XVI

A CLARA...

 

(Trad.).

 

Paris, Outubro.

 

Minha Muito Amada Clara .--Toda em queixumes, quase rabugenta, e mentalmente trajada de luto, me apareceu hoje a tua carta com os primeirus frios de Outubro. E por quê, minha doce descontente? Porque, mais fero de coração que um Trastâmara ou um Bórgia, estive cinco dias (cinco curtos dias de Outono) sem te mandar uma linha, afirmando essa verdade tão patente e de ti conhecida como o disco do Sol--«que só em ti penso, e só em ti vivo!...» Mas não sabes tu, oh superamada, que a tua lembrança me palpita na alma tão natural e perenemente como o sangue no coração? Que outro princípio governa e mantém a minha vida se não o teu amor? Realmente necessitas ainda, cada manhã, um certificado, em letra bem firme, de que a minha paixão está viva e viçosa e te envia os bons-dias? Para quê? Para sossego da tua incerteza? Meu Deus! Não será antes para regalo do teu orgulho? Sabes que és Deusa, e reclamas incessantemente o incenso e os cânticos do teu devoto. Mas Santa Clara, tua padroeira, era uma grande santa, de alta linhagem, de triunfal beleza, amiga de S. Francisco de Assis, confidente de Gregório IX, fundadora de mosteiros, suave fonte de piedade e milagres--e todavia só é festejada uma vez,cada ano, a 27de Agosto!

Sabes bem que estou gracejando, Santa Clara da minha fé! Não! não mandei essa linha supérflua, porque todos os males bruscamente se abateram ,sobre mim:--um defluxo burlesco, com melancolia, obtusidade e espirros; um confuso duelo, de que fui o enfastiado padrinho, e em que apenas um ramo seco de olaia sofreu, cortado por uma bala; e, enfim, um amigo que regressou da Abissínia, cruelmente Abissinizante, e a quem tive de escutar com resignado pasmo as caravanas, os perigos, os amores, as façanhas e os leões!. . . E aí está como a minha pobre Clara, solitária nas suas florestas, ficou sem essa folha, cheia das minhas letras, e tão inútil para a segurança do seu coração como as folhas que a cercam, já murchas decerto e dançando no vento.

Porque não sei como se comportam os teus bosques;--mas aqui as folhas do meu pobre jardim amarelaram e rolam na erva húmida. Para me consolar da verdura perdida, acendi o meu lume:--e toda a noite de ontem mergulhei na muito velha crónica dum Cronista medieval da minha terra, que se chama Fernão Lopes. Aí se conta dum rei que recebeu o débil nome de Formoso , e que, por causa dum grande amor, desdenhou princesas de Castela e de Aragão, dissipou tesouros, afrontou sedições, sofreu a desafeição dos povos, perdeu a vassalagem de castelos e terras, e quase estragou o reino! Eu já conhecia a crónica--mas só agora compreendo o rei. E grandemente o invejo, minha linda Clara! Quando se ama como ele (ou como eu), deve ser um contentamento esplêndido o ter princesas da cristandade, e tesouros, e um povo, e um reino forte para sacrificar a dois olhos, finos e lânguidos, sorrindo pelo que esperam e mais pelo que prometem... Na verdade só se deve amar quando se é rei--porque só então se pode comprovar a altura do sentimento, com a magnificência do sacrifício. Mas um mero vassalo como eu (sem hoste ou castelo), que possui ele de rico, ou de nobre, ou de belo para sacrificar? Tempo, fortuna, vida? Mesquinhos valores. É como ofertar na mão aberta um pouco de pó. E depois a bem-amada nem sequer fica na história.

E por história--muito aprovo, minha estudiosa Clara, que andes lendo a do divino Buda. Dizes, desconsoladamente, que ele te parece apenas um Jesus muito complicado . Mas, meu amor, é necessário desentulhar esse pobre Buda da densa aluvião de Lendas e Maravilhas que sobre ele tem acarretado, durante séculos, a imaginação da Ásia. Tal como ela foi, desprendida da sua mitologia,e na sua nudez histórica,--nunca alma melhor visitou a terra, e nada iguala, como virtude heróica, a Noite do Renunciamento . Jesus foi um proletário, um mendigo sem vinha ou leira, sem amor nenhum terrestre, que errava pelos campos da Galileia, aconselhando aos homens a que abandonassem como ele os seus lares e bens, descessem à solidão e à mendicidade, para penetrarem um dia num Reino venturoso, abstracto, que está nos Céus. Nada sacrificava em si e instigava os outros ao sacrifício--chamando todas as grandezas ao nível da sua humildade. O Buda, pelo contrário, era um Príncipe, e como eles costumam ser na Ásia, de ilimitado poder, de ilimitada riqueza: casara por um imenso amor, e daí lhe viera um filho, em quem esse amor mais se sublimara:--e este príncipe, este esposo, este pai, um dia. por dedicação aos homens, deixa o seu palácio, o seu reino, a esposada do seu coração, o filhinho adormecido no berço de nácar, e, sob a rude estamenha de um mendicante, vai através do mundo esmolando e pregando a renúncia aos deleites, o aniquilamento de todo o desejo, o ilimitado amor pelos seres, o incessante aperfeiçoamento na caridade, o desdém forte do ascetismo que se tortura, a cultura perene da misericórdia que resgata, e a confiança na morte...

Incontestavelmente, a meu ver (tanto quanto estas excelsas coisas se podem discernir duma casa de Paris, no século XIX e com defluxo) a vida do Buda é mais meritória. E depois considera a diferença do ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus, diz:--«Eu sou filho de Deus, e insto com cada um de vós, homens mortais, em que pratiqueis o bem durante os poucos anos que passais na Terra, para que eu depois, em prémio, vos dê a cada um, individualmente, uma existência superior, infinita em anos e infinita em delícias, num palácio que está para além das nuvens e que é de meu Pai! » O Buda, esse, diz simplesmente: --«Eu sou um pobre frade mendicante, e peço-vos que sejais bons durante a vida, porque de vós, em recompensa, nascerão outros melhores, e desses outros ainda mais perfeitos, e assim, pela prática crescente da virtude em cada geração, se estabelecerá pouco a tpouco na Terra a virtude universal!» A justiça do justo, portanto, segundo Jesus, só aproveita egoistamente ao justo. E a justiça do justo, segundo o Buda, aproveita ao ser que o substituir na existência, e depois ao outro que desse nascer, sempre durante a passagem na Terra, para lucro eterno da Terra. Jesus cria uma aristocracia de santos, que arrebata para o Céu onde ele é Rei, e que constituem a corte do Céu para deleite da sua divindade;--e não vem dela proveito directo para o Mundo, que continua a sofrer da sua porção de Mal, sempre indiminuída. O Buda, esse, cria, pela soma das virtudes individuais, santamente acumuladas, uma Humanidade que em cada ciclo nasce progressivamente melhor, que por fim se torna perfeita, e que se estende a toda a Terra donde o Mal desaparece, e onde o Buda é sempre, à beira do caminho rude, o mesmo frade mendicante. Eu, minha flor, sou pelo Buda. Em todo o caso, esses dois Mestres possuíram, para bem dos homens, a maior porção de Divindade que até hoje tem sido dado à alma humana conter. De resto, tudo isto é muito complicado; e tu sabiamente procederias em deixar o Buda no seu Budismo, e, uma vez que esses teus bosques são tão admiráveis, em te retemperar na sua força e nos seus aromas salutares. O Buda pertence à cidade e ao colégio de França: no campo a verdadeira Ciência deve cair das árvores, como nos tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina mais que todas as folhas dos livros. Sobretudo do que eu-- que aqui estou pontificando, e fazendo pedantescamente, ante os teus lindos olhos, tão finos e meigos, um curso escandaloso de Religiões Comparadas.

Só me restam três polegadas de papel,--e ainda te não contei, oh doce exilada, as novas de Paris, Acta Urbis . (Bom, agora latim!) São raras, e pálidas. Chove: continuamos em República; Madame de Jouarre, que chegou da Rocha com menos cabelos brancos, mas mais cruel, convidou alguns desventurados (dos quais eu o maior) para escutarem três capitulos dum novo atentado do Barão de Fernay sobre a Grécia ; os jornais publicam outro prefácio do Sr. Renan, todo cheio do Sr. Renan, e em qule ele se mostra, como sempre, o enternecido e erudito vigário de Nossa Senhora da Razão; e temos, enfim, um casamento de paixão e luxo, o do nosso escultural Visconde de Fontlant com Mademoiselle Degrave, aquela nariguda, magrinha e de maus dentes, que herdou, milagrosamente, os dois milhões do cervejeiro e que tem tão lindamente engordado e ri com dentes tão lindos Eis tudo, minha adorada... E é tempo que te mande, em montão, nesta linha, as saudades, os desejos e as coisas ardentes e suaves e sem nome de que meu coração está cheio, sem que se esgote por mais que plenamente as arremesse aos teus pés adoráveis, que beijo com submissão e com fé.--FRADIQUE.

XVII

A CLARA...

 

(Trad.).

 

Paris, ...

 

Minha Amiga .-- É verdade que eu parto, e para uma viagem muito longa e remota, que será como um desaparecimento. E é verdade ainda que a empreendo assim bruscamente, não por curiosidade de um espírito que já não tem curiosidades--mas para findar do modo mais condigno e mais belo uma ligação que, como a nossa, não devia nunca ser maculada por uma agonia tormentosa e lenta.

Decerto, agora que eu sei dolorosamente que, sobre o nosso tão viçoso e forte amor, se vai em breve exercer a lei do universal deperecimento e fim das coisas--eu poderia, poderiamos ambos, tentar, por um esforço destro e delicado do coração e da inteligência, o seu prolongamento fictício. Mas seria essa tentativa digna de si, de mim, da nossa lealdade--e da nossa paixão? Não! Só nós prepararíamos, assim, um arrastado tormento, sem a beleza dos tormentos que a alma apetece e aceita, nos puros momentos de fé e todo deslustrado e desfeado por impaciências, recriminações, inconfessados arrependimentos, falsas ressurreições do desejo, e todos os enervamentos da saciedade. Não conseguiríamos deter a marcha da lei inexorável--e um dia nos encontraríamos, um diante do outro, como vazios, irreparavelmente tristes, e cheios do amargor da luta inútil. E de uma causa tão pura e sã e luminosa, como foi o nosso amor, só nos ficaria, presente e pungente, a recordação de destroços e farrapos feitos por nossas mãos, e por elas rojados com desespero no pó derradeiro de tudo.

Não! Tal acabar seria intolerável. E depois, como toda a luta é ruidosa, e se não pode nunca disciplinar e enclausurar no segredo do coração, nós deixaríamos decerto entrever enfim ao mundo um sentimento que dele escondemos por altivez, não por cautela--e o mundo conheceria o nosso amor justamente quando ele já perdera a elevação e a grandeza que quase o santificava... De resto, que importa o mundo? Só para nós, que fomos um para o outro e amplamente o mundo todo, e que devemos evitar ao nosso amor a lenta decomposição que degrada.

Para perpétuo orgulho do nosso coracão, é necessário que desse amor, que tem de perecer como tudo o que vive, mesmo o Sol--nos fique uma memória tão límpida e perfeita que ela só por si nos possa dar, durante o porvir melancólico, um pouco dessa felicidade e encanto que o próprio amor nos deu, quando era em nós uma sublime realidade, governando o nosso ser.

A morte, na plenitude da beleza e da força, era considerada pelos antigos como o melhor benefício dos deuses--sobretudo para os que sobreviviam, porque sempre a face amada que passara lhes permanecia na memória com o seu natural viço e sã formosura, e não mirrada e deteriorada pela fadiga, pelas lágrimas, pela desesperança, pela dor. Assim deve ser também com o nosso amor.

Por isso mal lhe surpreendi os primeiros desfalecimentos, e, desolado, verifiquei que o tempo o roçara com a frialdade da sua foice--decidi partir, desaparecer. O nosso amor, minha amiga, será assim como uma flor milagrosa que cresceu, desabrochou, deu todo o seu aroma--e, nunca cortada, nunca sacudida dos ventos ou das chuvas nem de leve emurchecida, fica na sua haste solitária, encantando ainda com as suas cores os nossos olhos, quando para ela de longe se volvem, e para sempre, através da idade, perfumando a nossa vida.

Da minha vida sei, pelo menos, que ela perpetuamente será iluminada e perfumada pela sua lembrança. Eu sou, na verdade, como um desses pastores que outrora, caminhando pensativamente por uma colina da Grécia, viam de repente, ante os seus olhos extáticos, Vénus magnifica e amorosa que lhes abria os braços brancos. Durante um momento o pastor mortal repousava sobre o seio divino, e sentia o murmúrio do divino suspirar. Depois havia um leve frémito--e ele só encontrava ante si uma nuvem rescendente que se levantava, se sumia nos ares por entre o voo claro das pombas. Apanhava então o seu cajado, descia a colina... Mas para sempre, através da vida, conservava um deslumbramento inefável. Os anos podiam rolar, e o seu gado morrer, e a ventania levar o colmo da sua choupana, e todas as misérias da velhice sobre ele cairem--que sem cessar a sua alma resplandecia, e um sentimento de glória ultra-humano o elevava acima do transitório e do perecível, porque na fresca manhã de Maio, além, sobre o cimo da colina, ele tivera o seu momento de divinização, entre o mirto e o tomilho!

Adeus, minha amiga. Pela felicidade incomparável que me deu--seja perpetuamente bendita.-- Eça de Queiroz (por FRADIQUE).

XVIII

A EDUARDO PRADO

 

Paris, 1888.

 

Meu Caro Prado .--A sua tão excelente carta foi recebida no devoto dia de S. João, neste fresco refúgio de arvoredos e fontes, onde estou repousando dos sombrios esplendores da Amazónia, e da fadiga das águas atlânticas.

Não esquecerei as queijadas da Sapa; Ficalho, que aqui jantou e filosofou ontem sub tegmine fagi , recebeu das minhas mãos o exacto estudo e as estampas do seu compatriota sobre a Macuna Glabra ; os dois vasos do Rato, com a cruz de Avis, partem domingo, e Deus lhe faça abundar dentro deles, sempre renovadas e frescas, essas rosas da vida que Anacreonte promete aos justos. Tudo isto foi fácil e de amável trabalho. Mais duro e complicado é que eu lhe dê (como V. reclama tão azafamadamente) a minha opinião sobre o seu Brasil... E V., menos céptico que Pilatos, exige a Verdade, a nua Verdade, sem chauvinismos e sem enfeites... Onde a tenho eu, a Verdade? Não é, infelizmente, na Quinta da Saragoça que se esconde, sob o cipreste e o louro, o poço divino onde ela habita. Só lhe posso comunicar uma impressão de homem que passou e olhou. E a minha impressão é que os Brasileiros, desde o Imperador ao trabalhador, andam a desfazer e, portanto, a estragar o Brasil.

Nos começos do século, há uns 55 anos, os Brasileiros, livres dos seus dois males de mocidade, o ouro e o regime colonial, tiveram um momento único, e de maravilhosa promessa. Povo curado, livre, forte, de novo em pleno viço, com tudo por criar no seu solo esplêndido, os Brasileiros podiam nesse dia radiante, fundar a civilização especial que lhes apetecesse, com o pleno desafogo com que um artista pode moldar o barro inerte que tem sobre a tripeça de trabalho, e fazer dele, à vontade, uma vasilha ou um deus. Não desejo ser irrespeitoso, caro Prado, mas tenho a impressão que o Brasil se decidiu pela vasilha.

Tudo em redor dele, desde o céu que o cobre à indole que o governava, tudo patentemente indicava ao Brasileiro que ele devia ser um povo rural. Não se assuste, meu civilizadissimo amigo. Eu não quero significar que o Brasil devesse continuar o patriarcalismo de Abraão e do Livro do Génesis, reproduzir Canaã em Minas Gerais e pastorear gado em torno das tendas, vestido de peles, em controvérsia constante com Jeová. Menos ainda que se adoptasse o modelo arcádico, e que todos os cidadãos fossem Titiros e Marílias, recostados sob a copa da faia, tangendo a frauta das Éclogas... Não; o que eu queria é que o Brasil, desembaraçado do ouro imoral, e do seu D. João VI se instalasse nos seus vastos campos, e aí quietamente deixasse que, dentro da sua larga vida rural e sob a inspiração dela, lhe fossem nascendo, com viçosa e pura originalidade, ideias, sentimentos, costumes, uma literatura, uma arte, uma ética, uma filosofia, toda uma civilização harmónica e própria, só brasileira, só do Brasil, sem nada dever aos livros, as modas, aos hábitos importados da Europa. O que eu queria (e o que constituiria uma força útil no Universo), era um Brasil natural, espontâneo, genuíno, um Brasil nacional, brasileiro e não esse Brasil, que eu vi, feito com velhos pedaços da Europa, levados pelo paquete e arrumados à pressa, como panos de feira, entre uma natureza incongénere, que lhe faz ressaltar mais o bolor e as nódoas.

Eis o que eu queria, dilecto amigo! E considere agora como seria deliciosamente habitável um Brasil brasileiro! Por toda a parte, ricas e vastas fazendas. Casas simples, caiadas de branco, belas só pelo luxo do espaço, do ar, das águas, das sombras. Largas familias, onde a prática das lavouras, da caça, dos fortes exercícios, desenvolvendo a robustez, aperfeiçoaria a beleza. Um viver frugal e são; ideias claras e simples e uma grande quietação de alma; desconhecimento das falsas vaidades; afeições sérias e perduráveis...

Mas, justos Céus! estou refazendo o livro II das Geórgicas! Hanc olim veteres vitam coluere Sabini ... Assim viveram os velhos Sabinos; assim Rómulo e Remo; assim cresceu a valente Etrúria; assim Roma pulquérrima, abrangendo sete montes, se tornou a maravilha do Mundo! Não exijo para o Brasil as virtudes áureas e clássicas da Idade de Saturno. Só queria que ele vivesse uma vida simples, forte, original, como viveu a outra metade da América, a América do Norte, antes do Industrialismo, do Mercantilismo, do Capitalismo, do Dolarismo, e todos esses ismos sociais que hoje a minam e tornam tão tumultuosa e rude quando os colonos eram puritanos e graves; quando a charrua enobrecia; quando a instrução e a educação residiam entre os homens da lavoura; quando poetas e moralistas habitavam casas de madeira que as suas mãos construíam; quando grandes médicos percorriam a cavalo as terras, levando familiarmente a farmácia nas bolsas largas da sela; quando governadores e presidentes da República saíam de humildes granjas; quando as mulheres teciam os linhos dos seus bragais e os tapetes das suas vivendas; quando a singeleza das maneiras vinha da candidez dos corações; quando os lavradores formavam uma classe que, pela virtude do saber, pela inteligência, podia ocupar nobremente todos os cargos do Estado; e quando a nova América espantava o Mundo pela sua originalidade, forte e fecunda.

Pois bem, caro amigo! em vez de terem escolhido esta existência que daria ao Brasil uma civilização sua, própria, genuína, de admirável solidez e beleza,--que fizeram os Brasileiros? Apenas as naus do senhor D. João VI se tinham sumido nas névoas atlânticas, os Brasileiros, senhores do Brasil, abandonaram os campos, correram a apinhar-se nas cidades e romperam a copiar tumultuariamente a nossa civilização europeia, no que ela tinha de mais vistoso e copiável. Em breve o Brasil ficou coberto de instituições alheias, quase contrárias à sua indole e ao seu destino, trazidas à pressa de velhos compêndios franceses. O Jornal, o Artigo de Fundo, a balofa Retórica Constitucional, a tirania da Opinião Pública, os descaros da Polémica, todas as intrigas da Politiquice se tornaram logo males correntes.

Os velhos e simples costumes foram abandonados com desdém: cada homem procurou para a sua cabeça uma coroa de barão, e, com 47 graus de calor à sombra, as senhoras começaram a derreter dentro dos gorgorões e dos veludos ricos. Já nas casas não havia uma honesta cadeira de palhinha, onde, ao fim do dia, o corpo encontrasse repouso e frescura: e começavam os damascos de cores fortes, os móveis de pés dourados, os reposteiros de grossas borlas, todo o pesadume de decoração estofada com que Paris e Londres se defendem da neve, e onde triunfa o Micróbio. Imediatamente alastraram as doenças das velhas civilizações, as tuberculoses, as infecções, as dispepsias, as nevroses, toda uma surda deterioração da raça. E o Brasil radiante--porque se ia tornando tão enfezado como a Europa, que tem três mil anos de excessos, três mil anos de ceias e de revoluções!

No entanto já possuía a Democracia, o Industrialismo, a Sociedade por acções, em todo o delírio das suas formas infinitas, a luz eléctrica, o «veneno francês» sob as marcas principais do Champanhe e do Romance. Estava maduro para os maiores requintes, e mandou então vir pelo paquete o Positivismo e a Ópera Bufa. Foi uma tremenda orgia: ensinou-se aos sabiás a gorjear Madame Angot , e vendedores de retalho citavam Augusto Comte... Para que prolongar o inventário doloroso? Bem cedo do Brasil, do generoso e velho Brasil, nada restou: nem sequer Brasileiros, porque só havia doutores--o que são entidades diferentes. A Nação inteira se doutorou. Do Norte ao Sul, no Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insignias, em toda a sorte de funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados; doutores, com uma carteira, fundando bancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios; doutores, com um apito, dirigindo a polícia; doutores, com uma lira, soltando carmes; doutores, com um prumo, construindo edificios; doutores, com balanças, ministrando drogas; doutores, sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores. O Dr. tenente-coronel... O Dr. vice-almirante... O Dr. chefe de polícia... O Dr. arquitecto... Homens inteligentes, instruídos, polidos, afáveis,--mas todos doutores! E este título não é inofensivo: imprime carácter.Uma tão desproporcionada legião de doutores envolve todo o Brasil numa atmosfera de doutorice.

Ora o feitio especial da doutorice é desatender as realidades, tudo conceber a priori e querer organizar e reger o Mundo pelas regras dos compêndios. A sua expressão mais completa está nesse doutor, ministro do Império, que em todas as questões públicas nunca consultava as necessidades da Nação, mas folheava com ansiedade os livros, a procurar o que, em casos vagamente parecidos, Guizot fizera em França, Pitt na Inglaterra. São estes doutores brasileiros de nacionalidade, mas não de nacionalismo, que, cada dia. mais desnacionalizam o Brasil, lhe matam a originalidade nativa, com a teima doutoral de moralmente e materialmente o enfardelarem numa fatiota europeia feita de Francesismo, com remendos de vago Inglesismo e de vago Germanismo.

Assim, o livre génio da Nação é constantemente falseado, torcido, contrariado na sua manifestação original--em tudo: na Política, pelas doutrinas da Europa; em Literatura, pelas escolas da Europa; na Sociedade, pelas modas da Europa.

A famosa carta de alforria de 29 de Agosto de 1825, não serviu para as inteligências. Intelectualmente, o Brasil é ainda uma colónia--uma colónia do Boulevard . Letras, ciências, costumes, instituições, nada disso é nacional;--tudo vem de fora, em caixotes, pelo paquete de Bordéus, de sorte que esse mundo, que orgulhosamente se chama o Novo Mundo, é na realidade um mundo velhíssimo, e vincado de rugas, dessas rugas doentias, que nos deram, a nós, vinte séculos de Literatura.

Percorri todo o Brasil à procura do novo e só encontrei o velho, o que já é velho há cem anos na nossa Europa--as nossas velhas ideias, os nossos velhos hábitos, as nossas velhas fórmulas, e tudo mais velho, gasto até ao fio, como inteiramente acabado pela viagem e pelo Sol. Sabe o que me parecia, para resumir a minha impressão numa imagem material, como recomenda Buffon? Que por todo o Brasil se estendera um antigo e coçado tapete, feito com os remendos da civilização europeia, e recobrindo o tapete natural e fresco das relvas e das flores do solo... Concebe V. maior horror? Sobre um jardim perfumado, em pleno viço, tudo tapar, tudo abafar, rosas abertas e botões que vão abrir, com um tapete de lã, esburacado, poeirento, cheirando a bafio!

E haverá remédio para tão duro mal? Decerto! Arrancar o tapete sufocante. Mas que Hércules genial empreenderá esse trabalho santo? Não sei.

Em todo o caso, creio que o Brasil tem ainda uma chance de reentrar numa vida nacional e só brasileira. Quando o Império tiver desaparecido e, a seu turno, vier essa República jacobino-positivista que já lateja nas escolas e que os doutores de pena hão-de necessariamente fazer, de parceria com os doutores de espada; quando, por seu turno, essa República jacobino-positivista murchar como planta colocada artificialmente sobre o solo e sem raízes nele, desaparecer de todo, uma manhã, levada pelo vento europeu e doutoral que a trouxe; e quando de novo, sem luta, e por uma mera conclusão lógica, surgir no Paço de São Cristóvão um novo Imperador ou Rei--o Brasil, repito, nesse momento, tem uma chance de se desembaraçar do «tapete europeu» que o recobre, o desfeia, o sufoca. A chatice está em que o novo Imperador ou Rei seja um moço forte, são, de bom parecer, bem brasileiro, que ame a natureza e deteste o livro.

Não vejo outra salvação. Mas no dia ditoso em que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, a ser do Novo Mundo--haverá no Mundo uma grande nação. Os homens têm inteligência; as mulheres têm beleza--e ambos a mais bela, a melhor das qualidades: a bondade. Ora uma nação que tem a bondade, a inteligência, a beleza (e café, nessas proporções sublimes)--pode contar com um soberbo futuro histórico, desde que se convença que mais vale ser um lavrador original, do que um doutor mal traduzido do francês.

Não me queira mal por toda esta desordenada franqueza, e creia-me tão amigo do Brasil como seu.-- Fradique Mendes.

 

FIM