VI

A RAMALHO ORTIGÃO

 

Paris, Abril.

 

Querido Ramalho .--No sábado à tarde, na Rue Cambon, avisto dentro dum fiacre o nosso Eduardo, que se arremessa pela portinhola para me gritar: « Ramalho, esta noite! de passagem para a Holanda! às dez! no café da Paz!»

Fico docemente alvoroçado; e às nove e meia, apesar da minha justa repugnância pela esquina do café da Paz, Centro catita do Snobismo internacional, lá me instalo, com um bock , esperando a cada instante que surja, por entre a turba baça e mole do boulevard , o esplendor da Ramalhal figura. Às dez salta dum fiacre com ansiedade o vivaz Carmonde, que abandonara à pressa uma sobremesa alegre pour voir ce grand Ortigan ! Começa uma espera a dois, com bock a dois. Nada de Ramalho, nem do seu viço. Às onze aparece Eduardo, esbaforido. E Ramalho? Inédito ainda!Espera a três, impaciência a três, bock a três. E assim até que o bronze nos soou o fim do dia.

Em compensação um caso, e profundo. Carmonde, Eduardo e eu sorvíamos as derradeiras fezes do bock , já desiludidos de Ramalho e das suas pompas, quando roça pela nossa mesa um sujeito escurinho, chupadinho, esticadinho, que traz na mão com respeito, quase com religião, um soberbo ramo de cravos amarelos. É um homem de além dos mares, da República Argentina ou Peruana, e amigo de Eduardo--que o retém e apresenta «o sr. Mendibal». Mendibal aceita um bock : e eu começo a contemplar mudamente aquela facezinha toda em perfil, como recortada numa lâmina de machado, duma cor acobreada de chapéu-coco inglês, onde a barbita rala, hesitante, denunciando uma virilidade frouxa, parece cotão, um cotão negro, pouco mais negro que a tez. A testa escanteada recua, foge toda para trás, assustada. O caroço da garganta esganiçada, ao contrário, avança como o esporão duma galera, por entre as pontas quebradas do colarinho muito alto e mais brilhante que esmalte. Na gravata, grossa pérola.

Eu contemplo, e Mendibal fala. Fala arrastadamente, quase dolentemente, com finais que desfalecem, se esvaem em gemido. A voz é toda de desconsolo:--mas, no que diz, revela a mais forte, segura e insolente satisfação de viver. O animal tem tudo: imensas propriedades além do mar, a consideracão dos seus fornecedores, uma casa no Parc-Monceau, e «uma esposa adorável». Como deslizou ele ,a mencionar essa dama que lhe embeleza o lar? Não sei. Houve um momento em que me ergui, chamado por um velho Inglês meu amigo, que passava, recolhendo da Ópera, e que me queria simplesmente segredar, com uma convicção forte, que «a noite estava esplêndida!» Quando voltei à mesa e ao bock , o Argentino encetara em monólogo a glorificação da «sua senhora». Carmonde devorava o homenzinho com olhos que riam e que saboreavam, deliciosamente divertido. Eduardo, esse, escutava coma compostura pesada de um português antigo. E Mendibal, tendo posto ao lado sobre uma cadeira, com cuidados devotos, o ramo de cravos, desfiava as virtudes e os encantos de Madame . Sentia-se ali uma dessas admirações efervescentes, borbulhantes, que se não podem retrair, que trasbordam por toda a parte, mesmo por sobre as mesas dos cafés: onde quer que passasse, aquele homem iria deixando escorrer a sua adoracão pela mulher, como um guarda-chuva encharcado vai fatalmente pingando água. Compreendi, desde que ele, com um prazer que lhe repuxava mais para fora o caroço da garganta, revelou que Madame Mendibal era francesa. Tinhamos ali, portanto, um fanatismo de preto pela graça loura duma parisiensezinha, picante em sedução e finura. Desde que compreendi, simpatizei. E o Argentino farejou em mim esta benevolência critica--porque foi para mim que se voltou, lançando o derradeiro traço, o mais decisivo, sobre as excelências de Madame : «Sim, positivamente, não havia outra em Paris! Por exemplo, o carinho com que ela cuidava da mamã (da mamã dele), senhona de grande idade, cheia de achaques! Pois era uma paciência, uma delicadeza, uma sujeição... De cair de joelhos! Então nos últimos dias a mamã andara tão rabugenta!... Madame Mendibal até emagrecera. De sorte que ele próprio, nesse domingo, lhe pedira que se fosse distrair, passar o dia a Versalhes, onde a mãe dela, Madame Jouffroy, habitava por economia. E agora viera de a esperar na gare Saint-Lazare. Pois, senhores, todo o dia em Versalhes, a santa criatura estivera com cuidado na sogra, cheia de saudades da casa, numa ânsia de recolher. Nem lhe soubera bem a visita à mamã! A maior parte da tarde, e uma tarde tão linda, gastara-a a reunir aquele esplêndido ramo de cravos amarelos para lhe trazer, a ele!»

--É verdade! Veja o senhor! Este ramo de cravos! Até consola. Olhe que para estas lembrancinhas, para estes carinhos, não há senão uma francesa Graças a Deus, posso dizer que acertei! E se tivesse filhos, um só que fosse, um rapaz, não me trocava pelo Príncipe de Gales. Eu não sei se o senhor é casado. Perdoe a confiança. Mas se não é, sempre lhe direi, como digo a todo o mundo:--Case com uma francesa, case com uma francesa!...

Não podia haver nada mais sinceramente grotesco e tocante. Como V. não vinha, fugidio Ramalho, dispersámos. Mendibal trepou para um fiacre com o seu amoroso molho de cravos. Eu arrastei os passos, no calor da noite, até ao clube. No clube encontro Chambray, que V. conhece--o «formoso Chambray». Encontro Chambray no fundo duma poltrona, derreado e radiante. Pergunto a Chambray como lhe vai a Vida, que opinião tem nesse dia da Vida. Chambray declara a Vida uma delícia. E, imediatamente, sem se conter, faz a confidência que lhe bailava impacientemente no sorriso e no olho humedecido.

Fora a Versalhes, com tenção de visitar os Fouquiers. No mesmo compartimento com ele ia uma mulher, une grande et belle femme . Corpo soberbo de Diana num vestido colante do Redfern. Cabelos apartados ao meio, grossos e apaixonados, ondeando sobre a testa curta. Olhos graves. Dois solitários nas orelhas. Ser substancial, sólido, sem chumaços e sem blagues, bem alimentado, envolto em consideração, superiormente instalado na vida.

E, no meio desta respeitabilidade física e social, um jeito guloso de molhar os beiços a cada instante, vivamente, com a ponta da língua... Chambray pensa consigo:--«burguesa, trinta anos, sessenta mil francos de renda, temperamento forte, desapontamentos de alcova». E apenas o comboio larga, toma o seu «grande ar Chambray», e dardeja à dama um desses olhares que eram outrora simbolizados pelas flechas de Cupido. Madame impassível. Mas, momentos depois, vem dentre as pálpebras um pouco pesadas, direito a Chambray (que vigiava de lado, por trás do Fígaro aberto), um desses raios de luz indagadora que, como os da lanterna de Diógenes, procuram um homem que seja um homem. Ao chegar a Courbevoie, a pretexto de baixar o vidro por causa da poeira, Chambray arrisca uma palavra, atrevidamente tímida, sobre e calor de Paris. Ela concede outra, ainda hesitante e vaga, sobre a frescura do campo. Está travada a Écloga. Em Suresnes, Chambray já se senta na banqueta ao lado dela, fumando. Em Sevres, mão de Madame arrebatada por Chambray, mão de Chambray repelida por Madame :-- e ambas insensivelmente se entrelaçam. Em Viroflay, proposta brusca de Chambray para darem um passeio por um sítio de Viroflay que só ele conhece, recanto bucólico, de incomparável doçura, inacessível ao burguês. Depois, às duas horas tomariam o outro trem para Versalhes. E nem a deixa hesitar--arrebata-a moralmente, ou antes fisiologicamente, pela simples força da voz quente, dos olhos alegres, de toda a sua pessoa franca e máscula.

Ei-los no campo, com um aroma da seiva em redor, e a Primavera e Satanás conspirando e soprando sobre Madame os seus bafos quentes. Chambray conhece à orla do bosque, junto de água, uma tavernola que tem as janelas encaixilhadas em madressilva. Por que não irão lá almoçar uma caldeirada, regada com vinho branco de Suresnes? Madame na verdade sente uma fomezinha alegre de ave solta no prado: e Satanás, dando ao rabo, corre adiante, a propiciar as coisas na tavernola. Acham lá, com efeito, uma instalação magistral: quarto fresco e silencioso, mesa posta, cortina de cassa ao fundo escondendo e traindo a alcova. «Em todo o caso que o almoço suba depressa» porque eles têm de partir pelo trem das duas horas»--tal é o brado sincero de Chambray!

Quando chega a caldeirada, Chambray tem uma inspiração genial--despe o casaco, abanca em mangas de camisa. É um rasgo de boémia e de liberdade, que a encanta, a excita, faz surgir a garota que há quase sempre no fundo da matrona . Atira também o chapéu, um chapéu de duzentos francos, para o fundo do quarto, alarga os braços, e tem este grito de alma:

-- Ah oui, que c'est bon, de se desembêter!

E depois, como dizem os Espanhóis-- la mar . O Sol, ao despedir-se da Terra por esse dia, deixou-os ainda em Viroflay; ainda na tavernola; ainda no quarto;--e outra vez à mesa, diante dum beefsteak reconfortante, como os acontecimentos pediam com urgência e lógica.

Versalhes, esquecido! Tratava-se de voltar à estação para tomar o trem de Paris. Ela aperta devagar as fitas do chapéu, apanha uma das flores da janela que mete no corpete, fixa um olhar lento em redor pelo quarto e pela alcova, para tudo decorar e reter--e partem. Na estacão, ao saltar para um compartimento diferente (por causa da chegada a Paris), Chambray num aperto de mão, já apressado e frouxo, suplica-lhe que ao menos lhe diga como se chama. Ela murmura-- Lucie .

--E é tudo o que sei dela--conclui Chambray, acendendo o charuto.--E sei também que é casada porque na gare Saint-Lazare, à espera dela, e acompanhado por um trintanário sério, de casa burguesa, estava o marido... É um rastacuero cor de chocolate, com uma barbita rala, enorme pérola na gravata... Coitado, ficou encantado quando ela lhe deu um grande ramo de cravos amarelos, que eu lhe mandara arranjar em Viroflay... Mulher deliciosa. Não há senão as francesas!

Que diz V. a estas coisas consideráveis, meu bom Rarnalho? Eu digo que, em resumo, este nosso Mundo é perfeito e não há nos espaços outro mais bem organizado. Porque note V. como, ao fim deste domingo de Maio, todas estas três excelentes criaturas, com uma simples jornada a Versalhes, obtiveram um ganho positivo na vida. Chambray passou por um imenso prazer e uma imensa vaidade--os dois únicos resultados que ele conta na existência como proventos sólidos, e valendo o trabalho de existir. Madame experimentou uma sensação nova ou diferente, que a desenervou, a desafogou, lhe permitiu reentrar mais acalmada na monotonia do seu lar, e ser útil aos seus com rediviva aplicação. E o Argentino adquiriu outra inesperada e triunfal certeza, de quanto era amado e feliz na sua escolha. Três ditosos, ao fim desse dia de Primavera e de campo. E se daqui resultar um filho (o filho que o Argentino apetece), que herde as qualidades fortes e brilhantemente gaulesas de Chambray, acresce, ao contentamento individual dos três, um lucro efectivo para a sociedade. Este mundo, portanto, está superiormente organizado.

Amigo fiel, que fielmente o espera à volta da Holanda.--FRADIQUE.

VII

A «MADAME» DE JOUARRE

 

(Trad.).

 

Lisboa, Março.

 

Minha Querida Madrinha .--Foi ontem, por noite morta, no comboio, ao chegar a Lisboa (vindo do Norte e do Porto), que de repente me acudiu, à memória estremunhada, o juramento que lhe fiz no sábado de Páscoa em Paris, com as mãos piamente estendidas sobre a sua maravilhosa edição dos Deveres de Cícero. Juramento bem estouvado, este, de lhe mandar todas as semanas, pelo correio, Portugal em «descrições, notas, refle xões e panoramas», como se lê no subtítulo da Viagem à Suiça do seu amigo o Barão de Fernay, comendador de Carlos III e membro da Academia de Tolosa. Pois com tanta fidelidade cumpro eu os meus juramentos (quando feitos sobre a Moral de Cícero, e para regalo de quem reina na minha Vontade) que, apenas o recordei, abri logo escancaradamente ambos os olhos para recolher «descrições, notas, reflexões e panoramas» desta terra que é minha e que está a la disposicion de usted ... Chegáramos a uma estação que chamam de Sacavém--e tudo o que os meus olhos arregalados viram do meu pais, através dos vidros húmidos do vagão, foi uma densa treva, de onde mortiçamente surgiam aqui e além luzinhas remotas e vagas. Eram lanternas de faluas, dormindo no rio:--e simbolizavam, dum modo bem humilhante, essas escassas e desmaiadas parcelas de verdade positiva que ao homem é dado descobrir, no universal mistério do Ser. De sorte que tornei a cerrar resignadamente os olhos--até que, à portinhola, um homem de boné de galão, com o casaco encharcado de água, reclamou o meu bilhete, dizendo Vossa Excelência ! Em Portugal, boa madrinha, todos somos nobres, todos fazemos parte do Estado, e todos nos tratamos por Excelência .

Era Lisboa e chovia. Vínhamos poucos no comboio, uns trinta talvez--gente simples, de maletas ligeiras e sacos de chita, que bem depressa atravessou a busca paternal e sonolenta da Alfândega, e logo se sumiu para a cidade sob a molhada noite de Março.

No casarão soturno, à espera das bagagens sérias, fiquei eu, o Smith e uma senhora esgrouviada, de óculos no bico, envolta numa velha capa de peles. Deviam ser duas horas da madrugada. O asfalto sujo do casarão regelava os pés.

Não sei quantos séculos assim esperámos, Smith imóvel, a dama e eu marchando desencontradamente e rapidamente para aquecer ao comprido do balcão de madeira, onde dois guardas de Alfândega, escuros como azeitonas, bocejavam com dignidade. Da porta do fundo, uma carreta, em que oscilava o montão da nossa bagagem, veio por fim rolando com pachorra.A dama de nariz de cegonha reconheceu logo a sua caixa de folha de Flandres, cuja tampa, caindo para trás, revelou aos meus olhos que observavam em seu serviço, exigente madrinha!) um penteador sujo, uma boceta de doce, um livro de missa e dois ferros de frisar. O guarda enterrou o braço através destas coisas íntimas, e com um gesto clemente declarou a Alfândega satisfeita. A dama abalou.

Ficámos sós, Smith e eu. Smith já arrebanhara a custo a minha bagagem. Mal faltava inexplicavelmente um saco de couro; e em silêncio, com a guia na mão, um carregador dava uma busca vagarosa através dos fardos, barricas, pacotes, velhos baús, armazenados ao fundo, contra a parede enxovalhada. Vi este digno homem hesitando pensativamente diante dum embrulho de lona, diante duma arca de pinho. Seria qualquer desses o saco de couro? Depois, descoroçoado, declarou que, positivamente, nas nossas bagagens não havia nem couro nem saco. Smith protestava, já irritado. Então o capataz arrancou a guia das mãos inábeis do carregador, e recomeçou ele, com a sua inteligência superior de chefe, uma rebusca através das «arrumações», esquadrinhando zelosamente caixotes, vasilhas, pipos, chapeleiras, canastras, latas e garrafões... Por fim sacudiu os ombros, com indizível tédio, e desapareceu para dentro, para a escuridão das plataformas interiores. Passados instantes voltou, coçando a cabeça por baixo do boné, cravando os olhos em roda, pelo chão vazio, à espera que o saco rompesse das entranhas deste globo desconsolador. Nada! Impaciemte, encetei eu próprio uma pesquisa sôfrega através do casarão. O guarda da Alfândega, de cigarro colado ao beiço (bondoso homem!), deitava também aqui e além um olhar auxiliador e magistral. Nada! Repentinamente, porém, uma mulher de lenço vermelho na cabeça, que ali vadiava, naquela madrugada agreste, apontou para a porta da estação:

--Será aquilo, meu senhor?

Era! Era o meu saco, fora, no passeio, sob a chuvinha miúda. Não indaguei como ele se encontrava ali, sozinho, separado da bagagem a que estritamente a prendia o número de ordem estampado na guia em letras grossas--e reclamei uma tipóia. O carregador atirou a jaleca para cima da cabeça, saiu ao largo, e recolheu logo anunciando com melancolia que não havia tipoias.

--Não há! Essa é curiosa! Então como saem daqui os passageiros?

O homem encolheu os ombros. «As vezes havia, outras vezes não havia, era conforme calhava a sorte...» Fiz reluzir uma placa de cinco tostões, e supliquei aquele benemérito que corresse as vizinhanças da estação, à cata dum veículo qualquer com rodas, coche ou carroça, que me levasse ao conchego dum caldo e dum lar. O homem largou, resmungando. E eu logo, como patriota descontente, censurei (voltado para o capataz e para o homem da Alfândega) a irregularidade daquele serviço. Em todas as estações do Mundo, mesmo em Tunes, mesmo na Roménia, havia, à chegada dos comboios, ónibus, carros, carretas, para transportar gente e bagagem... Por que não as havia em Lisboa? Eis aí um abominável serviço que desonrava a Nação!

O aduaneiro esboçou um movimento de desalento, como na plena consciência de que todos os serviços eram abomináveis, e a Pátria toda uma irreparável desordem. Depois, para se consolar, puxou com delicia o lume ao cigarro. Assim se arrastou um destes quartos de hora que fazem rugas na face humana.

Finalmente, o carregador voltou, sacudindo a chuva, afirmando que não havia uma tipóia em todo o bairro de Santa Apolónia.

--Mas que hei-de eu fazer? Hei-de ficar aqui?

O capataz aconselhou-me que deixasse a bagagem, e na manhã seguinte, com uma carruagem certa (contratada talvez por escritura), a viesse recolher «muito a meu contento». Essa separação porém não convinha ao meu conforto. Pois nesse caso ele não via solução, a não ser que por acaso alguma caleche, tresnoitada e tresmalhada, viesse a cruzar por aquelas paragens.

Então, à maneira de náufragos numa ilha deserta do Pacífico, todos nos apinhámos à porta da estação, esperando através da treva a vela-- quero dizer a sege salvadora. Espera amarga, espera estéril! Nenhuma luz de lanterna, nenhum rumor de rodas, cortaram a mudez daqueles ermos.

Farto, inteiramente farto, o capataz declarou que «iam dar três horas, e ele queria fechar a estação!» E eu? Ia eu ficar ali na rua, amarrado, sob a noite agreste, a um montão de bagagens intransportável? Não! nas entranhas do digno capataz decerto havia melhor misericórdia. Comovido, o homem lembrou outra solução. E era que nós, eu e o Smith, ajudados por um carregador--atirássemos a bagagem para as costas, e marchássemos com ela para o Hotel. Com efeito, este parecia ser o único recurso aos nossos males. Todavia (tanto costas amolecidas, por longos e deleitosos anos de civilização, repugnam a carregar fardos, e tão tenaz é a esperança naqueles a quem a sorte se tem mostrado amorável) eu e o Smith ainda uma vez saímos ao largo, mudos, sondando a escuridão, com o ouvido inclinado ao lajedo, a escutar ansiosamente se ao longe, muito ao longe, não sentiríamos rolar para nós o calhambeque da Providência. Nada, desoladamente nada, na sombra avara!... A minha querida madrinha, seguindo estes lances, deve ter já lágrimas a bailar nas suas compassivas pestanas. Eu não chorei-- mas tinha vergonha, uma imensa e pungente vergonha do Smith! Que pensaria aquele escocês da minha pátria--e de mim, seu amo, parcela dessa pátria desorganizada? Nada mais fragil que a reputação das nações. Uma simples tipóia que falta de noite, e eis, no espírito do Estrangeiro, desacreditada toda uma civilização secular!

No entanto o capataz fervia. Eram três horas (mesmo três e um quarto), e ele queria fechar a estação! Que fazer! Abandonámo-nos,suspirando, à decisão do desespero. Agarrei o estojo de viagem e o rolo de mantas: Smith deitou aos seus respeitáveis ombros, virgens de cargas, uma grossa maleta de couro: o carregador gemeu sob a enorme mala de cantoeiras de aço. E (deixando ainda dois volumes para ser recolhidos de dia), começámos, sombrios e em fila, a trilhar à pata a distância que vai de Santa Apolónia ao Hotel de Braganza! Poucos passos adiante, como o estojo de viagem me derreava o braço, atirei-o para as costas... E todos três, de cabeça baixa, o dorso esmagado sob dezenas de quilos, com um intenso azedume a estragar-nos o fígado, lá continuámos, devagar, numa fileira soturna, avançando para dentro da capital destes reinos! Eu viera a Lisboa com um fim de repouso e de luxo. Este era o luxo, este o repouso! Ali, sob a chuvinha impertinente, ofegando, suando, tropeçando no lajedo mal junto duma rua tenebrosa, a trabalhar de carrejão!...

Não sei quantas eternidades gastámos nesta via dolorosa. Sei que de repente (como se a trouxesse, à rédea, o anjo da nossa guarda) uma caleche, uma positiva caleche, rompeu a passo do negrume duma viela. Três gritos, sôfregos e desesperados, estacaram a parelha. E, à uma, todas as malas rolaram em catadupa sobre o calhambeque, aos pés cococheiro, que, tomado de assalto e de assombro, ergueu o chicote, praguejando com furor. Mas serenou, compreendendo a sua espantosa omnipotência--e declarou que ao Hotel de Braganza (uma distância pouco maior que toda a Avenida dos Campos Elísios) , não me podia levar por menos de três mil-réis . Sim, minha madrinha, dezoito francos ! Dezoito francos em metal, prata ou ouro, por uma corrida, nesta Idade democrática e industrial, depois de todo o penoso trabalho das Ciências e das Revoluções, para igualizarem e embaratecerem os confortos sociais. Trémulo de cólera, mas submisso como quem cede à exigência dum trabuco, enfiei para a tipóia--depois de me ter despedido com grande afecto do carregador, camarada fiel da nossa trabalhosa noite.

Partimos, enfim, num galope desesperado. Daí a momentos estávamos assaltando a porta adormecida do Hotel de Braganza, com repiques, clamores, punhadas, cócegas, injúrias, gemidos, todas as violências e todas as seduções. Debalde! Não foi mais resistente ao belo cavaleiro Percival, o portão de ouro do palácio da Ventura! Finalmente o cocheiro atirou-se a ela aos coices. E, decerto por compreender melhor esta linguagem, a porta, lenta e estremunhada, rolou nos seus gonzos! Graças te sejam, meu Deus, Pai inefável! Estamos enfim sob um tecto, no meio dos tapetes e estuques do Progresso, ao cabo de tão bárbara jornada. Restava pagar o batedor. Vim para ele com acerba ironia:

--Então, são três mil-réis?

À luz do vestíbulo, que me batia a face, o homem sorria. E que há-de ele responder, o malandro sem par?

--Aquilo era por dizer... Eu não tinha conhecido o Sr. D. Fradique... Lá para o Sr. D. Fradique é o que quiser.

Humilhação incomparável! Senti logo não sei que torpe enternecimento, que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem. Sim, minha cara madrinha... Aquele bandido conhecia o Sr. D. Fradique. Tinha um sorriso brejeiro e serviçal. Ambos éramos portugueses. Dei uma libra àquele bandido!

E aqui está, para seu ensino, a verídica maneira por que se entra, no último quartel do século XIX, na grande cidade de Portugal. Todo seu, aquele que de longe de si sempre pena.--FRADIQUE.

VIII

AO SR. E. MOLLINET

 

Director da Revista de Biografia e de História

 

Paris, Setembro.

 

Meu Caro Sr. Mollinet .--Encontrei ontem à noite, ao voltar de Fontainebleau, a carta em que o meu douto amigo, em nome e no interesse da Revista de Biografia e de História , me pergunta quem é este meu compatriota Pacheco (José Joaquim Alves Pacheco), cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais de Portugal. E deseja ainda o meu amigo saber que obras, ou que fundações, ou que livros, ou que ideias, ou que acréscimo na civilização portuguesa deixou esse Pacheco, seguido ao túmulo por tão sonoras, reverentes lágrimas.

Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu País nem uma obra, nem uma fundacão, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento . Todavia, meu caro Sr. Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente ele atravessou a vida por sobre eminências sociais: Deputado, Director-geral, Ministro, Governador de bancos, Conselheiro de Estado, Par, Presidente do Conselho-- Pacheco tudo foi, tudo teve, neste País que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado do seu imenso talento. Mas nunca, nestas situações, por proveito seu ou urgência do Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sair, para se afirmar e operar fora, aquele imenso talento que lá dentro o sufocava. Quando os amigos, os partidos, os jornais, as repartições, os corpos colectivos, a massa compacta da Nação murmurando em redor de Pacheco « que imenso talento! » o convidavam a alargar o seu domínio e a sua fortuna-- Pacheco sorria, baixando os olhos sérios por trás dos óculos dourados, e seguia, sempre para cima, sempre para mais alto, através das instituições, com o seu imenso talento aferrolhado dentro do crânio, como no cofre dum avaro. E esta reserva, este sorrir, este lampejar dos óculos, bastavam ao País, que neles sentia e saboreava a resplandecente evidência do talento de Pacheco.

Este talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em que Pacheco, desdenhando a Sebenta , assegurou que «o século XIX era um século de progresso e de luz». O curso começou logo a pressentir e a afirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta admiração cada dia crescente do curso, comunicando-se, como todos os movimentos religiosos, das multidões impressionáveis às classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um prémio no fim do ano. A fama desse talento alastrou então por toda a Academia --que, vendo Pacheco sempre pensabundo, já de óculos, austero nos seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia ali um grande espírito que se concentra e se retesa todo em força íntima. Esta geração académica, ao dispersar, levou pelo País, até os mais sertanejos burgos, a notícia do imenso talento de Pacheco. E lá em escuras boticas de Trás-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com esperança:--«Parece que há agora aí um rapaz de imenso talento que se formou, o Pacheco!»

Pacheco estava maduro para a representação nacional. Veio ao seu seio--trazido por um Coverno (não recordo qual) que conseguira, com dispêndios e manhas, apoderar-se do precioso talento de Pacheco. Logo na estrelada noite de Dezembro em que ele, em Lisboa, foi ao Martinho tomar chá e torradas, se sussurrou pelas mesas, com curiosidade:--«É o Pacheco, rapaz de imenso talento!» E desde que as Câmaras se constituíram, todos os olhares, os do governo e os da oposição, se começaram a voltar com insistência, quase com ansiedade, para Pacheco, que, na ponta duma bancada, conservava a sua atitude de pensador recluso, os braços cruzados sobre o colete de veludo, a fronte vergada para o lado como sobo peso das riquezas interiores, e os óculos a faiscar... Finalmente uma tarde, na discussão da resposta ao discurso da Coroa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre zarolho que arengava sobre a «liberdade». O sacerdote imediatamente estacou com deferência; os taquígrafos apuravam vorazmente a orelha: e toda a câmara cessou o seu desafogado sussurro, para que, num silêncio condignamente majestoso, se pudesse pela vez primeira produzir o imenso talento de Pacheco. No entanto Pacheco não prodigalizou desde logo os seus tesouros. De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu) , Pacheco afirmou num tom que traia a segurança do pensar e do saber íntimo:--«que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!» Era pouco, decerto:--mas a câmara compreendeu bem que, sob aquele curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de ideias sólidas. Não volveu a falar durante meses--mas o seu talento inspirava tanto mais respeito, quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis), foi contemplar a testa de Pacheco--como se olha para o céu pela certeza que Deus está por tras, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma superficie escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, Conselheiros e Directores gerais balbuciavam maravilhados:--«Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!»

Pacheco pertenceu logo as principais comissões parlamentares. Nunca porém acedeu a relatar um projecto, desdenhoso das especialidades. Apenas às vezes, em silêncio, tomava uma nota lenta. E quando emergia da sua concentração, espetando o dedo, era para lançar alguma ideia geral sobre a Ordem, o Progresso, o Fomento, a Economia. Havia aqui a evidente atitude dum imenso talento que (como segredavam os seus amigos, piscando o olho com finura) «está à espera, lá em cima, a pairar». Pacheco mesmo, de resto, ensinava (esboçando, com a mão gorda, o voar superior duma asa por sobre o arvoredo copado) que o «talento verdadeiro só devia conhecer as coisas pela rama ».

Este imenso talento não podia deixar de socorrer os conselhos da Coroa. Pacheco, numa recomposição ministerial (provocada por uma roubalheira) foi Ministro: e imediatamente se percebeu que maciça consolidação viera dar ao Poder o imenso talento de Pacheco. Na sua pasta (que era a da Marinha), Pacheco não fez durante os longos meses de gerência «absolutamente nada», como insinuaram três ou quatro espíritos amargos e estreitamente positivos. Mas pela primeira vez, dentro deste regime, a Nação deixou de curtir inquietações e dúvidas sobre o nosso Império Colonial. Por quê? Porque sentia que, finalmente, os interesses supremos desse Império estavam confiados a um imenso talento, ao talento imenso de Pacheco.

Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surdia do seu silêncio repleto e fecundo. Às vezes, porém, quando a oposição se tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com lentidão uma nota a lápis:--e esta nota,traçada com saber e maduríssimo pensar, bastava para perturbar, acuar a oposição. É que o imenso talento de Pacheco terminara por inspirar, nas câmaras, nas comissões, nos centros, um terror disciplinar! Ai desse sobre quem viesse a desabar, com cólera, aquele talento imenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatável! Assim dolorosissimamente o experimentou o pedagogista, que um dia se arrojou a acusar o Sr. Ministro do Reino ( Pacheco dirigia então o Reino) de descurar a Instrução do País! Nenhuma incriminação podia ser mais sensível àquele imenso espírito que, na sua frase lapidária e suculenta, ensinara que «um povo sem o curso dos liceus é um povo incompleto». Espetando o dedo (jeito sempre tão seu) Pacheco esborrachou o homem temerário com esta coisa tremenda:--«Ao ilustre deputado que me censura só tenho a dizer que enquanto, sobre questões de Instrucão Pública, S. Ex.a, aí nessas bancadas, faz berreiro, eu, aqui nesta cadeira, faço luz!» --Eu estava lá, nesse esplêndido momento, na galeria. E não me recordo de ter jamais ouvido, numa assembleia humana, uma tão apaixonada e fervente rajada de aclamações! Creio que foi daí a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de Sant'Iago.

O imenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional. Vendo que inabalável apoio esse imenso talento dava às instituições que servia, todas o apeteceram. Pacheco começou a ser um Director universal de Companhias e de Bancos. Cobiçado pela Coroa, penetrou no Conselho de Estado. O seu partido reclamou avidamente que Pacheco fosse seu Chefe. Mas os outros partidos cada dia se socorriam, com submissa reverência, do seu imenso talento. Em Pacheco pouco a pouco se concentrava a Nação.

À maneira que ele assim envelhecia, e crescia em influência e dignidades, a adminação pelo seu imenso talento chegou a tomar no País certas formas de expressão só próprias da religião e do amor. Quando ele foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalmavam a mão no peito com unção, reviravam o branco do olho ao Céu, para murmurar piamente:--«Que talento!» E havia amorosos que, cerrando os olhos e repenicando um beijo nas pontas apinhadas dos dedos, balbuciavam com langor:--«Ai! que talento!» E, para que o esconder? Outros havia, a quem aquele imenso talento amargamente irritava, como um excessivo e desproporcional privilégio. A esses ouvi eu bradar com furor, atirando patadas ao chão: --«Irra, que é ter talento de mais!» Pacheco no entanto já não falava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta.

Não relembrarei a sua incomparável carreira. Basta que o meu caro Sr. Mollinet percorra os nossos anais. Em todas as instituições, reformas, fundações, obras, encontrará o cunho de Pacheco. Portugal todo, moral e socialmente, está repleto de Pacheco. Foi tudo, teve tudo. Decerto, o seu talento era imenso! Mas imenso se mostrou o reconhecimento da sua Pátria! Pacheco e Portugal, de resto, necessitavam insubstituivelmente um do outro, e ajustadissimamente se completavam. Sem Portugal-- Pacheco não teria sido o que foi entre os homens: mas sem Pacheco-- Portugal não seria o que é entre as nações!

A sua velhice ofereceu um carácter augusto. Perdera o cabelo radicalmente. Todo ele era testa. E mais que nunca revelava o seu imenso talento-- mesmo nas mínimas coisas. Muito bem me lembro da noite (sendo ele Presidente do Conselho) em que, na sala da Condessa de Arrodes, alguém, com fervor, apeteceu conhecer o que S. EX.a pensava de Canovas del Castillo. Silenciosamente, magistralmente, sorrindo apenas, S. Ex.a deu com a mão grave, de leve, um corte horizontal no ar. E foi em torno um murmúrio de admiraçao, lento e maravilhado. Naquele gesto quantas coisas subtis, fundamente pensadas! Eu por mim, depois de muito esgaravatar, interpretei-o deste modo: --«medíocre, meia-altura, o Sr. Canovas!» Porque, note o meu caro Sr. Mollinet como aquele talento, sendo tão vasto--era ao mesmo tempo tão fino!

Rebentou;--quero dizer, S. Ex.a morreu, quase repentinamente, sem sofrimento, no começo deste duro Inverno. Ia ser justamente criado Marquês de Pacheco. Toda a Nação o chorou com infinita dor. Jaz no alto de S. João, sob um mausoléu, onde por sugestão do Sr. conselheiro Acácio (em carta ao Diário de Notícias ) foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Génio .

Meses depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viúva, em Sintra, na casa do Dr. Videira. É uma mulher (asseguram amigos meus) de excelente inteligência e bondade. Cumprindo um dever de português, lamentei, diante da ilustre e afável senhora, a perda irreparável que era sua e da Pátria. Mas quando, comovido, aludi ao imenso talento de Pacheco, a viúva de Pacheco ergueu, num brusco espanto, os olhos que conservara baixos--e um fugidio, triste, quase apiedado sorriso arregaçou-lhe os cantos da boca pálida... Eterno desacordo dos destinos humanos! Aquela mediana senhora nunca compreendera aquele imenso talento! Creia-me, meu caro Sr. Mollinet, seu dedicado.--FRADIQUE.

IX

A CLARA...

 

(Trad.).

 

Paris, Junho.

 

Minha AdoradaAmiga .--Não, não foi na Exposição dos Aguarelistas , em Março, que eu tive consigo o meu primeiro encontro, por mandado dos Fados. Foi no Inverno, minha adorada amiga, no baile dos Tressans. Foi aí que a vi, conversando com Madame de Jouarre, diante duma consola, cujas luzes, entre os molhos de orquídeas, punham nos seus cabelos aquele nimbo de ouro que tão justamente lhe pertence como «rainha de graça entre as mulheres». Lembro ainda, bem religiosamente, o seu sorrir cansado, o vestido preto com relevos cor de botão de ouro, o leque antigo que tinha fechado no regaço. Passei; mas logo tudo em redor me pareceu irreparavelmente enfadonho e feio; e voltei a readmirar, a meditar em silêncio a sua beleza, que me prendia pelo esplendor patente e compreensível, e ainda por não sei quê de fino, de espiritual, de dolente e de meigo que brilhava através e vinha da alma. E tão intensamente me embebi nessa contemplação, que levei comigo a sua imagem, decorada e inteira, sem esquecer um fio dos seus cabelos ou uma ondulação da seda que a cobria, e corri a encerrar-me com ela, alvoroçado, como um artista que nalgum escuro armazém, entre poeira e cacos, descobrisse a Obra sublime dum Mestre perfeito. E, por que o não confessarei? Essa imagem foi para mim, ao princípio, meramente um Quadro, pendurado no fundo da minha alma, que eu a cada doce momento olhava--mas para lhe louvar apenas, com crescente surpresa, os encantos diversos de Linha e de Cor. Era somente uma rara tela, posta em sacrário, imóvel e muda no seu brilho, sem outra influência mais sobre mim que a duma forma muito bela que cativa um gosto muito educado. O meu ser continuava livre, atento às curiosidades que até aí o seduziam, aberto aos sentimentos que até aí o solicitavam;--e só quando sentia a fadiga das coisas imperfeitas ou o desejo novo duma ocupação mais pura, regressava à Imagem que em mim guardava, como um Fra Angélico, no seu claustro, pousando os pincéis ao fim do dia. e ajoelhando ante a Madona a implorar dela repouso e inspiração superior.

Pouco a pouco, porém, tudo o que não foi esta contemplação, perdeu para mim valor e encanto. Comecei a viver cada dia mais retirado no fundo da minha alma, perdido na admiração da Imagem que lá rebrilhava--até que só essa ocupação me pareceu digna da vida, no mundo todo não reconheci mais que uma aparência inconstante, e fui como um monge na sua cela, alheio às coisas mais reais, de joelhos e hirto no seu sonho, que é para ele a única realidade.

Mas não era, minha adorada amiga, um pálido e passivo êxtase diante da sua Imagem Não! era antes um ansioso e forte estudo dela, com que eu procurava conhecer através da Forma a Essência, e (pois que a Beleza é o esplendor da Verdade) deduzir das perfeições do seu Corpo as superioridades da sua alma. E foi assim que lentamente surpreendi o segredo da sua natureza; a sua clara testa que o cabelo descobre, tão clara e lisa, logo me contou a rectidão do seu pensar: o seu sorriso, duma nobreza tão intelectual, facilmente me revelou o seu desdém do mundanal e do efémero, a sua incansável aspiração para um viver de verdade e de beleza: cada graça de seus movimentos me traiu uma delicadeza do seu gosto: e nos seus olhos diferencei o que neles tão adoravelmente se confunde, luz de razão, calor de coração, luz que melhor aquece, calor que melhor alumia... Já a certeza de tantas perfeições bastaria a fazer dobrar, numa adoração perpétua, os joelhos mais rebeldes. Mas sucedeu ainda que, ao passo que a compreendia e que a sua Essência se me manifestava, assim visível e quase tangível, uma influência descia dela sobre mim--uma influência estranha, diferente de todas as influências humanas, e que me dominava com transcendente omnipotência. Como lhe poderei dizer? Monge, fechado na minha cela, comecei a aspirar à santidade, para me harmonizar e merecer a convivência com a Santa Clara a que me votara. Fiz então sobre mim um áspero exame de consciência. Investiguei com inquietação se o meu pensar era condigno da pureza do seu pensar; se no meu gosto não haveria desconcertos que pudessem ferir a disciplina do seu gosto; se a minha ideia da vida era tão alta e séria como aquela que eu pressentira na espiritualidade do seu olhar, do seu sorrir; e se o meu coração não se dispersara e enfraquecera de mais, para poder palpitar com paralelo vigor junto do seu coração. E tem sido em mim agora um arquejante esforço, para subir a uma perfeição idêntica aquela que, em si, tão submissamente adoro.

De sorte que a minha querida amiga, sem saber, se tornou a minha educadora. E tão dependente fiquei logo desta direcção, que já não posso conceber os movimentos do meu ser senão governados por ela e por ela enobrecidos. Perfeitamente sei que tudo o que hoje surge em mim de algum valor, ideia ou sentimento, é obra dessa educação que a sua alma dá à minha, de longe, só com existir de ser compreendida. Se hoje me abandonasse a sua influência--devia antes dizer, como um asceta, a sua Graça--todo eu rolaria para uma inferioridade sem remição. Veja pois como se me tornou necessária e preciosa... E considere que, para exercer esta supremacia salvadora, as suas mãos não tiveram de se impor sobre as minhas--bastou que eu a avistasse de longe, numa festa, resplandecendo. Assim um arbusto silvestre floresce à borda dum fosso, porque lá em cima, nos remotos céus, fulge um grande sol que não o vê, não o conhece, e magnanimamente o faz crescer, desabrochar, e dar o seu curto aroma... Por isso o meu amor atinge esse sentimento indescrito e sem nome que a Planta, se tivesse consciência, sentiria pela Luz.

E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo, nenhum bem imploro de quem tanto pode e é para mim dona de todo o bem. Só desejo que me deixe viver sob essa influência, que, emanando do simples brilho das suas perfeições, tão fácil e docemente opera o meu aperfeiçoamento. Só peço esta permissão caridosa. Veja pois quanto me conservo distante e vago, na esbatida humildade duma adoração que até receia que o seu murmúrio, um murmúrio de prece, roce o vestido da imagem divina...

Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a toda a recompensa terrestre, me permitisse desenrolar junto de si, num dia de solidão, a agitada confidência do meu peito, decerto faria um acto de inefável misericórdia--como outrora a Virgem Maria quando animava os seus adoradores, ermitas e santos, descendo numa nuvem e concedendo-lhes um sorriso fugitivo, ou deixando-lhes cair entre as mãos erguidas uma rosa do Paraíso. Assim, amanhã, vou passar a tarde com Madame de Jouarre. Não há aí a santidade duma cela ou duma ermida, mas quase o seu isolamento: e se a minha querida amiga surgisse, em pleno resplendor, e eu recebesse de si, não direi uma rosa, mas um sorriso, ficaria então radiosamente seguro de que este meu amor, ou este meu sentimento indescrito e sem nome que vai além do amor, encontra ante seus olhos piedade e permissão para esperar.--FRADIQUE.

X

A «MADAME» DE JOUARRE

 

(Trad .).

 

Lisboa, Junho.

 

Minha Excelente Madrinha .--Eis o que tem «visto e feito», desde Maio, na formosíssima Lisboa, Ulissipo pulquérrima , o seu admirável afilhado. Descobri um patrício meu, das Ilhas, e meu parente, que vive há três anos construindo um Sistema de Filosofia no terceiro andar duma casa de hóspedes, na Travessa da Palha. Espírito livre, empreendedor e destro, paladino das Ideias Gerais, o meu parente, que se chama Procópio, considerando que a mulher não vale o tormento que espalha, e que os oitocentos mil-réis de um olival bastam, e de sobra, a um espiritualista-- votou a sua vida à Lógica e só se interessa e sofre pela Verdade. É um filósofo alegre; conversa sem berrar; tem uma aguardente de moscatel excelente,--e eu trepo com gosto duas ou três vezes por semana a sua oficina de Metafisica a saber se, conduzido pela alma doce de Maine de Biran, que é o seu cicerone nas viagens do Infinito, ele já entreviu enfim, disfarçada por trás dos seus derradeiros véus, a Causa das Causas. Nestas piedosas visitas vou, pouco a pouco, conhecendo alguns dos hóspedes que nesse terceiro andar da Travessa da Palha gozam uma boa vida de cidade, a doze tostões por dia, fora vinho e roupa lavada. Quase todas as profissões, em que se ocupa a classe média em Portugal, estão aqui representadas com fidelidade, e eu posso assim estudar, sem esforço, como num índice, as ideias e os sentimentos que no nosso Ano da Graça formam o fundo moral da Nação.

Esta casa de hóspedes oferece encantos. O quarto do meu primo Procópio tem uma esteira nova, um leito de ferro filosófico e virginal, cassa vistosa nas janelas, rosinhas e aves pela parede, --e é mantido em rígido asseio por uma destas criadas como só produz Portugal, bela moça de Trás-os-Montes, que, arrastando os seus chinelos com a indolência grave duma ninfa latina, varre esfrega e arruma todo o andar; serve nove almoços, nove jantares e nove chás; escarola as loiças; prega esses botões de calças e de ceroulas que os Portugueses estão constantemente a perder; engoma as saias da Madama; reza o terço da sua aldeia; e tem ainda vagares para amar desesperadamente um barbeiro vizinho, que está decidido a casar com ela quando for empregado na Alfândega. (E tudo isto por três mil-réis de soldada). Ao almoço há dois pratos, sãos e fartos, de ovos e bifes. O vinho vem do lavrador, vinhinho leve e precoce, feito pelos veneráveis preceitos das Geórgicas, e semelhante decerto ao vinho da Rethia-- quo te carmine dicam, Rethica? A torrada, tratada pelo lume forte, é incomparável. E os quatro painéis que orlam a sala, um retrato de Fontes (estadista, já morto, que é tido pelos Portugueses em grande veneração), uma imagem de Pio IX sorrindo e abençoando, uma vista da várzea de Colares, e duas donzelas beijocando uma rola, inspiram as salutares ideias, tão necessárias, de Ordem Social, de Fé, de Paz campestre, e de Inocência.

A patroa, D. Paulina Soriana, é uma Madama de quarenta outonos, frescalhota e roliça, com um pescoço muito nédio, e toda ela mais branca que o chambre branco que usa por sobre uma saia de seda roxa. Parece uma excelente senhora, paciente e maternal, de bom juízo e de boa economia. Sem ser rigorosamente viúva--tem um filho, já gordo também, que rói as unhas e segue o curso dos liceus. Chama-se Joaquim, e, por ternura, Quinzinho; sofreu esta Primavera não sei que duro mal que o forçava a infindáveis orchatas e semicúpios; e está destinado por D Paulina à Burocracia que ela considera, e muito justamente, a carreira mais segura e a mais fácil.

--O essencial para um rapaz (afirmava há dias a apreciável senhora, depois do almoço, traçando a perna) é ter padrinhos e apanhar um emprego; fica logo arrumado; o trabalho é pouco e o ordenadozinho está certo ao fim do mês.

Mas D. Paulina está tranquila com a carreira do Quinzinho. Pela influência (que é toda-poderosa nestes Reinos) dum amigo certo, o sr. conselheiro Vaz Neto, há já no Ministério das Obras Públicas ou da Justiça uma cadeira de amanuense, reservada, marcada com lenço, à espera do Quinzinho. E mesmo, como o Quinzinho foi reprovado nos últimos exames, já o sr. conselheiro Vaz Neto lembrou que, visto ele se mostrar assim desmazelado, com pouco gosto pelas letras, o melhor era não teimar mais nos estudos e no Liceu, e entrar imediatamente para a repartição...

--Que ainda assim, (ajuntou a boa senhora, quando me honrou com estas confidências) gostava que o Quinzinho acabasse os estudos. Não era pela necessidade, e por causa do emprego, como V. Ex.a vê: era pelo gosto.

Quinzinho tem pois a sua prosperidade agradavelmente garantida. De resto suponho que D. Paulina junta um pecúlio prudente. Na casa, bem afreguesada, há agora sete hóspedes--e todos fiéis, sólidos, gastando, com os extras, de quarenta e cinco a cinquenta mil-réis por mês. O mais antigo, o mais respeitado (e aquele que eu precisamente já conheço) é o Pinho--o Pinho brasileiro, o comendador Pinho. É ele quem todas as manhãs anuncia a hora do almoço (o relógio do corredor ficou desarranjado desde o Natal), saindo do seu quarto às dez horas, pontualmente, com a sua garrafa de água de Vidago, e vindo ocupar à mesa, já posta, mas ainda deserta, a sua cadeira, uma cadeira especial de verga, com almofadinha de vento. Ninguém sabe deste Pinho nem a idade, nem a famíia, nem a terra de província em que nasceu, nem o trabalho que o ocupou no Brasil, nem as origens da sua comenda. Chegou uma tarde de Inverno num paquete da Mala Real; passou cinco dias no Lazareto; desembarcou com dois baús, a cadeira de verga, e cinquenta e seis latas de doce de tijolo; tomou o seu quarto nesta casa de hóspedes, com a janela para a travessa; e aqui engorda, pacífica e risonhamente, com os seis por cento das suas inscrições. É um sujeito atochado, baixote, de barba grisalha, a pele escura, toda em tons de tijolo e de café, sempre vestido de casimira preta, com uma luneta de ouro pendente duma fita de seda, que ele, na rua, a cada esquina, desemaranha do cordão de ouro do relógio, para ler com interesse e lentidão os cartazes dos teatros. A sua vida tem uma dessas prudentes regularidades, que tão admiravelmente concorrem para criar a ordem nos Estados. Depois de almoço calça as botas de cano, lustra o chapéu de seda, e vai muito devagar até à Rua dos Capelistas, ao escritório térreo do corretor Godinho, onde passa duas horas pousado num mocho, junto do balcão, com as mãos cabeludas encostadas ao cabo do guarda-sol. Depois entala o guarda-sol debaixo do braço, e pela Rua do Ouro, com uma pachorra saboreada, parando a contemplar alguma senhora de sedas mais tufadas, ou alguma vitória de librés mais lustrosas, alonga os passos para a tabacaria Sousa, ao Rossio, onde bebe um copo de água de Caneças, e repousa até que a tarde refresque. Segue então para a Avenida, a gozar o ar puro e o luxo da cidade, sentado num banco; ou dá a volta ao Rossio, sob as árvores, com a face erguida e dilatada em bem-estar. Às seis recolhe, despe e dobra a sobrecasaca, calça os chinelos de marroquim, enverga uma regalada quinzena de ganga, e janta, repetindo sempre a sopa. Depois do café dá um «higiénico» pela Baixa, com demoras pensativas, mas risonhas, diante das vitrinas de confeitarias e de modas; e em certos dias sobe o Chiado, dobra a esquina da Rua Nova da Trindade, e regateia, com placidez e firmeza, uma senha para o Ginásio. Todas as sextas-feiras entra no seu banco, que é o London Brazilian . Aos domingos, à noitinha, com recato, visita uma moça gorda e limpa que mora na Rua da Madalena. Cada semestre recebe o juro das suas inscrições.

Toda a sua existência é assim um pautado repouso. Nada o inquieta, nada o apaixona. O Universo, para o comendador Pinho, consta de duas únicas entidades--ele próprio, Pinho, e o Estado que lhe dá os seis por cento: portanto o Universo todo está perfeito, e a vida perfeita, desde que Pinho, graças às águas de Vidago, conserve apetite e saúde, e que o Estado continue a pagar fielmente o cupão. De resto, pouco lhe basta para contentar a porção de Alma e Corpo de que aparentemente se compõe. A necessidade que todo o ser vivo (mesmo as ostras, segundo afirmam os Naturalistas) tem de comunicar com os seus semelhantes por meio de gestos ou sons, é em Pinho pouco exigente. Pelos meados de Abril, sorri e diz, desdobrando o guardanapo--«temos o Verão comosco»: todos concordam e Pinho goza. Por meados de Outubro, corre os dedos pela barba e murmura--«temos comosco o Inverno» se outro hóspede discorda, Pinho emudece, porque teme controvérsias. E esta honesta permutação de ideias lhe basta. À mesa, contanto que lhe sirvam uma sopa suculenta, num prato fundo, que ele possa encher duas vezes--fica consolado e disposto a dar graças a Deus. O Diário de Pernambuco , o Diário de Notícias , alguma comédia do Ginásio, ou uma Mágica, satisfazem e de sobra essas outras necessidades de inteligência e de imaginação, que Humboldt encontrou mesmo entre os Botecudos. Nas funções do sentimento, Pinho só pretende modestamente (como revelou um dia ao meu primo) «não apanhar uma doença». Com as coisas públicas está sempre agradado, governe este ou governe aquele, contanto que a polícia mantenha a ordem, e que não se produzam nos princípios e nas ruas distúrbios nocivos ao pagamento do cupão. E enquanto ao destino ulterior da sua alma, Pinho (como ele a mim próprio me assegurou)--«só deseja depois de morto que o não enterrem vivo». Mesmo acerca dum ponto tão importante, como é para um comendador o seu mausoléu, Pinho pouco requer:--apenas uma pedra lisa e decente, com o seu nome, e um singelo orai por ele .

Erraríamos, porém, minha qulerida madrinha, em supor que Pinho seja alheio a tudo quanto seja humano Nãol Estou certo que Pinho respeita e ama a Humanidade. Somente a Humanidade, para ele, tornou-se, no decurso da sua vida, excessivamente restrita. Homens, homens sérios, verdadeiramente merecedores desse nobre nome, e dignos de que por eles se mostre reverência, afecto, e se arrisque um passo que não canse muito--para Pinho só há os prestamistas do Estado. Assim, meu primo Procópio, com uma malícia bem inesperada num espiritualista, contou-lhe há tempos em confidência, arregalando os olhos, que eu possuía muitos papéis! muitas apólices! muitas inscrições!. . . Pois na primeira manhã que voltei, depois dessa revelacão, à casa de hóspedes, Pinho, ligeiramente corado, quase comovido, ofereceu-me uma boceta de doce de tijolo embrulhada num guardanapo. Acto tocante, que explica aquela alma! Pinho não é um egoista, um Diógenes de rabona preta, secamente retraido dentro da pipa da sua inutilidade. Não. Há nele toda a humana vontade de amar os homens seus semelhantes, e de os beneficiar. Somente quem são, para Pinho, os seus genuinos «semelhantes»? Os prestamistas do Estado. E em que consiste para Pinho o acto de benefício? Na cessão aos outros daquilo que a ele lhe é inútil. Ora Pinho não se dá bem com o uso da goiabada--e logo que soube que eu era um possuidor de inscrições, um seu semelhante, capitalista como ele, não hesitou, não se retraiu mais ao seu dever humano, praticou logo o acto de benefício, e lá veio, ruborizado e feliz, trazendo o seu doce dentro dum guardanapo.

É o comendador Pinho um cidadão inútil? Não, certamente! Até para manter em estabilidade e solidez, a ordem duma nação, não há mais prestadio cidadão do que este Pinho, com a sua placidez de hábitos, o seu fácil assentimento a todos os feitios da coisa pública, a sua conta do banco verificada às sextas-feiras, os seus prazeres colhidos em higiénico recato, a sua reticência, a sua inércia. Dum Pinho nunca pode sair ideia ou acto, afirmação ou negação, que desmanche a paz do Estado. Assim gordo e quieto, colado sobre o organismo social, não concorrendo para o seu movimento, mas não o contrariando também, Pinho apresenta todos os caracteres duma excrescência sebácea. Socialmente, Pinho é um lobinho. Ora nada mais inofensivo que um lobinho: e nos nossos tempos, em que o Estado está cheio de elementos mórbidos, que o parasitam, o sugam, o infeccionam e o sobreexcitam, esta inofensibilidade de Pinho pode mesmo (em relação aos interesses da ordem) ser considerada como qualidade meritória. Por isso o Estado, segundo corre, o vai criar barão. E barão dum título que os honra a ambos, ao Estado e a Pinho, porque é nele simultaneamente prestada uma homenagem graciosa e discreta à Família e à Religião. O pai de Pinho chamava-se Francisco--Francisco José Pinho. E o nosso amigo vai ser feito barão de S. Francisco.

Adeus, minha querida madrinha! Vamos no nosso décimo-oitavo dia de chuva! Desde o começo de Junho e das rosas, que neste país de sol sobre azul, na terra trigueira da oliveira e do louro, queridos a Febo, está chovendo, chovendo em fios de água cerrados, contínuos, imperturbados, sem sopro de vento que os ondule, nem raio de luz que os diamantize, formando das nuvens às ruas uma trama mole de humidade e tristeza, onde a alma se debate e definha, como uma borboleta presa nas teias duma aranha. Estamos em pleno versículo XVII, do capítulo VII do « Génese». No caso destas águas do céu não cessarem, eu concluo que as intenções de Jeová, para com este país pecador, são diluvianas; e, não me julgando menos digno da Graça e da Aliança divina do que Noé, vou comprar madeira e betume, e fazer uma Arca segundo os bons modelos hebraicos ou assírios. Se por acaso, daqui a tempos, uma pomba branca for bater com as asas à sua vidraça, sou eu que aportei ao Havre na minha Arca, levando comigo, entre outros animais, o Pinho e a D. Paulina, para que mais tarde, tendo baixado as águas, Portugal se repovoe com proveito, e o Estado tenha sempre Pinhos a quem peça dinheiro emprestado, e Quinzinhos gordos com quem gaste o dinheiro que pediu a Pinho. Seu afilhado do coração.--FRADIQUE.