.

Foi uma pleurisia que o matou. Os príncipes de Sabóia vivem pouco. Em crianças são débeis; depois, subitamente, tomam um desenvolvimento robusto e declinam depressa. Até ao momento extremo conservou o espírito lúcido. Minutos antes de expirar, chamou o príncipe Humberto, apertou-lhe a mão, deu-lhe um olhar de amor e disse serenamente: «Addio!» O príncipe saiu chorando desesperadamente, e o rei morria. Tinha comungado. Dois vigários do Vaticano tinham vindo, com a bênção do papa, levantar a excomunhão. Pio IX, ao saber que a agonia do rei se aproximava, disse, muito agitado:

– Se não fossem estas pernas, que não querem, eu mesmo levaria os sacramentos ao rei!

É singular que Vítor Manuel, que vira passar como um sonho toda a velha Itália, tudo o que se lhe opôs e que o combateu – príncipes despóticos, grão-duques intriguistas, Bourbons fanáticos, o grande Mazzini, carbonários e conspiradores, camisas-vermelhas e garibaldinos – só não sobreviveu ao seu grande adversário: o papa. Esse aí fica, como uma personificação da velha Itália sacerdotal e autoritária. E é esse que, depois de tantas lutas e de tantas injúrias, o ajuda a bem morrer.

Assim vão desaparecendo os grandes italianos da unificação: Cavour, Ratazzi, Mazzini e Vítor Manuel. Garibaldi resta, mas tão velho que está mais na história que na vida.

E o velho papa fica, intratável, indomável, perturbando o mundo mesmo do seu leito de morte, vendo os seus inimigos morrerem um a um, e tendo a consolação de ver alguns virem, na hora final, pedir-lhe humildemente a sua bênção. Por isso os católicos aqui estão radiosos. Mas que importa? Os homens passam, são a parte decorativa das ideias; e se é Vítor Manuel que morre e o papa que sobrevive, é todavia o ultramontanismo que expira e a democracia que fica.

 

 

XII

Londres, 26 de Janeiro [de 1878]

 

Esta semana tem sido certamente fecunda em episódios históricos e que pela sua natureza fornecem belas antíteses retóricas: pompas funerárias em Itália, pompas nupciais em Espanha; o papa, que materialmente agoniza, o sultão, que agoniza politicamente; intrigas eclesiásticas e intrigas diplomáticas; isto com algumas guerrazinhas secundárias, aqui e além, na África e na América, alimenta com superfluidade a curiosidade europeia. Mas, ainda assim, é em Londres que se tem concentrado o interesse dramático do momento; temos vivido aqui numa excitação, um excitement capaz de arruinar a constituição mais robusta. Sobretudo nestes últimos três dias cada hora nos traz uma grande sensação; e cada notícia é um choque eléctrico. Ora é o Governo que vai pedir para armamentos sessenta milhões de libras! Ora é a frota inglesa que é mandada a Constantinopla! Ora são trinta mil homens expedidos para Galípoli! Depois é Lord Derby que pediu o demissão, por ser oposto à guerra! Em seguida, é a Inglaterra que, prevendo a partilha do Império Turco, fez desembarcar cem mil homens no Egipto!... Toda a sorte de boatos fantasistas, de que aproveitam os jogadores de fundos e as administrações dos jornais. E tudo isto dá lugar a uma questão feroz, desde que um inglês encontra outro inglês; porque o país, dominado por impressões, e portanto indiferente aos raciocínios, está dividido em dois partidos: os que querem a guerra a todo o preço e os que a todo o preço querem a paz.

Uns parecem querer tomar como casus belli o simples facto de que o embaixador russo passeie nas ruas de Londres; os outros parecem quase dispostos a não se mexer nem mesmo que um exército invasor desembarcasse em Dover! O Governo, esse, pretende tomar um caminho médio: desejar a paz em princípio e esforçar-se por a conservar; mas fazer a guerra, se a Rússia, pelas suas exigências, ferir alguns dos grandes interesses britânicos. Isto parece, com efeito, o racional: é uma neutralidade condicional, que vela, armada.

Eu, por mim, desejaria bem que a Rússia ferisse, mas ferisse mortalmente, algum interesse inglês, para que a Inglaterra fosse obrigada a atirar um golpe ao Urso Branco. Um dos meus grandes ódios políticos é a Rússia, não o povo russo, que tem qualidades magníficas, mas o Governo russo, que não só exerce o despotismo em sua casa mas que o defende, o auxilia e o promove nas casas alheias. O czar Nicolau, como seu pai Alexandre, foi, enquanto vivo, o grande paladino do absolutismo na Europa; em toda a parte em que um movimento de liberdade se manifestava, ele corria a ajudar a sufocá-lo; todo o trono despótico e tirânico que uma revolução abalava, tinha-o ao seu lado como defensor oficial do despotismo.

O actual czar, apesar dos sentimentos humanitários que se lhe atribuem e de que as suas alocuções transbordam até à pieguice, herdou esta missão desgraçada; não teve ainda ocasião de tirar a espada em favor de uma tirania sacudida; mas tem apoiado com a sua influência, com os seus conselhos, com o seu dinheiro, todas as tentativas mais ou menos aventureiras que se têm feito contra o livre espírito da época: foi ele que mais embaraçou e contrariou o movimento liberal de 68 em Espanha, foi ele que deu o mais alto aplauso ao ministério Broglie, de ominosa memória; foi dele que D. Carlos, na sua criminosa guerra civil, recebeu as palavras mais animadoras; o seu desejo de colocar o conde de Chambord em França, D. Miguel em Portugal, restabelecer os Bourbons em Nápoles e restituir os ducados de Itália aos príncipes fanáticos e tiranetes. Isto, reunido à maneira como a Rússia é governada, tomam-no pouco simpático a todo o espírito liberal. É claro que não falo aqui do czar-homem, esse, dizem, é bondoso, compassivo, afável, sensível, um perfeito gentleman; falo do czar-ideia, da missão que ele encarna e da política que representa.

Seria portanto com ganidos de júbilo que os liberais veriam a Inglaterra dar-lhe um golpe valente; não como no tempo da Crimeira: então os aliados, atacando e tomando Sebastopol, não fizeram mais do que fazer cócegas no calcanhar do colosso e limar uma unha do imenso urso; não, o que se deseja é que o golpe seja ao coração, bem ao meio do coração.

O czar vencido era a Rússia libertada. O povo russo perdeu a docilidade de criança dependente: tem visto, tem olhado para fora da fronteira, sabe que há uma coisa que se chama liberdade, outra que se chama constituição, uma certa reunião de vontades e de razões que se chama parlamento, etc., etc. – e tem vontade de provar destes frutos excelentes que crescem nas terras alheias. Se o povo sofresse duas ou três derrotas providenciais, perdia todo o respeito, toda a ilusão sobre o seu czar, e ou o obrigava delicadamente a ir divertir-se para a Itália ou o forçava a não ser mais que a fórmula simbólica do Governo, de que ele, povo, será, pelos seus representantes e pelos seus jornais, o motor real. Por isso, é com mágoa, é com prantos, que vemos escapar esta ocasião única de ver a Inglaterra, campeã da liberdade, como diz a canção, desfazer a tiros o Governo do czar e o seu terrível maquinismo. Porque lançada a Inglaterra contra a Rússia, o resultado não era duvidoso. E é triste, é desolante, ver em lugar disto o czar ganhando batalhas, tomando cidades, arrecadando indemnizações de guerra, o czar alargando o seu território, o czar crescendo em força, o czar consolidando-se, o czar amado, o czar vitorioso!

Esta inimizade ao czar não implica, todavia, nenhuma simpatia pelo sultão. O Governo da Porta é tão detestável como o Governo do Palácio de Inverno. Talvez mais, mesmo. Decerto a situação dos cristãos na Bulgária e nas províncias turcas era lamentável; muitos correspondentes ingleses, pró-turcos, esforçam-se em provar que os cristãos eram felizes, pouco carregados de impostos, de nenhum modo violentados nas suas crenças, gozando uma liberdade considerável de trabalho e possuindo mesmo uma prosperidade relativa. Mas se isto é assim, porque eram os Russos recebidos por estas populações com o entusiasmo com que se recebe um salvador?

Quando o general Gurko passou os Balcãs, por cada camponês búlgaro que se reclamava para puxar, nas passagens das montanhas, as peças de artilharia, apareciam cem! E os que, por supérfluos, eram excluídos deste serviço muar, queriam ao menos, por dedicação, ir ao pé da carreta puxar por uma ponta da corda, tocar a peça libertadora com as suas próprias mãos, fazer qualquer serviço, mostrar a gratidão e o reconhecimento do homem salvo.

Quando os Russos entravam em Sófia, em Andrinopla, eram recebidos com fanatismo: os soldados desapareciam sob as flores arremessadas; os lojistas ofereciam os seus armazéns de graça. O russo era o Messias muito esperado. Ora é evidente que se eles (como querem dizer certos correspondentes) eram tão felizes sob a lei turca não teriam recebido com tanta paixão quem vinha destruir essa lei. E, pois, de crer que a prosperidade de que se fala não existiu nunca senão na prosa dos correspondentes, de envolta com alguma má gramática. Eu não conheço a Bulgária, nem observei nunca de perto espécime algum da administração turca; mas estive no Egipto e lembro-me da impressão geral que me ficou da condição dos felás, pobres cultivadores da terra; o chino nas Antilhas, o negro nas colónias espanholas, gozam uma verdadeira felicidade, comparados com o miserável, o acabrunhado, o desgraçado felá. Quem observa como eles vivem, como os tratam, sente vagamente um insulto à natureza humana; não quero dizer que os cristãos da Bulgária estivessem nas mesmas condições abjectas; mas a similitude da administração egípcia e turca deve produzir uma igualdade de vexame. Portanto, honra e glória a quem os fosse libertar! A Rússia não era talvez o país mais autorizado para o fazer, ela que trata... como trata os pobres camponeses, antigos servos. Mas, enfim, foi a Rússia que se dedicou, que apareceu na Bulgária a sacudir a tirania otomana: bem!, hurra pela Rússia! Hurra pela Patagónia, se tivesse sido a Patagónia! Mas agora que o czar livrou os Búlgaros do sultão, venha alguém, mais civilizado ainda, a livrar os Russos do czar. Eis o verdadeiro ideal liberal.

Mas esta esperança devemo-la perder. Toda a esperança da guerra findou. Direi mesmo que, há dias, o procedimento do Governo inglês foi tal que se pode acreditar que ele tinha esquecido as suas declarações orgulhosas e que, fosse qual fosse a ofensa feita pela Rússia aos interesses ingleses, o leão britânico, caduco e pesado com a sua indigestão de ouro, não mexeria nem uma pata. Um jornal francês, mesmo, começou o seu artigo de fundo, dizendo: «A Inglaterra não existe! A Inglaterra desapareceu da superfície do orbe! Alvíssaras a quem achar a Inglaterra!» O Journal des Debats, dizia, com mais gravidade de estilo: «L’affaissement d’Angleterre est complet.» Com efeito, o Governo convocara o parlamento para lhe pedir fundos dado o caso que alguma coisa sucedesse; pois bem, o armistício estava-se tratando, uma divisão russa marchava sobre Galípoli, outra sobre Constantinopla – e o Governo não pedia os fundos! A tomada de Constantinopla não era considerada grave! O que seria grave, então? Mas a opinião fez tanto barulho que o Governo acordou e, ainda meio a dormir, declarou que havia de pedir os fundos «além de amanhã». Graças a Deus!

Mas esses fundos não serão empregados, nem pedidos talvez, porque hoje conhecem-se as exigências da Rússia, e elas não contêm nada que ofenda os interesses ingleses. O urso teve medo do leão. Estende a pata de um modo suave e prudente. Eis o que, em resumo e tanto quanto se sabe, a Rússia pede:

Autonomia da România;

Autonomia da Sérvia;

Anexação da Bessarábia;

Cessão do porto de Batum;

Entrada das tropas em Constantinopla para aí embarcarem para Odessa.

Indemnização de um milliard de rublos, ou sejam, quatro milliards de francos, ou sejam, cento e cinquenta milhões de libras esterlinas, e para garantia, até inteiro pagamento, ocupação da Arménia.

Não há nestas condições (a questão dos Dardanelos é deixada para mais tarde) nada que ofenda os interesses ingleses. Há, é verdade, a entrada em Constantinopla: mas nesta exigência os Russos têm razão: em primeiro lugar, não é possível negar às tropas vitoriosas, que tanto sofreram e tão bem se bateram, esta marcha triunfal na capital inimiga, que é a grande recompensa militar e a consagração visível da glória: mas há outra razão; é que embarcar as tropas em Constantinopla e fazê-las ir para Odessa é a maneira mais fácil, mais barata, mais prática, quase a única possível de chamar o exército à Rússia. Imagine-se que despesa, que trabalho, que sofrimento, se as tropas tiverem, nesta estação, de tomar a atravessar os Balcãs, de repassar o Danúbio (o que é, em virtude do gelo, quase impraticável) e de voltar à Rússia por terra. Além disso, se os Prussianos entraram em Paris, capital da civilização, não há razão, nem política nem moral, por que os Russos não entrem em Constantinopla, simples cidade pitoresca.

A indemnização não creio que ofereça dificuldades. Eis, penso, o que se vai passar: a Rússia, como garantia, ocupa a Arménia: é claro que a Turquia, nem como pilhéria, pode pensar em pagar cento e cinquenta milhões de libras: portanto, os Russos estabelecem-se na Arménia; mas como esta ocupação, num dos caminhos possíveis para a Índia, é extremamente desagradável aos Ingleses, a Inglaterra empresta os milhões à Turquia para pagar à Rússia e recebe como garantia a suserania do Egipto. A Rússia embolsa, a Inglaterra estabelece-se no seu bem-amado canal de Suez e todo o mundo fica contente, excepto, já se sabe, o pobre Turco.

Eis o que eu penso provável; mas nesta questão do Oriente as complicações crescem como os tortulhos – conjecturar torna-se tão pretensioso como adivinhar.

 

Não creio que a imprensa portuguesa se tenha ocupado muito de um assunto que profundamente interessa ao país e a que a imprensa inglesa desde ontem dá uma certa atenção. Refiro-me à morte de Pio IX e ao direito que tem Portugal de opor o seu veto à nomeação de novo papa. Este direito, que pertence igualmente à França, Espanha e Áustria, está nas vésperas de ser oportunamente reclamado, porque sua santidade tem bem próxima a hora de subir para o seio de Aquele que há trinta anos, com fortunas diversas, ele representa oficialmente na Terra. A esta hora há no Vaticano uma destas intrigas subtis e maravilhosas, perante as quais os enredos diplomáticos ou os antigos imbróglios das comédias espanholas são coisas simples e elementares.

Os cardeais têm, na sua dupla qualidade de italianos e de padres, o génio refinado da intriga astuta: e neste caso de sucessão papal são italianos contra italianos e padres contra padres. Os cardeais estrangeiros, ou ausentes nas suas dioceses, ou afastados da frequentação íntima dos quartos de sua santidade, são apenas como o coro de certas óperas antiquadas, que na cena final, dos dois lados do palco, se pronunciam uns por este, outros por aquele pretendente à mão da princesa. O grande enredo é entre os italianos: aí tudo o que a finura tem de mais aguçado, tudo o que a duplicidade tem de mais tortuoso, os disfarces mais rebuçados, as escavações mais subterrâneas, as influenciazinhas mais distantes, as caluniazinhas picantes, a preciosa posse de segredos, as captações melífluas, tudo serve, tudo se emprega para fazer um papa.

É bizantino e maquiavélico. A primeira coisa a conseguir para um cardeal pretendente é a recomendação do papa. Sua santidade, se conservar o espírito claro na hora suprema, decerto por uma palavra, um olhar, um aperto de mão, uma alusão, há-de mostrar a sua preferência: isto é esperado, é certo: e uma tal escolha da boca do papa, num tal momento, terá para muitos a força de uma ordem divina.

A outra coisa a obter é mais moderna e toda eleitoral: são votos. E aqui que os fios da intriga se emaranham.

Enfim a última condição é que não haja oposição ou veto. É neste ponto que Portugal tem hoje, em Roma e no Vaticano, mais importância que as grandes potências unidas. O conclave sabe e todos são acordes que a França, a Espanha, a Áustria, todas com razões diversas, não exercerão o seu direito. Mas Portugal pretende exercê-lo ou, pelo menos, assim o crêem os cardeais. Daqui uma comoção muito nervosa, em suas eminências. Nos princípios deste mês o senhor conde de Tomar, nosso embaixador em Roma, foi recebido pelo papa, e este simples facto causou, posso afirmá-lo, no mundo eclesiástico de Roma, tanta sensação como a morte de Vítor Manuel.

Porque o que se receia entre os cardeais não é que Portugal interfira por interesses propriamente seus, mas que se encarregue de representar os interesses das potências que não têm direito de veto. Estas duas potências são a Alemanha e a Itália: os seus interesses seriam um papa liberal; Portugal é essencialmente liberal e, além disso, unido às duas cortes pela Casa de Sabóia e pela Casa de Coburgo; portanto, concluem os cardeais, é bem possível que Portugal vá, pela sua oposição, fazer valer no conclave os interesses das duas nações inimigas do Vaticano.

O direito de veto não é exercido pelo embaixador, mas por um cardeal, que se encarrega de apresentar no conclave o protesto, em nome da nação que o lança: diz-se em Roma que há já um cardeal que tem na algibeira da sua batina o veto de Portugal – na ausência do único cardeal português, que é o patriarca de Lisboa. Daqui uma intriga desesperada, ávida de saber quem o cardeal portador.

Os dois cardeais que têm mais probabilidades de se sentar no trono de 5. Pedro são o cardeal Billio e o cardeal Monaco de la Valleta. Têm ambos cinquenta anos, a mais alta jerarquia eclesiástica, uma ambição extrema, uma astúcia penetrante. Monaco de la Valleta ajudou à composição do Syllabus, mas exprime opiniões liberais quando vê que, numa circunstância dada, isso pode trazer-lhe um apoio forte na realização da sua esperança. Isto pinta o fino prelado. Billio tem seguido sempre a mesma táctica: e ambos eles procuram ansiosamente averiguar qual é o cardeal portador do veto de

Portugal, que pode no momento último separá-los da desejada tiara. Portugal tem pois, neste momento, uma voz, numa grave questão europeia, em que poucos a têm. E os que não podem falar têm os mais altos interesses na solução desta questão.

Portugal pode entrar e falar no conclave. A Alemanha, a Itália, a Inglaterra, não podem. É fácil de ver a nossa importância neste momento, em que temos o privilégio de entrar quando as grandes potências têm de ficar à porta.

 

De todos os fenómenos naturais, o som era decerto aquele que, até aqui, a ciência e os inventores tinham perturbado menos. Pelo menos, em comparação da electricidade e da luz – obrigadas a fazer o mais reles do serviço –, o som gozava uma tranquilidade relativa. Neste século uma tal paz não podia durar. O Dr. Bell foi o primeiro a inquietá-lo, com a invenção do telefone. E agora temos um outro fantasista, que apenas pretende isso – guardar o som de conserva. O aparelho (há necessariamente um aparelho) recebe, por exemplo, o discurso do orador, guarda-o e daí a meses, ou anos, pode reproduzi-lo com a voz do orador e as suas menores inflexões, desde os ímpetos da retórica até à tosse ou espirros casuais. Deve-se fazer proximamente em Londres uma grande experiência. A primeira aplicação em que se vai empregar, ao que parece, é nas disposições da última vontade. Em lugar de fazer o testamento por escrito, o moribundo fala o seu testamento, o aparelho recolhe as palavras e, dado o caso de uma contestação judiciária, o aparelho vem ao tribunal e reproduz a mesma voz do moribundo cortada dos mesmos gemidos. A descrição do aparelho é complicada, mas, tanto quanto pude perceber, consiste nisto, por alto: um tímpano, de uma sensibilidade quase sobrenatural, à medida que vibra com os sons recebidos vai imprimindo numa tira de massa um certo número de sinais côncavos; essa tira, voltada do avesso e solidificada, apresenta as saliências correspondentes às pressões que recebeu do outro lado; essas saliências, operando sobre um complicadíssimo aparelho pelo sistema dos cilindros de realejo, reproduzem com uma excitação milagrosa os sons recebidos pelo tímpano.

Nada mais simples...

 

As criadas inglesas, julgando sem dúvida que as soldadas actuais eram perfeitamente indignas de seres inteligentes, formaram uma espécie de associação para se criarem benefícios suplementares; e estes consistem em apanhar cartas comprome-tedoras às amas e venderem-lhas por preços respeitáveis. O caso infeliz de uma senhora muito sensível que se viu obrigada a pagar por um bilhete de três linhas vinte e cinco contos de réis revelou a existência desta quadrilha amável.

Os negócios de cartas têm-se reproduzido com uma tal abundância que os jornais pedem a intervenção do parlamento e a criação de leis severas. Mas a melancolia do caso, quem jamais o diria?, é que as criadas tinham por associados, imaginem quem... Não, não podem imaginar! Tinham por associados os próprios amantes das amas. Sujeitos elegantes, de formas robustas e fisionomia simpática (tudo o que reclamam os compêndios de retórica em Portugal para se ser um bom orador), tinham por profissão impressionar senhoras de temperamento sentimental, provocar uma correspondência picante e deixar, por descuido, cair um bilhete diabólico nas mãos subtis de uma criada de quarto: esta reclama da senhora o preço do bilhete (havia uma tarifa: simples platonismo, quinhentas libras; rendez-vous, mil libras; alusões ao facto consumado, preços variáveis e em proporção com a fortuna da frágil esposa) e, obtida a soma, partilha-a com o sedutor. É simples e prático. As senhoras sensíveis andam aterradas; será impossível, de ora em diante, o começar uma intriga poética antes de se ter a certeza que o cavalheiro não pertence a esta terrível sociedade, ou que, pelo menos, os seus preços são razoáveis. Não há fortuna que baste – se as senhoras têm de pagar por vinte e cinco contos cada bilhete inflamado. A ternura torna-se uma coisa tão cara, sobretudo a ternura ilegítima, que apenas as esposas dos mais poderosos banqueiros da Europa estão habilitadas a poder amar. E o que é mais curioso é que aos que pedem leis severas contra esta inteligente especulação sentimental respondem os homens práticos que diminuir o perigo do escândalo é aumentar implicitamente o pecado – e que esta terrível associação, sendo da mais alta moralidade indirecta, em lugar de ser perseguida deve ser favorecida. Pobres senhoras sensíveis!

 

 

XIII

Londres, 5 de Março [de 1878]

 

Finalmente ontem, pelas três horas da tarde, em San Stefano, a paz entre a Turquia e a Rússia foi assinada. Ontem era na história imperial da Rússia um dia ilustre: era o aniversário da emancipação dos servos, do nascimento do imperador e da sua subida ao trono: e por um refinamento de vaidade czariana foi ontem o dia escolhido para completar, por uma assinatura num papel, o fim do Império Turco. Devia ter sido decerto para Alexandre II um momento de orgulho hiperbólico ouvindo debaixo da janela do Palácio de Inverno milhares de vassalos cantarem, com a cabeça descoberta, como no respeito de uma celebração religiosa, o hino do czar – o pensar que no dia em que fazia vinte e três anos que seu pai Nicolau vencido e humilhado morria de despeito, ele tomava a desforra das derrotas passadas, recuperava as províncias perdidas, rasgava o ofensivo Tratado de Paris, destruía o Império Otomano, humilhava grandes potências e ganhava um lugar entre os grandes conquistadores do século. Nesse momento verdadeiramente pôde crer na missão da Santa Rússia.

De resto em Sampetersburgo, ao que dizem os telegramas desta manhã, o entusiasmo tomou as proporções de um delirium tremens. O imperador levou três horas a ir do palácio ao teatro, no meio de uma multidão fanática uivando o hino imperial, ébria de orgulho nacional, aclamando Alexandre, o Libertador. Em San Stefano, o grão-duque Nicolau passou uma revista de cerimonial às tropas, e os arautos anunciaram, ao som das músicas triunfais, o fim da campanha. Depois te Deum, jantares, champanhe e hurras pela Santa Rússia! De resto, os Turcos, com a passividade e a resignação da raça fatalista, aceitam a derrota, que é uma determinação de Alá, e não parecem ter conservado rancor aos Russos. Os correspondentes citam como perfeita a confraternização dos soldados russos e turcos: vêem-se, junto às linhas de demarcação, conversando, jogando, cantando, dançando, fumando, numa patuscada de bons amigos: um correspondente telegrafa que anteontem, na estrada de Pera, encontrara dois fortes destacamentos de tropas russas e turcas, que, tendo-se encontrado no mesmo caminho, faziam a passeata em fileiras misturadas, os oficiais em grupo, formando adiante, as bandas unidas tocando com denodo A Filha de Madame Angot. Os Turcos não parecem protestar: de Istambul vêm todos os dias a San Stefano milhares de curiosos ver os Russos, apertar-lhes a mão, dar-lhes os parabéns de boa chegada: de resto, os negociantes de Constantinopla estão encantados com a presença daqueles milhares de consumidores, que duplicarão os preços dos géneros.

A única criatura viva que em San Stefano protestou foi um jumento. Este ilustre descendente do amigo de Sancho e do amigo de Maomet mostrou desde o começo das negociatas da paz uma inquietação que bem depressa se definiu num ódio asinino contra os Russos. E o burro de um cangalheiro – e apenas pressente um uniforme russo afila a orelha, firma-se nas patas dianteiras e escouceia com um patriotismo que deve fazer corar o sultão e os paxás. E, dizem os correspondentes, a grande curiosidade de San Stefano, e faz o divertimento dos oficiais de sua alteza o grão-duque Vitorino. Debalde se tem procurado convencê-lo da nova vantagem e do novo progresso que a Turquia, ou o bocadito da Turquia que resta, vai gozar sob o protectorado russo; o jumento, com a teima que faz a honra e a força da sua raça, responde com coices aos argumentos. Este jumento ficará na história. É, depois de Osman Paxá, a única alma viril do império. É o último patriota turco!

Eis pois enfim finda a Turquia: as condições da paz não são conhecidas senão nas suas linhas gerais, mas tanto quanto se sabe, e não se sabe tudo, a Turquia perde a România, a Sérvia, o Montenegro como tributários, perde a Bósnia, perde toda a Bulgária, perde quase toda a Romélia e fica-lhe apenas na Europa uma tira de terra em volta de Constantinopla: o espaço para se plantarem as hortas da cidade, uma migalha de território para os legumes. Na Ásia perde o melhor da Arménia. Como potência europeia findou: é uma potência asiática. Ei-los enfim, depois de tantos séculos, expulsos do continente; mas custou: entre a guerra que os arrojou do Algarve e da Andaluzia até à campanha que os sacode da Romélia e da Bulgária mediaram séculos. A luta começada pelos reis católicos da Península é completada pelo czar e será terminada pelo czar; Constantinopla é deixada simplesmente aos Turcos, como um favor transitório, que bem depressa perderão também; o sultão levará a sua corte, o seu serralho, os seus eunucos e os seus tamborins para Drussa ou para Esmirna, na Ásia Menor, e nunca mais ouviremos falar dele; reentrarão, com toda a inércia do fatalismo, na passividade e no animalismo da vida puramente asiática; esquecerão tudo o que aprenderam na Europa, e na desgraça, prendendo-se mais ao mais puro maometanismo e isolando-se no Alcorão, não serão bem depressa mais do que um povo pitoresco e semibárbaro que se irá visitar, com risco e com fadiga, ao interior da Ásia Menor! Assim acabam os impérios.

Evidentemente, o sultão, os paxás, cederam tudo para conservar Constantinopla: Constantinopla é a vida doce e mole nos haréns de Istambul e nos jaliks do Bósforo: contanto que lhes restem as doçuras do kief, a sesta nos quiosques das Aguas Doces da Europa e as belas circassianas bem educadas no deboche, que lhes importa o mais? A filosofia deste país é a seguinte: um país sacrificado ao egoísmo da sua classe dirigente. O Times chega a afiançar que por um contrato secreto com a Rússia os paxás continuarão a receber os seus rendimentos e os seus tributos especiais, que não serão afectados pelo pagamento da indemnização de guerra. Quem vai pagar é o pobre camponês otomano, tão sóbrio, tão bravo, tão honesto. Sempre a velha, a velha história: aristocracias ligando-se para a exploração das suas plebes!

E que faz, no entanto, a Inglaterra? Arma-se até aos dentes: arma-se com um luxo quase bárbaro: solta dos seus estaleiros fileiras de couraçados; acumula montanhas de torpedos; quer tornar os seus obuses mais numerosos que as areias das praias! Leio todos os dias, por curiosidade, a lista dos preparativos nos arsenais, nas usinas do Governo, nas fábricas de canhões; confunde a imaginação! Os seis milhões de libras votados há um mês estão, diz-se, quase gastos – e tudo isto para quê? Para ir à conferência. Está fazendo a sua toilette da conferência. Com efeito, como ninguém sabe as condições da paz, todo o interesse está na conferência. Em que prejudicam essas condições a Inglaterra ou a Áustria? Mistério. Há-de saber-se amanhã, ou além. E é então que a dificuldade começa, se se vir que elas são incompatíveis com os interesses, com a dignidade, com a mesma segurança da Inglaterra. Duas das condições que decerto seriam um motivo de conflito, a entrega da frota turca aos Russos e a hipoteca do tributo do Egipto ao pagamento da indemnização da guerra, diz-se que foram suprimidas. Foram? Alguns jornais duvidam. Assim a impaciência de saber verdadeiramente as verdadeiras condições desta paz é ansiosa, cheia de pânico. Da sua publicação sairá uma nova guerra? Elas devem ser, com efeito, bem extraordinárias, visto que a Rússia as tem conservado tão secretas e que se está preparando como para uma outra campanha: mobilização de corpos de exército, encomenda de torpedos, fabricação de canhões, tudo isto prova que o czar conta com a oposição da Inglaterra e talvez da Áustria, quando sabidas as condições da paz, e que esta preparado para se bater em sua defesa.

Mas que pode fazer a Inglaterra? A Inglaterra tem de aceitar os factos realizados. Não tem alianças: a França está decidida a não se mexer, nem para dar uma opinião; até declarou que vai à conferência contra vontade, por dever de etiqueta; a Áustria está imobilizada pela Alemanha; a Itália igualmente. O que resta à Inglaterra? Os pequenos estados constitucionais, com que ela poderia formar uma cruzada liberal contra a Rússia. Armemos os pequenos estados constitucionais, diz-se aqui, armemos a Bélgica, a Holanda, Portugal, e teremos um efectivo de duzentos mil homens. Mas esta aliança com os pequenos não parece do gosto da política de Lord Beaconsfield; os jornais tories nem mesmo lhe dão a importância de lhe enunciar a possibilidade; ela não daria à Inglaterra, estrategicamente, um concurso eficaz, e só traria a esses estados catástrofes. Nenhum deles tem interesses na questão do Oriente; nenhum deles tem a loucura de gastar o seu sangue (dado que a Inglaterra forneça o dinheiro) para batalhar as batalhas da Inglaterra; nenhum deles aceitaria comprometer o seu progresso, a sua tranquilidade, o seu comércio, o seu trabalho, sem mesmo poder esperar compensações; a Inglaterra não tem sido uma mãe tão carinhosa que mereça que se faça por ela sacrifícios quando ela está em dificuldades: a sua gratidão é suspeita; não há, como ela, para abandonar um amigo num dia de crise; vide a história lamentável da Dinamarca. Os pequenos estados, portanto, declinariam, sem dúvida, a honra desta aliança ilustre. E a Inglaterra só tem a continuar isolada.

E é assim que a Alemanha paga à Rússia a sua dívida de 1870 e 1871. O que tem sido esta guerra do Oriente? O pagamento de uma dívida de gratidão. A Rússia em 1870 deixou a Alemanha arrancar à França duas províncias e cinco milliards e constituir a unidade germânica na família dos Hohenzollerns. A Alemanha, por seu turno, deixa a Rússia estender-se do lado da Ásia e da Turquia, encarregando-se de conservar a Europa quieta e imóvel. Tudo isto se passa entre Guilherme Hohenzollern e Alexandre Romanoff, e entre os dois velhos amigos, os dois velhos compadres de Frankfürt, Bismarck e Gortschatcoff. Delicadezas trocadas entre personagens! E Bismarck, por outro lado, consegue um grande fim: a Rússia quanto mais se alarga mais se enfraquece, quanto mais se arma mais se arruína. A Alemanha anima-a neste caminho, como os agiotas animam os filhos-famílias à vida aventureira e rica. A Rússia, concentrando-se, desenvolvendo os seus poderosos recursos, formando-se para a liberdade, será um terrível vizinho para a Alemanha; mas a Rússia, lançando-se nas aventuras da cruzada cristã na Ásia e da cruzada pan-eslavista no Sul da Europa, marcha à sua ruína, pelos desperdícios da força. De modo que Bismarck, ao mesmo tempo que paga a dívida de gratidão ao seu aliado, impele-o implicitamente à decadência. Política sábia, bem própria do antigo coronel dos couraceiros que uma retórica consagrada transformou no solitário de Varzin.

Annuncio vobis gaundium magnum: habemos pontificem. Desde esta declaração lançada de uma janela do Vaticano sobre o povo romano, na Praça de 5. Pedro, todas as preocupações do mundo católico e incatólico estão fixadas em Joaquin Pecci, Leão XIII, papa infalível pela reunião dos votos de quarenta e cinco cardeais falíveis. O que prova que quarenta e cinco falibilidades fazem uma infalibilidade. Leão XIII parece ser um homem rígido, com experiência do mundo e do governo, prático, bom administrador, de tendências ligeiramente liberais, de vida austera, letrado, poeta mesmo. A sua figura é um pouco ascética, não tem nada daquela doce e risonha velhice de Pio IX, tão cheia de afabilidade, de suavidade, de graça e de finura: Leão XIII tem uma velhice seca, imponente, um pouco triste.

O povo romano deu vivas ao saber a sua nomeação, o que não impediu que ontem apedrejasse as janelas do Palácio Toleschi, que se iluminara para celebrar a coroação de Leão XIII.

Isto provém do exacto sentimento italiano: estimam bem que o papa seja um italiano que resida em Roma, depois de ter sido nomeado em Roma, e que seja liberal – mas não querem que o papado saia do Vaticano e se misture à vida civil. A nomeação do italiano Pecci agradou-lhes – mas que os palácios de Roma façam iluminações, agora que ele está nomeado, não! O Governo é absolutamente da mesma ideia: e toda a demonstração papal fora das sombras do Vaticano encontrará a sua reprovação; e assim não permitiu que a coroação de Leão XIII fosse pública. Isto dará em breve a sua consequência. Leão XIII encerrar-se-á no Vaticano, como Pio IX, e pôr-se-á em hostili-dade ao Governo italiano e ao mundo liberal, como Pio IX, o que é no fundo a lógica, a força e a glória do papa e do papado.

 

Não há nenhuma novidade literária ou teatral. A política absorve toda a actividade cerebral: os filósofos fazem artigos de política nas revistas; os romancistas, mais batalhadores e mais exaltados, fazem-na nos jornais; os poetas fazem canções bélicas; e os pintores alegorias patrióticas: e todas estas produções são medíocres. A imprensa tem-se, sobre a questão do Oriente, entregado a um fluxo labial desordenado. Rolam torrentes de prosa e de retórica. Entre os que se chamam partido da paz – e os que se chamam partido da guerra – há uma luta de eloquência, que tem todos os pesados furores, todo o animal encarniçamento do boxe.

Os jornais da guerra – tomam sobretudo à sua conta o infeliz Lord Derby. Este político é digno de piedade: todas as contrariedades por que tem passado a Inglaterra são-lhe atribuídas com um luxo de epítetos injuriosos e um hiperbolismo de verrina – que causa melancolia. A Vanity Fair, um jornal elegante, de boa sociedade, estimado, respeitável, abandona-se sobre Lord Derby a excessos que a política costuma reprimir. Às vezes começa os seus artigos com moderação, bom raciocínio, linguagem correcta: de repente, encontra na sua argumentação o nome de Lord Derby. Endoidece. Atira-se a ele, morde-o, espezinha-o, arranca-lhe pedaços de membros, bate-o como um bife, chafurda-o na lama, baba-se de cólera. Há dias representava Lord Derby, de joelhos diante do embaixador russo Schuvalloff, rogando-lhe que por piedade não humilhasse mais a Inglaterra: Lord Derby beijava-lhe as mãos, abraçava-lhe as pernas... Aqui traduzo:

– Fora daqui! – brada Schuvalloff.

– Não, conde, deixe-me estar a seus pés. Não humilhe mais a Inglaterra. Nós fazemos tudo. Retiramos a frota. Destruímos a frota. Quer que destruamos a frota? É só vossa excelência dizê-lo! É um momento, com dinamite.

– Fora daqui, pulha!

– Sim, sou um pulha! Obrigado. Que honra que vossa excelência se digne notar que eu sou um pulha! Sou-o realmente, já que vossa excelência o diz. Deixe-me beijar mais a sua mão; que quer que eu faça para lhe provar a minha adoração? Quer que cante de galo?

Neste momento o público, fora, vem fazer um charivari debaixo das janelas do embaixador. Uma pedrada quebra um vidro. E logo entra, arremessado pela janela, um gato morto.

Schuvalloff dá um pontapé em Lord Derby, exclamando:

– Vê, imbecil. Aí está já esse grosseiro povo da Inglaterra a insultar-me, a atirar-me bichos mortos.

– O gato morto? – grita Lord Derby. – O gato morto era para mim! Todos os gatos mortos são para mim! Eles sabem que eu mordo-me por gatos mortos. (Abraça-se ao gato morto, beija o gato morto.) Senhor conde, uma palavra! Diga que a Rússia, a santa Rússia, a nobre Rússia, a Rússia nossa ama –não há-de bater na Inglaterra, nem fazer-nos mal, nem assustar-nos. Diga-o, senhor conde! Veja: rojo a minha cabeleira no chão, verto as minhas lágrimas – apertando contra mim o meu gato morto!

– Fora daqui, covarde, ou trabalha o chicote – diz Schuvalloff.

– Eu saio, eu saio, excelentíssimo senhor. Vossa excelência mande; eu saio, eu saio aos recuões. Mas primeiro permita, dê licença, é um instante... (Atira-se-lhe aos pés e põe-se com humildade a lamber-lhe o verniz das botas.)

Que me dizem a este meio de fazer polémica – com um ministro da Inglaterra? O Echo, jornal de paz, procede de outro modo. Traduzo um dos seus últimos períodos:

«Os estudantes de medicina de Londres, que têm sido tão conspícuos em todas as manifestações belicosas dos últimos dias, escrevem uma carta ao Echo prevenindo-nos de que virão a esta redacção dar-nos uma correcção que, segundo eles, merece a maneira como temos castigado esta importuna e imbecil intervenção dos senhores estudantes nos meetings bélicos. Pois bem, prevenimos apenas os senhores estudantes disto: que há, empregadas na redacção e imprensa do Echo, cento e cinquenta pessoas, que a provisão de bengalas é sólida e que a vontade é boa. Que suas senhorias venham quanto antes.»

O Echo é um dos melhores e mais acreditados jornais de Londres. Naturalmente, os grandes jornais, os jornais-personagens, o Times, o Daily Telegraph, o Daily News, o Standard, o Morning Post, conservam uma compostura mais digna, e nunca perdem a linha majestosa. Mas tudo o que a ironia, o sarcasmo, a alusão pérfida, podem produzir de mais acerado é trocado entre eles numa prosa correcta e grave. São gentlemen que se trocam num salão injúrias bem redigidas, com uma atitude cortês, o fel no coração e o sorriso nos lábios. Nunca vi tanto ódio – sob tanta polidez.

 

 

XIV

Londres, 28 de Março [de 1878]

 

Lord Derby, e com ele toda a Inglaterra, acaba de fazer uma descoberta imensa: Lord Derby descobriu a Grécia. Desde a renovação da questão do Oriente, há dois anos, a Grécia, por um acordo tácito das potências, e com grande alegria da Rússia, tinha sido mantida numa imobilidade obrigatória, nos últimos planos, sem que ninguém parecesse reconhecer a justiça dos seus direitos, ou pensar na utilidade da sua intervenção. Todas as províncias sujeitas à Porta e todos os estados tributários tinham sido autorizados ou chamados a cooperar, pela insurreição ou pela guerra aberta, na destruição do poder otomano. A Rússia tinha ajudado a Sérvia, animado e lisonjeado o Montenegro, e especialmente apelado para a România: todos estes principados cristãos deviam naturalmente, em justificação do seu patriotismo e em demonstração da sua fé, ajudar a grande cruzada da libertação dos cristãos empreendida pelo czar. Acontece, porém, que a Grécia tinha províncias suas, pela religião e pela raça, sob o domínio turco, e ninguém parecia desejar que ela tentasse pelos seus correligionários o que estavam tentando os principados. E todavia o Epiro, a Tessália, a Macedónia, são províncias gregas e cristãs, que a Porta explora e tiraniza, como a Bulgária ou como a Bósnia. Para libertar as suas populações, em idênticas condições, a Sérvia, o Montenegro, a România, tinham tomado as armas com admiração da Europa, e apenas alguns vagos protestos platónicos rosnados em surdina pela Áustria. Mas apenas a Grécia mostrou um desejo de libertar as suas províncias os protestos vieram de todas as partes, muito precisos, muito impacientes: a Rússia ficou indignada, a Áustria descontente, a Inglaterra nervosa.

Às primeiras veleidades belicosas do ministério de Atenas todos os representantes das potências, com uma rara uniformidade, correram a impor-lhe uma inacção forçada. Quando o Governo grego, arrastado pela pressão iniludível do sentimento popular, fez mobilizar o pequeno exército grego, as grandes potências ameaçaram-na claramente de a deixar exposta as vinganças da Porta, e de não impedir o bombardeamento do Pireu pela esquadra de Hobbart Paxá. Quando num momento de impulso patriótico o Governo grego, indiferente às advertências da Europa, ou não as julgando sinceras e apenas pró-forma, fez avançar tropas na Tessália, as potências obrigaram-na, quase sob pressão de um ultimato, a fazer retroceder o exército e dar explicações ao sultão. A Grécia roeu o seu freio e limitou-se a manter na Tessália e no Epiro uma pequena insurreição inflama-tória, para não deixar morrer o fogo patriótico e para dar ocupação aos temperamentos mais exaltados.

Mal sabia a Grécia, tão descontente então, que estava nas vésperas de ser chamada pela Inglaterra a representar um grande papel na questão do Oriente; ou, se o sabia, com a sua finura habitual esperava, fazendo um rosto triste que iludiu os mais astutos, a ocorrência gloriosa. Ela não tardou a aparecer sob a forma da proposta de Lord Derby na sua grande campanha diplomática. Opor ao pan-eslavismo o helenismo é sem dúvida um belo pensamento, e a oposição impaciente e quase rancorosa que a Rússia fez à proposta inglesa mostra, só por si, como ela julgou a grande obra eslava profundamente ameaçada pela aparição em cena deste novo factor, a Grécia. Lord Derby jogou uma brilhante carta: fazer entrar a Grécia no congresso, mesmo sem voto, era ipso facto levantar no congresso a questão grega: a Rússia, mesmo a seu pesar, não poderia opor-se a que a sua obra de libertação fosse completada, restituindo-se à Grécia a Macedónia, a Tessália e o Epiro, Creta, etc. Quem se bateu para libertar os cristãos da Bulgária não pode opor-se a que se libertem os cristãos das outras províncias.

Com estes novos territórios, tão férteis, a Grécia ganha uma força inesperada e torna-se uma potência forte.

Os cristãos do ex-Império Turco vêem-se assim colocados entre a influência de dois países da sua religião: mas um, a Rússia, despótico e opressivo – outro, a Grécia, constitucional e liberal; um puramente militar, outro exclusivamente comercial; um pensando em conquistar, o outro em enriquecer. E naturalmente as simpatias dos cristãos irão para a Grécia; esta anexação moral de simpatias transformar-se-á mais tarde em anexação material de territórios. A Bulgária cristã do rito grego penderia fatalmente para a Grécia. Que daqui a anos reapareça a questão do Oriente sob a forma mais resumida e mais directa de saber a quem em definitivo deve pertencer Constantinopla – e apresenta-se uma solução natural, pacifica, que é não deixar Constantinopla nem aos Russos nem aos Ingleses, e dá-la simplesmente aos Gregos, seus donos por direito histórico. E aqui temos um forte império helénico, fazendo barreira as tendências invasoras do império eslavo.

Esta solução não poderia levantar oposição no povo russo, porque o seu interesse na questão do Oriente é todo de religião. E que maior satisfação que ver os gregos em Constantinopla e Santa Sofia catedral do rito grego? O povo na Rússia não é pan-eslavista; o pan-eslavismo é um fanatismo puramente militar do estado-maior e de alguns oficiais exaltados: o povo o que deseja é mais pão, menos tributo, uma constituição talvez (e isto os mais ilustrados), e que os seus correligionários não estejam sob o domínio odiado do Turco: que a cruz grega volte a dominar nas mesquitas de Constantinopla, e todas as aspirações do povo russo, em matéria de política externa, estão amplamente realizadas.

Por seu lado, a Áustria não poderia senão felicitar-se de ver junto às suas fronteiras um reino helénico: as suas províncias eslavas não correm risco de tender então a unir-se .ao império eslavo, o que seria inevitável se em lugar dos Gregos fossem os Russos que se viessem estabelecer junto dela. A Hungria, para quem o ódio do pan-eslavismo é uma tradição sagrada, veria com prazer os Gregos em Constantinopla. A Alemanha não poderia opor-se a uma combinação que impede a Rússia, sua aliada presente e sua inimiga provável, de se estender até ao Mediterrâneo. As potências ocidentais regozijar-se-iam de ver dominar nos Dardanelos uma nação comercial, que não impediria, como a Rússia, o tráfico do mar Negro, antes o facilitaria. E a Inglaterra, tendo feito o império helénico, obtinha o resultado mais agradável e mais seguro; não podendo ela mesmo estabelecer-se nos Dardanelos, colocava lá uma potência amiga e aliada, sua própria obra, governada por uma imitação da sua constituição, reconhecida ao benfeitor, facilmente dominável no caso de ingratidão, sem ambições na Índia, nem interesses no canal de Suez, e que seria no Oriente uma espécie de seu mordomo.

A oposição, portanto, só pode vir do czar, da corte e do partido militar na Rússia. Para esses, o estabelecimento de um império grego é a destruição das suas ambições, do seu ideal político e histórico, do que eles chamam a sua missão; seria além disso uma diminuição considerável na autoridade do czar; hoje o imperador é papa; mas que amanhã o patriarca do rito grego se estabeleça em Constantinopla, capital do império Grego, e o sacerdócio moscovita, em breve o povo mesmo, o reconhecerá como seu chefe espiritual. Portanto, o czar vai opor-se à entrada da Grécia no congresso com todas as obstinações, todas as manhas, todos os equívocos, todos os subterfúgios que constituem a perigosa ciência dos diplomatas russos; se assim não obtiver o seu fim, embrulhará a questão de modo que o congresso se não reúna; e em último caso apelará para as armas, porque prefere uma nova guerra, mesmo no estado de fraqueza e de pobreza das suas finanças, a consentir que se agite sequer a questão do império helénico. Por isso eu penso que a resposta de Lord Derby, hábil, racional, útil, é no fim o meio de apressar a crise e de trazer a Inglaterra e a Rússia a um conflito; e ainda que se dêem outras razões de rompimento, no fundo, se a Rússia tira de novo a espada um dos seus fins será impedir uma extensão de território da Grécia, núcleo e base de um império helénico.

Mas reunir-se-á esse famoso congresso? As probabilidades diminuem todos os dias: o que o adia hoje, e que talvez o impeça mais tarde, é aparentemente uma simples questão de forma; a Inglaterra pretende que o congresso tenha direito a discutir todos os artigos do tratado de paz russo-turco. A Rússia recusa esta larga liberdade de discussão. Para facilitar uma conciliação, a Inglaterra pede ao menos que a Rússia declare que todos os artigos do tratado estarão sujeitos a discussão, ainda que praticamente estabeleça que alguns não serão discutidos; a Rússia recusa a fazer mesmo esta declaração. Em tais condições, a Inglaterra não vai ao congresso. As razões de Lord Derby são óbvias: se os três imperadores estão de acordo, se a Áustria e a Alemanha estão decididas a aprovar o tratado, se o voto da Itália pertence, como é provável, igualmente à Rússia, que iria a Inglaterra fazer ao congresso? Pôr a sua assinatura num documento que fere os seus interesses? Fazer um simples protesto platónico, que seria como a confirmação pública da sua fraqueza e do seu isolamento? Mais vale, portanto, não ir ao congresso e tomar medidas decisivas para que, sejam quais forem as circunstâncias do futuro, os dois grandes interesses britânicos na Turquia europeia, Constantinopla e Galípoli, sejam conservados intactos e inatacados.

Nestas recusas sucessivas da Rússia a toda a conciliação, vê-se bem a intenção que a domina: é impedir a reunião do congresso, com receio de que, além das objecções ao tratado, apareça a terrível questão helénica, sob a protecção da Inglaterra. E da parte da Inglaterra todo o esforço é fazer introduzir esta questão no congresso. A Grécia é, penso, neste momento um pomo de discórdia. E a questão do Oriente toma enfim uma fase mais clara e mais definida: em substituição ao Império Turco a Inglaterra quero estabelecimento de um império grego, que seja uma barreira histórico-militar contra a Rússia; a Rússia opõe-se com todas as suas forças a esta solução ajudada pelos dois imperadores seus aliados, que são movidos por simpatia de corte a corte, em desprezo dos seus verdadeiros interesses nacionais.

Mas que fazem as duas outras grandes potências? A Itália hesita, a França cala-se. Se estas duas nações latinas se decidissem a ajudar a ideia inglesa, teríamos assim duas formidáveis coalizões em face uma da outra: de um lado, a Rússia, a Alemanha, a Áustria, espécie de Santa Aliança dos três imperadores autoritários; do outro, a Inglaterra, a França, a Itália, os três estados livres e democráticos: o Oriente contra o Ocidente: o Ocidente querendo o império helénico em substituição do Turco, e o Oriente querendo a partilha do Império Turco entre si, sendo a maior parte destinada a formar uma dependência moscovita. Não é improvável que a questão do Oriente, num certo tempo, tome estas formidáveis e dramáticas proporções.

Mas serão os Gregos gente para constituir e formar um império? Até aqui os Gregos têm sido os mais absurdos políticos da Europa: o Governo de Atenas é uma farsa que About pintou, com muito espírito e muita verdade, como uma das grandes bambochatas constitucionais do século. As suas finanças são deploráveis. A sua administração uma balbúrdia.

Mas a isto pode-se dizer que aos Gregos tem faltado uma oportunidade de revelar as suas qualidades industriosas, sagazes, activas, expansivas. O território que possuem é o mais árido e o mais estéril da Europa. Sem agricultura e sem indústria, as forças vitais emigram e vão levar a outras terras a sua perseverança e a sua habilidade. Os gregos mais ricos, mais prósperos, a alta burguesia grega que tem o capital e a iniciativa não está na Grécia; está em Londres, em Berlim, em Viena, em Frankfürt, em Constantinopla, em Sampetersburgo e em Paris. Dê-se-lhe um território fértil, uma cidade como Constantinopla que seja um grande entreposto de comercio, minas a explorar, uma frota de transporte, e não há dúvida que a habilidade comercial do grego, a mais fina raça do Levante, poderia constituir uma nação próspera. A política, a administração, as finanças, não seriam como agora governadas pelos intrigantes de Atenas, mas pelas verdadeiras capacidades gregas que neste momento estão espalhadas pela Europa à testa de grandes firmas comerciais e industriais. E lentamente a experiência da própria força, a responsabilidade de governar uma grande extensão de território, uma comunicação mais directa com a civilização ocidental, a necessidade de se organizarem para se fortalecerem, daria ao povo grego aquela seriedade política e aquela ciência social que fazem os países prósperos.

 

Estão lembrados talvez do desastre sucedido há anos no navio inglês Captain, que de repente, por um tempo quase sereno, na baía de Biscaia, se voltou, como um simples caíque do Tejo, destruindo mais de quatrocentas vidas. Um desastre quase igual acaba de suceder a uma admirável fragata de guerra, a Eurídice, que voltava das Antilhas Inglesas com mais de trezentas pessoas a bordo. Ao avistar a praia de Inglaterra, a distância de tiro da ilha de Wight, navegando com todo o pano, é de repente apanhada por um furacão de neve, embrulhada, e em cinco minutos desaparece no fundo do mar, arrastando todas as vidas num furioso turbilhão de água.

Apenas duas pessoas se salvaram. Uma tal catástrofe aterra pela quantidade de existências perdidas e pela facilidade com que foi produzida. Uma fragata de primeira ordem, que em tempo quase sereno navega a todo o pano, parece um maquinismo indestrutível ou, pelo menos, oferecendo uma resistência eficaz; pois bem, levanta-se um sopro de vento, embrulha-se a vela e mergulha-a no fundo do mar, com a rapidez com que uma criança afunda com a mão um barquinho de cortiça numa bacia de água!

O furacão de neve foi instantâneo e fugitivo como um sopro que apaga uma vela. As pessoas que passeavam na esplanada de Ventuar tinham visto a fragata passando a todo o pano, juntamente com um brigue e uma pequena escuna. De repente abate-se o turbilhão de neve de vendaval. A gente tem apenas tempo de segurar os chapéus e de se abafar nos paletós. Quando, passado o furacão, tornam a olhar para o mar, vêem apenas o brigue e a escuna, seguindo tranquilamente: a fragata tinha desaparecido. Nem a ponta de um mastro era visível: o mar, um pouco grosso, balançava-se tranquilamente e trezentas pessoas estavam agonizando debaixo de água.

Que trezentos homens sãos, fortes e alegres, voltando ao país, à família, estejam à vista das suas casas; que passe um sopro de neve e que em alguns segundos os arroje para o fundo do mar, que o céu clareie e que o Sol imediatamente continue a brilhar, como se nada se tivesse passado – é lúgubre!

 

Tinha escrito estas linhas, e ia falar-lhes de algumas curiosas novidades literárias e artísticas, quando notícias inesperadas e surpreendentes me forçaram a voltar de novo à política.

Em primeiro lugar, a Rússia deu ontem a sua resposta definitiva à Inglaterra: não admite a livre discussão da totalidade ao tratado de paz e declara que, neste ponto, o seu interesse e a sua honra não lhe permitem nenhuma concessão. Portanto, o congresso não se reúne.

Em segundo lugar, Lord Derby deu hoje a sua demissão. Esta demissão, tantas vezes anunciada e contradita em ocasiões em que oferecia uma certa lógica, veio quando parecia quase absolutamente impossível.

Ninguém o sabia até ao momento em que, entrando ontem na Câmara dos Lordes, Lord Derby não se sentou no banco dos ministros e foi ocupar um lugar nos bancos da oposição. As suas explicações foram breves e feitas com uma solenidade triste: disse que até àquele dia estivera na mais estreita concordância de ideias com os seus colegas, mas que, tendo eles tomado ultimamente resoluções que lhe pareciam contrárias aos interesses do país, ele vira-se forçado, com mágoa, a separar-se dos seus colegas. Estas palavras causaram na Câmara uma inquietação extrema: que resoluções eram essas? Se Lord Derby, que fora no gabinete o sustentáculo da paz, se retirava, é que essas resoluções que o tornavam incompatível com os seus amigos tinham o carácter de um principio da guerra. Que seria? Estaria a esquadra em Constantinopla? Ter-se-ia tomado Galípoli?

Lord Beaconsfield, erguendo-se, pôs um termo às incertezas: começou por fazer o que se poderia chamar a oração fúnebre de Lord Derby: falou na amizade que durante trinta anos de vida pública o ligara a Lord Derby e que ele considerava uma das felicidades e honras da sua carreira; fez, com traços à romancista, como romancista que é, o retrato moral de Lord Derby; e as suas palavras demonstravam uma mágoa tão grave daquela separação e uma estima tão elevada pelo estadista que Lord Derby, sob uma emoção irreprimível, pôs as mãos sobre o rosto e soluçou. A Câmara, impressionada, assustada, não sabia se aquelas lágrimas eram pela perda dos seus amigos, se pelas desgraças que antevia ao seu país. Enfim, Lord Beaconsfield declarou que a resolução tomada e que tinha determinado a demissão de Lord Derby fora a chamada às armas dos corpos de reserva.

Desapontamento geral! O quê? Por uma simples medida preventiva, Lord Derby, o chefe da mais ilustre casa tory, separava-se dos tories? E que falta de lógica! Não fora Lord Derby que pelas suas exigências, aliás justificadas, fizera abortar o congresso? Podia ele pois reprovar que o Governo tomasse as precauções que exigiam logicamente os interesses ingleses desde que o congresso falhara? Constituído de boa ou má fé, o congresso era o único meio de trazer uma solução pacífica às questões pendentes, que, tendo ela falhado, só podem ser decididas pelas armas. Como é que Lord Derby, depois de ter pela sua política desarranjado essa solução pacífica, se opõe a que se adoptem prevenções para o caso do conflito armado?

A Inglaterra só podia defender os seus interesses ou com razões no congresso ou com canhões no campo de batalha: Lord Derby não quer ir ao congresso das razões e zanga-se porque o Governo, em consequência disso, se prepara a carregar as peças. Por que modo pretende ele então defender os interesses britânicos, de que ele há três anos é o porta-voz e o arauto? Nem pelo direito, nem pela força. Como então?

Lord Derby é um homem muito prático para cair numa tal inconsequência. Nem é de supor que vendo diante de si a crise que ele provocou, com razão, pela sua política queira fugir, por timidez e excesso de temperamento pacifico, às responsabilidades que ela traz. Há portanto outra coisa: isto é, a simples chamada da reserva não é toda a razão da demissão de Lord Derby. Se ele se separa dos seus colegas, é porque os seus colegas decerto decidiram alguma outra coisa, bem mais definitiva que uma simples precaução. O quê? That is the question. É o que se saberá dentro de dias.

En attendant, o esquema do congresso, do império helénico, etc., todas as belas concepções diplomáticas e geográficas de Lord Derby estão perdidas, ficam nos cartões do Foreign Office. E o que resta é Lord Beaconsfield, com o seu ardente desejo de guerra, livre dos embaraços pacíficos que punha Lord Derby, apoiado pela corte, que também deseja a guerra, e sustentado à outrance pela parte dos tories que não têm repouso nem alegria enquanto se não trocarem entre Ingleses e Russos os primeiros tiros no Bósforo.

 

Esta carta já vai longa. Mas preciso contar-lhes um pequeno facto picante de que falam aqui os jornais da sociedade, e que, sendo para nós apenas engraçado, tem produzido nos Ingleses um furor sombrio. Trata-se, como quase sempre, do príncipe de Gales. Sua alteza, a semana passada estando em Paris, fez uma visita ao Figaro. Até aqui nada de extraordinário. Querendo dar uma tal honra a um jornal francês, escolheu um jornal das cocotes e dos apostadores de corridas, o órgão oficial da vida escandalosa. Até aqui nada de criminoso. A visita foi feita às duas horas da noite, e nas salas do Figaro estavam os artistas mais estroinas de Paris e algumas lindas actrizes que, além da arte dramática, professam acessoriamente o amor livre por preços conhecidos no Bulevar. Até aqui nada de violento. Houve uma ceia, nada mais natural. Mas foi ao fim da ceia que se deu o pequeno facto que causa nos Ingleses desespero soturno; o elegante redactor Francis Magnard ergueu-se e, de copo em punho, propôs uma saúde à rainha Vitória: é do estilo inglês que esta saúde seja seguida de aplausos e é da etiqueta que o sinal dos aplausos seja dado pela pessoa mais respeitável. A pessoa mais respeitável que nessa ocasião bateu as palmas de cerimónia foi Mademoiselle Theo, uma das actrizes dos Buffos, a quem não julgo fazer injúria chamando-lhe uma esbelta e ilustre prostituta. O príncipe de Gales, numa espirituosa resposta, agradeceu a Mademoiselle Theo e a outras cocotes e folhetinistas a honra que faziam em beber às duas horas da noite, na redacção do Figaro, à saúde de sua mãe, a rainha de Inglaterra.

Como vêem é apenas picante – mas há ingleses severos a quem tem caído o cabelo de pensar neste toast singular.

Um jornal de Londres observa que se têm feito toasts à rainha de Inglaterra nos lugares mais extraordinários, no alto das Pirâmides, nas ruínas de Tebas, nos sertões de África, nos templos de Pequim, no Pólo Norte, nos juncais do Ganges, no alto do Calvário, sobre o Niagara, nas cabanas dos cafres, nos mosteiros do Líbano; mas que é a primeira vez que se faz num lupanar! Lupanar, acho severo para o Figuro. Mas que é um lugar esquisito para uma saúde tão respeitável – é.

 

 

XV

Londres, 21 de Maio [de 1878]

 

Há entre os provérbios diplomáticos um que diz: «Quando a França está descontente, a Europa está em perigo.» Pode-se dizer que quando a França está feliz, a Europa está tranquila: desde que a Exposição se abriu, e que a França celebra em Paris a sua grande festa de ressurreição, toda a Europa tem um tom mais calmo; corre uma aragem consoladora de paz e de conciliação, a mesma actividade de armamentos afrouxou e os homens de guerra e de rapina, os Bismarcks e os Gortschakoffs, aproveitam este intervalo sereno para curarem os seus reumatismos. Exala-se da Exposição, parece, uma emanação de concórdia, de trabalho, de civilização, que enche os espíritos de um salutar desejo de fraternidade e de paz.

As espadas meio saídas recaem na bainha, as vozes irritadas de desafio adoçam-se em explicações plácidas, o czar humaniza-se, a Inglaterra desfranze a carranca e todo o mundo respira um vago aroma de folhas de oliveira, símbolos de paz. E a Exposição de Paris, é essa colossal acumulação de ciência, de arte, de indústria, que espalha em redor, na Europa, um influxo santo de serenidade. Paris, no fundo, é a grande capital da civilização; o seu messianismo é incontestável; o que ela pensa é-nos dogma, o que ela quer é-nos lei: o mundo instintivamente obedece-lhe: há nela não sei que graça magnetizadora, que forte ascendência espiritual a que se não resiste: a humanidade civilizada tem por ela um vago amor e deixa-se docemente tiranizar: se ela nos impõe a idiota canção C'est l'amant d’Amanda, protestamos primeiro, rimos depois. Terminamos todos por a cantar; se ela nos impõe uma ideia social, podemos um momento hesitar, acabamos todos por a servir: o que ela cria tem a nossa admiração certa, ou seja Offenbach ou seja Gambetta; ela exerce a fascinação de certos olhos de mulheres, cuja luz convence; hoje Paris quer a paz, e a Europa já não se atreve a fazer a guerra.

Aqui, pelo menos, não se fala senão da Exposição: a ordem do dia é ir a Paris; os indivíduos que ainda murmuram algumas frases sobre a Bulgária, o Tratado de San Stefano, Constantinopla, etc., parecem obsoletos e caturras. Quem se ocupa do eslavo? Que significam essas antigualhas lúgubres? O que importa é chegar a Paris, saltar a um fiacre e abalar para o Trocadero!

E o que atrai a Paris não é tanto admirar as maravilhas que o mundo lá reuniu, como ver a valente cidade outra vez feliz e triunfante; ver a formosa cabeça da França de novo levantada ao alto, depois de ter estado durante oito anos voluntariamente curvada para o chão. Há oito anos! Neste mesmo mês de Maio, franceses bateram-se contra franceses numa guerra feroz e fanática, sob os frios olhares dos Prussianos, que de redor, de braços cruzados, esperando sossegadamente os seus cinco milliards, viam, cofiando as barbas doutorais, Paris a arder!

E sete anos depois, pagas todas as dívidas, libertado todo o território e reedificadas todas as ruínas, replantados todos os campos, a França está bastante de posse de si mesma, bastante rica, com vagares bastantes para dar ao mundo, na sua capital embelezada, a maior festa de civilização deste século. Valente nação!

Diz-se que toda esta forte ressurreição é devida à república. Bom Deus, sejamos justos, é devida à França! É o seu imenso poder recuperativo, o seu génio, a sua laboriosidade, a sua ordem, a sua economia, a sua sábia previdência, que a habilitaram, depois de um curto espaço de recolhimento e de trabalho, a reaparecer à frente da civilização, mais forte, mais rica, mais inteligente, outra vez la belle France. E aparece-nos com uma feição que lhe não conhecíamos – nós os que fomos educados quando já o império estava feito – aparece-nos grave e alegre. Não perdeu nada de verve, e ganhou muito de reflexão: abandonou sobretudo um dos seus defeitos irritantes, a jactância – aquele alarde fanfarrão, retorcendo as guias e de mão na cinta, que fazia propor aos mais práticos, aos mais moderados, como Emile de Girardon, que não se batessem os Prussianos a tiro, mas a coronhadas, por desprezo!

As felicitações da imprensa inglesa à França pela sua aleluia têm sido nobres, fraternais, profundas. A França tem-se enternecido. Mas o que a lisonjeou, o que a electrizou, foram as belas palavras do príncipe de Gales no banquete que lhe ofereceram em Paris os expositores ingleses. Respondendo à saúde que lhe fizera Lord Granville, dirigiu-se ao ministro das Obras Públicas de França, e disse-lhe:

«Diga à França que a amo de todo o coração, que ninguém segue mais comovido a sua prodigiosa prosperidade e que a Inglaterra se regozija em concorrer para o esplendor da Exposição, feita no país que sobre todos estima, e a quem tanto deve. Estas frases foram cobertas por um hurra prodigioso dos trezentos expositores ingleses que se sentavam no banquete, que eram todos celebridades da aristocracia, da ciência, da arte, da indústria – e no outro dia ecoavam por toda a França. A alegria dos jornais republicanos foi imensa: em artigos comovidos, todos agradeceram as palavras mais amigas, e as primeiras que um príncipe estrangeiro dirige à França depois dos seus desastres. O Paris Journal, como um homem que a emoção sufoca e que põe todo o seu reconhecimento numa exclamação curta e balbuciada, imprimiu apenas em caracteres grossos: Merci, monseigneur!

O facto é que o príncipe de Gales é hoje um dos homens mais populares da França. Paris adora-o; sem lhe fazerem as ovações, que a gravidade republicana não comporta, cercam-no, onde quer que vá, de uma simpatia comovida. Em Inglaterra mesmo, a satisfação pelo discurso do príncipe é grande. No fundo, se a Inglaterra tem uma simpatia, digamos um fraco, é a França. E ama-a desinteressadamente: a Inglaterra é um pais de raciocínio muito prático para sonhar quimeras, e supor que a França, porque um príncipe inglês ergue o seu copo de champanhe e lhe dirige em francês muito parisiense algumas palavras de simpatia pessoal no calor de um bom jantar – que a França vai, toda reconhecida, apoiar a Inglaterra nas suas pretensões ou nos seus interesses políticos.

A Inglaterra, por exemplo, na questão do Oriente, não conta com a França; não espera nada dela, em circunstância alguma, a não ser naturalmente aquele alto apoio moral, a simpatia de espírito que se devem duas grandes nações que são no mundo responsáveis pelo progresso humano. O amor da Inglaterra à França (que se tem sempre desenvolvido desde 1830, mas que tomou uma feição mais íntima desde a queda do infecto império) tem bases seguras, com raízes no mesmo temperamento das duas nações, e é a garantia, creio, de uma longa paz entre elas. Em primeiro lugar estimam-se como dois velhos combatentes leais, que foram um para outro causa de grande glória: se a Inglaterra expulsou a França da Índia, a França promoveu e realizou a expulsão dos Ingleses da América; se Napoleão, durante dez anos, teve, através do continente, a Inglaterra em perpétuo échec, o leão britânico tomou a sua desforra em Waterloo; depois foram aliados na Crimeia e aliados na China. Mesmo combatendo-a, ou recusando-lhe o seu auxílio, a Inglaterra i5ez à França impagáveis serviços: em Waterloo desembaraçou-a de um tirano insensato; em 1870, deixando consumar o grande desastre, desembaraçou-a para sempre dos Bonapartes. Terminado o período da guerra, as relações comerciais das duas nações vizinhas cresceram a ponto que, sem uma, a outra faria bancarrota. O Inglês, que não sabe língua nenhuma, só condescende em aprender o francês; é por isso talvez que é a nação que mais visita; é raro o inglês que não tenha percorrido a França; socialmente, Paris é quase tanto a sua capital como Londres; se em Paris encontra a vivacidade, o brilho, a verve da vida que o seduz, na província encontra as sólidas qualidades que admira e sem as quais não concede a sua estima – as qualidades de trabalho, de virtude doméstica, de perseverança e de probidade. A França é o jardim de Inglaterra: e lá que o negociante vai descansar do tráfico da City, o fidalgo da monotonia da vida do campo, o professor dos trabalhos da escola, o clérigo da secura das missões. É a única nação que o baixo povo estima; french, frenchman, são as palavras com que a população designa o estrangeiro amável; quando as ruas, nalguma gala nacional, se empavezam e se adornam, a única bandeira europeia que se vê é a heróica tricolor; nos livreiros das mais pequenas vilas se vendem livros franceses. O inglês tem um reconhecimento profundo ao pais que produz o vinho de Borgonha; a inglesa é grata à terra que lhe manda as sedas de Lião.

A gente menos educada, que não sabe qual é a forma de governo que rege a Espanha ou a Itália, está ao facto inteiramente da moderna história da França.

Nas classes ilustradas, a história e a literatura francesas são tão familiares como a inglesa. Em todos os grandes jornais há diariamente um artigo de fundo sobre os negócios interiores da França; a campanha contra o ministério Broglie, o ano passado, era dirigida pelo Times. E a amizade da Inglaterra pela França é tão forte que lhe faz sacrifícios; há um ano que a Inglaterra é aconselhada, instada, persuadida, tentada a que ocupe o Egipto: e porque tem resistido? Para não ferir susceptibilidades francesas.

O Daily Telegraph disse num artigo memorável: «Percamos todos os interesses, mas não desagrademos aos Parisienses.» E foi para agradar aos Parisienses que a Inglaterra mandou à Exposição o que em arte e indústria tinha de melhor, do passado e do presente. E a Inglaterra certamente que mais concorre para o esplendor da Exposição, e a Inglaterra inteira, como dizem os grandes jornais, falou pela boca do príncipe de Gales.

 

Têm sido singularmente lamentáveis os sucessos do Lancashire, onde milhares e milhares de operários tecelões estão em greve. Os motivos desta greve são complicados e prendem-se com uma difícil questão de economia política. Em presença da grande depressão no comércio dos algodões e dos tecidos, os operários entendem que é necessário produzir menos para que os grandes depósitos existentes se esvaziem e o equilíbrio do mercado se restabeleça: os patrões entendem que é necessário produzir na mesma proporção anterior, mas que é indispensável baixar o preço da mão-de-obra. Esta desinteligência produziu uma greve, a maior que se tem dado em Inglaterra há cinquenta anos. Greve cuja especialidade bem triste foi a de que esteve próxima a tomar o aspecto de uma revolta. Os operários de Lancashire passaram sempre por serem os mais inteligentes, os mais sérios, os mais honestos, da grande população obreira da Inglaterra: numa semana, num momento de irritação, de vingança ou de desesperança, perderam esta nobre reputação. Hoje os jornais sérios consideram-nos «como a mais infecta populaça». Que se passou? Que os operários, em lugar de discutirem tranquilamente (como pediam jornais sérios) o meio de conciliar as suas divergências com os patrões, preferiram fazer uma pequena insurreição local com todos os incidentes típicos – janelas quebradas, polícia apedrejada, etc.

Ao princípio, isto pareceu apenas um desabafo de temperamento exaltado: esperou-se que a razão voltaria, com ela a tranquilidade. Mas ou que a impassibilidade dos patrões diante desta manifestação de força os irritava; ou que pequenas desordens locais lhes dessem o apetite de uma verdadeira insurreição provincial; ou que uma multidão imensa de populaça vadia e ociosa se viesse reunir, na esperança dos proveitos que traz a anarquia, à massa mais séria dos operários, o facto é que o que começara por uma algazarra ia terminando numa revolução.

As janelas quebradas levaram às portas arrombadas; depois de algumas pedradas atiradas à polícia vieram os tiros dados contra as tropas – e por todo o distrito que cerca Manchéster, durante três dias, reinou uma anarquia que lembra as clássicas guerras civis de Navarra.

Manufacturas incendiadas, casas destruídas, lojas de bebidas saqueadas, patrões perseguidos a tiros, reclamações forçadas de dinheiro e de provisões, nada faltou para dar ao distrito de Manchéster o aspecto atroz de uma província em poder das hordas de Saballs ou de Dorregaray. No entanto, a feição típica deste sucesso é que os jornais radicais e liberais não só não se indignaram, mas nem sequer lamentaram: limitaram-se a contar secamente os ultrajes cometidos. Das associações operárias não saiu um único protesto contra estas desordens. E não se pode negar que a insurreição tenha nas classes radicais uma vaga, uma imponderável simpatia.

Tropas rapidamente concentradas puseram, naturalmente, fim a este estado tumultuoso, e os patrões sentiram logo a necessidade de entrar em conciliação com os operários, que montam a mais de cem mil.

Se esta conciliação se não fizer, creio que veremos graves acontecimentos. E muito bonito realmente falar na ordem, no respeito à propriedade, no sentimento de obediência à lei, etc., mas quando milhares de homens vêem a sua família sem lume na lareira, sem um pedaço de pão, os filhos a morrer de miséria, e ao mesmo tempo os patrões, prósperos e fartos, comprando propriedades, quadros, apostando nas corridas e dando bailes que custam centos de libras, bom Deus, é difícil ir falar aos desgraçados de regras de economia política e convencê-los que, em virtude dos melhores autores da ciência económica, eles devem continuar por alguns meses mais a comer vento e aquecer-se à cal das paredes!