A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa,--justamente na semana em que ele regressara da sua viagem à África Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admirável datava de Lisboa do ano remoto de 1867. Foi no Verão desse ano, uma tarde, no café Martinho, que encontrei, num número já amarrotado da Revolução de Setembro , este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam.
Os temas («os motivos emocionais», como nós dizíamos em 1867) dessas cinco ou seis poesias, reunidas em folhetim sob o título de LAPIDÁRIAS, tinham logo para mim uma originalidade cativante e bem-vinda. Era o tempo em que eu e os meus camaradas de Cenáculo, deslumbrados pelo Lirismo Épico da Légende des Siècles , «o livro que um grande vento nos trouxera de Guernesey» --decidíramos abominar e combater a rijos brados o Lirismo íntimo, que, enclausurado nas duas polegadas do coração, não compreendendo dentre todos os rumores do Universo senão o rumor das saias de Elvira, tornava a Poesia, sobretudo em Portugal, uma monótona e interminável confidência de glórias e martírios de amor. Ora Fradique Mendes pertencia evidentemente aos poetas novos que, seguindo o Mestre sem igual da Légende des Siècles , iam, numa universal simpatia, buscar motivos emocionais fora das limitadas palpitações do coração--à História, à Lenda, aos Costumes, às Religiões, a tudo que através das idades, diversamente e unamente, revela e define o Homem. Mas além disso Fradique Mendes trabalhava um outro filão poético que me seduzia--o da Modernidade, a notação fina e sóbria das graças e dos horrores da Vida, da Vida ambiente e costumada, tal como a podemos testemunhar ou pressentir nas ruas que todos trilhamos, nas moradas vizinhas das nossas, nos humildes destinos deslizando em torno de nós por penumbras humildes.
Esses poemetos das LAPIDÁRIAS desenrolavam, com efeito, temas magnificamente novos. Aí um Santo alegórico, um Solitário do século VI, morria uma tarde sobre as neves da Silésia, assaltado e domado por uma tão inesperada e bestial rebelião da Carne, que, à beira da Bem-aventurança, subitamente a perdia, e com ela o fruto divino e custoso de cinquenta anos de penitência e de ermo: um corvo, facundo e velho além de toda a velhice, contava façanhas do tempo em que seguira pelas Gálias, num bando alegre, as legiões de César, depois as hordas de Alarico rolando para a Itália, branca e toda de mármores sobre o azul o bom cavaleiro Percival, espelho e flor de Idealistas, deixava por cidades e campos o sulco silencioso da sua armadura de ouro, correndo o mundo, desde longas eras, à busca de S. Graal, o místico vaso cheio de sangue de Cristo, que, numa manhã de Natal, ele vira passar e lampejar entre nuvens por sobre as torres de Camerlon: um Satanás de feitio germânico, lido em Espinosa e Leibnitz, dava numa viela de cidade medieval uma serenada irónica aos astros, «gotas de luz no frio ar geladas»... E, entre estes motivos de esplêndido simbolismo, lá vinha o quadro de singela modernidade, as Velhinhas , cinco velhinhas, com xales de ramagens pelos ombros, um lenço ou um cabaz na mão, sentadas sobre um banco de pedra, num longo silêncio de saudade, a uma réstia de sol de Outono.
Não asseguro todavia a nitidez destas belas reminiscências. Desde essa sesta de Agosto, no Martinho, não encontrei mais as LAPIDÁRIAS: e, de resto, o que nelas então me prendeu, não foi a Ideia, mas a Forma--uma forma soberba de plasticidade e de vida, que ao mesmo tempo me lembrava o verso marmóreo de Leconte de Lisle, com um sangue mais quente nas veias do mármore, e a nervosidade intensa de Baudelaire, vibrando com mais norma e cadência Ora precisamente, nesse ano de 1867, eu, J. Teixeira de Azevedo e outros camaradas tínhamos descoberto no céu da Poesia Francesa (único para que nossos olhos se erguiam), toda uma plêiade de estrelas novas onde sobressaiam, pela sua refulgência superior e especial, esses dois sóis-- Baudelaire e Leconte de Lisle. Victor Hugo, a quem chamávamos já «papá Hugo» ou «Senhor Hugo Todo-Poderoso», não era para nós um astro--mas o Deus mesmo, inicial e imanente, de quem os astros recebiam a luz, o movimento e o ritmo. Aos seus pés Leconte de Lisle e Baudelaire faziam duas constelações de adorável brilho- e o seu encontro fora para nós um deslumbramento e um amor! A mocidade de hoje, positiva e estreita, que pratica a Política, estuda as cotações da Bolsa e lê George Ohnet, mal pode compreender os santos entusiasmos com que nós recebíamos a iniciação dessa Arte Nova, que em França, nos começos do Segundo Império, surgira das ruínas do Romantismo como sua derradeira encarnação, e que nos era trazida em Poesia pelos versos de Leconte de Lisle, de Baudelaire, de Coppée, de Dierx, de Mallarmé, e de outros menores: e menos talvez pode compreender tais fervores essa parte da mocidade culta que logo desde as escolas se nutre de Spencer e de Taine, e que procura com ânsia e agudeza exercer a crítica, onde nós outrora, mais ingénuos e ardentes, nos abandonávamos a emoção. Eu mesmo sorrio hoje ao pensar nessas noites em que, no quarto de J. Teixeira de Azevedo, enchia de sobressalto e dúvida dois cónegos que ao lado moravam, rompendo por horas mortas a clamar a Charogne de Baudelaire, trémulo e pálido de paixão:
Et pourtant vous serez semblable a cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vos, mon ange et ma passion!
Do outro lado do tabique sentíamos ranger as camas dos eclesiásticos, o raspar espavorido de fósforos. E eu, mais pálido, num êxtase tremente:
Alors, oh ma beauté, dites a la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine.
De mes amours décomposés!
Certamente Baudelaire não valia este tremor e esta palidez. Todo o culto sincero, porém, tem uma beleza essencial, independente dos merecimentos do Deus para quem se evola. Duas mãos postas com legitima fé serão sempre tocantes-- mesmo quando se ergam para um santo tão afectado e postiço como S. Simeão Estilita. E o nosso transporte era cândido, genuinamente nascido do Ideal satisfeito, só comparável àquele que outrora invadia os navegadores peninsulares ao pisarem as terras nunca dantes pisadas, Eldorados maravilhosos, férteis em delícias e tesouros, onde os seixos das praias lhes pareciam logo diamantes a reluzir.
Li algures que Juan Ponce de Léon, enfastiado das cinzentas planícies de Castela-a-Velha, não encontrando também já encanto nos pomares verde-negros da Andaluzia--se fizera ao mar, para buscar outras terras, e mirar algo nuevo . Três anos sulcou incertamente a melancolia das águas atlânticas: meses tristes errou perdido nos nevoeiros das Bermudas: toda a esperança findara, já as proas gastas se voltavam para os lados onde ficara a Espanha. E eis que numa manhã de grande sol, em dia de S. João, surgem ante a armada extática os esplendores da Florida! « Gracias te sean, mi S. Juan bendito, que hé mirado algo nuevo! » As lágrimas corriam-lhe pelas barbas brancas--e Juan Ponce de Léon morreu de emoção. Nós não morremos mas lágrimas congéneres como as do velho mareante saltaram-me dos olhos, quando pela primeira vez penetrei por entre o brilho sombrio e os perfumes acres das Flores do Mal . Seríamos assim absurdos em 1867!
De resto, exactamente como Ponce de Léon, eu só procurava em Literatura e Poesia algo nuevo que mirar . E para um meridional de vinte anos, amando sobretudo a Cor e o Som na plenitude da sua riqueza, que poderia ser esse algo nuevo senão o luxo novo das formas novas? A Forma, a beleza inédita e rara da Forma, eis realmente, nesses tempos de delicado sensualismo, todo o meu interesse e todo o meu cuidado! Decerto eu adorava a Ideia na sua essência;--mas quanto mais o Verbo que a encarnava! Baudelaire, mostrando à sua amante na Charogne , a carcaça podre do cão e equiparando em ambas as misérias da carne, era para mim de magnífica surpresa e enlevo; e diante desta crespa e atormentada subtilização do sentir, que podia valer o fácil e velho Lamartine, no Lago , mostrando a Elvira a cansada Lua, e comparando em ambas a palidez e a graça meiga? Mas se este áspero e fúnebre espiritualismo de Baudelaire, me chegasse expresso na língua lassa e mole de Casimir Delavigne--eu não lhe teria dado mais apreço, do que a versos vis do Almanaque de Lembranças .
Foi sensualmente enterrado nesta idolatria da Forma, que deparei com essas LAPIDÁRIAS de Fradique Mendes, onde julguei ver reunidas e fundidas as qualidades discordantes de majestade e de nervosidade que constituiam, ou me pareciam constituir, a grandeza dos meus dois ídolos --o autor das Flores do Mal , e o autor dos Poemas Bárbaros . A isto acrescia, para me fascinar, que este poeta era português, cinzelava assim preciosamente a língua que até aí tivera como jóias aclamadas o Noivado do Sepulcro e o Ave César !, habitava Lisboa, pertencia aos Novos, possuía decerto na alma, talvez no viver, tanta originalidade poética como nos seus poemas! E esse folhetim amarrotado da Revolução de Setembro , tomava assim a importância duma revelação de Arte, uma aurora de Poesia, nascendo para banhar as almas moças na luz e no calor especial a que elas aspiravam, meio adormecidas, quase regeladas sob o álgido luar do Romantismo. Graças te sejam dadas, meu Fradique bendito, que na minha velha língua hé mirado algo nuevo ! Creio que murmurei isto, banhado em gratidão. E, com o número da Revolução de Setembro ,, corri a casa de J. Teixeira de Azevedo, à Travessa do Guarda-Mor, a anunciar o advento esplêndido!
Encontrei-o, como de costume, nos silenciosos vagares das tardes de Verão, em mangas de camisa, diante de uma bacia que transbordava de morangos e de vinho de Torres. Com vozes clamorosas, atirando gestos até ao tecto, declamei-lhe a Morte do Santo . Se bem recordo, este asceta, ao findar sobre as neves da Silésia, era miserrimamente traído pela desleal Natureza! Todos os apetites da paixão e do corpo, tão laboriosamente recalcados por ele durante meio século de ermo, irrompiam de repente, à beira da eternidade, num tumulto bestial, não querendo para sempre findar com a carne que ia findar--antes de serem uma vez satisfeitos! E os anjos que, para o receber, desciam de asa serena, sobraçando molhos de Palmas e cantando os Epitalâmios, encontravam, em vez dum Santo, um Sátiro, senil e grotesco--que de rojos, entre bramidos sórdidos, mordia com beijos vorazes a neve, a macia alvura da neve, onde o seu delírio furiosamente imaginava nudezas de cortesãs!... Tudo isto era tratado com uma grandeza sóbria e rude que me parecia sublime J. Teixeira de Azevedo achou também «sublime--mas brejeiro». E concordou que convinha desentulhar Fradique Mendes da obscuridade, e erguê-lo no alto do escudo como o radiante mestre dos Novos.
Fui logo nessa noite à Revolução de Setembro , procurar um companheiro meu de Coimbra, Marcos Vidigal, que, nos nossos alegres tempos de Direito Romano e Canónico, ganhara, por tocar concertina, ler a História da Música de Scudo, e lançar através da Academia os nomes de Mozart e de Beethoven, uma soberba autoridade sobre Música clássica. Agora, vadiando em Lisboa, escrevia na Revolução , aos domingos, uma « Crónica Lírica»--para gozar gratuitamente o bilhete de S. Carlos.
Era um moço com cabelos ralos e cor de manteiga, sardento, apagado de ideias e de modos-- mas que despertava e se iluminava todo quando lograva «a chance (como ele dizia) de roçar por um homem célebre, ou de arranchar numa coisa original»; e isto tornara-o a ele, pouco a pouco, quase original e quase célebre. Nessa noite, que era sábado e de pesado calor, lá estava à banca, com uma quinzena de alpaca, suando, bufando, a espremer do seu pobre crânio, como dum limão meio seco, gotas duma Crónica sobre a Volpini. Apenas eu aludi a Fradique Mendes, àqueles versos que me tinham maravilhado-- Vidigal arrojou a pena, já risonho, com um clarão alvoroçado na face mole:
--Fradique? Se conheço o grande Fradique? É meu parente! É meu patrício! É meu parceiro!
--Ainda bem, Vidigal, ainda bem!
Fomos ao Passeio Público (onde Marcos se ia encontrar com um agiota). Tomámos sorvetes debaixo das acácias: e pelo cronista da Revolução conheci a origem, a mocidade, os feitos do poeta das LAPIDÁRIAS.
Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha e rija familia dos Açores; e descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes, filho segundo da casa da Troba, e donatário duma das primeiras capitanias criadas nas Ilhas por começos do Século XVI. Seu pai, homem magnificamente belo, mas de gostos rudes, morrera (quando Carlos ainda gatinhava), dum desastre, na caça. Seis anos depois sua mãe, senhora tão airosa, pensativa e loura que merecera dum poeta da Terceira o nome de Virgem de Ossian , morria também duma febre trazida dos campos, onde andara bucolicamente, num dia de sol forte, cantando e ceifando feno. Carlos ficou em companhia e sob a tutela de sua avó materna, D. Angelina Fradique, velha estouvada, erudita e exótica que coleccionava aves empalhadas, traduzia Klopstock, e perpetuamente sofria dos «dardos de Amor». A sua primeira educação fora singularmente emaranhada: o capelão de D. Angelina, antigo frade beneditino, ensinou-lhe o latim, a doutrina, o horror à maçonaria, e outros princípios sólidos; depois um coronel francês, duro jacobino que se batera em 1830 na barricada de St.-Merry, veio abalar estes alicerces espirituais, fazendo traduzir ao rapaz a Pucelle de Voltaire e a Declaração dos Direitos do Homem ; e finalmente um alemão, que ajudava D. Angelina a enfardelar Klopstock na vernaculidade de Filinto Elisio, e se dizia parente de Emanuel Kant, completou a confusão iniciando Carlos, ainda antes de lhe nascer o buço, na Crítica da Razão Pura e na heterodoxia metafísica dos professores de Tubinga. Felizmente Carlos já então gastava longos dias a cavalo pelos campos, com a sua matilha de galgos:-- e da anemia que lhe teriam causado as abstracções do raciocínio, salvou-o o sopro fresco dos montados e a natural pureza dos regatos em que bebia.
A avó, tendo imparcialmente aprovado estas embrulhadas linhas de educação, decidiu de repente, quando Carlos completou dezasseis anos, mandá-lo para Coimbra, que ela considerava um nobre centro de estudos clássicos e o derradeiro refúgio das Humanidades. Corria porém na Ilha que a tradutora de Klopstock, apesar dos sessenta anos que Ihe revestiam a face dum pêlo mais denso que a hera duma ruína, decidira afastar o neto--para casar com o boleeiro.
Durante três anos Carlos tocou guitarra pelo Penedo da Saudade , encharcou-se de carrascão na tasca das Camelas, publicou na Ideia sonetos ascéticos, e amou desesperadamente a filha dum ferrador de Lorvão. Acabava de ser reprovado em Geometria, quando a avó morreu subitamente, na sua quinta das Tornas , num caramanchão de rosas, onde se esquecera toda uma sesta de Junho, tomando café, e escutando a viola que o cocheiro repicava com os dedos carregados de anéis.
Restava a Carlos um tio, Tadeu Mendes, homem de luxo e de boa mesa, que vivia em Paris preparando a salvação da Sociedade com Persigny, com Morny, e com o príncipe Luis Napoleão, de quem era devoto e credor. E Carlos foi para Paris estudar Direito nas cervejarias que cercam a Sorbona, à espera da maioridade que lhe devia trazer as heranças acumuladas do pai e da avó-- calculadas por Vidigal num farto milhão de cruzados. Vidigal, filho duma sobrinha de D. Angelina, nascido na Terceira, possuía por legado, conjuntamente com Carlos, uma quinta chamada o Corcovelo . Daí lhe vinha ser «parente, patrício e parceiro» do homem das LAPIDÁRIAS.
Depois disto Vidigal sabia apenas que Fradique, livre e rico, saíra do Quartier-Latin a começar uma existência soberba e fogosa. Com um ímpeto de ave solta, viajara logo por todo o mundo a todos os sopros do vento, desde Chicago a Jerusalém, desde a Islândia até ao Sara. Nestas jornadas, sempre empreendidas por uma solicitação da inteligência ou por ânsia de emoções achara-se envolvido em feitos históricos e tratara altas personalidades do século. Vestido com uma camisa escarlate, acompanhara Garibaldi na conquista das Duas Sicílias. Incorporado no Estado Maior do velho Napier , que lhe chamava the Portuguese Lion (o Leão Português), fizera toda a campanha da Abissínia. Recebia cartas de Mazzini. Havia apenas meses que visitara Hugo no seu rochedo de Guernesey... Aqui recuei, com os olhos esbugalhados! Vítor-Hugo (todos ainda se lembram), desterrado então em Guernesey, tinha para nós, idealistas e democratas de 1867, as proporções sublimes e lendárias dum S. João em Patmos. E recuei protestando, com os olhos esbugalhados, tanto se me afigurava fora das possibilidades que um português, um Mendes, tivesse apertado nas suas a mão augusta que escrevera a Lenda dos Séculos ! Correspondência com Mazzini, camaradagem com Garibaldi, vá! Mas na ilha sagrada, ao rumor das ondas da Mancha, passear, conversar, cismar com o vidente dos Miseráveis --parecia-me a impudente exageração dum ilhéu que me queria intrujar...
--Juro!--gritou Vidigal, levantando a mão verídica às acácias que nos cobriam.
E imediatamente, para demonstrar a verosimilhança daquela glória, já altíssima para Fradique, contou-me outra, bem superior, e que cercava o estranho homem duma auréola mais refulgente. Não se tratava já de ser estimado por um homem excelso-- mas, coisa preciosa entre todas, de ser amado por uma excelsa mulher. Pois bem! Durante dois anos, em Paris, Fradique fora o eleito de Ana de Léon, a gloriosa Ana de Léon, a mais culta e bela cortesã ( Vidigal dizia «o melhor bocado») do Segundo Império, de que ela, pela graça especial da sua voluptuosidade inteligente, como Aspásia no século de Péricles, fora a expressão e a flor!
Muitas vezes eu lera no Figaro os louvores de Ana de Léon, e sabia que poetas a tinham celebrado sob o nome de Vénus Vitoriosa . Os amores com a cortesã não me impressionaram decerto tanto como a intimidade com o homem das Contemplações : mas a minha incredulidade cessou-- e Fradique assumiu para mim a estatura dum desses seres que, pela sedução ou pelo génio, como Alcibiades ou como Goethe, dominam uma Civilização, e dela colhem deliciosamente tudo o que ela pode dar em gostos e em triunfos.
Foi por isso talvez que corei, intimidado, quando Vidigal, reclamando outro sorvete de leite, se ofereceu para me levar ao surpreendente Fradique. Sem me decidir, pensando em Novalis que também assim hesitava, enleado, ao subir uma manhã em Berlim as escadas de Hegel--perguntei a Vidigal se o poeta das LAPIDÁRIAS residia em Lisboa... Não! Fradique viera de Inglaterra visitar Sintra, que adorava, e onde comprara a quinta da Saragoça , no caminho dos Capuchos, para ter de Verão em Portugal um repouso fidalgo. Estivera lá desde o dia de Santo António:-- e agora parara em Lisboa, no Hotel Central, antes de recolher a Paris, seu centro e seu lar. De resto, acrescentou Marcos, não havia como Fradique ninguém tão simples, tão alegre, tão fácil. E, se eu desejava conhecer um homem genial, que esperasse ao outro dia. domingo, às duas, depois da missa do Loreto, à porta da Casa Havanesa.
--Valeu? Às duas, religiosamente, depois da missa!
Bateu-me o coração. Por fim, com um esforço, como Novalis no patamar de Hegel, afiancei, pagando os sorvetes, que ao outro dia. às duas, religiosamente, mas sem missa, estaria no portal da Havanesa!
Gastei a noite preparando frases, cheias de profundidade e beleza, para lançar a Fradique Mendes! Tendiam todas à glorificação das LAPIDÁRIAS. E lembro-me de ter, com amoroso cuidado, burilado e repolido esta:--«A forma de V. Ex.a é um mármore divino com estremecimentos humanos!»
De manhã apurei requintadamente a minha toilette como se, em vez de Fradique, fosse encontrar Ana de Léon--com quem já nessa madrugada, num sonho repassado de erudição e sensibilidade, eu passeara na Via Sagrada que vai de Atenas a Elêusis, conversando, por entre os lírios que desfolhávamos, sobre o ensino de Platão e a versificação das LAPIDÁRIAS. E às duas horas, dentro de uma tipóia, para que o macadame regado me não maculasse o verniz dos sapatos, parava na Havanesa, pálido, perfumado, comovido, com uma tremenda rosa de chá na lapela, éramos assim em 1867!
Marcos Vidigal já me esperava, impaciente roendo o charuto. Saltou para a tipóia; e batemos através do Loreto, que escaldava ao sol de Agosto.
Na Rua do Alecrim (para combater a pueril emoção que me enleava), perguntei ao meu companheiro quando publicaria Fradique as LAPIDA RIAS. Por entre o barulho das rodas, Vidigal gritou:
--Nunca!
E contou que a publicação daqueles trechos na Revolução de Setembro , quase ocasionara, entre Fradique e ele, «uma pega intelectual». Um dia, depois de almoço, em Sintra, enquanto Fradique fumava o seu chíbuque persa, Vidigal, na sua familiaridade, como patrício e como parente, abrira sobre a mesa uma pasta de veludo negro. Descobrira, surpreendido, largas folhas de versos, numa tinta já amarelada. Eram as LAPIDÁRIAS. Lera a primeira, a Serenata de Satã aos Astros . E, maravilhado, pedira a Fradique para publicar na Revolução algumas dessas estrofes divinas. O primo sorrira, consentira-- com a rígida condição de serem firmadas por um pseudónimo. Qual?... Fradique abandonava a escolha à fantasia de Vidigal. Na redacção, porém, ao rever as provas, só lhe acudiram pseudónimos decrépitos e safados, o Independente , o Amigo da Verdade , o Observador --nenhum bastante novo para dignamente firmar poesia tão nova. Disse consigo:-- «Acabou-se! Sublimidade não é vergonha. Ponho-lhe o nome!» Mas quando Fradique viu a Revolução de Setembro , ficou lívido e chamou, regeladamente, a Vidigal, «indiscreto, burguês e filisteu»!--E aqui Vidigal parou para me pedir a significação de filisteu . Eu não sabia; mas arquivei gulosamente o termo, como amargo. Recordo até que logo nessa tarde, no Martinho, tratei de filisteu o autor considerável do Ave César !
--De modo que--rematou Vidigal--é melhor não lhe falares nas LAPIDÁRIAS!
Sim! pensava eu. Talvez Fradique, à maneira do chanceler Bacon de outros homens grandes pela acção, deseje esconder deste mundo de materialidade e de força o seu fino génio poético! Ou talvez essa ira, ao ver o seu nome impresso debaixo de versos com que se orgulharia Leconte de Lisle, seja a do artista nobremente e perpetuamente insatisfeito, que não aceita ante os homens como sua a obra onde sente imperfeições! Estes modos de ser, tão superiores e novos, caíam na minha admiração como óleo numa fogueira. Ao pararmos no Central tremia de acanhamento.
Senti um alívio quando o porteiro anunciou que o Sr. Fradique Mendes, nessa manhã, cedo, tomara uma caleche para Belém. Vidigal empalideceu, de desespero:
--Uma caleche! Para Belém!... Há alguma coisa em Belém?
Murmurei, numa ideia de Arte, que havia os Jerónimos. Nesse instante uma tipóia, lançada a trote, estacou na rua, com as pilecas fumegando. Um homem desceu, ligeiro e forte. Era Fradique Mendes.
Vidigal, alvoroçado, apresentou-me como um «poeta seu amigo». Ele adiantou a mão sorrindo -- mão delicada e branca onde vermelhava um rubi. Depois, acariciando o ombro do primo Marcos, abriu uma carta que lhe estendia o porteiro.
Pude então, à vontade, contemplar o cinzelador das LAPIDÁRIAS, o familiar de Mazzini, o conquistador das Duas Sicílias, o bem-adorado de Ana de Léon! O que me seduziu logo foi a sua esplêndida solidez, a sã e viril proporção dos membros rijos, o aspecto calmo de poderosa estabilidade com que parecia assentar na vida, tão livremente e tão firmemente, como sobre aquele chão de ladrilhos onde pousavam os seus largos sapatos de verniz, resplandecendo sob polainas de linho. A face era do feitio aquilino e grave que se chama cesariano , mas sem as linhas empastadas e a espessura flácida que a tradição das Escolas invariavelmente atribui aos Césares, na tela ou no gesso, para os revestir de Majestade; antes pura e fina como a dum Lucrécio moço, em plena glória, todo nos sonhos da Virtude e da Arte. Na pele, duma brancura láctea e fresca, a barba, por ser pouca decerto, não deixava depois de escanhoada nem aspereza nem sombra; apenas um buço crespo e leve lhe orlava os lábios que, pela vermelhidão húmida e pela sinuosidade subtil, pareciam igual e superiormente talhados para a Ironia e para o Amor. E toda a sua finura, misturada de energia, estava nos olhos--olhos pequenos e negros, brilhantes como contas de ónix, duma penetração aguda, talvez insistente de mais, que perfurava, se enterrava sem esforço, como uma verruma de aço em madeira mole.
Trazia uma quinzena solta, duma fazenda preta e macia, igual à das calças que caíam sem um vinco: o colete de linho branco fechava por botões de coral pálido: e o laço da gravata de cetim negro, dando relevo à altura espelhada dos colarinhos quebrados, oferecia a perfeição concisa que já me encantara no seu verso
Não sei se as mulheres o considerariam belo . Eu achei-o um varão magnífico--dominando sobretudo por uma graça clara que saía de toda a sua força máscula. Era o seu viço que deslumbrava. A vida de tão várias e trabalhosas actividades, não Ihe cavara uma prega de fadiga. Parecia ter emergido, havia momentos, assim de quinzena preta e barbeado, do fundo vivo da Natureza. E apesar de Vidigal me ter contado que Fradique festejara os «trinta e três» em Sintra, pela festa de S. Pedro, eu sentia naquele corpo a robustez tenra e ágil de um efebo, na infância do mundo grego. Só quando sorria ou quando olhava se surpreendiam imediatamente nele vinte séculos de literatura.
Depois de ler a carta, Fradique Mendes abriu os braços, num gesto desolado e risonho, implorando a misericórdia de Vidigal. Tratava-se, como sempre, da Alfândega, fonte perene das suas amarguras! Agora tinha lá encalhado um caixote, contendo uma múmia egípcia...
--Uma múmia?...
Sim, perfeitamente, uma múmia histórica, o corpo verídico e venerável de Pentaour, escriba ritual do templo de Amnon em Tebas, o cronista de Ramsés II. Mandara-o vir de Paris para dar a uma senhora da Legação de Inglaterra, Lady Ross, sua amiga de Atenas, que em plena frescura e plena ventura, coleccionava antiguidades funerárias do Egipto e da Assiria... Mas, apesar de esforços sagazes, não conseguia arrancar o defunto letrado dos armazéns da Alfândega que ele enchera de confusão e de horror. Logo na primeira tarde, quando Pentaour desembarcara, enfaixado dentro do seu caixão a Alfândega, aterrada, avisou a polícia. Depois, calmadas as desconfianças dum crime, surgira uma insuperável dificuldade:--que artigo da pauta se poderia aplicar ao cadáver dum hierograma do tempo de Ramsés? Ele, Fradique, sugerira o artigo que taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que é um arenque defumado senão a múmia, sem ligaduras e sem inscrições, dum arenque que viveu. Ter sido peixe ou escriba nada importava para os efeitos fiscais. O que a Alfândega via diante de si era o corpo duma criatura, outrora palpitante, hoje secada ao fumeiro. Se ela em vida nadava num cardume nas ondas do mar do Norte, ou se, nas margens do Nilo, há quatro mil anos, arrolava as reses de Amnon e comentava os capítulos de fim de dia --não era certamente da conta dos Poderes Públicos. Isto parecia-lhe lógico. Todavia as autoridades da Alfândega continuavam a hesitar, coçando o queixo, diante do cofre sarapintado que encerrava tanto saber e tanta piedade! E agora naquela carta os amigos Pintos Bastos aconselhavam, como mais nacional e mais rápido, que se arrancasse um empenho do Ministro da Fazenda, para fazer sair sem direitos o corpo augusto do escriba de Ramsés. Ora este empenho, quem melhor para o alcançar que Marcos--esteio da Regeneração e seu Cronista musical?
Vidigal esfregava as mãos, iluminado. Aí estava uma coisa bem digna dele, «bem catita»--salvar do fisco a múmia «dum figurão faraónico»! E arrebatou a carta dos Pintos Bastos, enfiou para a tipóia, gritou ao cocheiro a morada do Ministro, seu colega na Revolução de Setembro ,. Assim fiquei só com Fradique--que me convidou a subir aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma «soda e limão».
Pela escada, o poeta das LAPIDÁRIAS aludiu ao tórrido calor de Agosto. E eu que nesse instante, defronte do espelho no patamar, revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a frescura da minha rosa--deixei estouvadamente escapar esta coisa hedionda:
--Sim, está de escachar!
E ainda o torpe som não morrera, já uma aflição me lacerava, por esta «chulice» de esquina de tabacaria, assim atabalhoadamente lançada como um pingo de sebo sobre o supremo artista das LAPIDÁRIAS. O homem que conversara com Hugo à beira-mar!... Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezes paralelas, em calão teimoso:-- «é de rachar»! «está de ananases»! «derrete os untos»!... Atravessei ali uma dessas angústias atrozes e grotescas, que, aos vinte anos, quando se começa a vida e a literatura, vincam a alma--e jamais esquecem.
Felizmente Fradique desaparecera por trás dum reposteiro de alcova. Só, limpando o suor, considerando que altos pensadores se exprimem assim, com uma simplicidade rude,--serenei. E a perturbação sucedeu a curiosidade de descobrir em torno, pelo aposento, algum vestígio da originalidade intensa do homem que o habitava. Vi apenas cansadas cadeiras de repes azul-ferrete, em lustre embuçado em tule, e uma consola, de altos pés dourados, entre as duas janelas que respiravam para o rio. Somente, sobre o mármore da consola, e por meio dos livros que atulhavam uma velha mesa de pau preto, pousavam soberbos ramos de flores; e a um canto afofava-se um espaçoso divã, instalado decerto por Fradique com colchões sobrepostos, que dois cobrejões orientais revestiam de cores estridentes. Errava além disso em toda a sala um aroma desconhecido, que também me pareceu oriental, como feito de rosas de Esmirna, mescladas a um fio de canela e manjerona.
Fradique Mendes voltara de dentro, vestido com uma cabaia chinesa! Cabaia de mandarim, de seda verde, bordada a flores de amendoeira-- que me maravilhou e me intimidou. Vi então que tinha o cabelo castanho-escuro, fino e levemente ondeado sobre a testa, mais polida e branca que os marfins da Normandia. E os olhos, banhados agora numa luz franca, não apresentavam aquela negrura profunda que eu comparara ao ónix, mas uma cor quente de tabaco escuro da Havana. Acendeu uma cigarette , e ordenou a «soda e limão» a um criado surpreendente, muito louro, muito grave, com uma pérola espetada na gravata, largas calças de xadrez verde e preto, e o peito florido por três cravos amarelos! (Percebi que este servo magnífico se chamava Smith). O meu enleio crescia. Por fim Fradique murmurou, sorrindo, com sincera simpatia:
--Aquele Marcos é uma flor!
Concordei, contei a velha estima que me prendia a Vidigal, desde o primeiro ano de Coimbra, dos nossos tempos estouvados de Concertina e Sebenta . Então, alegremente, recordando Coimbra, Fradique perguntou-me pelo Pedro Penedo, pelo Pais, por outros lentes ainda, do antigo tipo fradesco e bruto; depois pelas tias Camelas, essas encantadoras velhas, que escrupulosamente, através de lascivas gerações de estudantes, tinham permanecido virgens, para poderem no Céu, ao lado de Santa Cecilia, passar toda uma eternidade a tocar harpa... Era uma das suas memórias melhores de Coimbra essa taverna das tias Camelas, e as ceias desabaladas que custavam setenta reis, comidas ruidosamente na penumbra fumarenta das pipas, com o prato de sardinhas em cima dos joelhos, por entre temerosas contendas de Metafísica e de Arte. E que sardinhas! Que arte divina em frigir o peixe! Muitas vezes em Paris se lembrara das risadas, das ilusões e dos pitéus de então!...
Tudo isto vinha num tom muito moço, sincero, singelo--que eu mentalmente classificava de cristalino . Ele estirara-se no divã; eu ficara rente da mesa, onde um ramo de rosas se desfolhava ao calor sobre volumes de Darwin e do Padre Manuel Bernardes. E então, dissipado o acanhamento, todo no apetite de revolver com aquele homem genial ideias de Literatura, sem me lembrar que, como Bacon, ele desejava esconder o seu génio poético, ou artista insatisfeito nunca reconheceria a obra imperfeita,--aludi às LAPIDÁRIAS.
Fradique Mendes tirou a cigarette dos lábios para rir--com um riso que seria genuinamente galhofeiro, se de certo modo o não contradissesse um laivo de vermelhidão que lhe subira à face cor de leite. Depois declarou que a publicação desses versos, com a sua assinatura , fora uma perfídia do leviano Marcos. Ele não considerava assináveis esses pedaços de prosa rimada, que decalcara, havia quinze anos, na idade em que se imita, sobre versos de Leconte de Lisle, durante um Verão de trabalho e de fé numa trapeira de Luxemburgo, julgando-se a cada rima um inovador genial...
Eu acudi afirmando, todo em chama, que depois da obra de Baudelaire nada em Arte me impressionara como as LAPIDÁRIAS! E ia lançar a minha esplêndida frase, burilada nessa noite com paciente cuidado:--«A forma de V. Ex.a é um mármore divino...» Mas Fradique deixara o divã e pousava em mim os olhos finos de ónix, com uma curiosidade que me verrumava .
--Vejo então--disse ele--que é um devoto do maganão das Flores do Mal !
Corei, àquele espantoso termo de maganão. E, muito grave, confessei que para mim Baudelaire dominava, à maneira de um grande astro, logo abaixo de Hugo, na moderna Poesia. Então Fradique, sorrindo paternalmente, afiançou que bem cedo eu perderia essa ilusão! Baudelaire (que ele conhecera), não era verdadeiramente um poeta. Poesia subentendia emoção: e Baudelaire, todo intelectual, não passava dum psicólogo, dum analista--um dissecador subtil de estados mórbidos. As Flores do Mal continham apenas resumos críticos de torturas morais que Baudelaire muito finamente compreendera, mas nunca pessoalmente sentira . A sua obra era como a de um patologista, cujo coração bate normal e serenamente, enquanto descreve, à banca, numa folha de papel, pela erudição e observação acumuladas, as perturbações temerosas duma lesão cardíaca. Tanto assim que Baudelaire compusera primeiro em prosa as Flores do Mal --e só mais tarde, depois de rectificar a justeza das análises, as passara a verso, laboriosamente, com um dicionário de rimas!... De resto em França (acrescentou o estranho homem) não havia poetas. A genuina expressão da clara inteligência francesa era a prosa. Os seus mais finos conhecedores prefeririam sempre os poetas, cuja poesia se caracterizasse pela precisão, lucidez, sobriedade--que são qualidades de prosa; e um poeta tornava-se tanto mais popular quanto mais visivelmente possuía o génio do prosador. Boileau continuaria a ser um clássico e um imortal, quando já ninguém se lembrasse em França do tumultuoso lirismo de Hugo...
Dizia estas coisas enormes numa voz lenta, penetrante--que ia recortando os termos com a certeza e a perfeição dum buril. E eu escutava, varado! Que um Boileau, um pedagogo, um lambão de corte, permanecesse nos cimos da Poesia Francesa, com a sua Ode à Tomada de Namur , a sua cabeleira e a sua férula, quando o nome do poeta da Lenda dos Séculos fosse como um suspiro do vento que passou-- parecia-me uma dessas afirmações, de rebuscada originalidade, com que se procura assombrar os simples, e que eu mentalmente classificava de insolente . Tinha mil coisas, abundantes e esmagadoras, a contestar: mas não ousava, por não poder apresentá-las naquela forma translúcida e geométrica do poeta das LAPIDÁRIAS. Essa cobardia, porém, e o esforço para reter os protestos do meu entusiasmo pelos Mestres da minha mocidade, sufocava-me, enchia-me de mal-estar: e ansiava só por abalar daquela sala, onde, com tão bolorentas opiniões clássicas, tanta rosa nas jarras e todas as moles exalações de canela e manjerona--se respirava conjuntamente um ar abafadiço de Serralho e de Academia.
Ao mesmo tempo julgava humilhante ter soltado apenas, naquela conversação com o familiar de Mazzini e de Hugo, miúdos reparos sobre o Pedro Penedo e o carrascão das Camelas. E na justa ambição de deslumbrar Fradique com um resumo crítico, provando as minhas finas letras, recorri à frase, à lapidada frase, sobre a forma do seu verso. Sorrindo, retorcendo o buço, murmurei:--«Em todo o caso a forma de V. Ex.a é um mármore...» Subitamente, à porta que se abrira com estrondo, surgiu Vidigal:
---Tudo pronto! --gritou. -- Despachei o defunto!
O ministro, homem de poesia e de eloquência, interessara-se francamente por aquela múmia dum «colega», e jurara logo poupar-lhe o opróbrio de ser tarifada como peixe salgado. S. Ex. tinha mesmo ajuntado:--«Não, senhor! não, senhor! Há-de entrar livremente, com todas as honras devidas a um clássico!» E logo de manhã Pentaur deixaria a Alfândega, de tipóia!
Fradique riu daquela designação de clássico dada a um hierograma do tempo de Ramsés-- e Vidigal, triunfante, abancando ao piano, entoou com ardor a Grã-Duquesa . Então eu, tomado estranhamente, sem razão, por um sentimento de inferioridade e de melancolia, estendi a mão para o chapéu. Fradique não me reteve; mas os dois passos com que me acompanhou no corredor, o seu sorriso e o seu shake-handes , foram perfeitos. Apenas na rua, desabafei: -- «Que pedante!»
Sim, mas inteiramente novo , dessemelhante de todos os homens que eu até aí conhecera! E à noite, na Travessa do Guarda-Mor (ocultando a escandalosa apologia de Boileau, para nada dele mostrar imperfeito), espantei J. Teixeira de Azevedo com um Fradique idealizado, em que tudo era irresistível, as ideias, o verbo, a cabaia de seda, a face marmórea de Lucrécio moço, o perfume que esparzia, a graça, a erudição e o gosto!
J. Teixeira de Azevedo tinha o entusiasmo difícil e lento em fumegar. O homem deu-lhe apenas a impressão de ser postiço e teatral. Concordou no entanto que convinha ir estudar «um maquinismo de pose montado com tanto luxo!»
Fomos ambos ao Central, dias depois, no funda duma tipóia. Eu, engravatado em cetim, de gardénia ao peito. J. Teixeira de Azevedo, caracterizado de « Diógenes do século XIX», com um pavoroso cacete ponteado de ferro, chapéu braguês orlado de sebo, jaquetão encardido e remendado que Ihe emprestara o criado, e grossos tamancos rurais!... Tudo isto arranjado com trabalho, com despesa, com intenso nojo, só para horrorizar Fradique--e diante desse homem de cepticismo e de luxo, altivamente afirmar, como democrata e como idealista, a grandeza moral do remendo e a filosófica austeridade da nódoa! Éramos assim em 1867!
Tudo perdido! Perdida a minha gardénia, perdida a imundície estóica do meu camarada! O Sr. Fradique Mendes (disse o porteiro) partira na véspera num vapor que ia buscar bois a Marrocos.
Alguns anos passaram. Trabalhei, viajei. Melhor fui conhecendo os homens e a realidade das coisas, perdi a idolatria da Forma, não tornei a ler Baudelaire. Marcos Vidigal, que, através da Revolução de Setembro ,, trepara da Crónica Musical à Administração Civil, governava a índia como Secretário-Geral de novo entregue, nesses ócios asiáticos que Ihe fazia o Estado, à História da Música e à concertina: e levado assim esse grato amigo do Tejo para o Mandovi, eu não soubera mais do poeta das LAPIDÁRIAS. Nunca porém se me apagara a lembrança do homem singular. Antes por vezes me sucedia de repente ver , claramente ver , num relevo quase tangível--a face ebúrnea e fresca, os olhos cor de tabaco insistentes e verrumando, o sorriso sinuoso e céptico onde viviam vinte séculos de literatura.
Em 1871 percorri o Egipto. Uma ocasião, em Mênfis, ou no sitio em que foi Mênfis, navegava nas margens inundadas do Nilo, por entre palmeirais que emergiam da água, e reproduziam sobre um fundo radiante de luar oriental, o recolhimento e a solenidade triste de longas arcarias de claustros. Era uma solidão, um vasto silêncio de terra morta, apenas docemente quebrado pela cadência dos remos e pelo canto dolente do arrais... E eis que subitamente (sem que recordação alguma evocasse até esta imagem)-- vejo , nitidamente vejo , avançando com o barco, e com ele cortando as faixas de luz e sombra, o quarto do Hotel Central, o grande divã de cores estridentes, e Fradique, na sua cabaia de seda, celebrando por entre o fumo da cigarette a imortalidade de Boileau! E eu mesmo ja não estava no Oriente, nem em Mênfis, sobre as imóveis águas do Nilo; mas lá, entre o repes azul, sobre o lustre embuçado em tule, diante das duas janelas que miravam o Tejo, sentindo em baixo as carroças de ferragens rolarem para o Arsenal. Perdera porém o acanhamento que então me enleava. E, durante o tempo que assim remámos nesta decoração faraónica para a morada do Sheik de Abou-Kair, fui argumentando com o poeta das LAPIDÁRIAS, e enunciando enfim, na defesa de Hugo e Baudelaire, as coisas finas e tremendas com que o devia ter emudecido naquela tarde de Agosto! O arrais cantava os vergéis de Damasco. Eu berrava mentalmente:--«Mas veja V. Ex.a nos Miseráveis a alta lição moral...»
Ao outro dia que era o da festa do Beiram, recolhi ao Cairo pela hora mais quente, quando os muezzins cantam a terceira oração. E ao apear do meu burro, diante do Hotel Sheperd, nos jardins do Ezbekieh, quem hei-de eu avistar? Que homem, de entre todos os homens, avistei eu no terr aço, estendido numa comprida cadeira de vime, com as mãos cruzadas por trás da nuca, o Times esquecido sobre os joelhos, embebendo-se todo de calor e de luz? Fradique Mendes.
Galguei os degraus do terraço, lançando o nome de Fradique, por entre um riso de transbordante prazer. Sem desarranjar a sua beatitude, ele descruzou apenas um braço que me estendeu com lentidão. O encanto do seu acolhimento esteve na facilidade com que me reconheceu, sob as minhas lunetas azuis, e o meu vasto chapéu panamá:
--«Então como vai desde o Hotel Central?... Há quanto tempo pelo Cairo?»
Teve ainda outras palavras indolentes e afáveis. Num banco ao seu lado, todo eu sorria, limpando o pó que me empastara a face com uma espessura de máscara. Durante o curto e doce momento que ali conversámos, soube que Fradique chegara havia uma semana de Suez, vindo das margens do Eufrates e da Pérsia, por onde errara, como nos contos de fadas, um ano inteiro e um dia; que tinha um debarieh , com o lindo nome de Rosa das Águas , já tripulado e amarrado à sua espera no cais de Bulak; e que ia nele subir o Nilo até ao Alto Egipto, até à Núbia, ainda para além de Ibsambul...
Todo o sol do Mar Vermelho e das planícies do Eufrates não lhe tostara a pele láctea. Trazia, exactamente como no Hotel Central, uma larga quinzena preta e um colete branco fechado por botões de coral. E o laço da gravata de cetim negro representava bem, naquela terra de roupagens soltas e rutilantes, a precisão formalista das ideias ocidentais.
Perguntou-me pela pachorrenta Lisboa, por Vidigal que burocratizava entre os palmares bramânicos... Depois, como eu continuava a esfregar o suor e o pó, aconselhou que me purificasse num banho turco, na piscina que fica ao pé da Mesquita de El-Monyed, e que repousasse toda a tarde, para percorrermos à noite as iluminações do Beiram.
Mas em lugar de descansar, depois do banho lustral, tentei ainda, ao trote doce de um burro, através da poeira quente do deserto líbico, visitar fora do Cairo as sepulturas dos Califas. Quando à noite, na sala do Sheperd, me sentei diante da sopa de «rabo-de-boi», a fadiga tirara-me o ânimo de pasmar para outras maravilhas muçulmanas. O que me apetecia era o leito fresco, no meu quarto forrado de esteiras, onde tão romanticamente se ouviam cantar no jardim as fontes entre os rosais.
Fradique Mendes já estava jantando, numa mesa onde flamejava, entre as luzes, um ramo enorme de cactos. Ao seu lado pousava de leve, sobre um escabelo mourisco, uma senhora vestida de branco, a quem eu só via a massa esplêndida dos cabelos louros, e as costas, perfeitas e graciosas, como as de uma estátua de Praxíteles que usasse um colete de Madame Marcel; defronte, numa cadeira de braços, alastrava-se um homem gordo e mole, cuja vasta face, de barbas encaracoladas, cheia de força tranquila como a de um Júpiter, eu já decerto encontrara algures, ou viva ou em mármore. E caí logo nesta preocupação. Em que rua, em que museu admirara eu já aquele rosto olímpico, onde apenas a fadiga do olhar, sob as pálpebras pesadas, traía a argila mortal?
Terminei por perguntar ao negro de Seneh que servia o macarrão. O selvagem escancarou um riso de faiscante alvura no ébano do carão redondo, e, através da mesa, grunhiu com respeito: -- Cé-le-diêu ... Justos Céus! Le Dieu ! Intentaria o negro afirmar que aquele homem de barbas encaracoladas era um deus !--o deus especial e conhecido que habitava o Sheperd! Fora pois num altar, numa tela devota, que eu vira essa face, dilatada em majestade pela absorção perene do incenso e da prece? De novo interroguei o Núbio, quando ele voltou erguendo nas mãos espalmadas uma travessa que fumegava. De novo o Núbio me atirou, em silabas claras, bem feridas, dissipando toda a incerteza-- C'est le Dieu !
Era um Deus! Sorri a esta ideia de literatura--um Deus de rabona, jantando à mesa do Hotel Sheperd. E, pouco a pouco, da minha imaginação esfalfada foi-se evolando não sei que sonho, esparso e ténue, como o fumo que se eleva de uma braseira meio apagada. Era sobre o Olimpo, e os velhos Deuses, e aquele amigo de Fradique que se parecia com Júpiter. Os Deuses (cismava eu, colhendo garfadas lentas da salada de tomates) não tinham talvez morrido; e desde a chegada de S. Paulo à Grécia, viviam refugiados num vale da Lacónia, outra vez entregues, nos ócios que Ihes impusera o Deus novo, às suas ocupações primordiais de lavradores e pastores. Somente, já pelo hábito que os Deuses nunca perderam de imitar os homens, já para escapar aos ultrajes duma Cristandade pudibunda, os olímpicos abafavam, sob saias e jaquetões, o esplendor das nudezas que a Antiguidade adorara; e como tomavam outros costumes humanos, ora por necessidade (cada dia se torna mais dificil ser Deus), ora por curiosidade (cada dia se torna mais divertido ser Homem), os Deuses iam lentamente consumando a sua humanização. Já por vezes deixavam a doçura do seu vale bucólico; e com baús, com sacos de tapete, viajavam por distracção ou negócios, folheando os Guias Bedecker . Uns iam estudar nas cidades, entre a Civilização, as maravilhas da Imprensa, do Parlamentarismo e do gás; outros, aconselhados pelo erudito Hermes, cortavam a monotonia dos longos estios da Ática, bebendo as águas em Vichy ou em Carlsbad; outros ainda, na saudade imperecível das omnipotências passadas, peregrinavam até às ruínas dos templos, onde outrora lhes era ofertado o mel e o sangue das reses. Assim se tornava verosímil que aquele homem, cuja face cheia de majestade e força serena reproduzia as feições com que Júpiter se revelou à Escola de Atenas--fosse na realidade Júpiter, o Tonante, o Fecundador, pai inesgotável dos Deuses, criador da Regra e da Ordem. Mas que motivo o traria ali, vestido de flanela azul, pelo Cairo, pelo Hotel Sheperd, comendo um macarrão que profanadoramente se prendia às barbas divinas, por onde a ambrósia escorrera? Certamente o doce motivo que através da Antiguidade, em Céu e Terra, sempre inspirara os actos de Júpiter--do frascário e femeeiro Júpiter, O que o podia arrastar ao Cairo senão alguma saia , esse desejo esplêndidamente insaciável de deusas e de mulheres--que outrora tornava pensativas as donzelas da Helénia ao decorarem, na Partilha Pagã, as datas em que ele batera as asas de cisne entre os joelhos de Leda, sacudira as pontas de touro entre os braços de Europa, gotejara em pingos de ouro sobre o seio de Dánae, pulara em línguas de fogo até aos lábios de Egina, e mesmo um dia, enojando Minerva e as damas sérias do Olimpo, atravessara toda a Macedónia com uma escada ao ombro para trepar ao alto eirado da morena Sémele? Agora, evidentemente, viera ao Cairo passar umas férias sentimentais, longe da Juno mole e conjugal, com aquela viçosa mulher, cujo busto irresistível provinha das artes conjuntas de Praxíteles e de Madame Marcel. E ela, quem seria ela? A cor das suas tranças, a suave ondulação dos seus ombros, tudo indicava claramente uma dessas deliciosas Ninfas das Ilhas da Jónia, que outrora os Diáconos Cristãos expulsavam dos seus frescos regatos, para neles baptizar centuriões caquéticos e comidos de dívidas, ou velhas matronas com pêlo no queixo, trôpegas do incessante peregrinar aos altares de Afrodite. Nem ele nem ela porém podiam esconder a sua origem divina: através do vestido de cassa o corpo da Ninfa irradiava uma claridade; e, atendendo bem, ver-se-ia a fronte marmórea de Júpiter arfar em cadência, no calmo esforço de perpetuamente conceber a Regra e a Ordem.
Mas Fradique? Como se achava ali Fradique, na intimidade dos Imortais, bebendo com eles champanhe Clicquot, ouvindo de perto a harmonia inefável da palavra de Jove? Fradique era um dos derradeiros crentes do Olimpo, devotamente prostrado diante da Forma, e transbordando de alegria pagã. Visitara a Lacónia; falava a língua dos Deuses; recebia deles a inspiração. Nada mais consequente do que descobrir Júpiter no Cairo, e prender-se logo ao seu serviço, como cicerone, nas terras bárbaras de Alá. E certamente com ele e com a Ninfa da Jónia ia Fradique subir o Nilo, na Rosa das Águas , até aos derrocados templos onde Júpiter poderia murmurar, pensativo, e indicando ruínas de aras com a ponta do guarda-sol:--«Abichei aqui muito incenso!»
Assim, através da salada de tomates, eu desenvolvia e coordenava estas imaginações-- decidido a convertê-las num conto para publicar em Lisboa na Gazeta de Portugal . Devia chamar-se A Derradeira Campanha de Júpiter :-- e nele obtinha o fundo erudito e fantasista, para incrustar todas as notas de costumes e de paisagens, colhidas na minha viagem do Egipto. Somente, para dar ao conto um relevo de modernidade e de realismo picante, levaria a Ninfa das águas, durante a jornada do Nilo, a enamorar-se de Fradique e a trair Júpiter! E ei-la aproveitando cada recanto de palmeiral e cada sombra lançada pelos velhos pilonos de Osíris, para se pendurar do pescoço do poeta das LAPIDÁRIAS, murmurar-lhe coisas em grego mais doces que os versos de Hesíodo, deixar-lhe nas fIanelas o seu aroma de ambrósia, e ser por todo esse vale do Nilo imensamente cochonne --enquanto o pai dos deuses, cofiando as barbas encaracoladas, continuaria imperturbavelmente a conceber a Ordem, supremo augusto, perfeito, ancestral e cornudo!
Entusiasmado, já construía a primeira linha do Conto: «Era no Cairo, nos jardins de Chubra depoís do jejum do Ramadão...» -- quando vi Fradique adiantar-se para mim, com a sua chávena de café na mão. Júpiter também se erguera, cansadamente. Pareceu-me um Deus pesado e mole com um princípio de obesidade, arrastando a perna tarda, bem próprio para o ultraje que eu lhe preparava na Gazeta de Portugal . Ela porém tinha a harmonia, o aroma, o andar, a irradiação duma Deusa!... Tão realmente divina que resolvi logo substituir-me a Fradique no Conto, ser eu o cicerone, e com os Imortais vogar à vela e à sirga sobre o rio da imortalidade! Junto à minha face, não à de Fradique, balbuciaria ela, desfalecendo de paixão entre os granitos sacerdotais de Medinet-Abou, as coisas mais doces da Antologia . Ao menos, em sonho, realizava uma triunfal viagem a Tebas. E faria pensar aos assinantes da Gazeta de Portugal :--«O que ele por lá gozou!»
Fradique sentara-se, recebendo, de Jove e da ninfa que passavam, um sorriso cuja doçura também me envolveu. Vivamente puxei a cadeira para o poeta das LAPIDÁRIAS:
--Quem é este homem? Conheço-lhe a cara...
--Naturalmente, de gravuras... é Gautier!
Gautier! Teófilo Gautier! O grande Teo! O mestre impecável! Outro ardente enlevo da minha mocidade! Não me enganara pois inteiramente. Se não era um Olímpico--era pelo menos o derradeiro Pagão, conservando, nestes tempos de abstracta e cinzenta intelectualidade, a religiã verdadeira da Linha e da Cor! E esta intimidade de Fradique com o autor de Mademoiselle de Maupin , com o velho paladino de Hernâni , tornou-me logo mais precioso este compatriota que dava à nossa gasta Pátria um lustre tão original! Para saber se ele preferia anis ou genebra, acariciei-lhe a manga com meiguice. E foi em mim um êxtase ruidoso, diante da sua agudeza, quando ele me aclarou o grunhir do negro de Seneh. O que eu tomara pelo anúncio duma presença divina, significava apenas-- c'est le deux ! Gautier no hotel ocupava o quarto número dois. E, para o bárbaro, o plástico mestre do Romantismo era apenas-- o dois .
Contei-lhe então a minha fantasia pagã, o conto que ia trabalhar, os perfeitos dias de paixão que lhe destinava na viagem para a Núbia. Pedi mesmo permissão para lhe dedicar a Derradeira Campanha de Júpiter . Fradique sorriu, agradeceu. Desejaria bem (confessou ele) que essa fosse a realidade, porque não se podia encontrar mulher de mais genuina beleza e de mais aguda sedução do que essa ninfa das águas, que se chamava Jeame Morlaix, e era comparsa dos Delassements-Comiques . Mas, para seu mal, a radiosa criatura estava caninamente namorada de um Sicard, corretor de fundos, que a trouxera ao Cairo, e que fora nessa tarde, com banqueiros gregos, jantar aos jardins de Chubra...
--Em todo o caso--acrescentou o originalíssimo homem--nunca esquecerei, meu caro patrício, a sua encantadora intenção!
Descartes, zombando, creio eu, da física epicuriana ou atomista, fala algures das afeições produzidas pelos Atomes crochus , átomos recurvos, em forma de colchete ou de anzol, que se engancham invisivelmente de coração a coração, e formam essas cadeias , resistentes como o bronze de Samotrácia, que para sempre ligam e fundem dois seres, numa constância vencedora da Sorte e sobrevivente à Vida. Um qualquer nada provoca esse fatal ou providencial enlaçamento de átomos. Por vezes um olhar, como desastradamente em Verona sucedeu a Romeu e Julieta; por vezes o impulso de duas crianças para o mesmo fruto, num vergel real, como na amizade clássica de Orestes e Pílades. Ora, por esta teoria (tão satisfatória como qualquer outra em Psicologia afectiva), a esplêndida aventura de amor, que eu tão generosamente reservara a Fradique na Última Campanha de Júpiter , seria a causa misteriosa e inconsciente, o nada que determinou a sua primeira simpatia para comigo, desenvolvida, solidificada depois em seis anos de intimidade intelectual.
Muitas vezes, no decurso da nossa convivência, Fradique aludiu gratamente a essa minha encantadora intenção de lhe atar, em torno do pescoço, os braços de Jeame Morlaix. Fora ele cativado pela sinuosa e poética homenagem, que eu assim prestava às suas seduções de homem? Não sei. --Mas, quando nos erguemos para ir ver as iluminações do Beiram, Fradique Mendes, com um modo novo, aberto, quente, quase íntimo, já me tratava por você .
As iluminações no Oriente consistem, como as do Minho, de tigelinhas de barro e de vidro onde arde um pavio ou uma mecha de estopa. Mas a descomedida profusão, com que se prodigalizam as tigelinhas (quando as paga o Paxá), torna as velhas cidades meio arruinadas, que assim se enfeitam em louvor de Alá, realmente deslumbrantes--sobretudo para um ocidental besuntado de literatura, e inclinado a ver por toda a parte, reproduzidas no moderno Oriente, as muito lidas maravilhas dessas Mil e Uma Noites que ninguém jamais leu.
Na celebração do Beiram (custeada pelo Quediva), as tigelinhas eram incontáveis--e todas as linhas do Cairo, as mais quebradas e as mais fugidias, ressaltavam na escuridão, esplendidamente sublinhadas por um risco de luz. Longas fieiras de pontos refulgentes, marcavam a borda dos eirados; as portas abriam-se sob ferraduras de lumes; dos toldos pendia uma franja que faiscava; um brilho tremia, com a aragem, sobre cada folha de árvore; e os minaretes, que a Poesia Oriental classicamente compara desde séculos aos braços da Terra, levantados para o Céu, ostentavam como braços em noite de festa, um luxo de braceletes fulgindo na treva serena. Era (lembrei eu a Fradique), como se durante todo o dia tivesse caido sobre a sórdida cidade uma grossa poeirada de ouro, pousando em cada friso de muxarabi e em cada grade de varandim, e agora rebrilhasse, com radiosa saliência, na negrura da noite calma.
Mas, para mim, a beleza especial e nova estava na multidão festiva que atulhava as praças e os bazares--e que Fradique, através do rumor e da poeira, me explicava como um livro de estampas com quanta profundidade e miudeza conhecia o Oriente este patrício admirável! De todas aquelas gentes, intensamente diversas desde a cor até ao traje--ele sabia a raça, a história, os costumes o lugar próprio na civilização muçulmana. Devagar, abotoado num paletó de flanela, com um chicote de nervo (que é no Egipto o emblema de Autoridade) entalado debaixo do braço, ia apontando, nomeando à minha curiosidade flamejante, essas estranhas figuras, que eu comparava, rindo, às duma mascarada fabulosa, arranjada por um arqueólogo, em noite de folia erudita, para reproduzir as «modas» dos Semitas e os seus «tipos» através das idades:--aqui fellahs, ridentes e ágeis na sua longa camisa de algodão azul; além Beduínos sombrios, movendo gravemente os pés entrapados em ligaduras, com o pesado alfange de bainha escarlate pendurado no peito; mais longe abadiehs , de grenha em forma de meda, eriçada de longas cerdas de porco-espinho, que os coroam duma auréola negra... Estes, de porte insolente, com compridos bigodes esvoaçando ao vento, armas ricas reluzindo nas cintas de seda, e curtos saiotes tufados e encanudados, eram Arnautas da Macedónia; aqueles, belas estátuas gregas esculpidas em ébano, eram homens do Senar; os outros, com a cabeça envolta num Ienço amarelo, cujas franjas imensas Ihes faziam uma romeira de fios de ouro, eram cavaleiros do Hejaz... E quantos ainda ele me fazia distinguir e compreender! Judeus imundos, de caracóis frisados; Coptas togadas à maneira de senadores; soldados pretos do Darfour, com fardetas de linho enodoadas de poeira e sangue; ulemás de turbante verde; persas de mitra de feltro; mendigos de mesquita, cobertos de chagas; amanuenses Turcos, pomposos e anafados, de colete bordado a ouro... Que sei eu! Um carnaval rutilante, onde a cada momento passavam, sacudidos pelo trote dos burros sobre albardas vermelhas, enormes sacos enfunados-- que eram mulheres. E toda esta turba magnífica e ruidosa se movia entre invocações a Alá, repiques de pandeiretas, gemidos estridentes partindo das cordas das durbakas , e cantos lentos--esses cantos árabes , duma voluptuosidade tão dolente e tão áspera, que Fradique dizia passarem na alma com uma «carícia rascante». Mas por vezes, entre o casario decrépito e rendilhado, surgia uma frontaria branca, casa rica de Xeque ou de Paxá, com a varanda em arearias, por onde se avistavam lá dentro, num silêncio de harém, sedas colgantes recamos de ouro, um tremor de lumes no cristal dos lustres, formas airosas sob véus claros... Então a multidão parava, emudecia, e de todos os lábios saía um grande ah ! lânguido e maravilhado.
Assim caminhávamos, quando, ao sair do Mujik, Fradique Mendes parou, e, muito gravemente, trocou com um moço pálido, de esplêndidos olhos, o salam -- essa saudação oriental em que os dedos três vezes batem a testa, a boca e o coração. E como eu, rindo, lhe invejava aquela intimidade com um «homem de túnica verde e de mitra persa»:
--É um ulemá de Bagdade --disse Fradique -- duma casta antiga, superiormente inteligente... Uma das personalidades mais finas e mais sedutoras que encontrei na Pérsia.
Então, com a familiaridade que se ia entre nós acentuando, perguntei a Fradique o que o detivera assim na Pérsia um ano inteiro e um dia como nos contos de fadas. E Fradique, com toda a singeleza, confessou que se demorara tanto nas margens do Eufrates, por se achar casualmente ligado a um movimento religioso que, desde 1849, tomava na Pérsia um desenvolvimento quase triunfal, e que se chamava o Babismo. Atraído para essa nova seita, por curiosidade crítica, para observar como nasce e se funda uma religião, chegara pouco a pouco a ganhar pelo Babismo um interesse militante--não por admiracão da doutrina, mas por veneracão dos apóstolos. O Babismo (contou-me ele, seguindo por uma viela mais solitária e favorável as confidências), tivera por iniciador certo Mirza-Mohamed, um desses Messias que cada dia surgem na incessante fermentação religiosa do Oriente, onde a religião é a ocupação suprema e querida da vida. Tendo conhecido os Evangelhos Cristãos por contacto com os missionários; iniciado na pura tradição mosaísta pelos judeus do Hiraz; sabedor profundo do guebrismo, a velha religião nacional da Pérsia -- Mirza-Mohamed amalgamara estas doutrinas com uma concepção mais abstracta e pura do Maometismo, e declarara-se Bab . Em persa Bab quer dizer Porta . Ele era, pois, a porta --a única porta através da qual os homens poderiam jamais penetrar na absoluta Verdade. Mais literalmenle, Mirza-Mohamed apresentava-se como o grande porteiro , o homem eleito entre todos pelo Senhor para abrir aos crentes a porta da Verdade--e portanto do Paraíso. Em resumo era um Messias, um Cristo. Como tal atravessou a clássica evolução dos Messias: teve por primeiros discipulos, numa aldeila obscura, pastores e mulheres: sofreu a sua tentação na montanha: cumpriu as penitências expiadoras: pregou parábolas: escandalizou em Meca os doutores: e padeceu a sua paixão, morrendo, não me lembro se degolado, se fuzilado, depois do jejum do Ramadão, em Tabriz.
Ora, dizia Fradique, no mundo muçulmano há duas divisões religiosas--os Sieds e os Sunis. Os Persas são Sieds, como os Turcos são Sunis. Estas diferenças, porém, no fundo, têm um carácter mais político e de raça, do que teológico e de dogma; ainda que um fellah do Nilo desprezará sempre um persa do Eufrates como herético e sujo . A discordância ressalta, mais viva e teimosa, logo que Sieds ou Sunis necessitem pronunciar-se perante uma nova interpretação de doutrina ou uma nova aparição de profeta. Assim o Babismo entre os Sieds, topara com uma hostilidade que se avivou até à perseguição:--e isto desde logo indi cava que seria acolhido pelos Sunis com deferência e simpatia.
Partindo desta ideia, Fradique, que em Bagdade se ligara familiarmente com um dos mais vigorosos e autorizados apóstolos do Babismo, Said-El-Souriz (a quem salvara o filho duma febre paludosa com aplicações de Fruit-salt ), sugerira-lhe um dia, conversando ambos no eirado, sobre estes altos interesses espirituais, a ideia de apoiar o Babismo nas raças agrícolas do vale do Nilo e nas raças nómadas da Líbia. Entre homens de seita Suni, o Babismo encontraria um campo fácil às conversões; e, pela tradicional marcha dos movimentos sectários, que no Oriente, como em toda a parte, sobem das massas sinceras do povo até às classes cultas, talvez essa nova onda de emoção religiosa, partindo dos Fellahs e dos Beduínos, chegasse a penetrar no ensino de alguma das mesquitas do Cairo, sobretudo na mesquita de El-Azhar, a grande Universidade do Oriente, onde os ulemas mais moços formam uma coorte de entusiastas, sempre disposta às inovações e aos apostolados combatentes. Ganhando aí autoridade teológiea, e literariamente polido, o Babismo poderia então atacar com vantagem as velhas fortalezas do Muçulmanismo dogmático. Esta ideia penetrara profundamente em Said-El-Souriz. Aquele moço pálido, com quem ele trocara o salam , fora logo mandado como emissário babista a Medinet-Abou (a antiga Tebas), para sondar o Xeque Ali-Hussein, homem de decisiva influência em todo o vale do Nilo pelo seu saber e pela sua virtude: e ele, Fradique, não tendo agora no Ocidente ocupações atractivas, cheio de curiosidade por este pitoresco Advento, partia também para Tebas, devendo encontrar-se com o babista, à Lua minguante, em Beni-Soueff, no Nilo...
Não recordo, depois de tantos anos, se estes eram os factos certos. Só sei que as revelações de Fradique, lançadas assim através do Cairo em festa, me impressionaram indizivelmente. À medida que ele falava do Bab, dessa missão apostólica ao velho Xeque de Tebas, de uma outra fé surgindo no mundo muçulmano com o seu cortejo de martírios e de êxtases, da possível fundação de um império Babista--o homem tomava aos meus olhos proporções grandiosas. Não conhecera jamais ninguém envolvido em coisas tão altas: e sentia-me ao mesmo tempo orgulhoso e aterrado de reeber este segredo sublime. Outra não seria minha comoção, se, nas vésperas de S. Paulo embarcar para a Grécia, a levar a Palavra aos gentílicos, eu tivesse com ele passeado pelas ruas estreitas de Seleucia, ouvindo-lhe as esperanças e os sonhos.
Assim conversando, penetrámos no adro da mesquita de El-Azhar, onde mais fulgurante e estridente tumultuava a festa do Beiram. Mas já não me prendiam as surpresas daquele arraial muçulmano--nem almées dançando entre brilhos de vermelho e de ouro; nem poetas do deserto recitando as façanhas de Antar; nem Dervíxes, sob as suas tendas de linho, uivando em cadência os louvores de Alá... Calado, invadido pelo pensamento do Bab, revolvia comigo o confuso desejo de me aventurar nessa campanha espiritual! Se eu partisse para Tebas com Fradique?... Por que não? Tinha a mocidade, tinha o entusiasmo. Mais viril e nobre seria encetar no Oriente uma carreira de evangelista, que banalmente recolher à banal Lisboa, a escrevinhar tiras de papel, sob um bico de gás, na Gazeta de Portugal ! E pouco a pouco deste desejo, como duma água que ferve, ia subindo o vapor lento duma visão. Via-me discípulo do Bab-- recebendo nessa noite, do ulema de Bagdade, a iniciação da Verdade. E partia logo a pregar, a espalhar o verbo babista. Onde iria? A Portugal certamente, levando de preferência a salvação às almas que me eram mais caras. Como S. Paulo, embarcava numa galera: as tormentas assaltavam a minha proa apostólica: a imagem do Bab aparecia-me sobre as águas, e o seu sereno olhar enchia minha alma de fortaleza indomável. Um dia, por fim, avistava terra, e na manhã clara sulcava o claro Tejo, onde há tantos séculos não entra um enviado de Deus. Logo de longe lançava uma injúria às igrejas de Lisboa, construções duma Fé vetusta e menos pura. Desembarcava. E, abandonando as minhas bagagens, num desprendimento já divino de bens ainda terrestres, galgava aquela bendita Rua do Alecrim, e em meio do Loreto, à hora em que os Directores Gerais sobem devagar da Arcada, abria os braços e bradava:--«Eu sou a Porta !»
Não mergulhei no Apostolado babista--mas sucedeu que, enlevado nestas fantasmagorias, me perdi de Fradique. E não sabia o caminho do Hotel Sheperd,--nem, para dele me informar, outros termos úteis, em árabe, além de água e amor ! Foram angustiosos momentos em que farejei estonteado pelo largo de El-Azhar, tropeçando nos fogareiros onde fervia o café, esbarrando inconsideradamente contra rudes beduinos armados. Já por sobre a turba atirava, aos brados, o nome de Fradique--quando topei com ele olhando plàcidamente uma almée que dançava...
Mas seguiu logo, encolhendo os ombros. Nem me permitiu adiante admirar um poeta, que, em meio de fellahs pasmados e de Mohrebinos arrimados às lanças, lia, numa toada langorosa e triste, tiras de papel ensebado. A Dança e a Poesia, afirmava Fradique, as duas grandes artes orientais, iram em misérrima decadência. Numa e outra se tinham perdido as tradições do estilo puro. As almées, pervertidas pela influência dos casinos do Ezbequieh onde se perneia o cancã--já poluiam a graça das velhas danças árabes, atirando a perna pelos ares à moda vil de Marselha!
E na Poesia triunfava a mesma banalidade, mesclada de extravagância. As formas delicadas do classicismo persa nem se respeitavam, nem quase se conheciam; a fonte da imaginação secava entre os muçulmanos; e a pobre Poesia Oriental, tratando temas vetustos com uma ênfase preciosa, descambara, como a nossa, num Parnasianismo bárbaro. . .
--De sorte--murmurei--que o Oriente...
--Está tão medíocre como o Ocidente.
E recolhemos ao hotel, devagar, enquanto Fradique, findando o charuto, me contava que o espírito oriental, hoje, vive só da actividade filosófica, agitado cada manhã por uma nova e complicada concepção da Moral, que Ihe oferecem os Lógicos dos bazares e os Metafísicos do deserto...
Ao outro dia acompanhei Fradique a Boulak, onde ele ia embarcar para o Alto Egipto. O seu debarieh esperava, amarrado à estacaria, rente das casas do Velho Cairo, entre barcas de Assouan, carregadas de lentilha e de cana doce. O Sol mergulhava nas areias líbicas: e no alto, o céu adormecia, sem uma sombra, sem uma nuvem, puro em toda a sua profundidade, como a alma dum justo. Uma fila de mulheres coptas, com o cântaro amarelo pousado no ombro, descia cantando para a água do Nilo, bendita entre todas as águas. E os ibis, antes de recolher aos ninhos, vinham, como no tempo em que eram Deuses, lançar por sobre os eirados, com um bater de asas contentes, a bênçao crepuscular.
Baixei, atrás de Fradique, ao salão do debarieh envidraçado, estofado, com armas penduradas para as manhãs de caça, e rumas de livros para as sestas de estudo e de calma, quando lentamente se navega à sirga. Depois, durante momentos, no convés, contemplámos silenciosamente aquelas margens que, através das compridas idades, têm feito o enlevo de todos os homens, por todos sentirem que nelas a vida é cheia de bens maiores e de doçura suprema. Quantos, desde os rudes Pastores que arrasaram Tanis, aqui pararam como nós, alongando para estas águas, para estes céus, olhos cobiçosos, extáticos ou saudosos: Reis de Judá, Reis de Assíria, Reis da Pérsia; os Ptolemeus magníficos; Prefeitos de Roma e Prefeitos de Bizâncio; Amrou enviado de Maomé, S. Luís enviado de Cristo; Alexandre-o-Grande sonhando o império do Oriente; Bonaparte retomando o imenso sonho; e ainda os que vieram só para contar da terra adorável, desde o loquaz Heródoto até ao primeiro Romântico, o homem pálido de grande pose que disse as dores de « René»! Bem conhecida é ela, a paisagem divina e sem igual. O Nilo corre, paternal e fecundo. Para além verdejam, sob o voo das pombas, os jardins e os pomares de Rhodah. Mais longe as palmeiras de Giseh, finas e como de bronze sobre o ouro da tarde, abrigam aldeias que têm a simplicidade de ninhos. À orla do deserto, erguem-se, no orgulho da sua eternidade, as três Pirâmides. Apenas isto -- e para sempre a alma fica presa e lembrando, e para viver nesta suavidade e nesta beleza os povos travam entre si longas guerras.
Mas a hora chegara: abracei Fradique com singular emoção. A vela fora içada à brisa suave que arrepiava a folhagem das mimosas. À proa o arrais, espalmando as mãos para o Céu, clamou:
--«Em nome de Alá que nos leve, clemente e misericordioso!» Ao redor, de outras barcas, vozes lentas murmuraram:--«Em nome de Alá que vos leve!» Um dos remadores, sentado à borda, feriu as cordas da dourbaka , outro tomou uma flauta de barro. E entre bênçãos e cantos a vasta barca fendeu as águas sagradas, levando para Tebas o meu incomparável amigo.
Durante anos não tornei a encontrar Fradique Mendes, que concentrara as suas jornadas dentro da Europa Ocidental--enquanto eu errava pela América, pelas Antilhas, pelas repúblicas do golfo do México. E quando a minha vida enfim se aquietou num velho condado rural de Inglaterra, Fradique, retomado por essa bisbilhotice etnográfica» a que ele alude numa carta a Oliveira Martins, começava a sua longa viagem ao Brasil, aos Pampas, ao Chile e à Patagónia.
Mas o fio de simpatia, que nos unira no Cairo, não se partiu; nem nós, apesar de tão ténue, o deixamos perder por entre os interesses mais fortes das nossas fortunas desencontradas. Quase todos os três meses trocávamos uma carta--cinco ou seis folhas de papel que eu tumultuosamente atulhava de imagens e impressões, e que Fradique miudamente enchia de ideias e de factos. Além disto, eu sabia de Fradique por alguns dos meus camaradas, com quem, durante uma residência mais íntima em Lisboa, do Outono de 1875 ao Verão de 1876, ele criara amizades onde todos encontraram proveito intelectual e encanto.
Todos, apesar das dessemelhanças de temperamentos ou das maneiras diferentes de conceber a vida--tinham como eu sentido a sedução daquele homem adorável. Dele me escrevia em Novembro de 1877 o autor do Portugal Contemporâneo :--«Cá encontrei o teu Fradique, que considero o português mais interessante do século XIX. Tem curiosas parecenças com Descartes! É a mesma paixão das viagens, que levava o filósofo a fechar os livros «para estudar o grande livro do Mundo»; a mesma atracção pelo luxo e pelo ruído, que em Descartes se traduzia pelo gosto de frequentar as «cortes e os exércitos»; o mesmo amor do mistério, e das súbitas desaparições; a mesma vaidade, nunca confessada, mas intensa, do nascimento e da fidalguia; a mesma coragem serena; a mesma singular mistura de instintos romanescos e de razão exacta, de fantasia e de geometria. Com tudo isto falta-lhe na vida um fim sério e supremo, que estas qualidades, em si excelentes, concorressem a realizar. E receio que em lugar do Discurso sobre o Método venha só a deixar um vaudeville ». Ramalho Ortigão, pouco tempo depois, dizia dele numa carta carinhosa:-- « Fradique Mendes é o mais completo, mais acabado produto da civilização em que me tem sido dado embeber os olhos. Ninguém está mais superiormente apetrechado para triunfar na Arte e na Vida. A rosa da sua botoeira é sempre a mais fresca, como a ideia do seu espírito é sempre a mais original. Marcha cinco léguas sem parar, bate ao remo os melhores remadores de Oxónia, mete-se sózinho ao deserto a caçar o tigre, arremete com um chicote na mão contra um troço de lanças abissínias;--e à noite numa sala, com a sua casaca de Cook, uma pérola negra no esplendor do peitilho, sorri às mulheres com o encanto e o prestígio com que sorrira à fadiga, ao perigo e à morte. Faz armas como o cavaleiro de Saint-Georges, e possui as noções mais novas e as mais certas sobre Física, sobre Astronomia, sobre Filologia e sobre Metafísica. É um ensino, uma lição de alto gosto, vê-lo no seu quarto, na vida íntima de gentleman em viagem, entre as suas malas de couro da Rússia, as grandes escovas de prata lavrada, as cabaias de seda, as carabinas de Winchester, preparando-se, escolhendo um perfume, bebendo goles de chá que Ihe manda o Grão-Duque Vladimir, e ditando a um criado de calção, mais veneravelmente correcto que um mordomo de Luís XIV, telegramas que vão levar notícias suas aos boudoirs de Paris e de Londres. E depois de tudo isto fecha a sua porta ao mundo--e lê Sófocles no original».
O poeta da Morte de D. João e da Musa em Férias chamava-lhe «um Saint-Beuve encadernado em Alcides». E explicava assim, numa carta desse tempo que conservo, a sua aparição no mundo« Deus um dia agarrou num bocado de Henri Heine, noutro de Chateaubriand; noutro de Brummel, em pedaços ardentes de aventureiros da Renascença, e em fragmentos ressequidos de sábios do Instituto de França, entornou-lhe por cima champanhe e tinta de imprensa, amassou tudo nas suas mãos omnipotentes, modelou à pressa Fradique, e arrojando-o à Terra disse: Vai, e veste-te no Poole!» Enfim Carlos Mayer, lamentando como Oliveira Martins que às múltiplas e fortes aptidões de Fradique faltasse coordenação e convergência para um fim superior, deu um dia sobre a personalidade do meu amigo um resumo sagaz e profundo: «O cérebro de Fradique está admiravelmente construído e mobilado. Só Ihe falta uma ideia que o alugue, para viver e governar lá dentro. Fradique é um génio com escritos!»
Também Fradique, nesse Inverno, conheceu o pensador das Odes Modernas , de quem, numa das suas cartas a Oliveira Martins, fala com tanta elevação e carinho. E o último companheiro da minha mocidade, que se relacionou com o antigo poeta das LAPIDÁRIAS, foi J. Teixeira de Azevedo, no Verão de 1877, em Sintra, na quinta da Saragoça , onde Fradique viera repousar da sua jornada ao Brasil e às repúblicas do Pacífico. Tinham aí conversado muito, e divergido sempre, J. Teixeira de Azevedo, sendo um nervoso e um apaixonado, sentia uma insuperável antipatia pelo que ele chamava o linfatismo crítico de Fradique. Homem todo de emoção, não se podia fundir intelectualmente com aquele homem todo de análise. O extenso saber de Fradique também não o impressionava. «As noções desse guapo erudito (escrevia ele em 1879) são bocados do Larousse diluídos em água-de-colónia». E enfim certos requintes de Fradique (escovas de prata e camisas de seda), a sua voz mordente, recortando o verbo com perfeição e preciosidade, o seu hábito de beber champanhe com soda-water , outros traços ainda, causavam uma irritação quase física ao meu velho cama rada da Travessa do Guarda-Mor. Confessava; porém, como Oliveira Martins, que Fradique era o português mais interessante e mais sugestivo do século XIX. E correspondia-se regularmente com ele--mas para o contradizer com acrimónia.
Em 1880 (nove anos depois da minha peregrinação no Oriente), passei em Paris a semana da Páscoa. Uma noite, depois da Ópera, fui cear solitariamente ao Bignon. Tinha encetado as ostras e uma crónica do Temps , quando por trás do jornal que eu encostara à garrafa assomou uma larga mancha clara, que era um colete, um peitilho, uma gravata, uma face, tudo de incomparável brancura. E uma voz muito serena murmurou: «Separámo-nos há anos no cais de Boulak...» Ergui-me com um grito, Fradique com um sorriso;--e o maître d'hôtel recuou assombrado diante da meridional e ruidosa efusão do meu abraço. Dessa noite em Paris datou verdadeiramente a nossa intimidade intelectual--que em oito anos, sempre igual e sempre certa, não teve uma intermissão, nem uma sombra que lhe toldasse a pureza.
Determinadamente lhe chamo intelectual , porque esta intimidade nunca passou além das coisas do espírito. Nas alegres temporadas que, com ele, convivi em Paris, em Londres e em Lisboa, de 1880 a 1887, na nossa copiosa correspondência desses anos privei sempre, sem reserva, com a inteligência de Fradique--e ininterrompidamente assisti e me misturei à sua vida pensante: nunca, porém, penetrei na sua vida afectiva de sentimento e de coracão. Nem, na verdade, me atormentou a curiosidade de a conhecer--talvez por sentir que a rara originalidade de Fradique se concentrava toda no ser pensante, e que o outro, o ser sensível, feito da banal argila humana, repetia sem especial relevo as costumadas fragilidades da argila. De resto, desde essa noite de Páscoa em Paris que iniciou as nossas relações, nós conservámos sempre o hábito especial, um pouco altivo, talvez estreito, de nos considerarmos dois puros espíritos. Se eu então concebesse uma Filosofia original ou preparasse os mandamentos duma nova Religião, ou surripiasse à Natureza distraída uma das suas secretas Leis de preferência escolheria Fradique como confidente desta actividade espiritual; mas nunca, na ordem do Sentimento, iria a ele com a confidência duma esperança ou duma desilusão. E Fradique igualmente manteve comigo esta atitude de inacessível recato--não se manifestando nunca aos meus olhos senão na sua função intelectual.
Muito bem me lembro eu duma resplandecente manhã de Maio em que atravessávamos, conversando por sob os castanheiros em flor, o jardim das Tulherias. Fradique, que se encostara ao meu braço, vinha vagarosamente desenvolvendo a ideia de que a extrema democratização da Ciência, o seu universal e ilimitado derramamento através das plebes, era o grande erro da nossa civilização que, com ele, preparava para bem cedo a sua catástrofe moral... De repente, ao transpormos a grade para a Praça da Concórdia, o Filósofo que assim lançava, por entre as tenras verduras de Maio, estas predições de desastres e de fim-- estaca, emudece! Diante de nós, ao trote fino duma égua de luxo, passara vivamente, para os lados da Rua Royale, um cupé onde entrevi, na penumbra dos cetins que o forravam, uns cabelos cor de mel. Vivamente também, Fradique sacode o meu braço, balbucia um «adeus!», acena a um fiacre, e desaparece ao galope arquejante da pileca para os lados do cais de Orsay. «Mulher!», pensei eu. Era, com efeito, a mulher e o seu tormento; e como se depreende duma carta a Madame de Jouarre (datada de «Maio, sábado», e começando «Ontem filosofava com um amigo no jardim das Tulherias...»). Fradique corria nesse fiacre a uma desilusão bem rude e mortificante. Ora nessa tarde, ao crepúsculo, fui (como combinara) buscar Fradique à Rua de Varennes, ao velho palácio dos Tredemes, onde ele instalara desde o Natal os seus aposentos, com um luxo tão nobre e tão sóbrio. Apenas entrei na sala que denominávamos a «Heróica», porque a revestiam quatro tapeçarias de Luca Cornélio contando os Trabalhos de Hércules , Fradique deixa a janela donde olhava o jardim já esbatido em sombra, vem para mim serenamente, com as mãos enterradas nos bolsos duma quinzena de seda. E, como se desde essa manhã nenhum outro cuidado o absorvesse senão o seu tema do jardim das Tulherias:
--Não lhe acabei de dizer há pouco... A Ciência, meu caro, tem de ser recolhida como outrora aos Santuários. Não há outro meio de nos salvar da anarquia moral. Tem de ser recolhida aos Santuários, e entregue a um sacro colégio intelectual que a guarde, que a defenda contra as curiosidades das plebes... Há a fazer com esta ideia um programa para as gerações novas!
Talvez na face, se eu tivesse reparado, encontrasse restos de palidez e de emoção; mas o tom era simples, firme, dum crítico genuinamente ocupado na dedução do seu conceito. Outro homem que, como aquele, tivesse sofrido horas antes uma desilusão tão mortificante e rude, murmuraria ao menos, num desafogo genérico e impessoal:--«Ah, amigo, que estúpida é a vida!» Ele falou da Ciência e das Plebes,--desenrolando determinadamente diante de mim, ou impondo talvez a si mesmo, os raciocínios do seu cérebro, para que os meus olhos não penetrassem de leve, ou os seus não se detivessem de mais, nas amarguras do seu coração.
Numa carta a Oliveira Martins, de 1883, Fradique diz:--«O homem, como os antigos reis do Oriente, não se deve mostrar aos seus semelhantes senão única e serenamente ocupado no ofício de reinar--isto é, de pensar ». Esta regra, dum orgulho apenas permissível a um Espinosa ou a um Kant, dirigia severamente a sua conduta. Pelo menos comigo assim se comportou imutavelmente, através da nossa activa convivência, não se abrindo, não se oferecendo todo, senão nas funções da Inteligência. Por isso talvez, mais que nenhum outro homem, ele exerceu sobre mim império e sedução.
O que impressionava logo na Inteligência de Fradique, ou antes na sua maneira de se exercer, era a suprema liberdade junta à suprema audácia. Não conheci jamais espírito tão impermeável à tirania ou à insinuação das «ideias feitas»: e decerto nunca um homem traduziu o seu pensar original e próprio com mais calmo e soberbo desassombro. «Apesar de trinta séculos de geometria me afirmarem (diz ele numa carta a J. Teixeira de Azevedo) , que a linha recta é a mais curta distância entre dois pontos , se eu achasse que, para subir da porta do Hotel Universal à porta da Casa Havanesa, me saia mais directo e breve rodear pelo bairro de S. Martinho e pelos altos da Graça, declararia logo à secular geometria-- que a distância mais curta entre dois pontos é uma curva vadia e delirante!» Esta independência da Razão, que Fradique assim apregoa com desordenada Fantasia, constitui uma qualidade rara: --mas o ânimo de a afirmar intemeratamente diante da majestosa Tradição, da Regra, e das conclusões oraculares dos Mestres, é já uma virtude, e raríssima, de radiosa excepção!
Fradique (noutra carta a J. Teixeira de Azevedo) fala dum polaco, G. Cornuski, professor e crítico, que escrevia na Revista Suiça , e que (diz Fradique) «constantemente sentia o seu gosto, muito pessoal e muito decidido, rebelar-se contra obras de Literatura e de Arte que a unanimidade crítica, desde séculos, tem consagrado como magistrais--a Gerusalemme Liberata do Tasso, as telas do Ticiano, as tragédias de Racine, as orações de Bossuet, os nossos Lusíadas e outros monumentos canonizados. Mas, sempre que a sua probidade de professor e de Crítico lhe impunha à proclamação da verdade, este homem robusto, sanguíneo, que heroicamente se batera em duas insurreições, tremia, pensava:--«Não! Por que será o meu critério mais seguro que o de tão finos entendimentos através dos tempos? Quem sabe? Talvez nessas obras exista a sublimidade-- e só no meu espírito a impotência de a compreender». E o desgraçado Cornuski, com a alma mais triste que um crepúsculo de Outono, continuava diante dos coros da Athalie e das nudezas de Ticiano, a murmurar desconsoladamente:--«Como é belo!»
Raros sofrem estas angústias críticas do desditoso Cornuski. Todos, porém, com risonha inconsciência, praticam o seu servilismo intelectual. Já, com efeito, porque o nosso espírito não possua a viril coragem de afrontar a autoridade daqueles a quem, tradicionalmente, atribui um critério mais firme e um saber mais alto; já porque as ideias estabelecidas, flutuando difusamente na nossa memória, depois de leituras e conversas, nos pareçam ser as nossas próprias; já porque a sugestão desses conceitos se imponha e nos leve subtilmente a concluir em concordância com eles--a lamentável verdade é que hoje todos nós servilmente tendemos a pensar e sentir, como antes de nós e em torno de nós já se sentiu ou pensou.
«O homem do século XIX, o Europeu, porque só ele é essencialmente do século XIX (diz Fradique numa carta a Carlos Mayer), vive dentro duma pálida e morna infecção de banalidade , causada pelos quarenta mil volumes que todos os anos, suando e gemendo, a Inglaterra, a França e a Alemanha depositam às esquinas, e em que interminavelmente e monotonamente reproduzem, com um ou outro arrebique sobreposto, as quatro ideias e as quatro impressões legadas pela Antiguidade e pela Renascença. O Estado por meio das suas escolas canaliza esta infecção. A isto, oh Carolus, se chama educar ! A criança, desde a sua primeira «Selecta de Leitura» ainda mal soletrada, começa a absorver esta camada do Lugar Comum-- camada que depois todos os dias, através da vida, o Jornal, a Revista, o Folheto, o Livro Ihe vão atochando no espírito até lho empastarem todo em banalidade, e lho tornarem tão inútil para a produção como um solo cuja fertilidade nativa morreu sob a areia e pedregulho de que foi barbaramente alastrado. Para que um Europeu lograsse ainda hoje ter algumas ideias novas, de viçosa originalidade, seria necessário que se internasse no Deserto ou nos Pampas; e aí esperasse pacientemente que os sopros vivos da Natureza, batendo-lhe a Inteligência e dela pouco a pouco, varrendo os detritos de vinte séculos de Literatura, lhe refizessem uma virgindade. Por isso eu te afirmo, oh Carolus Mayerensis, que a Inteligência, que altivamente pretenda readquirir a divina potência de gerar, deve ir curar-se da Civilização literária por meio duma residência tónica, durante dois anos, entre os Hotentotes e os Patagónios. A Patagónia opera sobre o Intelecto como Vichy sobre o fígado-- desobstruindo-o, e permitindo-lhe o são exercício da função natural. Depois de dois anos de vida selvagem, entre o Hotentote nu movendo-se na plenitude lógica do Instinto, --que restará ao civilizado de todas as suas ideias sobre o Progresso, a Moral, a Religião, a Indústria, a Economia Política, a Sociedade e a Arte? Farrapos. Os pendentes farrapos que Ihe restarão das pantalonas e da quinzena que trouxe da Europa, depois de vinte meses de matagal e de brejo. E não possuindo em torno de si Livros e Revistas que Ihe renovem uma provisão de «ideias feitas», nem um benéfico Nunes Algibebe que Ihe forneça uma outra andaina de «fato feito» --o Europeu irá insensivelmente regressando a nobreza do estado primitivo, nudez do corpo e originalidade da alma. Quando de lá voltar é um Adão forte e puro, virgem de literatura, com o crânio limpo de todos os conceitos e todas as noções amontoadas desde Aristóteles, podendo proceder soberbamente a um exame inédito das coisas humanas. Carlos, espírito que destilas espíritos , queres remergulhar nas Origens e vir comigo à inspiradora Hotentócia? Lá, livres e nus, estirados ao sol entre a palmeira e o regato que tu telarmente nos darão o sustento do corpo, com a nossa lança forte cravada na relva, e mulheres ao lado vertendo-nos, num canto doce, a porção de poesia e de sonho que a alma precisa--deixaremos livremente as ilhargas crestadas estalarem-nos de riso, à ideia das grandes Filosofias, e das grandes Morais, e das grandes Economias, e das grandes Críticas, e das grandes Pilhérias que vão por essa Europa, onde densos formigueiros de chapéus altos se atropelam, estonteados pelas superstições da civilização, pela ilusão do ouro, pelo pedantismo das ciências, pelas mistificações dos reformadores, pela escravidão da rotina, e pela estúpida admiração de si mesmos!...»
Assim diz Fradique. Ora este «exame inédito das coisas humanas», só possível, segundo o poeta das LAPIDÁRIAS, ao Adão renovado que regressasse da Patagónia, com o espírito escarolado do pó e do lixo de longos anos de Literatura--tentou-o ele, sem deixar os muros clássicos da Rua de Varennes, com incomparável vigor e sinceridade. E nisto mostrava intrepidez moral. No mundo a que irresistivelmente o prendiam os seus gostos e os seus hábitos--mundo mediano e regrado, sem invenção e sem iniciativa intelectual, onde as Ideias, para agradar, devem ser como as Maneiras, «geralmente adoptadas» e não individualmente criadas-- Fradique, com a sua indócil e brusca liberdade de Juízos, afrontava o perigo de passar por um petulante rebuscador de originalidade, ávido de gloriola e de excessivo destaque. Um espírito inventivo e novo, com uma força de pensar muito própria, deixando transbordar a vida abundante e múltipla que o anima e enche --é mais desagradável a esse mundo do que o homem, rudemente natural, que não regre e limite dentro das «Conveniências» a espessura da cabeleira, o estridor das risadas, e o franco mover dos membros grossos. Desse espírito indisciplinado e criador, logo se murmura com desconfiança: «Pretensioso! busca o efeito e o destaque!» Ora Fradique nada detestava mais intensamente do que o efeito e o destaque excessivo . Nunca Ihe conheci senão gravatas escuras. E tudo preferiria a ser apontado como um desses homens, que, sem ódio sincero a Diana e ao seu culto e só para que deles se fale com espanto nas praças, vão, em plena festa, agitando um grande facho, incendiar-lhe o templo em Éfeso. Tudo preferiria--menos (como ele diz numa carta a Madame de Jouarre) «ter de vestir a Verdade nos armazéns do Louvre, para poder entrar com ela em casa de Ana de Varle, duquesa de Varle e de Orgemont. A entrar hei-de levar a minha amiga nua, toda nua, pisando os tapetes com os seus pés nus, enristando para os homens as pontas fecundas dos seus nobres seios nus. Amicus Mundus, sed magis amica Veritas ! Este belo latim significa, minha madrinha, que eu, no fundo, julgo que a originalidade é agradável às mulheres e só desagradável aos homens--o que duplamente me leva a amá-la com pertinácia».
Esta independência, esta livre elasticidade de espírito e intensa sinceridade--impedindo que, por sedução, ele se desse todo a um Sistema, onde para sempre permanecesse por inércia--eram de resto as qualidades que melhor convinham à função intelectual que, para Fradique, se tornara a mais continua e preferida «Não há em mim infelizmente (escrevia ele a Oliveira Martins, em 1882) nem um sábio, nem um filósofo. Quero dizer, não sou um desses homens seguros e úteis, destinados por temperamento às análises secundárias que se chamam Ciências, e que consistem em reduzir uma multidão de factos esparsos a Tipos e Leis particulares, por onde se explicam modalidades do Universo; nem sou também um desses homens, fascinantes e pouco seguros, destinados por génio às análises superiores que se chamam Filosofias, e que consistem em reduzir essas Leis e esses Tipos a uma fórmula geral, por onde se explica a essência mesma do inteiro Universo. Não sendo pois um sábio, nem um filósofo, não posso concorrer para o melhoramento dos meus semelhantes--nem acrescendo-lhes o bem-estar por meio da Ciência, que é uma produtora de riqueza, nem elevando-Ihes o bem-sentir por meio da Metafísica, que é uma inspiradora de poesia. A entrada na História também se me conserva vedada:--porque, se, para se produzir Literatura basta possuir talentos, para tentar a História convém possuir virtudes. E eu!. . . Só portanto me resta ser, através das ideias e dos factos, um homem que passa, infinitamente curioso e atento. A egoista ocupação do meu espírito hoje, caro historiador, consiste em me acercar duma ideia ou dum facto, deslizar suavemente para dentro, percorrê-lo miudamente, explorar-lhe o inédito, gozar todas as surpresas e emoções intelectuais que ele possa dar, recolher com cuidado o ensino ou a parcela de verdade que exista nos seus refolhos--e sair, passar a outro facto ou a outra ideia, com vagar e com paz, como se percorresse uma a uma as cidades dum país de arte e luxo. Assim visitei outrora a Itália, enlevado no esplendor das cores e das formas. Temporal e espiritualmente fiquei simplesmente um touriste».
Estes touristes da inteligência abundam em França e em Inglaterra. Somente Fradique não se limitava, como esses, a exames exteriores e impessoais, à maneira de quem numa cidade do Oriente, retendo as noções e os gostos de Europeu, estuda apenas o aéreo relevo dos monumentos e a roupagem das multidões. Fradique (para continuar a sua imagem), transformava-se em «cidadão das cidades que visitava». Mantinha, por princípio, que se devia momentaneamente crer, para bem compreender uma crença. Assim se fizera babista, para penetrar e desvendar o Babismo. Assim se afiliara em Paris a um clube revolucionário. As Panteras de Batignolles , e frequentara as suas sessões, encolhido numa quinzena sórdida pregada com alfinetes, com a esperança de lá colher «a flor de alguma extravagância instrutiva». Assim se incorporava em Londres aos Positivistas rituais, que, nos dias festivos do Calendário Comtista, vão queimar o incenso e a mirra na ara da Humanidade e enfeitar de rosas a Imagem de Augusto Comte. Assim se ligara com os Teosofistas , concorrera pródigamente para a fundação da Revista Espiritista , e presidia às Evocações da Rua Cardinet, envolto na túnica de linho, entre os dois mediums supremos, Patoff e Lady Thorgan. Assim habitara durante um longo Verão Seo-d'Urgel, a católica cidadela do Carlismo, «para destrinçar bem (diz ele) quais são os motivos e as fórmulas que fazem um Carlista --porque todo o sectário obedece à realidade dum motivo e à ilusão duma fórmula». Assim se tornara o confidente do venerável Principe Koblaskini, «para poder desmontar e estudar peça a peça o mecanismo dum cérebro de Niilista». Assim se preparava (quando a morte o surpreendeu) a voltar à índia, para se tornar budista praticante, e penetrar cabalmente o Budismo, em que fixara a curiosidade e actividade crítica dos seus derradeiros anos. De sorte que dele bem se pode dizer que foi o devoto de todas as Religiões, o partidário de todos os Partidos, o discípulo de todas as Filosofias--cometa errando através das ideias, embebendo-se convictamente nelas, de cada uma recebendo um acréscimo de substância, mas em cada uma deixando alguma coisa do calor e da energia do seu movimento pensante. Aqueles que imperfeitamente o conheciam classificavam Fradique como um diletante. Não! essa seria convicção (a que os Ingleses chamam earnestness ), com que Fradique se arremessava ao fundo real das coisas, comunicava à sua vida uma valia e eficácia muito superiores às que o diletantismo, a diversão céptica que tantas injúrias arrancou a Carlyle, comunica às naturezas que a ele deliciosamente se abandonam. O diletante, com efeito, corre entre as ideias e os factos como as borboletas (a quem é desde séculos comparado) correm entre as flores, para pousar, retomar logo o voo estouvado, encontrando nessa fugidia mutabilidade o deleite supremo. Fradique, porém, ia como a abelha, de cada planta pacientemente extraindo o seu mel:--quero dizer, de cada opinião recolhendo essa «parcela de verdade» que cada uma invariavelmente contém, desde que homens, depois de outros homens, a tenham fomentado com interesse ou paixão.
Assim se exercia esta diligente e alta Inteligência. Qual era, porém, a sua qualidade essencial e intrínseca? Tanto quanto pude discernir, a suprema qualidade intelectual de Fradique pareceu-me sempre ser--uma percepção extraordinária da Realidade. «Todo o fenómeno (diz ele numa carta a Antero de Quental, sugestiva através de certa obscuridade que a envolve) tem uma Realidade. A expressão de Realidade não é filosófica; mas eu emprego-a, lanço-a ao acaso e tenteando, para apanhar dentro dela o mais possível dum conceito pouco coercível, quase irredutível ao verbo. Todo o fenómeno, pois, tem, relativamente ao nosso entendimento e à sua potência de discriminar, uma Realidade--quero dizer certos caracteres, ou (para me exprimir por uma imagem, como recomenda Buffon) certos contornos que o limitam, o definem, lhe dão feição própria no esparso e universal conjunto, e constituem o seu exacto, real e único modo de ser. Somente o erro, a ignorância, os preconceitos, a tradição, a rotina e sobretudo a ILUSÃO , formam em torno de cada fenómeno uma névoa que esbate e deforma os seus contornos, e impede que a visão intelectual o divise no seu exacto, real e único modo de ser. É justamente o que sucede aos monumentos de Londres, mergulhados no nevoeiro... Tudo isto vai expresso dum modo bem hesitante e incompleto! Lá fora o sol está caindo dum céu fino e nítido, sobre o meu quintal de convento coberto de neve dura: neste ar tão puro e claro, em que as coisas tomam um relevo rígido, perdi toda a flexibilidade e fluidez da teenologia filosófica- só me poderia exprimir por imagens recortadas à tesoura. Mas você decerto compreenderá, Antero excelente e subtil! Já esteve em Londres, no Outono, em Novembro? Nas manhãs de nevoeiro, numa rua de Londres, há dificuldade em distinguir se a sombra densa, que ao longe se empasta, é a estátua dum herói ou o fragmento dum tapume. Uma pardacenta ilusão submerge toda a cidade--e com espanto se encontra numa taverna, quem julgara penetrar num templo. Ora para a maioria dos espíritos, uma nevoa igual flutua sobre as realidades da Vida e do Mundo. Daí vem que quase todos os seus passos são transvios, quase todos os seus juízos são enganos; e estes constantemente estão trocando o Templo e a Taverna. Raras são as visões intelectuais, bastante agudas e poderosas, para romper através da neblina e surpreender as linhas exactas, o verdadeiro contorno da Realidade. Eis o que eu queria tartamudear».
Pois bem! Fradique dispunha de uma dessas visões privilegiadas. O próprio modo que tinha de pousar lentamente os olhos e detalhar em silêncio -- como dizia Oliveira Martins--revelava logo o seu processo interior de concentrar e aplicar a Razão, à maneira de um longo e pertinaz dardo de luz, até que, desfeitas as nevoas, a Realidade pouco a pouco Ihe surgisse na sua rigorosa e única forma
A manifestação desta magnífica força, que mais impressionava--era o seu poder de definir . Possuindo um espírito que via com a máxima exactidão; possuindo um verbo que traduzia com a máxima concisão--ele podia assim dar resumvs absolutamente profundos e perfeitos Lembro que uma noite, na sua casa da Rua de Varennes, em Paris, se discutia com ardor a natureza da Arte Repetiram-se todas as definições de Arte, enunciadas desde Platão: inventaram-se outras, que eram, como sempre, o fenómeno visto limitadamente através dum temperamento. Fradique conservou-se algum tempo mudo, dardejando os olhos para o vago. Por fim, com essa maneira lenta, (que para os que incompletamente o conheciam, parecia professoral) murmurou, no silêncio deferente que se alargara:--«A Arte é um resumo da Natureza feito pela imaginação».
Certamente, não conheço mais completa definição de Arte! E com razão afirmava um amigo nosso, homem de excelente fantasia, que «se o bom Deus, um dia, compadecido das nossas hesitações, nos atirasse lá de cima, do seu divino ermo, a final explicação da Arte, nós ouviríamos ressoar entre as nuvens, soberba como o rolar de cem carros de guerra, a definição de Fradique!»
A superior inteligência de Fradique tinha o apoio duma cultura forte e rica. Já os seus instrumentos de saber eram consideráveis. Além dum sólido conhecimento das línguas cIássicas (que, na sua idade de Poesia e de Literatura decorativa, o habilitara a criar em latim bárbaro poemetos tão belos como o Laus Veneris tenebrosae )--possuía profundamente os idiomas das três grandes nações pensantes, a França, a Inglaterra e a Alemanha. Conhecia também o árabe, que (segundo me afirmou Riaz-Effendi, cronista do sultão Abdul-Aziz) falava com abundância e gosto.
As ciências naturais eram-lhe queridas e fami1iares; e uma insaciável e religiosa curiosidade do Universo, impelira-o a estudar tudo o que divinamente o compõe, desde os insectos até aos astros. Estudos carinhosamente feitos com o coração-- porque Fradique sentia pela Natureza, sobretudo pelo animal e pela planta, uma ternura e uma veneração genuinamente budistas. «Amo a Natureza (escrevia-me ele em 1882) por si mesma, toda e individualmente, na graça e na fealdade de cada uma das formas inumeráveis que a enchem: e amo-a ainda como manifestação tangível e múltipla da suprema Unidade, da Realidade intangível, a que cada Religião e cada Filosofia deram um nome diverso e a que eu presto culto sob o nome de VIDA. Em resumo adoro a Vida--de que são igualmente expressões uma rosa e uma chaga, uma constelação e (com horror o confesso) o conselheiro Acácio. Adoro a Vida e portanto tudo adora--porque tudo é viver, mesmo morrer. Um cadáver rígido no seu esquife vive tanto como uma águia batendo furiosamente o voo. E a minha religião está toda no credo do Atanásio, com uma pequena variante:--Creio na Vida toda-poderosa, criadora do Céu e da Terra...»
Quando começou, porém, a nossa intimidade, em 1880, o seu inquieto espírito mergulhava de preferência nas ciências sociais, aquelas sobretudo que pertencem à Pré-História--a Antropologia, a Linguística, o estudo das Raças, dos Mitos e das Instituições Primitivas. Quase todos os três meses, altas rumas de livros enviadas da casa Hachette, densas camadas de Revistas especiais, alastrando o tapete da Caramânia, indicavam-me que uma nova curiosidade se apoderara dele com intensidade e paixão. Conheci-o, assim, sucessiva e ardentemente ocupado com os monumentos megalíticos da Andaluzia; com as habitações lacustres; com a mitologia dos povos Arianos; com a magia Caldaica; com as raças Polinésias; com o direito costumário dos Cafres; com a cristianização dos Deuses Pagãos... Estas aferradas investigações duravam enquanto podia extrair delas alguma emoção ou surpresa intelectual». Depois, um dia. Revistas e volumes desapareciam, e Fradique anunciava triunfalmente, alargando os passos alegres por sobre o tapete livre:--«Sorvi todo o Sabeísmo!», ou «Esgotei os Polinésios!»
O estudo porém a que se prendeu ininterrompidamente, com especial constância, foi o da História. «Desde pequeno (escrevia ele a Oliveira Martins, numa das suas últimas cartas, em 1886) tive a paixão da História. E adivinha você por quê, Historiador? Pelo confortável e conchegado sentimento que ela me dava da solidariedade humana. Quando fiz onze anos, minha avó, de repente, para me habituar às coisas duras da vida (como ela dizia), arrancou-me ao pachorrento ensino do padre Nunes, e mandou-me a uma escola chamada Terceirense . O jardineiro levava-me pela mão: e todos os dias a avó me dava com solenidade um pataco para eu comprar na tia Marta, confeiteira da esquina, bolos para a minha merenda. Este criado, este pataco, estes bolos, eram costumes novos que feriam o meu monstruoso orgulho de morgadinho--por me descerem ao nível humilde dos filhos do nosso procurador. Um dia, porém, folheando uma Enciclopédia de Antiguidades Ramanas , que tinha estampas, li, com surpresa, que os rapazes em Roma (na grande Roma!) iam também de manhã para a escola, como eu, pela mão dum servo--denominado o Capsarius; e compravam também, como eu, um bolo numa tia Marta do Velabro ou das Carinas, para comerem a merenda--que chamavam o Ientaculum . Pois, meu caro, no mesmo instante, a venerável antiguidade desses hábitos tirou-lhes a vulgaridade toda que neles me humilhava tanto! Depois de os ter detestado, por serem comuns aos filhos do Silva procurador--respeitei-os por terem sido habituais nos filhos de Cipião. A compra do bolo tornou-se como um rito, que desde a Antiguidade todos os rapazes de escola cumpriam, e que me era dado por meu turno celebrar, numa honrosa solidariedade com a grande gente togada. Tudo isto, evidentemente, não o sentia com esta clara consciência. Mas nunca entrei daí por diante na tia Marta, sem erguer a cabeça, pensando com uma vanglória heróica: --«Assim faziam também os Romanos!» Era por esse tempo pouco mais alto que uma espada goda, e amava uma mulher obesa que morava ao fim da rua...»
Nessa mesma carta, adiante, Fradique acrescenta:--«Levou-me pois efectivamente à História o meu amor da Unidade--amor que envolve o horror às interrupções, às lacunas, aos espaços escuros onde se não sabe o que há. Viajei por toda a parte viajável, li todos os livros de explorações e de travessias--porque me repugnava não conhecer o globo em que habito até aos seus extremos limites, e não sentira continua solidariedade do pedaço de terra que tenho sob os pés, com toda a outra terra que se arqueia para além. Por isso, incansavelmente exploro a História, para perceber até aos seus derradeiros limites a Humanidade a que pertenço, e sentir a compacta solidariedade do meu ser. com a de todos os que me precederam na vida. Talvez você murmure com desdém--«mera bisbilhotice!» Amigo meu, não despreze a bisbilhotice! Ela é um impulso humano, de latitude infinita, que, como todos, vai do reles ao sublime. Por um lado leva a escutar às portas --e pelo outro a descobrir a América!»
O saber histórico de Fradique surpreendia, realmente, pela amplexidade e pelo detalhe. Um amigo nosso exclamava um dia, com essa ironia afável que nos homens de raça céltica sublinha e corrige a admiração:--«Aquele Fradique! Tira a charuteira, e dá uma síntese profunda, duma transparência de cristal, sobre a guerra do Peloponeso;--depois acende o charuto, e explica o feitio e o metal da fivela do cinturão de Leónidas!» Com efeito, a sua forte capacidade de compreender filosoficamente os movimentos colectivos, o seu fino poder de evocar psicologicamente os caracteres individuais--aliava-se nele a um minucioso saber arqueológico da vida, das maneiras, dos trajes, das armas, das festas, dos ritos de todas as idades, desde a índia Védica até à França Imperial. As suas cartas a Oliveira Martins (sobre o Sebastianismo, o nosso Império no Oriente, o Marquês de Pombal) são verdadeiras maravilhas pela sagaz intuição, a alta potência sintética, a certeza do saber, a força e a abundância das ideias novas. E, por outro lado, a sua erudição arqueológica repetidamente esclareceu e auxiliou, na sábia composição das suas telas, o paciente e fino reconstrutor dos Costumes e das Maneiras da Antiguidade Clássica, o velho Suma-Rabema. Assim mo confessou uma tarde Suma-Rabema, regando as roseiras, no seu jardim de Chelsea.
Fradique era de resto ajudado por uma prodigiosa memória, que tudo recolhia e tudo retinha -- vasto e claro armazém de factos, de noções, de formas, todos bem arrumados, bem classificados, prontos sempre a servir. O nosso amigo Chambray afirmava que, comparável à memória de Fradique, como «instalação, ordem e excelência do stock», só conhecia a adega do café Inglês.
A cultura de Fradique recebia um constante alimento e acréscimo das viagens que, sem cessar, empreendia, sob o impulso de admirações ou de curiosidades intelectuais. Só a Arqueologia o levou quatro vezes ao Oriente:--Ainda que a sua derradeira residência em Jerusalém, durante dezoito meses, foi motivada (segundo me afirmou o cônsul Raccolini), por poéticos amores com uma das mais esplêndidas mulheres da Siria, uma filha de Abraão Côppo, o faustoso banqueiro de Alepo, tão lamentavelmente morta depois, sobre as tristes costas de Chipre, no naufrágio do Magnólia . A sua aventurosa e áspera peregrinação pela China, desde o Tibete (onde quase deixou a vida, tentando temeràriamente penetrar na cidade sagrada de Lahsá) até à alta Manchúria, constitui o mais completo estudo até hoje realizado por um homem da Europa sobre os Costumes, o Governo, a Ética e a Literatura desse povo «profundo entre todos, que (como diz Fradique) conseguiu descobrir os três ou quatro únicos principios de moral capazes, pela sua absoluta força, de eternizar uma civilização».
O exame da Rússia e dos seus movimentos sociais e religiosos, trouxeram-no prolongados meses pelas provincias rurais de entre o Dniepre e o Volga. A necessidade duma certeza sobre os Presídios Penais da Sibéria, impeliu-o a afrontar centenas de milhas de estepes e de neves, numa rude telega, até às minas de prata de Nerchinski. E prosseguiria neste activo interesse, se não recebesse subitamente, ao chegar à costa, a Arcangel, este aviso do general Armankoff, chefe da IV secção da polícia imperial:-- Monsieur, vous nous observez de trop près pour que votre jugement n'en soit faussé; je vous invite donc, sur votre intérêt, et pour avoir de la Russie une vue d'ensemble plus exacte, d'aller la regarder de plus loin, dans votre belle maison de Paris! -- Fradique abalou para Vasa, sobre o golfo de Bótnia. Passou logo à Suécia, e mandou de lá, sem data, este bilhete ao general Armankoff:-- Monsieur, j'ai reçu votre invitation où i1 y a beaucoup d'intolerance et trois fautes de français .
Os mesmos interesses de espírito e «necessidades de certeza» o levaram na América do Sul desde o Amazonas até às areias da Patagónia, o levaram na África Austral desde o Cabo até aos Montes de Zokunga... «Tenho folheado e lido atentamente o Mundo como um livro cheio de ideias. Para ver por fora , por mera festa dos olhos, nunca fui senão a Marrocos».
O que tornava estas viagens tão fecundas como ensino, era a sua rápida e carinhosa simpatia por todos os povos. Nunca visitou países à maneira do detestável touriste francês, para notar de alto e pecamente «os defeitos»--isto é, as divergências desse tipo de civilização mediano e genérico de onde saia e que preferia. Fradique amava logo os costumes, as ideias, os preconceitos dos homens que o cercavam: e, fundindo-se com eles no seu modo de pensar e de sentir, recebia uma lição directa e viva de cada sociedade em que mergulhava. Este eficaz preceito--« em Roma sê romano »--tão fácil e doce de cumprir em Roma, entre as vinhas da colina Célia e as águas sussurrantes da Fonte Paulina, cumpria-o ele gostosamente, trilhando com as alpercatas rotas os desfiladeiros do Himalaia. E estava tão homogeneamente numa cervejaria filosófica da Alemanha, aprofundando o Absoluto entre professores de Tubingen--como numa aringa africana da terra dos Matabeles, comparando os méritos da carabina « Express» e da carabina « Winchester», entre caçadores de elefantes.
Desde 1880, os seus movimentos pouco a pouco se concentraram entre Paris e Londres--com excepção das «visitas filiais» a Portugal: porque, apesar da sua dispersão pelo Mundo, da sua facilidade em se nacionalizar nas terras alheias, e da sua impersonalidade crítica, Fradique foi sempre um genuino Português, com irradicáveis traços de fidalgo ilhéu.
O mais puro e íntimo do seu interesse deu-o sempre aos homens e às coisas de Portugal. A compra da quinta do Saragoça , em Sintra, realizara-a (como diz numa carta a F. G., com desacostumada emoção) « para ter terra em Portugal , e para se prender pelo forte vínculo da propriedade ao solo augusto donde um dia tinham partido, levados por um ingénuo tumulto de ideias grandes, os seus avós, buscadores de mundos, de quem ele herdara o sangue e a curiosidade do além !»
Sempre que vinha a Portugal ia «retemperar a fibra» percorrendo uma província, lentamente, a cavalo--com demoras em vilas decrépitas que o encantavam, infindáveis cavaqueiras à lareira dos campos, fraternizações ruidosas nos adros e nas tavernas, idas festivas a romarias no carro de bois, no vetusto e venerável carro sabino, toldado de chita, enfeitado de louro. A sua região preferida era o Ribatejo, a terra chã da leziria e do boi. «Aí (diz ele), de jaleca e cinta, montado num potro, com a vara de campino erguida, correndo entre as manadas de gado, nos finos e lavados ares da manhã, sinto, mais que em nenhuma outra parte, a delicia de viver».
Lisboa só lhe agradava--como paisagem. «Com três fortes retoques (escrevia-me ele em 1881, do Hotel Braganza) , com arvoredo e pinheiros mansos plantados nas colinas calvas da Outra Banda; com azulejos lustrosos e alegres revestindo as fachadas sujas do casario; com uma varredela definitiva por essas benditas ruas-- Lisboa seria uma dessas belezas da Natureza criadas pelo Homem, que se tornam um motivo de sonho, de arte e de peregrinação. Mas uma existência enraizada em Lisboa não me parece tolerável. Falta aqui uma atmosfera intelectual, onde a alma respire. Depois certas feições, singutarmente repugnantes, dominam. Lisboa é uma cidade aliteratada , afadistada , catita e conselheiral . Há Iiteratice na simples maneira com que um caixeiro vende um metro de fita; e, nas próprias graças com que uma senhora recebe, transparece fadistice : mesmo na Arte há conselheirismo ; e há catitismo mesmo nos cemitérios. Mas a náusea suprema, meu amigo, vem da politiquice e dos politiquetes».
Fradique nutria pelos políticos todos os horrores, os mais injustificados: horror intelectual, julgando-os incultos, broncos, inaptos absolutamente para criar ou compreender ideias; horror mundano, pressupondo-os reles, de maneiras crassas, impróprios para se misturar a natureza de gosto; horror físico, imaginando que nunca se lavavam, rarissimamente mudavam de meias, e que deles provinha esse cheiro morno e mole, que tanto surpreende e enoja em S. Bento, aos que dele não têm o hábito profissional.
Havia nestas ferozes opiniões, certamente, laivos de perfeita verdade. Mas em geral, os juízos de Fradique sobre a Política ofereciam o cunho dum preconceito que dogmatiza--e não duma observação que discrimina. Assim Iho afirmava eu uma manhã, no Braganza, mostrando que todas essas deficiências de espírito, de cultura, de maneiras, de gosto, de finura, tão acerbamente notadas por ele nos Políticos--se explicam suficientemente pela precipitada democratização da nossa sociedade; pela rasteira vulgaridade da vida provincial; pelas influências abomináveis da Universidade; e ainda por íntimas razões que são, no fundo, honrosas para esses desgraçados Políticos, votados por um fado vingador à destruição da nossa terra.
Fradique replicou simplesmente:
--Se um rato morto me disser,--«eu cheiro mal por isto e por aquilo e sobretudo por que apodreci»,-- eu nem por isso deixo de o mandar varrer do meu quarto.
Havia aqui uma antipatia de instinto, toda fisiológica, cuja intransigência e obstinação nem factos nem raciocínios podiam vencer. Bem mais justo era o horror que lhe inspirava, na vida social de Lisboa, a inábil, descomedida e papalva imitação de Paris. Essa «saloia macaqueação», superiormente denunciada por ele numa carta que me escreveu em 1885, e onde assenta, num luminoso resumo, que « Lisboa é uma cidude traduzida do francês em calão »--tornava-se para Fradique, apenas transpunha Santa Apolónia, um tormento sincero. E a sua ansiedade perpétua era então descobrir, através da frandulagem do Francesismo, algum resto do genuino Portugal.
Logo a comida constituía para ele um real desgosto. A cada instante em cartas, em conversas, se lastima de não poder conseguir «um cozido vernáculo!»--«Onde estão (exclama ele, algures) os pratos veneráveis do Portugal português, o pato com macarrão do século XVIII, a almôndega indigesta e divina do tempo das descobertas, ou essa maravilhosa cabidela de frango, petisco dilecto de D. João IV, de que os fidalgos ingleses, que vieram ao reino buscar a noiva de Carlos II, levaram para Londres a surpreendente notícia? Tudo estragado! O mesmo provincianismo reles põe em calão as comédias de Labiche e os acepipes de Gouffé. E estamo-nos nutrindo miseravelmente dos sobejos democráticos do boulevard , requentados, e servidos em chalaça e galantina! Desastre estranho! As coisas mais deliciosas de Portugal, o lombo de porco, a vitela de Lafões, os legumes, os doces, os vinhos, degeneraram, insipidaram ... Desde quando? Pelo que dizem os velhos, degeneraram desde o Constitucionalismo e o Parlamentarismo. Depois desses enxertos funestos no velho tronco lusitano, os frutos têm perdido o sabor, como os homens têm perdido o carácter... »
Só uma ocasião, nesta especialidade considerável, o vi plenamente satisfeito Foi numa taverna da Mouraria (onde eu o levara), diante dum prato complicado e profundo de bacalhau, pimentos e grão-de-bico. Para o gozar com coerência, Fradique despiu a sobrecasaca. E como um de nós lançara casualmente o nome de Renan, ao atacarmos o pitéu sem igual, Fradique protestou com paixão:
--Nada de ideias! Deixem-me saborear esba bacalhoada, em perfeita inocência de espírito como no tempo do Senhor D. João V, antes da Democracia e da Crítica!
A saudade do velho Portugal era nele constante: e considerava que, por ter perdido esse tipo de civilização intensamente original, o mundo ficara diminuído. Este amor do passado revivia nele, bem curiosamente, quando via realizados em Lisboa, com uma inspiração original, o luxo e o «modernismo» inteligente das civilizações mais saturadas de cultura e perfeitas em gosto. A derradeira vez que o encontrei em Lisboa foi no Rato--numa festa de raro e delicado brilho. Fradique parecia desolado:
--Em Paris--afirmava ele--a duquesa de La Rochefoucauld-Bisaccia pode dar uma festa igual: e para isto não me valia a pena ter feito a quarentena em Marvão! Suponha, porém, você, que eu vinha achar aqui um sarau do tempo da Senhora D. Maria I, em casa dos Marialvas, com fidalgas sentadas em esteiras, frades tocando o lundum no bandolim, desembargadores pedindo mote, e os lacaios no pátio, entre os mendigos, rezando em coro a ladainha!... Aí estava uma coisa única, deliciosa, pela qual se podia fazer a viagem de Paris a Lisboa em liteira!
Um dia que jantávamos em casa de Carlos Mayer, e que Fradique lamentava, com melancólica sinceridade, o velho Portugal fidalgo e fradesco do tempo do Sr. D. João V-- Ramalho Ortigão não se conteve:
--Você é um monstro, Fradique! O que você queria era habitar o confortável Paris do meado do século XIX, e ter aqui, a dois dias de viagem, o Portugal do século XVIII, onde pudesse vir, como a um museu, regalar-se de pitoresco e de arcaismo... Você, lá na Rua de Varennes, consolado de decência e de ordem. E nós aqui , em vielas fedorentas , inundados à noite pelos despejos de águas sujas, aturdidos pelas arruaças do marquês de Cascais ou do conde de Aveiras, levados aos empurrões para a enxovia pelos malsins da Intendência, etc., etc.... Confesse que é o que você queria!
Fradique volveu, serenamente:
--Era bem mais digno e mais patriótico que em lugar de vos ver aqui, a vós, homens de letras, esticados nas gravatas e nas ideias que toda a Europa usa, vos encontrasse de cabeleira e rabicho, com as velhas algibeiras da casaca de seda cheias de odes sáficas, encolhidinhos no salutar terror de El- Rei e do Diabo, rondando os pátios da casa de Marialva ou de Aveiro, à espera que os senhores, de cima, depois de dadas as graças, vos mandassem, por um pretinho, os restos do peru e o mote. Tudo isso seria dignamente português, e sincero; vós não merecíeis melhor; e a vida não é possível sem um bocado de pitoresco depois do almoço.
Com efeito, nesta saudade de Fradique pelo Portugal antigo, havia amor do «pitoresco», estranho num homem tão subjectivo e intelectual: mas, sobretudo, havia o ódio a esta universal modernização que reduz todos os costumes, crenças, ideias, gostos, modos, os mais ingénitos e mais originalmente próprios, a um tipo uniforme (representado pelo sujeito utilitário e sério de sobrecasaca preta)--com a monotonia com que o chinês apara todas as árvores dum jardim, até lhes dar a forma única e dogmática de pirâmide ou de vaso funerário.
Por isso Fradique em Portugal amava sobretudo o povo--o povo que não mudou, como não muda a Natureza que o envolve e lhe comunica os seus caracteres graves e doces. Amava-o pelas suas qualidades, e também pelos seus defeitos: --pela sua morosa paciência de boi manso; pela alegria idílica que lhe poetiza o trabalho; pela calma aquiescência à vassalagem com que depois do Senhor Rei venera o Senhor Governo ; pela sua doçura amaviosa e naturalista; pelo seu catolicismo pagão, e carinho fiel aos Deuses latinos, tornados santos calendares; pelos seus trajes, pelos seus cantos... «Amava-o ainda (diz ele) pela sua linguagem tão bronca e pobre, mas a única em Portugal onde se não sente odiosamente a influência do Lamartinismo ou das Sebentas de Direito Público».
A última vez que Fradique visitou Lisboa foi essa em que o encontrei no Rato, lamentando os saraus beatos e sécios do século XVIII. O antigo poeta das LAPIDÁRIAS tinha então cinquenta anos; e cada dia se prendia mais à quieta doçura dos seus hábitos de Paris.
Fradique habitava, na Rua de Varennes, desde 1880, uma ala do antigo palácio dos Duques de Tredennes, que ele mobilara com um luxo sóbrio e grave--tendo sempre detestado esse atulhamento de alfaias e estofos, onde inextricavelmente se embaralham e se contradizem as Artes e os Séculos, e que, sob o bárbaro e justo nome de bricabraque, tanto seduz os financeiros e as cocottes . Nobres e ricas tapeçarias de Paisagem e de História; amplos divãs de Aubusson; alguns móveis de arte da Renascença Francesa; porcelanas raras de Delft e da China; espaço, claridade, uma harmonia de tons castos--eis o que se encontrava nas cinco salas que constituiam o «covil» de Fradique. Todas as varandas, de ferro rendilhado, datando de Luis XIV, abriam sobre um desses jardins de árvores antigas, que, naquele bairro fidalgo e eclesiástico, formam retiros de silêncio e paz silvana, onde por vezes, nas noites de Maio, se arrisca a cantar um rouxinol.
A vida de Fradique era medida por um relógio Secular, que precedia o toque lento e quase austero das horas, com uma toada argentina de antiga dança de corte: e era mantida numa imutável regularidade pelo seu criado Smith, velho escocês da clã dos Macduffs, já todo branco de pêlo e ainda todo rosado de pele, que havia trinta anos o acompanhava, com severo zelo, através da vida e do mundo.
De manhã, às nove horas, mal se espalhavam no ar os compassos gentis e melancólicos daquele esquecido minuete de Cimarosa ou de Haydn, Smith rompia pelo quarto de Fradique, abria todas as janelas à luz, gritava:-- Morning, Sir ! Imediatamente Fradique, dando de entre a roupa um salto brusco que considerava «de higiene transcendente», corria ao imenso laboratório de mármore, a esponjar a face e a cabeça em água fria, com um resfolgar de Tritão ditoso. Depois, enfiando uma das cabaias de seda que tanto me maravilhavam, abandonava-se, estirado numa poltrona, aos cuidados de Smith que, como barbeiro (afirmava Fradique), reunia a ligeireza macia de Fígaro à sapiência confidencial do velho Oliveiro de Luis XI. E, com efeito, enquanto o ensaboava e escanhoava, Smith ia dando a Fradique um resumo nítido, sólido, todo em factos, dos telegramas políticos do Times , do Standard e da Gazeta de Colónia !
Era para mim uma surpresa, sempre renovada e saborosa, ver Smith, com a sua alta gravata branca à Palmerston, a rabona curta, as calças de xadrez verde e preto (cores da sua clã), os sapatos de verniz decotados, passando o pincel na barba do amo, e murmurando, em perfeita ciência e perfeita consciência:--«Não se realiza a conferência do príncipe de Bismarque com o conde Kalnocky... Os conservadores perderam a eleição suplementar de Iorque... Falava-se ontem em Viena dum novo empréstimo russo...» Os amigos em Lisboa riam desta «caturreira»; mas Fradique sustentava que havia aqui um proveitoso regresso à tradição clássica, que em todo o mundo latino, desde Cipião-o-Africano, instituíra os barbeiros como «informadores universais da coisa pública». Estes curtos resumos de Smith formavam a carcaça das suas noções políticas: e Fradique nunca dizia--«Li no Times »--mas «Li no Smith».
Bem barbeado, bem informado, Fradique mergulhava num banho ligeiramente tépido, donde voltava para as mãos vigorosas de Smith, que, com um jogo de luvas de lã, de flanela, de estopa de clina e de pele de tigre, o friccionava até que o corpo todo se lhe tornasse, como o de Apolo, «róseo e reluzente». Tomava então o seu chocolate; e recolhia à biblioteca, sala séria e simples, onde uma imagem da Verdade, radiosamente branca na sua nudez de mármore, pousava o dedo subtil sobre os lábios puros, simbolizando, em frente à vasta mesa de ébano, um trabalho todo íntimo, à busca de verdades que não são para o ruído e para o mundo
À uma hora almoçava, com a sobriedade dum grego, ovos e legumes:--e depois, estendido num divã, tomando goles lentos de chá russo, percorria nos Jornais e nas Revistas as crónicas de arte, de literatura, de teatro ou de sociedade, que não eram da competência política de Smith. Lia então também com cuidado os jornais portugueses (que chama algures «fenómenos picarescos de decomposição social»), sempre característicos, mas superiormente interessantes para quem, como ele, se comprazia em analisar «a obra genuína e sincera da mediocridade», e considerava Calino tão digno de estudo como Voltaire. O resto do dia dava-o aos amigos, às visitas, aos ateliers , às salas de armas, às exposições, aos clubes--aos cuidados diversos que se cria um homem de alto gosto, vivendo numa cidade de alta civilização!
De tarde subia ao Bois conduzindo o seu fáeton, ou montando a Sabá, uma maravilhosa égua das caudelarias de Aïn-Weibah, que Ihe cedera o Emir de Mossul. E a sua noite (quando não tinha cadeira na Ópera ou na Comédie ), era passada nalgum salão--precisando sempre findar o seu dia entre «o efémero feminino». (Assim dizia Fradique).
A influência deste «feminino» foi suprema na sua existência. Fradique amou mulheres; mas fora dessas, e sobre todas as coisas, amava a Mulher.
A sua conduta, para com as mulheres, era governada conjuntamente por devoções de espiritualista, por curiosidades de crítico, e por exigências de sanguíneo. À maneira dos sentimentais da Restauração, Fradique considerava-as como «organismos» superiores, divinamente complicados, diferentes e mais próprios de adoração do que tudo o que oferece a Natureza: ao mesmo tempo, através deste culto, ia dissecando e estudando esses «organismos divinos», fibra a fibra, sem respeito, por paixão de analista; e frequentemente o crítico e o entusiasta desapareciam para só restar nele um homem amando a mulher, na simples e boa lei natural, como os Faunos amavam as Ninfas.
As mulheres, além disso, estavam para ele (pelo menos nas suas teorias de conversação) classificadas em espécies. Havia a «mulher de exterior», flor de luxo e de mundanismo culto- e havia a «mulher de interior», a que guarda o lar diante da qual, qualquer que fosse o seu brilho, Fradique conservava um tom penetrado de respeito, excluindo toda a investigação experimental. «Estou em presença destas (escreve ele a Madame de Jouarre), como em face duma carta alheia fechada com sinete e lacre». Na presença, porém, daquelas que se «exteriorizam» e vivem todas no ruído e na fantasia, Fradique achava-se tão livre e tão irresponsável como perante um volume impresso. «Folhear o livro (diz ele ainda a Madame de Jouarre), anotá-lo nas margens acetinadas, criticá-lo em voz alta com independência e veia, levá-lo no cupé para ler à noite em casa, aconselhá-lo a um amigo, atirá-lo para um canto percorridas as melhores páginas--é bem permitido, creio eu, segundo a Cartilha e o Código».
Seriam estas subtilezas (como sugeria um cruel amigo nosso) as dum homem que teoriza e idealiza o seu temperamento de carrejão, para o tornar literariamente interessante? Não sei. O comentário mais instrutivo das suas teorias dava-o ele, visto numa sala, entre «o efémero feminino». Certas mulheres muito voluptuosas, quando escutam um homem que as perturba, abrem insensivelmente os lábios. Em Fradique eram os olhos que se alargavam. Tinha-os pequenos e cor de tabaco: mas junto duma dessas mulheres de exterior, «estrelas de mundanismo», tornavam-se-lhe imensos, cheios de luz negra, aveludados, quase húmidos. A velha lady Mongrave comparava-os, «às goelas abertas de duas serpentes». Havia ali, com efeito, um acto de aliciação e de absorção--mas havia sobretudo a evidência da perturbação e do encanto que o inundavam. Nessa atenção de beato diante da Virgem, no murmúrio quente da voz mais amolecedora que um ar de estufa, no humedecimento enleado dos seus olhos finos,--as mulheres viam apenas a influência omnipotentemente vencedora das suas graças de Forma e de Alma, sobre um homem esplendidamente viril. Ora nenhum homem mais perigoso, do que aquele que dá sempre às mulheres a impressão clara, quase tangível--de que elas são irresistíveis, e subjugam o coração mais rebelde só com mover os ombros lentos ou murmurar «que linda tarde!» Quem se mostra facilmente seduzido--facilmente se torna sedutor. É a lenda india, tão sagaz e real, do espelho encantado em que a velha Maharina se via radiosalmente bela. Para obter e reter esse espelho, em que, com tanto esplendor, se reflecte a sua pele engelhada--que pecados e que traições não cometerá a Maharina?...
Creio, pois, que Fradique foi profundamente amado, e que magnificamente o mereceu. As mulheres encontravam nele esse ser. raro entre os homens--um Homem. E para elas Fradique possuia esta superioridade inestimável, quase única na nossa geração--uma alma extremamente sensível, servida por um corpo extremamente forte.
De maior duração e intensidade que os seus amores, foram todavia as amizades que Fradique a si atraiu pela sua excelência moral. Quando eu conheci Fradique em Lisboa, no remoto ano de 1867, julguei sentir na sua natureza (como no seu verso), uma impassibilidade brilhante e metálica: e através da admiração que me deixara a sua arte, a sua personalidade, o seu viço, a sua cabaia de seda--confessei um dia a J. Teixeira de Azevedo, que não encontrara no poeta das LAPIDÁRIAS aquele tépido leite da bondade humana , sem o qual o velho Shakespeare (nem eu, depois dele) , compreendia que um homem fosse digno da humanidade. A sua mesma polidez, tão risonha e perfeita, me parecera mais composta por um sistema do que genuinamente ingénita. Decerto, porém, concorreu para a formação deste juízo uma carta (já velha, de 1855) que alguém me confiou, e em que Fradique, com toda a leviana altivez da mocidade, lançava este rude programa de conduta:--«Os homens nasceram para trabalhar, as mulheres para chorar, e nós, os fortes, para passar friamente através!...»
Mas em 1880, quando a nossa intimidade uma noite se fixou a uma mesa do Bignon, Fradique tinha cinquenta anos: e, ou porque eu então o observasse com uma assiduidade mais penetrante, ou porque nele se tivesse já operado com a idade esse fenómeno que Fustan de Carmanges chamou depois le degel de Fradique , bem cedo senti, através da impassibilidade marmórea do cinzelador das LAPIDÁRIAS, brotar, tépida e generosamente, o leite da bondade humana .
A forte expressão de virtude que nele loga me impressionou, foi a sua incondicional e irrestrita indulgência. Ou por uma conclusão da sua filosofia, ou por uma inspiração da sua natureza-- Fradique, perante o pecado e o delito, tendia àquela velha misericórdia evangélica que, consciente da universal fragilidade, pergunta de onde se erguerá a mão bastante pura, para arremessar a primeira pedra ao erro. Em toda a culpa ele via (talvez contra a razão, mas em ohediência àquela voz que falava baixo a S. Francisco de Assis e que ainda se não calou), a irremediável fraqueza humana: e o seu perdão subia logo do fundo dessa Piedade que jazia na sua alma, como manancial de águ pura em terra rica, sempre pronto a brotar.
A sua bondade, porém, não se limitava a esta expressão passiva. Toda a desgraça, desde a amargura limitada e tangível que passa na rua, até à vasta e esparsa miséria que, com a força dum elemento, devasta classes e raças, teve nele um consolador diligente e real. São dele, e escritas nos derradeiros anos (numa carta a G. F.) estas nobres palavras:--«Todos nós, que vivemos neste globo, formamos uma imensa caravana que marcha confusamente para o Nada. Cerca-nos uma Natureza inconsciente, impassível, mortal como nós, que não nos entende, nem sequer nos vê, e donde não podemos esperar nem socorro nem consolação. Só nos resta para nos dirigir, na rajada que nos leva, esse secular preceito, suma divina de toda a experiência humana--«ajudai-vos uns aos outros!» Que, na tumultuosa caminhada, portanto, onde passos sem conta se misturam--cada um ceda metade do seu pão àquele que tem fome; estenda metade do seu manto àquele que tem frio; acuda com o braço àquele que vai tropeçar; poupe o corpo daquele que já tombou; e se algum mais bem provido e seguro para o caminho necessitar apenas simpatia de almas, que as almas se abram para ele transbordando dessa simpatia... Só assim conseguiremos dar alguma beleza e alguma dignidade a esta escura debandada para a Morte».
Decerto Fradique não era um santo militante, rebuscando pelas vielas miséria a resgatar; mas nunca houve mal, por ele conhecido, que dele não recebesse alívio. Sempre que lia por acaso, num jornal, uma calamidade ou uma indigência, marcava a notícia com um traço a lápis, lançando ao lado um algarismo--que indicava ao velho Smith o número de libras que devia remeter, sem publicidade, pudicamente. A sua máxima para com os pobres, (a quem os Economistas afirmam que se não deve Caridade mas Justiça)--era «que à hora das comidas mais vale um pataco na mão que duas Filosofias a voar». As crianças, sobretudo quando necessitadas, inspiravam-lhe um enternecimento infinito; e era destes, singularmente raros, que encontrando, num agreste dia de Inverno, um pequenino que pede, transido de frio--param sob a chuva e sob o vento, desapertam pacientemente o paletó, descalçam pacientemente a luva, para vasculhar no fundo da algibeira, à procura da moeda de prata que vai ser o calor e o pão de um dia.
Esta caridade estendia-se budistamente a tudo que vive. Não conheci homem mais respeitador do animal e dos seus direitos. Uma ocasião em Paris, correndo ambos a uma estação de fiacres , para nos salvarmos dum chuveiro que desabava, e seguir, na pressa que nos levava, a uma venda de tapeçarias (onde Fradique cobiçava umas Nove Musas Dançando Entre Loureirais ), encontrámos apenas um cupé, cuja pileca, com o saco pendente do focinho, comia melancolicamente a sua ração. Fradique teimou em esperar que o cavalo almoçasse com sossego--e perdeu as Nove Musas .
Nos últimos tempos, preocupava-o sobretudo a miséria das classes--por sentir que nestas Democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoista, as almas cada dia se tornam mais secas e menos capazes de piedade. «A fraternidade (dizia ele numa carta de 1886, que conservo), vai-se sumindo, principalmente nestas vastas colmeias de cal e pedra, onde os homens teimam em se amontoar e lutar; e, através do constante deperecimento dos costumes e das simplicidades rurais, o mundo vai rolando a um egoísmo feroz. A primeira evidência deste egoísmo, é o desenvolvimento ruidoso da filantropia. Desde que a caridade se organiza e se consolida em instituição, com regulamentos, relatórios, comités, sessões, um presidente e uma campainha, e de sentimento natural passa a função oficial--é porque o homem, não contando já com os impulsos do seu coração, necessita obrigar-se publicamente ao bem pelas prescrições dum estatuto. Com os corações assim duros e os invernos tão longos, que vai ser dos pobres?...»
Quantas vezes, diante de mim, nos crepúsculos de Novembro, na sua biblioteca apenas alumiada pela chama incerta e doce da lenha no fogão, Fradique emergiu dum silêncio em que os olhares se lhe perdiam ao longe, como afundados em horizontes de tristeza--para assim lamentar, com enternecida elevação, todas as misérias humanas! E voltava então a amarga afirmação da crescente aspereza dos homens, forçados pela violência do conflito e da concorrência a um egoísmo rude, em que cada um se torna cada vez mais o lobo do seu semelhante, homo homini lupus .
--Era necessário que viesse outro Cristo!-- murmurei eu um dia.
Fradique encolheu os ombros:
--Há-de vir; há-de talvez libertar os escravos; há-de ter por isso a sua igreja e a sua liturgia; e depois há-de ser negado; e mais tarde há-de ser esquecido; e por fim hão-de surgir novas turbas de escravos. Não há nada a fazer. O que resta a cada um por prudência, é reunir um pecúlio e adquirir um revólver; e aos seus semelhantes que lhe baterem à porta, dar, segundo as circunstâncias, ou pão ou bala.
Assim, cheios de ideias, de delicadas ocupações e de obras amáveis, decorreram os derradeiros anos de Fradique Mendes em Paris, até que no Inverno de 1888 a morte o colheu sob aquela forma que ele, como César, sempre apetecera-- inopinatam atque repentinam .
Uma noite, saindo duma festa da condessa de La Ferté (velha amiga de Fradique, com quem fizera num iate uma viagem à Islandia), achou no vestiário a sua peliça russa trocada por outra, confortável e rica também, que tinha no bolso uma carteira com o monograma e os bilhetes do general Terran-d'Azy. Fradique, que sofria de repugnâncias intolerantes, não se quis cobrir com o agasalho daquele oficial rabugento e catarroso, e atravessou a Praça da Concórdia a pé, de casaca, até ao clube da Rue Royale . A noite estava seca e clara, mas cortada por uma dessas brisas subtis, mais ténues que um hálito, que durante léguas se afiam sobre planícies nevadas do norte, e já eram comparadas pelo velho André Vasali a «um punhal traiçoeiro». Ao outro dia acordou com uma tosse leve. Indiferente porém aos resguardos, seguro duma robustez que afrontara tantos ares inclementes, foi a Fontainebleau com amigos no alto dum mail-coach . Logo nessa noite, ao recolher, teve um longo e intenso arrepio; e trinta horas depois, sem sofrimento, tão serenamente que durante algum tempo Smith o julgou adormecido, Fradique, como diziam os antigos, «tinha vivido». Não acaba mais docemente um belo dia de Verão.
O Dr. Labert declarou que fora uma forma raríssima de pleuris. E acrescentou, com um exacto sentimento das felicidades humanas: -« Toujours de la chance, ce Fradique! »
Acompanharam a sua passagem derradeira pelas ruas de Paris, sob um céu cinzento de neve, alguns dos mais gloriosos homens de França nas coisas do saber e da arte. Lindos rostos, já pisados pelo tempo, o choraram, na saudade das emoções passadas. E, em pobres moradas, em torno a lares sem lume, foi decerto também lamentado este céptico de finas letras, que cuidava dos males humanos envolto em cabaias de seda
Jaz no Père-Lachaise , não longe da sepultura de Balzac, onde no dia dos Mortos ele mandava sempre colocar um ramo dessas violetas de Parma que tanto amara em vida o criador da Comédia Humana. Mãos fiéis, por seu turno, conservam sempre perfumado, de rosas frescas, o mármore simples que o cobre na terra.
O erudito moralista que assina Alceste na Gazette de Paris , dedicou a Fradique Mendes uma Crónica em que resume assim o seu espírito e a sua acção:--«Pensador verdadeiramente pessoal e forte, Fradique Mendes não deixa uma obra. Por indiferença, por indolência, este homem foi o dissipador duma enorme riqueza intelectual. Do bloco de ouro em que poderia ter talhado um monumento imperecível--tirou ele durante anos curtas lascas, migalhas, que espalhou às mãos cheias, conversando, pelos salões e pelos clubes de Paris. Todo esse pó de ouro se perdeu no pó comum. E sobre a sepultura de Fradique, como sobre a do grego desconhecido de que canta a Antologia, se poderia escrever:--«Aqui jaz o ruído do vento que passou derramando perfume, calor e sementes em vão...»
Toda esta crónica vem lançada com a usual superficialidade e inconsideracão dos Franceses. Nada menos reflectido que as designações de indolência , indiferença , que voltam repetidamente, nessa página bem ornada e sonora, como para marcar com precisão a natureza de Fradique. Ele foi, ao contrário, um homem todo de paixão, de acção, de tenaz labor. E escassamente pode ser acusado de indolência , de indiferença , quem, como ele, fez duas campanhas, apostolou uma religião, trilhou os cinco continentes, absorveu tantas civilizações, percorreu todo o saber do seu tempo.
O cronista da Gazette de Paris acerta, porém, singularmente, afirmando que desse duro obreiro não resta uma obra. Impressas e dadas ao Mundo só dele conhecemos, com efeito, as poesias das LAPIDÁRIAS, publicadas na Revolução de Setembro , --e esse curioso poemeto em latim bárbaro, Laus Veneris Tenebrosae , que apareceu na Revue de Poésie et d'Art , fundada em fins de 69 em Paris por um grupo de poetas simbolistas. Fradique, porém, deixou manuscritos. Muitas vezes, na Rua de Varennes, os entrevi eu dentro dum cofre espanhol do século XIV, de ferro lavrado, que Fradique denominava a vala comum . Todos esses papéis (e a plena disposição deles) foram legados por Fradique àquela Libuska , de quem ele largamente fala nas suas cartas a Madame de Jouarre, e que se nos torna tão familiar e real «com os seus veludos brancos de Veneziana e os seus largos olhos de Juno».
Esta senhora, que se chamava Varia Lobrinska, era da velha familia russa dos Principes de Palidoff. Em 1874 seu marido, Paulo Lobrinski, diplomata silencioso e vago, que pertencera ao regimento das Guardas Imperiais, e escrevia capitaine com t, e ( capiténe ) morrera em Paris, por fins de Outono, ainda moço, de uma lânguida e longa anemia. Imediatamente Madame Lobrinska, com solene mágoa, cercada de aias e de crepes, recolheu às suas vastas propriedades russas perto de Starobelsk, no governo de Karkoff. Na Primavera, porém, voltou com as flores dos castanheiros,--e desde então habitava Paris em luxuosa e risonha viuvez. Um dia, em casa de Madame de Jouarre, encontrou Fradique que, enlevado então no culto das Literaturas eslavas, se ocupava com paixão do mais antigo e nobre dos seus poemas, o Julgamento de Libuska , casualmente encontrado em 1818 nos arquivos do castelo de Zelene-Hora. Madame Lobrinska era parenta dos senhores de Zelene-Hora, condes de Coloredo-- e possuia justamente uma reprodução das duas folhas de pergaminho que contêm a velha epopeia bárbara.
Ambos leram esse texto heróico--até que o doce instante veio em que, como os dois amorosos de Dante, «não leram mais no dia todo». Fradique dera a Madame Lobrinska o nome de Libuska , a rainha que no Julgamento aparece «vestida de branco e resplandecente de sapiência». Ela chamava a Fradique Lúcifer . O poeta das LAPIDÁRIAS morreu em Novembro:--e dias depois Madame Lobrinska recolhia de novo à melancolia das suas terras, junto de Starobelsk, no governo de Karkoff. Os seus amigos sorriram, murmuraram com simpatia que Madame Lobrinska fugira, para chorar entre os seus mujiques a sua segunda viuvez--até que reflorescessem os lilases. Mas desta vez Libuska não voltou, nem com as flores dos castanheiros.
O marido de Madame Lobrinska era um Diplomata que estudava e praticava sobretudo os menus e os cotillons . A sua carreira foi portanto irremediavelmente subalterna e lenta. Durante seis anos jazeu no Rio de Janeiro, entre os arvoredos de Petrópolis, como Secretário, esperando aquela legação na Europa que o Principe Gortchakoff, então Chanceler Imperial, afirmava pertencer a Madame Lobrinska par droit de beauté et de sagesse . A legação na Europa, numa capital mundana, culta, sem bananeiras, nunca veio compensar aqueles exilados que sofriam das saudades da neve: --e Madame Lobrinska, no seu exílio, chegou a aprender tão completamente a nossa doce língua de Portugal, que Fradique me mostrou uma tradução da elegia de Lavoski, A Colina do Adeus , trabalhada por ela com superior pureza e relevo. Só ela pois, realmente, dentre todas as amigas de Fradique, podia apreciar como páginas vivas, onde o pensador depusera a confidência do seu pensamento, esses manuscritos que para as outras seriam apenas secas e mortas folhas de papel, cobertas de linhas incompreendidas.
Logo que comecei a coleccionar as cartas dispersas de Fradique Mendes, escrevi a Madame Lobrinska, contando o meu empenho em fixar, num estudo carinhoso, as feições desse transcendente espírito--e implorando, se não alguns extractos dos seus manuscritos, ao menos algumas revelações sobre a sua natureza . A resposta de Madame Lobrinska foi uma recusa, bem determinada, bem deduzida,--mostrando que, decerto sob «os claros olhos de Juno», estava uma clara razão de Minerva. «Os papéis de Carlos Fradique (dizia em suma) tinham-lhe sido confiados, a ela que vivia longe da publicidade, e do mundo que se interessa e lucra na publicidade, com o intuito de que, para sempre, conservassem o carácter intimo e secreto em que tanto tempo Fradique os mantivera: e nestas condições, o revelar a sua natureza , seria manifestamente contrariar o recatado e altivo sentimento que ditara esse legado...» Isto vinha escrito, com uma letra grossa e redonda, numa larga folha de papel áspero, onde a um canto brilhava a ouro, sob uma coroa de ouro, esta divisa --PER TERRAM AD COELUM.
Deste modo se estabeleceu a obscuridade em torno dos manuscritos de Fradique. Que continha realmente esse cofre de ferro, que Fradique, com desconsolado orgulho, denominava a vala comum , por julgar pobres e sem brilho no Mundo os pensamentos que para lá arrojava?
Alguns amigos pensam que aí se devem encontrar, se não completas, ao menos esboçadas, ou já coordenadas nos seus materiais, as duas obras a que Fradique aludia como sendo as mais cativantes, para um pensador e um artista deste século --uma Psicologia das Religiões e uma Teoria da Vontade .
Outros (como J. Teixeira de Azevedo), julgam que nesses papéis existe um romance de realismo épico, reconstruindo uma civilização extinta, como a Salambô . E deduzem essa suposição (desamorável) duma carta a Oliveira Martins, de 1880, em que Fradique exdamava, com uma ironia misteriosa:--«Sinto-me resvalar, caro historiador, a práticas culpadas e vãs, Ai de mim, ai de mim, que me foge a pena para o mal! Que demónio malfazejo, coberto do pó das Idades, e sobraçando in-fólios arqueológicos, me veio murmurar uma destas noites, noite de duro Inverno e de erudição decorativa:--«Trabalha um romance! E no teu romance ressuscita a antiguidade asiática!?» E as suas sugestões pareceram-me doces, amigo, duma doçura letal! . . . Que dirá você, dilecto Oliveira Martins, se um dia desprecavidamente no seu lar receber um tomo meu, impresso com solenidade, e começando por estas linhas:--« Era em Babilonia, no mês de Sivanu, depois da colheita do bálsamo? ...» Decerto, você (daqui o sinto) deixará pender a face aterrada entre as mãos trémulas, murmurando:--«Justos Céus! Aí vem sobre nós a descrição do templo das Sete Esferas, com todos os seus terraços! a descrição da batalha de Halub, com todas as suas armas! a descrição do banquete de Semacherib, com todas as suas iguarias!... Nem os bordados duma só túnica, nem os relevos dum só vaso nos serão perdoados! E é isto um amigo íntimo!»
Ramalho Ortigão, ao contrário, inclina a crer que os papéis de Fradique contêm Memórias -- porque só a Memórias se pode coerentemente impor a condição de permanecerem secretas.
Eu por mim, dum melhor e mais contínuo conhecimento de Fradique, concluo que ele não deixou um livro de Psicologia, nem uma Epopeia arqueológica (que certamente pareceria a Fradique uma culpada e vã ostentação de saber pitoresco e fácil), nem Memórias --inexplicáveis num homem todo de ideia e de abstracção, que escondia a sua vida com tão altivo recato. E afirmo afoitamente que nesse cofre de ferro, perdido num velho solar russo, não existe uma obra -- porque Fradique nunca foi verdadeiramente um autor .
Para o ser não lhe faltaram decerto as ideias --mas faltou-lhe a certeza de que elas, pelo seu valor definitivo , merecessem ser registadas e perpetuadas: e faltou-lhe ainda a arte paciente, ou o querer forte, para produzir aquela forma que ele concebera em abstracto como a única digna por belezas especiais e raes, de encarnar as suas ideias. Desconfiança de si como pensador cujas conclusões, renovando a filosofia e a ciência, pudessem imprimir ao espírito humano um movimento inesperado; desconfiança de si como escritor e criador duma Prosa, que só por si própria, e separada do valor do pensamento, exercesse sobre as almas a acção inefável do absolutamente belo --eis as duas influências negativas que retiveram Fradique para sempre inédito e mudo. Tudo o que da sua inteligência emanasse queria ele que, perpetuamente, ficasse actuando sobre as inteligências, pela definitiva verdade ou pela incomparável beleza. Mas a crítica inclemente e sagaz, que praticava sobre os outros, praticava-a sobre si, cada dia. com redobrada sagacidade e inclemência. O sentimento, tão vivo nele, da Realidade fazia-lhe distinguir o seu próprio espírito tal como era, na sua real potência e nos seus reais limites sem que lho mostrassem mais potente ou mais largo esses «fumos da ilusão literária» -- que levam todo o homem de letras, mal corre a pena sobre o papel, a tomar por faiscantes raios de luz alguns sujos riscos de tinta. E concluindo que, nem pela ideia, nem pela forma, poderia levar as inteligências persuasão ou encanto, que definitivamente marcassem na evolução da razão ou do gosto--preferiu altivamente permanecer silencioso. Por motivos nobremente diferentes dos de Descartes, ele seguiu assim a máxima que tanto seduzia Descartes-- bene vixit qui bene latuit .
Nenhum destes sentimentos ele me confessou; mas todos lhos surpreendi, transparentemente, num dos derradeiros Natais que vim passar à Rua de Varennes, onde Fradique pelas festas do ano me hospedava com imerecido esplendor. Era uma noite de grande e ruidoso Inverno: e desde o café, com os pés estendidos à alta chama dos madeiros de faia que estalavam na chaminé, conversávamos sofre a África e sobre religiões Africanas. Fradique recolhera na região do Zambeze notas muito flagrantes, muito vivas, sobre os cultos nativos-- que são divinizações dos chefes mortos, tornados pela morte mulungus , Espíritos dispensadores das coisas boas e más, com residência divina nas cubatas e nas colinas onde tiveram a sua residência carnal; e, comparando os cerimoniais e os fins destes cultos selvagens da África, com os primitivos cerimoniais litúrgicos dos Árias em Septa-Sandou, Fradique concluia (como mostra numa carta desse tempo a Guerra Junqueiro) que na religião o que há de real, essencial, necessário e eterno é o Cerimonial e a Liturgia--e o que há de artificial, de suplementar, de dispensável, de transitório, é a Teologia e a Moral.
Todas estas coisas me prendiam irresistivelmente, sobretudo pelos traços de vida e de natureza africana, com que vinham iluminadas e sorrindo, seduzido:
-- Fradique! por que não escreve você toda essa sua viagem à Africa?
Era a vez primeira que eu sugeria ao meu amigo a ideia de compor um livro. Ele ergueu a face para mim com tanto espanto, como se eu lhe propusesse marchar descalço através da noite tormentosa, até aos bosques de Marly. Depois, atirando a cigarette para o lume, murmurou com lentidão e melancolia:
--Para quê?. . . Não vi nada na Africa, que os outros não tivessem já visto.
E como eu lhe observasse que vira talvez dum modo diferente e superior; que nem todos os dias um homem educado pela filosofia, e saturado de erurdição, faz a travessia da África; e que em ciência uma só verdade necessita mil experimentadores -- Fradique quase se impacientou:
--Não! Não tenho sobre a Africa, nem sobre coisa alguma neste Mundo, conclusões que, por alterarem o curso do pensar contemporâneo, valesse a pena registar... Só podia apresentar uma série de impressões , de pa isagens. E então pior! Porque o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor impressão intelectual, ou reproduzir a simples forma dum arbusto... Eu não sei escrever! Ninguém sabe escrever!
Protestei, rindo, contra aquela generalização inteiriça, que tudo varria, desapiedadamente. E lembrei que a bem curtas jardas da chaminé que nos aquecia, naquele velho bairro de Paris onde se erguia a Sorbona, o Instituto de França e a Escola Normal, muitos homens houvera, havia ainda, que possuiam do modo mais perfeito a «bela arte de dizer».
--Quem?--exclamou Fradique.
Comecei por Bossuet. Fradique encolheu os ombros, com uma irreverência violenta que me emudeceu. E declarou logo, num resumo cortante, que nos dois melhores séculos da literatura francesa, desde o meu Bossuet até Beaumarchais, nenhum prosador para ele tinha relevo, cor, intensidade, vida. E nos modernos nenhum também o contentava. A distensão retumbante de Hugo era tão intolerável como a flacidez oleosa de Lamartine. A Michelet faltava gravidade e equilíbrio; a Renan solidez e nervo; a Taine fluidez e transparência; a Flaubert vibração e calor. O pobre Balzac, esse, era duma exuberância desordenada e barbárica. E o preciosismo dos Goncourt e do seu mundo, parecia-lhe perfeitamente indecente...
Aturdido, rindo, perguntei àquele «feroz insatisfeito» que prosa pois concebia ele, ideal e miraculosa, que merecesse ser escrita. E Fradique, emocionado (porque estas questões de forma desmanchavam a sua serenidade), balbuciou que queria em prosa «alguma coisa de cristalino, de aveludado, de ondeante, de marmóreo, que só por si, plasticamente, realizasse uma absoluta beleza --e que expressionalmente, como verbo, tudo pudesse traduzir, desde os mais fugidios tons de luz até os mais subtis estados de alma...»
--Enfim--exclamei--uma prosa como não pode haver!
--Não!--gritou Fradique--uma prosa como ainda não há !
Depois, ajuntou, concluindo
--E como ainda a não há, é uma inutilidade escrever. Só se podem produzir formas sem beleza: e dentro dessas mesmas só cabe metade do que se queria exprimir, porque a outra metade não é redutível ao verbo.
Tudo isto era talvez especioso e pueril, mas revelava o sentimento que mantivera mudo aquele superior espírito--possuído da sublime ambição de só produzir verdades absolutamente definitivas, por meio de formas absolutamente belas.
Por isso, e não por indolência de meridional como insinua Alceste , -- Fradique passou no mundo, sem deixar outros vestigios da formidável actividade do seu ser pensante, além daqueles que por longos anos espalhou, à maneira do sábio antigo, «em conversas com que se deleitava, à tarde, sob os «plátanos do seu jardim, ou em cartas, que eram ainda conversas naturais com os amigos de que as ondas o separavam...» As suas conversas, o vento as levou--não tendo, como o velho Dr. Johnson, um Boswell, entusiasta e paciente, que o seguisse pela cidade e pelo campo, com as largas orelhas atentas, e o lápis pronto a tudo notar e tudo eternizar. Dele pois só restam as suas cartas--leves migalhas desse ouro de que fala Alceste , e onde se sente o brilho, o valor intrínseco, e a preciosidade do bloco rico a que pertenceram.
Se a vida de Fradique foi assim governada, por um tão constante e claro propósito de abstenção e silêncio--eu, publicando as suas Cartas pareço lançar estouvada e traiçoeiramente o meu amigo, depois da sua morte, nesse ruido e publicidade a que ele sempre se recusou, por uma rígida probidade de espírito. E assim seria--se eu não possuisse a evidência de que Fradique, incondicionalmente, aprovaria uma publicacão da sua Correspondência, organizada com discernimento e carinho. Em 1888, numa carta em que lhe contava uma romântica jornada na Bretanha, aludia eu a um livro que me acompanhara e me encantara, a Correspondência de Xavier Doudan --um desses espíritos recolhidos que vivem para se aperfeiçoar na verdade e não para se glorificar no Mundo, e que, como Fradique, só deixou vestigios da sua intensa vida intelectual na sua Correspondência, coligida depois com reverência pelos confidentes do seu pensamento.
Fradique, na carta que me volveu, toda ocupada dos Pirenéus onde gastara o Verão, acrescentava num pós-escrito: -- «A Correspondência de Doudan é realmente muito legível; ainda que através dela apenas se sente um espírito naturalmente limitado, que desde novo se entranhou no doutrinarismo da escola de Genebra, e que depois, caído em solidão e doença, só pelos livros conheceu a Vida, os Homens e o Mundo. Li em todo o caso essas cartas--como leio todas as colecções de Correspondências, que, não sendo didacticamente preparadas para o público (como as de Plinio), constituem um estudo excelente de psicologia e de história. Eis aí uma maneira de perpetuar as ideias dum homem que eu afoitamente aprovo--publicar-lhe a correspondência! Há desde logo esta imensa vantagem:--que o valor das ideias (e portanto a escolha das que devem ficar), não é decidido por aquele que as concebeu, mas por um grupo de amigos e de críticos, tanto mais livres e mais exigentes no seu julgamento, quanto estão julgando um morto que só desejam mostrar ao Mundo pelos seus lados superiores e luminosos. Além disso uma Correspondência revela melhor que uma obra a individualidade, o homem; e isto é inestimável, para aqueles que na Terra valeram mais pelo carácter do que pelo talento. Acresce ainda que, se uma obra nem sempre aumenta o pecúlio do saber humano, uma Correspondência, reproduzindo necessariamente os costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar contemporâneo e ambiente, enriquece sempre o tesouro da documentacão histórica. Temos depois que as cartas dum homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contém mais ensino que a sua filosofia--que é apenas a criação impessoal do seu espírito. Uma Filosofia oferece meramente uma conjectura mais, que se vai juntar ao imenso montão das conjecturas: uma Vida que se confessa constitui o estudo duma realidade humana, que, posta ao lado de outros estudos, alarga o nosso conhecimento do Homem, único objectivo acessível ao esforço intelectual. E finalmente, como cartas são palestras escritas (assim afirma não sei que clássico), elas dispensam o revestimento sacramental da tal prosa como não há ... Mas este ponto precisava ser mais desembrulhado--e eu sinto parar à porta o cavalo em que vou trepar ao pico de Bigorre».
Foi a lembrança desta opinião de Fradique, tão clara e fundamentada, que me decidiu, apenas em mim se foi calmando a saudade daquele camarada adorável, a reunir as suas cartas, para que os homens alguma coisa pudessem aprender e amar, naquela inteligência que eu tão estreitamente amara e seguira. A essa carinhosa tarefa devotei um ano--porque a correspondência de Fradique, que, desde os quietos hábitos a que se acolhera depois de 1880, aquele andador de continentes», era a mais preferida das suas ocupações, apresenta a vastidão e a copiosidade da correspondência de Cícero, de Voltaire, de Proudhon, e de outros poderosos remexedores de ideias.
Sente-se logo o prazer com que compunha estas cartas, na forma do papel--esplêndidas folhas de Whatman, ebúrneas bastante, para que a pena corresse nelas com o desembaraço com que a voz corta o ar; vastas bastante, para que nelas coubesse o desenrolamento da mais complexa ideia; fortes bastante, na sua consistência de pergaminho, para que não prevalecesse contra elas o carcomer do tempo. «Calculei já, ajudado pelo Smith (afirma ele a Carlos Mayer), que cada uma das minhas cartas, neste papel, com envelope e estampilha, me custa 250 réis. Ora supondo vaidosamente que, cada quinhentas cartas minhas, contêm uma ideia--resulta que cada ideia me fica por cento e vinte e cinco mil-réis . Este mero cálculo bastará para que o Estado, e a económica Classe Média que o dirige, impeçam com ardor a educação--provando, como iniludivelmente prova, que fumar é mais barato que pensar... Contrabalanço pensar e fumar , porque são, ó Carlos, duas operações idênticas que consistem em atirar pequenas nuvens ao vento».
Estas dispendiosas folhas têm todas a um canto as iniciais de Fradique--F. M.--minúsculas e simples, em esmalte escarlate. A letra que as enche, singularmente desigual, oferece a maior similitude com a conversação de Fradique: ora cerrada e fina, parecendo morder o papel, como um buril, para contornar bem rigorosamente a ideia; ora hesitante e demorada, com riscos, separações, como naquele esforço tão seu de tentear, espiar, cercar a real realidade das coisas: ora mais fluida e rápida, lançada com facilidade e largueza, lembrando esses momentos de abundância e de veia que Fontan de Carmanges denominava le dégel de Fradique , e em que o gesto estreito e sóbrio se Ihe desmanchava num esvoaçar de flâmula ao vento.
Fradique nunca datava as suas cartas: e, se elas vinham de moradas familiares aos seus amigos notava meramente o nome do mês. Existem assim cartas inumeráveis com esta resumida indicação-- Paris, Julho; Lisboa, Fevereiro ... Frequentemente, também, restituia aos meses as alcunhas naturalistas do calendário republicano -- Paris , Floreal; Londres , Nivose . Quando se dirigia a mulheres, substituia ainda o nome do mês pelo da flor que melhor o simboliza; e possuo ainda cartas com esta bucólica data-- Florença primeiras violetas (o que indica fins de Fevereiro); Londres , chegada dos Crisântemos (o que indica começos de Setembro). Uma carta de Lisboa oferece mesmo esta data atroz-- Lisboa, primeiros fluxos da verborreia parlamentar ! (Isto denuncia um Janeiro triste, com lama, tipóias no Largo de S. Bento, e bacharéis em cima bolsando, por entre injúrias, fezes de velhos compêndios) .
Não é portanto possível dispor a Correspondência de Fradique por uma ordem cronológica: nem de resto essa ordem importa, desde que eu não edito a sua Correspondência completa e integral, formando uma história contínua e íntima das suas ideias. Em cartas que não são dum autor e que não constituem, como as de Voltaire ou de Proudhon, o corrente e constante comentário que acompanha e ilumina a obra, cumpria sobretudo destacar as páginas que, com mais saliência, revelassem a personalidade --o conjunto de ideias, gostos, modos, em que tangivelmente se sente e se palpa o homem. E por isso, nestes pesados maços das cartas de Fradique, escolho apenas algumas, soltas, de entre as que mostram traços de carácter e relances da existência activa; de entre as que deixam entrever algum instrutivo episódio da sua vida de coração; de entre as que, revolvendo noções gerais sobre a literatura, a arte, a sociedade e os costumes, caracterizam o feitio do seu pensamento; e ainda, pelo interesse especial qua as realça, de entre as que se referem a coisas de Portugal, como as suas impressões de Lisboa», transcritas com tão maliciosa realidade para regalo de Madame de Jouarre.
Inútil seria decerto, nestas laudas fragmentais, procurar a suma do alto e livre Pensar de Fradique, ou do seu Saber tão fundo e tão certo. A correspondência de Fradique Mendes, como diz finalmente Alceste--c'est son génie qui mousse . Nela, com efeito, vemos apenas a espuma radiante e efémera que fervia e transbordava, enquanto em baixo jazia o vinho rico e substancial, que não foi nunca distribuido, nem serviu às almas sedentas. Mas, assim ligeira e dispersa, ela mostra todavia, em excelente relevo, a imagem deste homem tão superiormente interessante em todas as suas manifestações de pensamento, de paixão, de sociabilidade e de acção.
Além do meu desejo que os contemporâneos venham a amar este espírito que tanto amei-- eu obedeço, publicando as cartas de Fradique Mendes, a um intuito de puro e seguro patriotismo.
Uma nação só vive porque pensa. Cogitat ergo est . A Força e a Riqueza, não bastam para provar que uma nação vive duma vida que mereça ser glorificada na História--como rijos músculos num corpo e ouro farto numa bolsa, não bastam para que um homem honre em si a Humanidade. Um reino de África, com guerreiros incontáveis nas suas arint,as e incontáveis diamantes nas suas colinas, será sempre uma terra bravia e morta, que, para lucro da Civilização, os Civilizados pisam e retalham tão desassombradamente como se sangra e se corta a rês bruta, para nutrir o animal pensante. E por outro lado se o Egipto ou Tunes formassem resplandecentes centros de Ciências, de Literaturas e de Artes, e, através duma serena legião de homens geniais, incessantemente educassem o Mundo--nenhuma nação, mesmo nesta idade de ferro e de força, ousaria ocupar, como um campo marinho e sem dono, esses solos augustos donde se elevasse, para tornar as almas melhores, o enxame sublime das Ideias e das Formas.
Só na verdade o Pensamento e a sua criação suprema, a Ciência, a Literatura, as Artes, dão grandeza aos Povos, atraem para eles universal reverência e carinho, e, formando dentro deles o tesouro de verdades e de belezas que o Mundo precisa, os tornam perante o Mundo sacrossantos. Que diferença há, realmente, entre Paris e Chicago? São duas palpitantes e produtivas cidades--onde os palácios , as instituições , os parques, as riquezas, se equivalem soberbamente por que forma pois Paris um foco crepitante de Civilização que, irresistivelmente, fascina a Humanidade--e por que tem Chicago apenas sobre a terra o valor de um rude e formidável celeiro, onde se procura a farinha e o grão? Porque Paris, além dos palácios, das instituições e das riquezas de que Chicago também justamente se gloria, possui a mais um grupo especial de homens-- Renan, Pasteur, Taine, Berthelot, Coppée, Bomat, Falguière, Gounod, Massenet--que, pela incessante produção do seu cérebro, convertem a banal cidade que habitam num centro de soberano ensino. Se as Origens do Cristianismo o Fausto , as telas de Bomat, os mármores de Falguière, nos viessem de além dos mares, da nova e monumental Chicago--para Chicago, e não para Paris, se voltariam, como as plantas para o Sol, os espíritos e os corações da Terra.
Se uma nação, portanto, só tem superioridade porque tem pensamento, todo aquele que venha revelar, na nossa pátria, um novo homem de original pensar, concorre patrioticamente para lhe aumentar a grandeza que a tornará respeitada, a única beleza que a tornará amada;--e é como quem aos seus templos juntasse mais um sacrário, ou sobre as suas muralhas erguesse mais um castelo.
Michelet escrevia um dia. numa carta, aludindo a Antero de Quental:--«Se em Portugal restam quatro ou cinco homens como o autor das Odes Modernas , Portugal continua a ser um grande país vivo...» O mestre da História de França , com isto, significava--que enquanto viver pelo lado da Inteligência, mesmo que jaza morta pelo lado da Acção, a nossa pátria não é inteiramente um cadáver que sem escrúpulo se pise e se retalhe. Ora no Pensamento há manifestações diversas; e se nem todas irradiam o mesmo esplendor, todas provam a mesma vitalidade. Um livro de versos pode sublimemente mostrar que a alma de uma nação vive ainda pelo Génio Poético: um conjunto de leis salvadoras, emanando de um espírito positivo, pode solidamente comprovar que um povo vive ainda pelo Génio Político:--mas a revelação de um espírito, como o de Fradique, assegura que um país vive também pelos lados gíenos grandiosos, mas valiosos ainda, da graça, da vivaz invenção, da transcendente ironia , da fantasia, do humorismo e do gosto...
Nos tempos incertos e amargos que vão, Portugueses destes não podem ficar para sempre esquecidos, longe, sob a mudez de um mármore. Por isso eu o revelo aos meus concidadãos--como uma consolação e uma esperança.