Ecos de Paris

Eça de Queirós

 

I - Paris e Londres

II - Os duelos

III - O imperador Guilherme

IV - O Grand-Prix

V - O 14 de Julho

VI - A França e o Sião

VII - A questão Buloz

VIII - As eleições

IX - Aliança franco-russa

X - As festas russas

XI - A Espanha

XII - O Sr. Barthou

XIII - Os anarquistas

XIV - Outra bomba anarquista

XV - As interviews

XVI - O “Salon”

XVII - Carnot

XVIII - A morte e os funerais de Carnot....

XIX - João de Deus

 

 

 

 


I

 

PARIS E LONDRES — O ANIVERSÁRIO DA COMUNA — FLAUBERT

 

Eu não direi, como Lord Beaconsfield, que «no mundo só há de verdadeiramente interessante Paris e Londres, e todo o resto é paisagem». É realmente difícil considerar Roma como um ninho balouçando-se no ramo de um ulmeiro, ou ver apenas no movimento social da Alemanha um fresco regato que vai cantando por entre as relvas altas.

Não se pode negar, porém, que a multidão contemporânea tende para esta opinião do romanesco autor de Tancredo e da guerra do Afeganistão: nada vê no universo mais digno de ser estudado e gozado do que a sociedade, essa coisa cintilante e vaga que pode compreender desde as criações da arte até aos menus dos restaurantes, desde o espírito das gazetas até ao luxo das librés – e, muito racionalmente, corre a observar a sociedade, a penetrar-se dela, onde ela é mais original, mais complexa, mais rica, mais pitoresca, mais episódica, em Paris e em Londres: ao resto da Terra pede apenas cenários de Natureza, relíquias de arte, trajes e arquitecturas...

... Em Roma contempla os ornamentos do passado – o Coliseu e o papa; em Madrid interessam-no só os Velásquez e os touros; ninguém viaja na Suíça para estudar a constituição federal ou a sociedade de Genebra, mas para embasbacar diante dos Alpes. E assim, para a turba humana, mais impressionável que critica, o mundo aparece como uma decoração armada em tomo de Paris e Londres, uma curiosidade cenográfica que se olha um momento, pedindo-se logo toda a atenção na tragicomédia social que palpita ao centro.

Isto é uma superstição. Mas se realmente, o mundo fosse apenas uma paisagem acessória – a devoção burguesa por Paris e Londres, residências privilegiadas da humanidade criadora, seria justificável: porque, na verdade, o interesse do universo está todo na vida, na sua luta, na sua paixão, no seu cerimonial, no seu ideal e no seu mal, O Sol, nascendo por trás das Pirâmides, sobre o fulvo deserto da Líbia, forma um prodigioso cenário; o vale do Caos, nos Pirenéus, é de uma grandeza exuberante – mas todos estes espectáculos hão-de ser sempre infinitamente menos interessantes que uma simples comédia de ciúmes, passada num quinto andar. Que há, com efeito, de comum entre mim e o Monte Branco? Enquanto que as alegrias amorosas do meu vizinho, ou os prantos do seu luto, são como a consciência visível das minhas próprias sensações.

O grande Dickens, diante dos Alpes ou dos palácios de Veneza, punha-se a pensar com saudades nas tristes ruas de Londres, num rumor de fim de dia e no prazer de surpreender as expressões de ansiedade, triunfo ou dor, nas faces dos que passam, alumiados pelo gás vivo das lojas. E que o melhor espectáculo para o homem – será sempre o próprio homem.

Se sobre a Terra só houvesse fachadas de catedrais ou vulcões flamejantes, a Terra parecer-nos-ia tão insípida como a Lua, ou (ainda que isto seja talvez exagerado) como a própria Lisboa. Por mais cantantes que sejam as águas correndo, por mais fresco e umbroso que se alargue o vale – a paisagem é intolerável, se lhe falta a nota humana, fumo delgado de chaminé ou parede rebrilhando ao sol, que revele a presença de um peito, de um coração vivo.

Mas a verdade é que fora de Paris e Londres há também humanidade. Sampetersburgo não forma só sobre a neve outra ondulação de neve; Berlim não é uma floresta com uma população de seiscentos mil castanheiros; em Lisboa mesmo se encontra, de vez em quando, um homem. Que importa! O mundo persiste em considerar essa humanidade de Berlim, de Lisboa ou Sampetersburgo como um mero acessório da decoração, como aquele arabezinho diminuto que os fotógrafos colocam sempre à base das ruínas de Palmira, ou como esses pastores vestidos de um farrapo de púrpura que nos quadros do século XVII ornam as paisagens ideais.

O que essa humanidade de província faz, diz, sofre ou goza – é-lhe indiferente. Não é a ela que vai ver, se visita os lugares que ela habita: o que lá lhe move a curiosidade apressada é algum monumento, algum panorama –- a paisagem, como diz Lord Beaconsfield. Para o estrangeiro, Portugal é Sintra, a Alemanha é o Reno: até mesmo na ideia de Lord Byron, e de outros depois dele, o que estraga a beleza de Lisboa é a presença do Lisboeta – como a mim o que me estraga a Alemanha é a presença do Prussiano. Positivamente a multidão só reconhece uma sociedade – a de Paris e de Londres.

Mas, dentro em pouco, nem ruínas, nem monumentos haverá dignos de viagem; cada cidade, cada nação, se está esforçando por aniquilar a sua originalidade tradicional, nas maneiras e nos edifícios, desde os regulamentos de polícia até à vitrina dos joalheiros – a dar-se a linha parisiense. No Cairo, cidade dos califas, há cópias do Mabile, e os ulemás esquecem as metáforas gentis dos poetas persas, para repetir os ditos do Figaro; o primeiro som que ouvi, ao penetrar as muralhas de Jerusalém foi o cancã da Bela Helena, e saiu da habitação de um rabi, de um doutor da lei santa; nas margens do Jordão, sobre a areia dourada, que os pés de Jesus pisaram, achei dois velhos colarinhos de papel, modelo Smith: bem sei que não pertenciam nem ao Salvador, nem ao Precursor, mas lá estavam, e despoetizavam suficientemente aquela riba sagrada.

O mundo vai-se tornando uma contrafacção universal de Bulevar e da Regent Street. E o modelo das duas cidades é tão invasor que, quanto mais uma raça se desoriginaliza, e se perde sob a forma francesa ou britânica, mais se considera a si mesma civilizada e merecedora dos aplausos do Times. O Japonês julga-se, na escala dos seres, muito superior ao Chinês, porque em Yedo já o indígena se penteia como o tenor Capoul e lê Edmond About no original; enquanto que a China, obsoleta nas vetustas ruas de Pequim, ainda vai no rabicho e em Confúcio. E, ainda assim, nas margens do Amor já há fábricas de tecidos de algodão, como em Manchester.

Positivamente, inclino também para a ideia de Lord Beaconsfield: a originalidade viva do universo está em Paris e em Londres: tudo mais é má imitação de província. Por isso que a curiosidade pública é impelida para lá – dando ao resto do mundo apenas aquele olhar rápido que se tem para o fundo dos retratos, onde verdejam vagos de paisagem ou se perfilam linhas de um pórtico.

É por isso que ninguém que tenha o orgulho de se considerar ser racional prescinde de se informar diariamente de tudo que se passa em Paris ou em Londres, desde as revoluções até às toilettes, desde os poemas até aos escândalos.

O desejo mais natural do homem é saber o que vai no seu bairro e em Paris.

Que importa o que sucede na Ásia Central, onde os Russos se batem, ou na Austrália, onde há crise ministerial? O que se quer saber é o que fez ontem Gambetta, ou o que dirá amanhã o professor Tyndall.

E com razão: a Ásia Central e a Austrália não ensinam nada, e Paris e Londres ensinam tudo.

Tendo assim sacrificado suficientemente à regra, que quer que todo o escritor da raça latina nunca enuncie a sua ideia ou conte o seu facto sem se fazer preceder de frases genéricas armadas em pórtico – creio que devo começar esta crónica falando hoje de Paris, capital dos povos e pátria genuína de Mr. Prudhomme...

 

O acontecimento saliente e comentado deste últimos dias é a manifestação do dia 23 de Maio. Lembram-se que há nove anos, nessa data, na semana sanguinolenta da derrota da Comuna, os regimentos de Versalhes, invadindo Paris, numa demência de represálias, fizeram uma exterminação à antiga, fuzilando sem discernimento, pelos pátios dos quartéis, entre os túmulos dos cemitérios, sob o pórtico das igrejas, todo o ser vivo que era surpreendido com as mãos negras de pólvora e um calor de batalha na face.

Trinta e cinco mil pessoas foram aniquiladas nesta Saint-Barthélemy conservadora, nesta hecatombe da plebe, oferecida em sacrifício à ordem com o delírio com que o rei de Daomé decapita tribos inteiras em honra do ídolo Gri-Gri, ou os Cartagineses imolavam uma mocidade, toda uma Primavera sagrada, para aplacar o mais cruel dos Baals, o negro e flamejante Moloch.

Onde foram sepultados tantos montões de cadáveres?... Apenas se sabe que parte foi arremessada à vala comum do Père-Lachaise.

Os anos passaram, e os vencidos de então são hoje cidadãos formidáveis, armados não da espingarda revolucionária, mas de um legal boletim de voto, e que, em lugar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas nas eleições.

No dia 23 de Maio, pois, aniversário do extermínio dos seus, preparavam-se eles para ir através das ruas de Paris, numa vasta procissão funerária, com coroas de perpétuas na mão, visitar essa lúgubre vala onde apodrecem os seus mortos.

O Governo do Sr. Grevy, porém, inquietou-se com este cerimonial, e, ou prometendo concessões ao velho mundo communard a troco da desistência desta pompa fúnebre (tão parecida com uma comemoração triunfal), ou ameaçando mandar carregar vinte mil homens contra o préstito e fazer assim recair sobre os chefes da manifestação a responsabilidade de um conflito civil – conseguiu que nesse dia a massa comunista ficasse chorando os seus mortos, no silêncio das suas alcovas. Mas alguns exaltados, desatendendo a disciplina do partido, persistiram na demonstração lutuosa; e assim como de uma nuvem negra, que ameaça um dilúvio, só vêm a cair aqui e além algumas gotas de água, assim de toda aquela população que devia descer dos faubourgs apenas se viram pelas ruas grupos de dez, quinze pessoas, dirigindo-se ao Père-Lachaise com a sua blusa nova, e a coroa de perpétuas na mão: somente por amor do símbolo, as coroas eram vermelhas.

Estes mesmos fragmentos de manifestação desagradaram ao Governo e à Prefeitura, e viu-se então um espectáculo bem próprio a regozijar o coração do homem livre: quando, no Père-Lachaise, onde se apinhavam batalhões de polícias, um homem se aproximava da vala a depor a sua coroa sobre a erva verde, um sergent de ville precipitava-se, verificava de sobrolho duro que as perpétuas eram escarlates e arrastava o indivíduo ao cárcere; e se o cidadão, ignorando que sob a república é um crime chorar os mortos e ornar-lhes a sepultura, protestava com veemência, a polícia demonstrava-lhe, a pranchadas, que a república é um governo forte e contundente...

Mas o que iam eles fazer ao Père-Lachaise com as suas perpétuas simbólicas, estes revoltados, estes exaltados, que em princípio abominam a religião e os seus cerimoniais?

O mais ilustre jornal do partido, o Mot d’Ordre, descrevia há dias uma festa no Sacré-Coeur nestes termos fantásticos: «Ontem havia, no Sacré-Coeur, uma reunião de indivíduos celebrando algumas cerimónias bárbaras em honra de um personagem esquisito e obscuro, vulgarmente designado pelo nome extravagante de Deus.» Ora parece extraordinário que indivíduos que possuem frases tão avançadas vão comemorar um aniversário de morte – da morte que não deve ser para eles mais que uma banal transformação da substância, com as tradicionais etiquetas do catolicismo; e que procedam, diante de um túmulo amigo, como se acreditassem que o corpo jaz ali intacto e paciente, sob as flores agrestes, esperando o toque do clarim do Juízo Final, enquanto a alma paira no éter místico, misturando-se à vida terrestre e gozando a oferta de símbolos saudosos...

Mas, mais estranho que tudo, é a influência do vermelho no âmbito da polícia, como entre nós nos temperamentos dos touros.

Pode até certo ponto compreender-se que uma bandeira vermelha, batendo o ar desfraldada, lembrando arrogantemente a insurreição, possa irritar a bílis de uma polícia bem organizada; mas onde está o crime de uma pobre coroa de perpétuas tingidas de vermelho?

Porque, como muito nitidamente o explicou o Sr. Andrieux, prefeito da polícia, o que ofendeu a república e a ordem foi a imprudência daquele escarlate! Se as perpétuas fossem amarelas, a república teria generosamente permitido a manifestação saudosa...

Logicamente, pois, uma rapariga que passe no Bulevar com duas rosas vermelhas ao peito deve ser arrastada diante de um conselho de guerra. A papoula torna-se um delito; e o rubor de uma face casta é ofensa à constituição.

Quando o senhor prefeito da polícia corta o seu dedo augusto com o seu canivete oficial, que deve fazer em presença do escândalo do seu sangue vermelho? Algemar-se a si mesmo, e a si próprio arremessar-se à palha húmida das masmorras. Mas o verdadeiro culpado é o bom Deus, que prodigaliza o escarlate e as suas gradações nas flores, nas nuvens e, se nos não mente a Bíblia, até nas túnicas dos seus serafins! Ao cárcere o bom Deus!

Esta extravagância do chefe da polícia é melancólica.

Na Inglaterra reúnem-se em Hyde Park, quinze, vinte mil pessoas em meeting, com toda a sorte de emblemas, estandartes e charangas, todas as cores que a Providência fez e ainda todas as que a indústria inventou; declama-se, uivam-se cantos sagrados e

ímpios, atira-se velha hortaliça à face dos oradores, absorvem-se pipas de cerveja, e a formidável polícia inglesa, de braços cruzados, sorri com bonomia à orgia cívica. É que todas estas vociferações e todas essas cores deixam as instituições tão intactas e tão firmes como os velhos robles de Hyde Park; e, finda a hora do meeting, a grande massa dispersa com um sossego de fim de missa. Em França um grupo de homens vai em silêncio depor, sobre uma campa, flores de melancolia, e tudo treme, num receio que a forte república do Sr. Gambetta cambaleie ferida no coração!

Realmente, Calígula e Carlos IX fazem às vezes saudades...

 

Era Alfred de Musset que dizia nas suas patéticas estâncias à Malibran que, em França, quinze dias fazem de uma morte recente uma novidade. Talvez, quando é a Malibran que morre – um gorjeio de ave que se perde na noite. Mas, se o que desapareceu se chama Gustave Flaubert e é o autor de Madame Bovary e da Educação Sentimental – quinze dias ou quinze anos podem passar sobre essa perda sem que a dor envelheça: sobretudo quando se pensa que esse poderoso artista, um dos maiores deste século, nos é estupidamente arrebatado no espaço de uma hora, por uma apoplexia, em plena força criadora, na véspera de terminar um livro supremo, em que pusera dez anos de trabalho, o melhor do seu génio e a sábia experiência de uma vida inteira.

Não é para esta crónica o estudar Gustave Flaubert. Só direi que a sua alta glória consistira em ter sido um dos primeiros, mais original em dar à arte contemporânea a sua verdadeira base, desprendendo-a das concepções idealistas do romantismo, apoiando-a toda sobre a observação, a realidade social e os conhecimentos humanos que a vida oferece. Ninguém jamais penetrou com tanta sagacidade e precisão os motivos complexos e íntimos da acção humana, o subtil mecanismo das paixões, o jogo dos temperamentos no meio social; e ninguém marcou tão vasta e penetrante análise numa forma mais viva, mais pura e mais forte.

As suas criações – Madame Bovary, Homais, o farmacêutico, Leão, Frederico, Madame Arnoux – pelo poder de vitalidade que ele lhes imprimiu, participam de uma existência tão real, quase tão tangível como a nossa. Quando o seu enterro, em Ruão, passava junto do Sena, defronte de uma das lindas ilhas que ali verdejam, os que o acompanhavam paravam um momento a olhar, a mostrar-se o sítio na fresca ilha em que Madame Bovary passeava com Leão, como se estivesse vendo por entre a folhagem dos choupos a sua figura nervosa e ligeira, e o vestido de merino claro que ela levava aos rendez-vous.

Madame Bovary é hoje uma obra clássica e decerto o seu melhor livro. Quem a não conhece e a não relê – essa história profunda e dolorosa de uma pequena burguesa de província, tal qual as cria a educação moderna desmoralizada pelos falsos idealismos e pela sentimentalidade mórbida, agitada de apetites de luxo e de aspirações de prazer, debatendo-se na estreiteza da sua classe como num cárcere social, correndo a esgotar de um sorvo todas as sensações e voltando delas mais triste como dos funerais da sua ilusão, procurando alternadamente a felicidade na devoção e na voluptuosidade, ansiando sempre por alguma coisa de melhor, e arrastando uma existência minada desta enfermidade incurável – o desequilíbrio do seu sentimento e da razão, o conflito do ideal e do real: até que uma mão-cheia de arsénico a liberta de si mesma!

Na Educação Sentimental, concebe esta ideia de génio: pintar numa larga acção a fraqueza dos caracteres contemporâneos amolecidos pelo romantismo, pelo vago dissolvente das concepções filosóficas, pela falta de um princípio seguro que, penetrando a totalidade das consciências, dirija as acções; e explicar por esta efeminação das almas todas as instabilidades da nossa vida social, a desorganização do mundo moral, a indiferença e o egoísmo das naturezas, a decadência das classes médias, a dificuldade de governar a democracia...

Salambô é a prodigiosa reconstrução de um povo, de uma religião extinta, do violento e complicado mundo cartaginês: na Tentação de Santo Antão, de uma tão forte intuição, de uma erudição tão larga, pinta-nos tumultuosa a confusão mística de um cérebro de asceta, e atinge aí talvez a perfeição de uma forma tão viva, tão quente, tão elástica, que só a poderia comparar a uma carnação humana.

Particularmente, era o melhor dos homens. Tinha a nobre e santa faculdade de admirar sinceramente; era destes a quem um belo verso, uma figura elevada, fazem humedecer os olhos de ternura: só sentia indiferença pelo pedantismo triunfante, e a indignação só lhe vinha diante do egoísmo burguês.

Viajou longos anos, foi amado, foi ilustre. Mas, como disse Zola, o melhor das suas alegrias e das suas mágoas teve-as dentro da sua arte. Era verdadeiramente um monge das letras. Elas permaneceram sempre o seu fim, o seu centro, a sua regra. Vivia nelas como numa cela, alheio aos rumores triviais da vida. Foi um forte. A sua província vai erguer-lhe uma estátua: e decerto nunca fronte mais digna, modelada em mármore, reluziu à luz dos céus.

 

 

 

 

 


II

 

OS DUELOS — A AMNISTIA — GAMBETTA — ROCHEFORT ­ OS JESUÍTAS

 

Estas últimas semanas, em França, têm sido sanguinolentas. Os duelos sucedem-se tão regularmente como as madrugadas; e o primeiro espectáculo que o Sol, o velho e dourado Febo, avista, ao assomar a rósea varanda do Oriente, é um francês em mangas de camisa e de florete na mão, à beira de um arroio ou nas ervas de um prado, procurando varar com arte as vísceras essenciais de outro francês.

Parece que estamos sob o reinado do melancólico Luís XIII, quando, apesar dos éditos, mal tocava às ave-marias, não havia recanto sombrio do velho Paris onde não lampejassem duas espadas cruzadas, ou em tempos da república romântica de 1848, em que dois sujeitos que não concordavam sobre a questão da Polónia, ou divergiam acerca de Jesus Cristo – um considerando-o um imortal filósofo, outro apenas um pequeno Deus sem importância –, corriam a retalhar-se ao sabre, nas sombras do Bosque de Bolonha.

Não pode agora um honesto melro gorjear pacificamente as suas reflexões da alvorada, sem que o venha interromper uma velha caleche a trote donde emergem, soturnos e de negro vestidos, sujeitos com um molho de espadões debaixo do paletó.

Não ficam cadáveres pelos campos; mas a epiderme dos jornalistas e dândis é abundantemente deteriorada.

Duelo de Rochefort com Koechlin; duelo de Laffite, do Voltaire, com o conde de Dion; duelo de Fronsac, do Gil Blas, com o príncipe de Santa Severina; duelo de Lajeune-Villars com Lepelletier, do Mot d’Ordre; duelo em Avinhão, em Montplier, em Rennes, em Lião. Sem contar os duelos do conde de Hauterive, que esta semana se tem batido quatro vezes, ferindo todas as manhãs o seu homem com o mesmo florete entre o pulso e o cotovelo!

Este caso pitoresco faz-me lembrar os «combates do Sr. Paulo».

Não conhecem os combates do Sr. Paulo? É uma curiosa história do Bairro Latino, dos tempos em que ainda alvejava, entre as verduras do Luxemburgo, o vestido de cassa de Mimi. O Sr. Paulo era um discípulo ardente de Proudhon, que costumava ir todas as noites tomar o seu grogue a um café da Rua Jean-Jacques Rousseau, e soltar, com voz rouca de profeta irritado, as frases célebres do Mestre: «Deus é o mal! A propriedade é o roubo! Queremos a liquidação social!»

A sua aparência era hoffmânica; duas longas pernas de cegonha triste, olhos rutilantes numa face ascética e uma gaforina descomunal, crespa, revolta e cor de estopa. De resto, bravo e honesto. Uma noite, o Sr. Paulo instalava-se diante do seu grogue, quando avista sobre a mesa um papelinho pérfido, contendo esta abominável sextilha:

 

A loura e doce Maria,

Que a ninguém de amores maltrata

Foi avisada outro dia

Que Paulo a vem visitar,

E ei-la que rompe a gritar:

Depressa!, fechem a prata!

 

Só Homero, que disse os furores de Ájax, poderia pintar a cólera do Sr. Paulo e os seus repelões à guedelha... Logo ao outro dia tinha descoberto que o deplorável poeta era um sujeito obeso, de olho oblíquo, exalando um cheiro adocicado de sacristia – que saboreava também os seus grogues no café e dirigia um jornal jesuíta – A Palavra. A sextilha tomava, assim, as proporções sociais de uma injúria arremessada pela Igreja contra a revolução. Era a graça caluniando a consciência.

Daqui a um duelo no Bosque de Vincennes... Caminham um sobre o outro de pistola alta. Fogo! A bala do homem d’A Palavra vai cravar-se na anca de um jumento, que a distância retouçava pensativamente a erva; a do Sr. Paulo, essa vai varar o chapéu alto de um dos padrinhos do devoto. Este sujeito franziu consideravelmente o sobrolho.

À noite, um excelente rapaz, Jacques Morot, reaccionário também, abre a porta do café da Rua Rousseau e pergunta para dentro avidamente:

– Então, o duelo? Houve morte de homem?

– Não – respondeu alguém de uma mesa ao fundo. –Houve morte de jumento.

– O quê! Morreu Paulo?

E o Paulo que, ao lado, sorvia galhardamente o seu grogue, ergue-se, de juba eriçada e a injúria no lábio... E daí outro duelo, à pistola também.

Foi no Bosque de Bolonha, esse, ao primeiro cantar da cotovia. A bala reaccionária de Jacques perdeu-se entre as folhagens, mas a do Sr. Paulo lá foi varar o chapéu alto do padrinho – do mesmo, precisamente o mesmo que na véspera, ao lado do beato pançudo, tivera já o seu chapéu atravessado e franzira tanto o sobrolho.

– Compreendo! – rosnou este indivíduo lívido.

E à noite, no café, dirige-se à mesa onde o Sr. Paulo absorvia o seu grogue, exalando o seu socialismo, e acusa-o friamente, «de lhe querer tirar a vida de um modo desleal e infame»!

– Pois atreve-se?... – ruge o Sr. Paulo.

– Sei o que digo: infame e desleal!

– Insolente!

– Garoto!

Novo duelo. Mas então os padrinhos assistiram de longe, estirados entre as ervas altas como lagartos assustados. Por precaução tinham-se recoberto de colchões... E as duas balas, com efeito, perderam-se pela amplidão dos céus. De uma dizia-se no café que fora parar a Pequim; da outra corria que, por um funesto hábito adquirido, andava ainda pelo Bosque de Bolonha, procurando entre os arvoredos o chapéu alto para se alojar.

Tais foram os combates do Sr. Paulo, discípulo de Proudhon.

Os conflitos de honra que têm este final de vaudeville são, por fim, os mais aceitáveis.

Há-de haver sempre duelos. E evidente que, enquanto os jornais publicarem em letra gorda e glorificadora as actas do desafio; enquanto os olhos das mulheres sorrirem ao ferido interessante que atravessa a sala pálido e de braço ao peito, ou o espadachim feliz que retorce o bigode; enquanto na rua burgueses pararem pasmados, murmurando ao ouvido da família: «Lá vai ele! Foi aquele que se bateu!», nem o código, nem o bom senso, nem melífluas máximas humanitárias impedirão jamais que o homem, publicamente ridicularizado ou publicamente injuriado, salte sobre a sua espada, gritando à turba: «Cá vou defender a minha honra!»

Haverá sempre quem consinta em esvair-se em sangue –tendo em redor as aclamações de um circo.

No mais grave dos homens há uma fibra de histrião.

O que convém, pois, à sociedade é que, nestes conflitos impostos pela exigência da vaidade e pelo despotismo do prejuízo, o sangue derramado se limite às três ou quatro gotas que um lenço de cambraia estanca.

No fim, a moralidade dos duelos está toda num dito de Rochefort.

– Tem sido feliz em seus desafios? – perguntava-lhe alguém.

– Felicíssimo. Tenho-me batido vinte e tantas vezes e volto sempre com a consciência serena e uma ferida séria...

Não se pode realmente vir almoçar com a «consciência serena» quando se deixou um homem a agonizar numa poça de sangue; mas é triste também que para se poder gozar, com a alma tranquila, a omeleta do almoço, se deva voltar do campo de ventre rasgado ou com a clavícula em pedaços.

De sorte que o sujeito que quer defender a sua honra a sério por estes meios tem diante de si duas perspectivas amáveis: ou a permanente tortura de um remorso, ou a eterna paz de uma campa; e quando se é muito feliz, como Rochefort, dois meses de cama com uma víscera despedaçada.

Bem hajam, pois, os que nos seus duelos, como no caso do Sr. Paulo, atiram as balas para Pequim ou se arranham ligeiramente nos cotovelos! Compreendem a sabedoria: a sociedade, a vaidade, os jornais, a opinião, as mulheres, pedem-lhes sangue? Bem!, vão a um recanto do Bosque, e extraem-se um ao outro, da ponta do dedo, a gota reclamada pela honra. A sociedade, a vaidade, etc., sorriem satisfeitas; e eles, serenos de consciência, curam-se pondo uma dedeira. Salutar prudência! E são igualmente heróis nas gazetas!

 

Foi votada na Câmara a amnistia, e sê-lo-á certamente no Senado. Nenhum vestígio, pois, restará da insurreição da Comuna em 1871. As casas ardidas foram reedificadas; há longo tempo que secaram as poças de sangue nas ruas; a hera disfarça poeticamente as ruínas das Tulherias; os fuzilados de então são hoje terra fértil onde a erva cresce, alta e vasta: os degredados, os fugitivos, reentram na vida legal; a questão da amnistia, que se arrastava nas controvérsias dos jornais como um farrapo sinistro de guerra civil, é varrida para o lixo; e sobre aquela pavorosa loucura cai enfim solenemente uma lápide de esquecimento. Viva a França!

Tudo isto é excelente: não haveria mesmo o direito de vencer, se não houvesse o direito de perdoar.

O Sr. Grevy, que restituíra a pátria a centenares de comunistas por compaixão – não podia deixar outros centenares no degredo, por legalidade. Não era lógico que os que fuzilavam os dominicanos pudessem fumar o seu cigarro no Bulevar, enquanto Rochefort, que a Comuna condenou à morte, sofria o melancólico exílio de Genebra, e Trinquet, reabilitado publicamente por Gambetta, fabricava tamancos nos presídios da Nova Caledónia. Mas dá-se uma circunstância singular: há três meses o ministro Freycinet declarava, entre as aclamações da maioria, que a França não estava suficientemente pacificada, nem a república talvez bastante forte, para deixar voltar a legião da Comuna, e ontem o mesmo Sr. de Freycinet, aos aplausos da maioria, afirmava que era tão sólida a unidade da república, tão completa a quietação dos espíritos, que não se podia adiar por mais um dia esta larga absolvição das barricadas de 1871.

Em Março a amnistia era um imprudência, em Junho é uma necessidade! Noventa dias não são suficientes para que mudassem assim tão radicalmente a opinião da França e o interesse da república. Portanto, aqui, como se dizia nas óperas cómicas da minha infância, há um mistério. Qual é, pois, esse mistério? E a vontade do Sr. Gambetta. Foi ele, esse todo-poderoso, esse Deus de Israel, esse Luís XIV da república, esse augusto dono de França – que assim o decidiu. Ele via que a recusa da amnistia o despopularizava já na forte maioria da democracia: percebia que ia sendo aí considerado como a encarnação mesma da república burguesa e o continuador do doutrinarismo do Sr. Thiers; sentia que os seus bairros proletários, Montmartre e Belleville, já lhe retiravam os votos e a confiança para os darem a Clemenceau.

Gambetta reconhece bem que, hoje, a burguesia já não é um terreno suficientemente sólido para edificar nele uma fortuna política, é na força do proletariado que se quer apoiar – e, portanto, resolveu, como um Jeová prudente, readquirir a devoção do seu povo, restituindo-lhes os profetas exilados. E aí está como a amnistia não é um grande acto de reconciliação pública, mas uma astuta manha do ditador, para não ser perturbado na lenta jornada que o vai levando à presidência da república, se não a um cesarismo jacobino. Para mudar a opinião do ministério Freycinet, bastou-lhe ordenar; e para convencer a câmara, bastou-lhe falar.

No dia da discussão do projecto da amnistia deixa melodramaticamente a sua cadeira de presidente, e de gravata branca, rubro como uma papoula, com a sua cabeleira solta à maneira de uma juba, aparece na tribuna; e não creio que desde os Gracos, ou desde Mirabeau, jamais a palavra de um homem revolvesse tanto um país! Todos os jornais, os mais hostis, reconhecem que nunca Ele fora tão poderoso.

Vai o E maiúsculo, porque parece que se trata verdadeiramente de um Deus.

Na rua vê-se gente de olho esgazeado, e arrepiada de emoção, murmurando: Gambetta falou! Assim se devia dizer em Israel, quando corria voz pelas tendas dispersas das tribos que Jeová perorava de entre a sua sarça ardente. Eu não o ouvi. O seu discurso lido aqui no jornal afigura-se-me uma prosa ressoante e oca como um tambor, mais própria da ênfase castelhana que da língua lúcida e disciplinada em que Voltaire escreveu. Parece, porém, que a sua formidável figura, os acentos pungentes da sua voz cativante, soltando os grandes nomes de França e pátria e república, os seus gestos de apóstolo possuído do espírito; maioria de pé, numa aclamação, como nos dias patéticos da Convenção; a direita muda e aterrada, as galerias num êxtase vibrante – tudo isto formou um quadro grandioso, quase heróico.

Eu espero, para o admirar, que um mestre o imortalize na tela e o popularize pela litografia. Até lá, por Júpiter, sustento que esta arenga não me parece do meu Gambetta, do antigo e forte Gambetta; dir-se-ia antes ser do copioso Odine Barrot. Não vejo aqui as ideias que fundam, nem as palavras que ficam. O que abunda, sim, e o emprego triunfante do pronome pessoal eu.

«Eu consultei o país! Eu disse à Europa! Eu faço! Eu quero!» E assim se desfaz, enfim, o equívoco enorme; é ele realmente que governa, possui a França: o Sr. Grevy está ali como uma figura ornamental; o Sr. de Freycinet e o seu ministério são o coro explicativo; a câmara um mero serviço de votação. Só ele fica acima destas fracções, como a mesma alma da república. E pela segunda vez, desde Mazarino, com respeito o digo, um italiano é o senhor das Gálias.

Não creio, porém, que esta amnistia, tão generosamente concedida pelo Sr. Gambetta, desarmará o socialismo, e o reconciliará com a república conservadora. Espanto-me mesmo que haja velhos jornais, cobertos de experiência e de cãs, que o acreditem, com a ingenuidade de tenros entusiastas. E o mesmo Gambetta parece crê-lo quando exclama que, eliminada esta questão irritante, haverá só um república e uma só França.

Retórica. A questão da amnistia era decerto, nas mãos da esquerda intransigente, uma arma útil: «Vede essa república de conservadores, que deixa nas galés os vossos irmãos, os vossos maridos!» Este grito ia direito à indignação dos homens e à sensibilidade das mulheres.

Para resolver o operário era decerto um óptimo grito: mantinha-o em desconfiança e em hostilidade; e nas eleições próximas levaria decerto a turba proletária para os candidatos do socialismo. Mas perdida esta arma contra a república do justo meio, esta durindana brilhante do Rappel e do Mot d’Ordre, restam inumeráveis máquinas de guerra no vasto arsenal da questão social. Basta por exemplo pôr em posição a famosa catapulta da separação da Igreja e do Estado, para abalar a frágil muralha do gambettismo.

Os conservadores, para se conservarem a si mesmos, terão de ceder: e de concessão em concessão, como um sapo aos saltinhos sucessivos, irão cair na goela escarlate da serpente socialista. Todas as medidas destes últimos dois anos, «depuramento do funcionalismo, expulsão dos jesuítas e volta dos comunistas», têm sido exigências da extrema-esquerda, do mundo do Rappel, da Justice e do Mot d’Ordre.

E outras reclamações virão – todas necessariamente satisfeitas – e cada uma tirando um cabelo a Sansão e uma parcela da sua força à república... A questão está colocada entre o proletário e o burguês. E Clemenceau contra Gambetta. E isto que é o socialista Clemenceau matará fatalmente aquilo que é o jacobino Gambetta: e isto que é o sapateiro Trinquet eliminará mais tarde aquilo que é o filósofo Clemenceau...

Mas por estes dias ao menos, esta república moderada está sólida. Tem por si a burguesia: os burgueses de hoje são a antiga população das Gálias – que já no tempo de César amava sobretudo as palavras sonoras e as espadas atrevidas. Por isso a burguesia se sente segura apoiando-se na oratória de Gambetta e no sabre de Gallifet.

Para nós, que não somos franceses, preparam-se-nos horas de jovialidade, porque vêm aí os exilados e à frente Rochefort. Se o grande panfletário, o gaiato sublime como lhe chamou Michelet, o ardente sagitário, não perdeu nas amarguras do desterro a sua verve prodigiosa, o ardor acerado, as luminosas flechas que feriram de morte o império – por Júpiter! – vai ser curioso vê-lo erguer-se no Bulevar, como nos dias inolvidáveis da Lanterna, com a face pálida e a sua gaforina de Satanás, heróico e ágil diante do passado, do presidente Gambetta.

O jornal que vai fundar chama-se o Intransigente. Já é bom! E vem azedado por dez anos de exílio injusto, porque (ninguém o ignora) foi a Lanterna e a sua luta contra o império que o levaram à Nova Caledónia por sentença de um conselho de guerra, composto dos velhos generais de César, e não a sua participação na Comuna, que ele combateu implacavelmente e que o condenou à morte. Por isso ele permaneceu querido de toda a França, esse homem que tem o espírito de Voltaire, a temeridade heróica, a honradez de um Bayard; este marquês de Rochefort e de Luçay, que as duquesas chamam o primo Rochefort, generoso paladino dos humildes, que foi durante os últimos anos de Napoleão a alegria viva da França e uma das honras da liberdade. Os seus mesmos inimigos o admiram: e foi por terror ao seu espírito que a república conservadora o manteve no exílio perpétuo, excluído de todos os perdões. E vem aí! Positivamente, vamos rir.

 

Os comunistas entram e os jesuítas saem. Nada me parece mais insensato que esta expulsão.

Deus sabe que eu não amo os jesuítas: tudo neles me é antipático – a sua face descaída e olho oblíquo, a roupeta lúgubre, a sua moral, a sua abominável suma teológica, a sua ciência seca e hierática, o seu frio estilo de arquitectura, a sua maneira de enriquecer, com contabilidade escrita em grego, a sua grosseira e equívoca idolatria pela Virgem Maria, a sua organização tenebrosa e conspiradora, que faz assemelhar a Companhia a um carbonarismo teocrático. Mas dispersá-los parece-me singularmente impolítico, ilógico e pueril; se se pretende destruir a sua funesta influência na sociedade francesa – então é necessário expulsar o clero inteiro, pois ninguém ignora que a Igreja hoje está totalmente penetrada do espírito jesuítico. O catolicismo é o jesuitismo.

Quem governa a Igreja não é Leão XIII, o Papa Branco é O Papa Negro, o padre Beichx. E esta solidariedade com a Companhia – o clero regular aceita-a, reveste-se dela como de uma insígnia, e considera-se ferido pelas leis dirigidas contra o Instituto de Santo Inácio. Se se quer eliminar o ensino dos jesuítas, fatal à alma das gerações novas, recaímos na mesma necessidade lógica de suprimir todo o ensino clerical, semelhante, paralelo, ao que emana dos jesuítas. De que serve fechar três ou quatro estabelecimentos da Companhia – se fica todo um clero compacto para os substituir como pedagogos, como conspiradores e como inimigos da democracia?

Além disso os jesuítas expulsos das suas grandes residências irão ensinar particularmente, dispersos pelas cidades e pelos campos; em lugar da roupeta vestirão a quinzena – e nem por isso o seu ensino será mais democrático. E se ainda lhes forem arrancados os livros da escola – lá ficam os dominicanos, os maristas, os lazaristas, os franciscanos, os irmãos Cristão, e outros inumeráveis para ensinarem o mesmo com a exaltação de quem espalha uma ideia perseguida.

É pueril; os republicanos que hoje governam riam quando o império imaginava extinguir o socialismo dispersando a Internacional; e recaem no mesmo erro pensando aniquilar o clericalismo fechando três conventos de jesuítas!

Será necessário eliminar as mães devotas e os pais católicos; proibir que haja almas que por debilidade, ou religiosidade terna, se precipitem para as lições da mística de S. Tomás como para o melhor alimento terrestre. Se o ensino teológico é perigoso oponha-se-lhe o ensino científico. Esmaguem o padre com o filósofo. Mas não é rasgando uma roupeta que se reprime um ideal.

E depois, para quem ama realmente a liberdade, é repugnante estar lendo todos os dias nos jornais que já os jesuítas e as outras congregações ameaçadas começam a encaixotar os seus livros, a enfardelar tristemente os seus trapos, a despregar um ou outro painel da sua cela, porque se aproxima o dia 29, em que dois gendarmes de espadão à cinta virão arrancá-los aos conventos que são seus, edificados pela sua diligência, pagos com o seu metal e tantos anos habitados pela sua devoção.

Há nisto um sabor desagradável à revogação do Edicto de Nantes, à expulsão dos judeus, a missionários apupados pela população chinesa.

Há dias vi um velho frade franciscano, assustado e melancólico, comprando timidamente uma maleta; havia tanta amargura no olhar que o pobre mendicante dava àquele saco de couro que ia ser seu companheiro de exílio – que me veio uma cólera, uma revolta contra o Sr. Jules Ferry e o seu racionalismo prudhonesco.

Ora nada mais impolítico que provocar este sentimento: o frade torna-se mais interessante; e os fracos, os sentimentais, os religiosos, as mulheres, são atraídos para este exilado, este mártir errante, esta vítima dos Dioclecianos de chapéu alto, que se lhes afigura a encarnação mesma do crucificado.

Eu não sou um devoto, mas parece-me ímpio exilar aqueles que não têm as nossas opiniões. E uma república que expulsa uma classe inteira de cidadãos por acreditarem na graça, acenderem luzes à Virgem Maria e considerarem o conde de Chambord como um ser providencial e um messias forte – mostra uma falta de senso político, e pratica um vergonhoso abuso da força.

Mas suponhamos que eles são grandes criminosos. Pois bem! Estamos agora num momento de demência pública, perdoou-se ontem àqueles que consideram Deus um tirano; perdoe-se hoje àqueles que consideram Luís XVI um santo. E aqui está o que eu humildemente proporia – que a amnistia dada aos comunistas se estenda às congregações religiosas!

Ainda nesta carta lhes não falo da Inglaterra. A culpa é toda dela. Caso extraordinário; há já semanas que este grande e amado país não produz um acontecimento, um escândalo, um livro, um sistema filosófico, uma religião, uma máquina, um quadro, uma guerra ou um dito! Está nesse brando repouso a que se abandona sempre aos primeiros calores de Junho. Deixemo-la descansar reclinada sob a.sombra da frondosa faia, nestes ócios que lhe faz a suprema liberdade na suprema força.

 

 

 

 

 


III

 

O IMPERADOR GUILHERME

 

«Lui, toujours lui!... Ele, sempre ele!» Assim, no tempo das Vozes Interiores, clamava Victor Hugo, cansado, quase estafado de que ao seu espírito de poeta que tantos problemas divinos e humanos solicitavam, se impusesse ainda com imperiosa insistência, monopolizando os pensamentos melhores e os melhores alexandrinos, a imagem atravancadora de Napolão, o Grande. Nós hoje também podemos murmurar com impaciência: «Lui, toujours lui!... Ele, sempre ele!» – perante esse outro imperador que ainda não venceu a batalha de Marengo nem a de Austerlitz e que todavia, em meio de todos os problemas sociais, morais, religiosos, políticos e económicos que nos devoram, tão estranha e ruidosa expansão dá à sua individualidade, e tão confiadamente a arremessa através dos nossos destinos, que ele próprio se tomou um problema europeu – e ocupa tanto o nosso pensamento como o socialismo, a evolução religiosa, ou a crise capitalista! Talvez mais – porque até o próprio Sr. Renan, cuja alma, pelo exercício constante do cepticismo, ganhou a impermeabilidade e a doce indiferença de uma cortiça, para quem toda a vaga é embaladora e boa, declara na sua derradeira epístola aos incrédulos que só lhe pesa morrer (e pelas suas confissões bem sabemos quanto a vida lhe corre deliciosa e perfeita!) por não poder assistir ao desenvolvimento final da personalidade do imperador da Alemanha!

Com efeito, desde que subiu ao trono, Guilherme II, imperador e rei, ainda não deixou de atrair e reter sobre si a curiosidade do mundo, uma Curiosidade divertida e arregalada de público que espera surpresas e lances – como se esse trono da Alemanha fosse na realidade um palco vistosamente ornado no Centro da Europa. E esta é até agora a obra pitoresca de Guilherme II – o ter convertido o trono dos Hohenzollerns num palco onde ele constantemente e soberbamente se exibe com caracterizações inesperadas. Bem pode, pois, o sentimental heresiarca da Vida de Jesus lamentar que a morte lhe não consinta assistir, no quinto acto, à solução deste imperador problemático! Pois que, por ora, neste primeiro acto de três anos, desde que ele trilha o seu palco imperial, Guilherme II, pela diversidade e multiplicidade das suas manifestações, só tem revelado que existem nele, como outrora em Hamlet, os germes de homens vários, sem que possamos preconceber qual deles prevalecerá, e se esse, quando definitivamente desabrochado, nos espantará pela sua grandeza ou pela sua vulgaridade. Realmente, neste rei, quantas encarnações da realeza!

Um dia é o rei-militar, rigidamente hirto sob o casco e a couraça, ocupado somente de revistas e manobras, colocando um render da guarda acima de todos os negócios de Estado, considerando o sargento instrutor como a unidade fundamental da nação, antepondo a disciplina do quartel a toda lei moral ou da Natureza, e concentrando a glória da Alemanha na hirta precisão com que marcham os seus galuchos. E subitamente despe a farda, enverga a blusa, e é o rei-reformador, só atento às questões do capital e do salário, convocando com fervor congressos sociais, reclamando a direcção de todos os melhoramentos humanos, e decidindo penetrar na história abraçado a um operário como a um irmão que libertou. E logo a seguir, bruscamente, é o rei de direito divino, à Carlos V ou à Filipe Augusto, apoiando altivamente o seu ceptro gótico sobre o dorso do seu povo, estabelecendo como norma de todo o governo o sic volo sic jubeo, reduzindo a «suma lei à vontade do rei» e, certo da sua infalibilidade, sacudindo desdenhosamente para além das fronteiras todos os que nela não crêem com devoção. O mundo pasma – e, de, repente, ele é o rei de corte, mundano e faustoso, atento meramente ao brilho e ordem sumptuosa da etiqueta, regu-lando as galas e as mascaradas, decretando a forma do penteado das damas, condecorando com a Ordem da Coroa os oficiais que melhor valsam nos cotillons, e querendo volver Berlim num Versalhes donde emane o preceito supremo do cerimonial e do gosto. O mundo sorri – e repentinamente é o rei moderno, o rei século dezanove, tratando de caturra o passado, expulsando da educação as humanidades e as letras clássicas, determinando criar pelo parlamentarismo a maior soma de civilização material e industrial, considerando a fábrica como o mais alto dos templos, e sonhando uma Alemanha movida toda pela electricidade...

Depois, por vezes, desce do seu palco – quero dizer do seu trono – e viaja, dá representações através das cortes estrangeiras. E aí, desembaraçado da majestade imperial, que em Berlim imprime a todas as suas figurações um carácter imperial, aparece livremente sob as formas mais interessantes que pode revestir nas sociedades o homem de imaginação. A caminho de Constantinopla, singrando os Dardanelos, na sua frota, é o artista que em telegramas ao chanceler do império (em que assina imperator rex) pinta, numa forma carregada de romantismo e cor, o azul dos céus orientais, a doçura lânguida das costas da Ásia. No Norte, nos mares escandinavos, entre os austeros fiordes da Noruega, ao rumor das águas degeladas que rolam por entre a penumbra dos abetos, é o místico, e prega sermões sobre o seu tombadilho, provando a inanidade das coisas humanas, aconselhando às almas como única realidade fecunda a comunhão com o eterno! Voltando da Rússia é o alegre estudante, como nos bons tempos de Bona, e da fronteira escreve para Sampetersburgo ao marechal do palácio uma carta em verso, fantasistamente rimada, a agradecer o caviar e as sanduíches de foie-gras colocadas no seu vagão como provido farnel de jornada. Em Inglaterra está em um luxuoso centro de sociabilidade, e é o dândi, com os dedos faiscantes de anéis, um cravo enorme na sobrecasaca clara, borboleteando e furtando com a veia Soberba de um D’Orsay!... E subitamente, em Berlim, por alta noite, as cometas soltam ásperos toque de alarme, todos os fios da Agência Havas estremecem, a Europa, assustada, corre às gazetas, e um rumor passa, temeroso, de que «haverá guerra na Primavera»! Que foi? No es nada, como se canta no Pan y Toros. E apenas Guilherme II que ressubiu ao seu palco – quero dizer ao seu trono.

O mundo perplexo, murmura: «Quem é este homem tão vário e múltiplo? O que haverá, o que germina dentro daquela cabeça regulamentar de oficial bem penteado?» E o Sr. Renan geme por morrer talvez antes de assistir, como filósofo, ao desenvolvimento completo desta ondeante personalidade! Assim, Guilherme II se tornou um problema contemporâneo – e há sobre ele teorias como sobre o magnetismo, a influenza, ou o planeta Marte. Uns dizem que ele é simplesmente um moço desesperadamente sedento da fama que dão as gazetas (como Alexandre, o Grande, que, em risco de se afogar, já sufocado, pensava no «que diriam os Atenienses») e que, mirando à publicidade, prepara as suas originalidades com o método, a paciência e a arte espectacular com que Sara Bernhardt compõe as suas toilettes. Outros sustentam que há nele apenas um fantasista em desequilíbrio, arrebatado estonteadamente por todos os impulsos de uma imaginação mórbida, e que, por isso mesmo que é imperador quase omnipotente, exibe soltamente sem que uma resistência vigilante lhos coíba e lhos limite todos os desregramentos da fantasia. Outros, por fim, pretendem que ele é apenas um Hohenzollern em que se somaram e conjuntamente afloraram com imenso aparato todas as qualidade de cesarismo, misticismo, sargentismo, burocratismo e voluntarismo que alternadamente caracterizavam os reis sucessivos desta felicíssima raça de fidalgotes de Brandeburgo...

Talvez cada uma destas teorias, como sucede felizmente com todas as teorias, contenha uma parcela de verdade. Mas eu antes penso que o imperador Guilherme é simplesmente um diletante da acção – quero dizer um homem que ama fortemente a acção, compreende e sente com superior intensidade os prazeres infinitos que ela oferece, e a deseja portanto experimentar e gozar em todas as formas permissíveis da nossa civilização: Os diletantes são-no geralmente de ideias ou de emoções – porque para compreender todas as ideias ou sentir todas as emoções basta exercer o pensamento ou exercer o sentimento, e todos nós, mortais, podemos, sem que nenhum obstáculo nos coarcte, mover-nos liberrimamente nos ilimitados campos do raciocínio ou da sensibilidade. Eu posso ser um perfeito diletante de ideias, modestamente fechado com os meus livros, na minha biblioteca – mas se tentasse ser um diletante da acção, nas suas expressões mais altas, comandar um exército, reformar uma sociedade, edificar cidades, teria de possuir, não uma livraria, mas um império submisso. Guilherme II possui esse império; e hoje que se libertou da dura superintendência do velho Bismarck pode abandonar-se ao seu insaciável diletantismo da acção com a licença «com que o corcel novo (como diz a Bíblia) galopa no deserto mudo». Quer ele o gozo de comandar vastas massas de soldados, ou de sulcar os mares numa frota de ferro? Tem só de lançar um telegrama, fazer ressoar um clarim. Quer ele a delícia de transformar, nas suas mãos potentes, todo um organismo social? Tem só de anunciar: «Esta é a minha ideia.» E lentamente a seus pés começará a surgir um mundo novo.

Tudo pode, porque governa dois milhões de soldados e um povo que só zela a sua liberdade nos domínios da filosofia, da ética ou da exegese, e que quando o seu impe-rador lhe ordena que marche – emudece e marcha.

E tudo pode ainda porque inabalavelmente acredita que Deus está com ele, o inspira e sanciona o seu poder.

 

E é isto o que torna, para nós, prodigiosamente interessante o imperador da Alemanha – é que, com ele, nós temos hoje neste filosófico século, entre nós, um homem, um mortal, que mais que nenhum outro iniciado, ou profeta, ou santo, se diz, e parece ser, o íntimo e o aliado de Deus! O mundo não tornara a presenciar, desde Moisés no Sinai, uma tal intimidade e uma tal aliança entre a criatura e o Criador. Todo o reinado de Guilherme II nos aparece assim como uma ressurreição inesperada do mosaísmo do Pentateuco. Ele é o dilecto de Deus, o eleito que conferencia com Deus na sarça ardente do schloss de Berlim, e que, por instigação de Deus, vai conduzindo o seu povo às felicidades de Canaã. É verdadeiramente Moisés II! Como Moisés, de resto, ele não se cansa de afirmar estridentemente, e cada dia, para que ninguém a ignore, e por ignorância a contrarie, esta sua ligação espiritual e temporal com Deus, que o torna infalível e portanto, irresistível. Em cada assembleia, em cada banquete em que discursa (e Guilherme é de todos os reis contemporâneos o mais verboso) lá vem logo à maneira de um mandamento, esta afirmação pontifical de que Deus está junto dele, quase visível na sua longa túnica azul dos tempos de Abraão, para em tudo o ajudar e o servir com a força desse tremendo braço que pode sacudir através dos espaços, os astros e os sóis, como um pó importuno. E a certeza, o hábito desta sobrenatural aliança vai nele crescendo tanto que de cada vez alude a Deus em termos de maior igualdade – como aludiria a Francisco de Áustria, ou a Humberto, rei de Itália. Outrora ainda o denominava, com reverência, o «amo que está nos céus», o «muito alto que tudo manda». Ultimamente, porém, arengando com champanhe aos seus vassalos da marca de Brandeburgo, já chama familiarmente a Deus – o «meu velho aliado»! E aqui temos Guilherme & Deus, como uma nova firma social, para administrar o universo. Pouco a pouco mesmo, talvez Deus desapareça da firma e da tabuleta, como sócio subalterno que entrou apenas com o capital da luz, da Terra e dos homens, e que não trabalha, ocioso no seu infinito, deixando a Guilherme a gerência do vasto negócio terrestre – e teremos então apenas Guilherme & Cª Guilherme, com supremos poderes, fará todas as operações humanas. E «companhia» será a fórmula condescendente e vaga com que a Alemanha de Guilherme II designará Aquele para quem todavia, segundo cremos – Guilherme II e a Alemanha toda são tanto, ou tão pouco, como o pardal que neste instante chalra no meu telhado!

Um magnífico e insaciável desejo de gozar e experimentar todas as formas de acção, com a soberana segurança que Deus lhe garante e promove o êxito triunfal de cada empreendimento – eis o que me parece explicar a conduta deste imperador misterioso. Ora, se ele dirigisse um império situado nos confins da Ásia, ou se não possuísse na Torre Júlia um tesouro de guerra para manter e armar dois milhões de soldados, ou se estivesse cercado por uma opinião pública tão activa e coercitiva como a da Inglaterra, Guilherme II seria apenas um imperador, como tantos, na história, curioso pela mobilidade da sua fantasia e pela ilusão do seu messianismo. Mas, infelizmente, plantado no Centro da Europa trabalhadora, com centenares de legiões disciplinadas, um povo de cidadãos disciplinados também e submissos como soldados –Guilherme II é o mais perigoso dos reis, porque falta ainda ao seu diletantismo experimentar a forma da acção mais sedutora para um rei – a guerra e as suas glórias. E bem pode suceder que a Europa um dia acorde ao fragor de exércitos que se entrechocam – só porque na alma do grande diletante o fogoso apetite de «conhecer a guerra», de gozar a guerra, sobrepujou a razão, os conselhos e a piedade da pátria. Ainda há pouco, de resto, ele assim o prometia aos seus fiéis solarengos do Brandeburgo: «Levar-vos-ei a belos e gloriosos destinos. «Quais? A várias batalhas decerto, onde triunfarão as águias germânicas... Guilherme II não o duvida – pois tem por aliado, além de alguns reis menores, o Rei Supremo do Céu e da Terra, combatendo entre a Landwehr alemã, como outrora a Minerva Ateneia, armada da sua lança, combatia contra os bárbaros em meio da falange grega.

Esta certeza da aliança divina!... Nada pode dar mais força a um homem, na verdade, que uma tal certeza, que quase o diviniza. Mas, também, a que riscos ela arrasta! Porque nada pode fazer tombar mais fundamente um homem do que a evidência, perante a crua contradição dos factos, de que essa certeza era apenas a quimera de uma desordenada fatuidade. Então verdadeiramente se realiza a queda bíblica do alto dos céus. Houve um povo que se proclamava outrora O eleito de Deus: mas apenas se provou que Deus não o elegera, nem o preferia a outro, por isso que o abandonava desdenhosamente, foi desmantelado com incomparável furor, disperso e apedrejado por todos os caminhos do mundo, e encurralado em guetos onde os reis lhe estampavam sobre a casa e sobre a campa uma marca como a que se estampa sobre a moeda falsa.

Guilherme II corre este lúgubre perigo de cair nas Gemónias. Ele assume hoje temerariamente responsabilidades que em todas as nações estão repartidas pelos corpos de Estado – e só ele julga, só ele executa, porque é a ele, e não ao seu ministério, ao seu conselho, ao seu parlamento, que Deus, o Deus de Hohenzollern, comunica a inspiração transcendente.

Tem portanto de ser infalível e de ser invencível. No primeiro desastre, ou lhe seja infligido pela sua burguesia ou pela sua plebe nas ruas de Berlim, ou lhe seja trazido por exércitos alheios numa planície da Europa, a Alemanha imediatamente concluirá que a sua tão anunciada aliança com Deus era uma impostura de déspota manhoso.

E não haverá, então, da Lorena à Pomerânia, pedras bastantes para lapidar o Moisés fraudulento! Guilherme II está na verdade jogando contra o destino esses terríveis dados de ferro, a que aludia outrora o esquecido Bismarck. Se ganha dentro e fora da fronteira, poderá ter altares como teve Augusto (e de facto também Tibério). Se perde é o exílio, o tradicional exílio, em Inglaterra, o cabisbaixo exílio, esse exílio que ele hoje tão duramente intima àqueles que discrepam da sua infalibilidade.

E não se mostraram já os prenúncios vagos do desastre? O grande imperador há dias recebeu apupos nas ruas de Berlim. As plebes desconfiam de Guilherme e do seu Deus. E (sinal temeroso) os pensadores e os filósofos que foram sempre, na muito intelectual Alemanha, os formidáveis esteios do despotismo militar dos Hohenzollerns, começam a amuar com o trono e a retroceder, pelos caminhos vagarosos do liberalismo, para o povo e para a justiça social de que ele tem a consciência ainda tumultuosa, mas exacta. Onde estão os tempos em que Hegel considerava a autocracia prussiana quase como uma parte integrante da sua filosofia e da ordem do universo? Onde estão as admirações de Hebart pelo «Estado concentrado no soberano»? Onde estão esses altos entendimentos ensinando nas universidade que a suma da sapiência política na Prússia era «Deus salve o rei»? Onde estão esses louvores ao direito divino dos Hohenzollerns, cantados por Strauss, por Mommsen, por Von Sybel? Tudo passou! A metafísica rosna descontente. Das duas grossas pedras angulares da monarquia prussiana, o filósofo e o soldado, Guilherme II hoje só tem o soldado – e o trono, sobrecarregado com o imperador e o seu Deus, pende todo para um lado, que é talvez o do abismo...

Conseguirá o filósofo persuadir o soldado a sacudir por seu turno o peso sob que geme e mesmo sob que sangra, se são verídicas as acusações do príncipe Jorge de Saxe? O soldado sai do povo, e sabe ler. E se, como a Alemanha toda afirmou, foi o mestre-escola quem venceu em Sadova e em Sedan – é talvez ele ainda, com o seu novo livro e a sua nova férula, que vencerá em Berlim.

O Sr. Renan tem, pois, razão, grandemente: e nada mais atractivo, neste momento do século, de que assistir à solução final de Guilherme II. Dentro de anos, com efeito (que Deus faça bem lentos e bem longos), este moço ardente, imaginativo, simpático, de coração sincero e talvez heróico, pode bem estar, com tranquila majestade, no seu schloss de Berlim gerindo os destinos da Europa, ou pode estar, melancolicamente, no Hotel Metrópole, em Londres, desempacotando da maleta do exílio a dupla coroa amolgada da Alemanha e da Prússia.

 

 

 

 

 


IV

 

O GRAND-PRIX — A ESTATUOMANIA — OS COCHEIROS — VÍTOR HUGO — O CAMPO EM PARIS

 

Na semana passada o Grand-Prix – que é a solenidade oficial do sport, do jogo e das toilettes. Todos estes elementos estiveram magnificamente representados na planície de Longchamps, sob um sol mais severo que o de Java. Os cavalos eram tão bons que o vencedor, um cavalo francês com o nome de um herói húngaro, venceu apenas por uma quarta parte do focinho. As apostas elevaram-se a mais de seis milhões. E havia toilettes portentosas, entre as quais um vestido negro, todo ornado de crisântemos brancos.

A tribuna republicana do presidente estava salpicada de sangue real: a rainha-mãe de Portugal, D. Maria Pia; a duquesa de Aosta, cunhada do rei de Itália, uma mulher esplêndida, que parece uma Vénus de Milo metida dentro de um vestido da Laferrière, e que seria realmente digna da Grécia se não fosse um não sei quê de japonês nos olhos oblíquos. E depois um príncipe índio, o marajá de Laore, infelizmente de sobrecasaca preta e sem diamantes. (Que diriam a esta sóbria sobrecasaca os seus rutilantes avós que já reinavam muito séculos antes de Cristo?)

O calor era horrífico. (Creio que já aludi a este calor, que ainda sinto.) À noite, no Jardim de Paris, houve, sob as árvores e os bicos de gás, a orgia tradicional. Toda a mocidade estava brilhantemente borracha sicut licet. A única Inovação foi a troca geral de chapéus: os homens tinham Coroado as cabeças, frisadas ou calvas, com os floridos e emplumados chapéus das mulheres; e elas, as doces criaturas, arvoravam todas chapéus altos. Este modesto delírio não deve fazer supor que Paris perdesse a seriedade.

Nunca existiu cidade mais grave do que Roma (a verdadeira, a romana). Pois no dia das Saturnais, que era uma espécie de Grand-Prix, os cidadãos mais circunspectos, mesmo magistrados, bailavam nas praças, de toga arregaçada – e o austero Catão aparecia no Senado com um grande nariz postiço.

 

Nesta semana festiva não há política. Os ministros andam todos pelas províncias, fazendo inaugurações e discursos. Um americano, muito engenhoso, já afirmou que o que caracterizava a civilização francesa era ser uma civilização completa, acabada, com todos os pontos sobre os ii. O conceito é agudo e brilhante. Mas não parece verdadeiro; porque cada semana, através da França, se inaugura alguma coisa que faltava – uma estrada, um aqueduto, um porto, um farol. Sobretudo estátuas de grandes homens. A França não acaba realmente de fundir em bronze todos os seus beneméritos.

Desde 1875, o ano em que começou a estabilidade republicana, cada mês que digo eu?, cada semana! – se desvenda algures uma estátua de alguém entre discursos, tambores e champanhe. Já lá vão quase vinte anos deste fervente trabalho, e ainda há todavia génios que não têm estátua. Em compensação, há outros que têm duas, como um certo Guérin de quem falava recentemente Jules Simon. Digo um certo Guérin, porque eu não lhe conhecia a existência antes dessa alusão de Jules Simon, que foi o inaugurador dos dois monumentos, um em Pontivy, outro em Nantes. Decerto, talvez Guérin seja amplamente merecedor de campear assim em duas praças, sobre dois pedestais de granito. Há aí alguém que saiba quem é Guérin? Em França, para que um grande homem consiga estátua é essencial sobretudo que tivesse deixado um filho com influência na política ou na sociedade. Dumas pai arranjou o seu monumento da Praça Malesherbes menos por causa de D’Artagnan que por causa de Dumas Filho. E Balzac, como não deixou filho, não tem estátua. Nem Chateaubriand. Nem Victor Hugo. Quem tem já duas é Guérin.

 

Não sei se falei já do calor. Está terrífico. E o que o toma mais duro de atravessar é a greve dos cocheiros. Paris está sem tipóias – o que é, sobretudo neste momento, como o deserto sem camelos. Se nesta supercivilizada cidade o serviço dos ónibus ou dos bondes fosse fácil, exacto e rápido, a falta de carruagens não causaria desgostos – e seria mesmo uma salutar instigação à economia. Mas o ónibus e o bonde em Paris são instituições rudimentares. E mais fácil para um parisiense entrar no céu – do que num ónibus. Para obter o lugar na bem-aventurança basta, segundo afirmam todos os santos padres, ter caridade e humildade. Para obter o lugar no ónibus, estas duas grandes virtudes são inúteis – e mesmo contraproducentes. Antes o egoísmo e a violência. Depois de conquistado o lugar, a outra dificuldade insuperável é sair dele – por aquele meio natural e lógico que consiste em chegar e apear. Nunca se chega – senão quando já é desnecessário. Eu e um amigo partimos um dia da gare de Orleães, à mesma hora; eu no comboio para Portugal, ele no ónibus para o Arc de l’Étoile. Quando eu cheguei a Madrid soube, por um telegrama, que o meu amigo ia ainda na Praça da Concórdia. Mas ia bem. O ónibus em Paris é o grande refúgio e local do namoro. Quanto mais comprida a jornada, mais demorado portanto o encanto. O meu amigo encontrara no seu ónibus a criatura dos seus sonhos. Era uma loura com sardas prometedoras. Quando enfim chegaram ao Arco da Estrela estavam noivos ou pior. São estas pequenas comodidades da vida sentimental que conservam a freguesia aos ónibus.

Uma das causas, ou antes, a causa da greve, é que os cocheiros querem ser funcionários públicos. Nem mais, nem menos. A sua pretensão é que a municipalidade de Paris se tome proprietária das tipóias de praça e que eles passem, Portanto, a ser empregados municipais, com ordenado e aposentação. Cada carruagem constituirá assim uma verdadeira repartição de que o cocheiro será, a todos os respeitos, o director-geral. Não sei o que o público lucraria em se ligarem todos os carros ao carro central do Estado. O funcionário francês é um sujeito tremendamente empertigado. O cocheiro de Paris já é horrivelmente impertinente. O que será quando fizer parte da administração? Acresce que a famosa administração francesa envolve e embaraça todos os actos da vida do cidadão com formalidades inumeráveis. E pior que a administração chinesa – e menos pitoresca. Basta lembrar que quem queira canalizar gás para sua casa tem de implorar licenças sucessivas a vinte autoridades sucessivas – entre as quais o ministro do Interior! É pois quase certo que, quando os serviços dos trens de praça passarem para o Estado, o cidadão que aspire a ocupar um desses trens públicos terá de meter previamente requerimento, e em papel selado! O cocheiro, por outro lado, há-de querer manter o seu direito de deferir ou indeferir. Estou pois já vendo, num dia de Dezembro, uma família à hora do teatro, com os pés na lama, apresentando humildemente a um cocheiro a sua petição para ocupar a tipóia: e o digno funcionário, com as rédeas embrulhadas no braço, depois de percorrer o documento, respondendo com superioridade: «Indeferido por causa da distância e do mau tempo!».

 

Não sei porque, falando de ónibus, me lembro de Victor Hugo. Decerto porque o divino poeta gostava de percorrer o. seu Paris, meditando e compondo versos, no alto desses pachorrentos veículos.

Victor Hugo publicou este mês mais um volume – Toute la Lyre. Como o Cid, que ainda vencia batalhas depois de morto, Hugo cada ano atira de dentro do seu sepulcro um radiante e vitorioso poema. A propósito deste, de novo se discutiu se estas publicações póstumas de versos, que ele em vida atirava para o canto, aumentam realmente a glória poética de Hugo. Discussão ociosa. Decerto não aumentam a sua glória. Essa já está estabelecida e fixa no seu máximo esplendor, com as Contemplations, a Légende des Siècles e os Châtiments. Mas aumentam o nosso conhecimento do poeta, revelando novos pensamentos, novas emoções ou formas diferentes no exprimir as emoções e os pensamentos que lhe eram habituais. Victor Hugo era um grande espírito que sentia e pensava em verso. Cada verso novo que nos é desvendado constitui pois um documento novo sobre o poeta – sobre a sua visão espiritual ou sobre o seu verbo lírico. Ora quantos mais documentos se reúnem sobre um homem de génio como Hugo, mais completo se toma o trabalho crítico sobre a sua individualidade e sobre a sua obra. Para alargar e completar o conhecimento dos grandes homens, publicam-se-lhe as cartas, todos os papéis íntimos – até as contas do alfaiate. Assim se tem feito para Lamartine, para Balzac, etc.

Ainda há pouco foi estabelecido, e provado com documentos, o número de pares de meias de seda que Napoleão usava cada ano. Eram trezentos e sessenta e cinco. Ninguém se queixa. Foi um detalhe histórico, geralmente apreciado. Ora se, para proveito da história, se põem assim à mostra as peúgas de um grande homem de guerra, que tem iguais – e bem justificado que se publiquem os versos, todos os versos, ainda os menos interessantes, de um poeta que, sem contestação, é o maior de todos, em todos os séculos.

 

A moda, ou antes aqueles que a fazem, acaba de tomar uma resolução sapientíssima. Paris, de ora em diante, fica sendo considerado, durante os meses de Verão, para todos os efeitos sociais, como campo e não como cidade. E permitido, portanto, passear, fazer visitas, ir ao teatro, etc., de chapéu de palha, jaquetão claro e botas brancas. Nada mais justo. Era com efeito absurdo que Paris nos servisse trinta graus à sombra – e que os Parisienses continuassem a sofrer a tirania da sobrecasaca apertada e do duro chapéu alto. A moda mesmo deveria ir mais longe e permitir a tanga. O vestuário foi inventado por causa da temperatura, e deve portanto variar com ela harmonicamente. A neve pede peles, peles suplementares, arrancadas a animais. O sol do Senegal ou de Paris, em Julho, só pede a própria pele – sem mais nada, além de uma folha de vinha. Esta seria a lógica das coisas. A moda não ousou ser tão radical – e foi só até à palha e à alpaca.

Mas é um primeiro passo no bom senso. Para o ano, talvez nos seja permitido o ir à Ópera, como deveríamos, em mangas de camisa. Aí no Rio, segundo me afirmam, mesmo no Verão, se anda de sobrecasaca de pano. E um lamentável excesso de decoro social. Ainda se compreendia no tempo do império, quando a constante sobrecasaca preta do imperador dominava nas instituições, e portanto determinava os costumes. Hoje a república devia apagar esse verdadeiro vestígio do velho regime, e derrubar a tirania do pano e do chapéu alto. Estou convencido mesmo que essa grande reforma in-fluiria vantajosamente no estado dos espíritos. Um povo que com quarenta graus de calor, anda entalado em casimiras sombrias e sobrecarregado com um chapéu alto de cerimónia, é necessariamente um povo constrangido, cheio de vago mal-estar, propenso à melancolia e ao descontentamento político. Que a esse povo seja permitido pôr na cabeça um fresco chapéu de palha, e refrigerar o corpo com cheviotes claros, alegres e leves – e ele respirará consolado, e tudo desde logo lhe parecerá aprazível na vida e no Estado.

 

 


V

 

O 14 DE JULHO — FESTAS OFICIAIS — O SIÃO

 

Paris está amuado com a republica. E, para mostrar bem visivelmente o seu despeito, não embandeirou, não iluminou, não dançou e não berrou na festa nacional de 14 de Julho. Nunca tivemos, com efeito, um 14 de Julho mais silencioso, mais apagado, mais vazio, mais descontente – acrescendo que o Sol também amuou e o horizonte todo apareceu colgado de longas e fuscas nuvens de crepe. Nas ruas, desertas, com a sua poeira imperturbada, só aqui e além alguma bandeira tricolor pendia, esmorecida, da varanda das repartições ou dos cafés. Nenhuma goela entusiasmada rouquejava A Marselhesa. As filas de fiacres dormiam pelas esquinas. E o préstito do Sr. Carnot e dos grandes corpos do Estado, recolhendo-se da revista de Longchamps pelos Campos Elísios, entre esquadrões de couraceiros, trazia a lentidão e a gravidade enfastiada de um enterro cívico.

Nem um «viva Carnot!» Nem uma palma ao velho Saussier, governador militar de Paris, e ao seu muito emplumado estado-maior! E quando Paris não aplaude os penachos – e que Paris está realmente macambúzio.

Uma tal taciturnidade, uma tal apatia, não provêm só de os Parisienses estarem despeitados, porque a polícia republicana e o Governo republicano os acutilaram consideravelmente. E certo que em cada bairro se formou uma comissão para desorganizar a festa e promover uma melancolia de protesto – mas essas comissões só impediram luminárias que já estavam decididas a não iluminar, e só fecharam nas gavetas bandeiras que realmente nunca tinham tencionado tremular. A verdade é que Paris e a França cada vez se desinteressam mais da festa de 14 de Julho. Ela nunca foi essencialmente popular. Se o povo dançava, é porque o Estado lhe estabelecia uma orquestra nas praças, entre lanternas chinesas – e onde quer que haja uma flauta e uma rebeca, com luzes entre verdura, imediatamente raparigas e rapazes se enlaçarão para uma polca. Mas espontaneamente, se o Estado não fornecer a orquestra (como sucede desde os últimos anos), não há povo.. que a alugue e que dance só porque em certo dia, há cem anos, se derrubou uma certa fortaleza. Em que pode a tomada da Bastilha entusiasmar o povo? Querem dizer que ela era a suma e o símbolo do despotismo monárquico e do direito divino. Mas esse despotismo, na Bastilha, só se exercia sobre os fidalgos. A plebe não gozava a honra de ser encarcerada na Bastilha. Se a sua destruição deve regozijar uma classe, será a classe nobre, a aristocracia do Bairro Saint-Germain. A essa competia alugar a orquestra e polcar no dia 14 de Julho. Em vez disso, a aristocracia, nessa data ilustre, volta a face com tédio, cerra as vidraças, foge para o campo, a esconder-se nos parques. Lamenta portanto a perda da Bastilha. Quereria ainda, no meio de Paris, as quatro grossas torres onde pudesse ser sepultada pro vita ao bel-prazer de el-rei. Ora se a aristocracia, que é a interessada, não se regozija com o dia que a libertou – porque se há-de regozijar o povo de Paris?

 

Além disso, festas decretadas, impostas por lei, nunca se tomam populares, nem duram, porque são horrivelmente fictícias. E o que sucede com os aniversários de constituições. Nos primeiros tempos, quando ainda vivem os homens que fizeram a constituição, lá se vão pondo pelas janelas alguns molhos de bandeiras e lá se acendem algumas centenas de lanternas, que fazem sair à noite para a rua as famílias, a «gozar a iluminação». Depois os anos passam, pouco a pouco se vai esquecendo o facto mesmo de que existe uma constituição, a municipalidade diminui as lamparinas, já ninguém sai à rua e a data gloriosa só fica interessando os estudantes, que têm feriado. Em Lisboa a festa da proclamação da Carta Constitucional está reduzida a quatro lampiões muito baços e muito tristes, que se penduram no alto do Castelo de S. Jorge. Já ninguém sabe mesmo que há uma festa. Na verdade, já ninguém sabe que há uma Carta Constitucional.

Festas nacionais, festas para celebrar uma ideia ou um facto histórico, nunca causarão no povo entusiasmo, nem o tornarão festivo, porque o povo não se importa, nem com ideias, nem com a história, é por natureza simplista, só se move por sentimentos simples e individuais, e assim como só se afeiçoa a indivíduos, só compreende festas celebradas em honra de indivíduos. Por isso, as únicas festas que profundamente animam o povo são as religiosas, as dos santos. Para o povo, os santos, os santos populares e democratas, como S. João, S. Pedro, Santo António, são indivíduos que ele conhece, com quem conversa nas orações, com quem convive, que tem dentro de casa sobre o altarinho doméstico, e de quem recebe constantemente serviços e patrocínio. A vida desses santos, as suas façanhas, a sua face barbada ou rapada, as suas vestes, os seus atributos, tudo lhe é familiar – e eles são como verdadeiras pessoas de família, ligadas a toda a história doméstica, e por isso profundamente amadas. Quando chega o dia da sua festa, os «seus anos», e com genuíno fervor que se arranjam ramos de flores, e se cozinha um prato de doce, se acendem à noite luminárias, e se dança no terreiro, e se atiram alegres foguetes. A folgança de cada lar faz o festival de toda a cidade – e é o doce amigo, o padroeiro que está no céu, que se celebra com carinho, na certeza que ele vê a festa, e se mistura a ela do alto das nuvens, e sorri de reconhecimento e ternura aos seus amigos da Terra. Mas se, em vez de S. João ou de S. Pedro, fosse imposto ao povo o dever de celebrar um grande acontecimento da Igreja, como a conversão de Constantino ou os artigos do Concílio de Niceia, não haveria nem uma luminária, nem um foguete. E o povo diria com razão: «S. João é um amigo meu, muito íntimo, cuja imagem eu tenho à cabeceira, a quem devo favores e que festejo com imenso prazer; mas essa Niceia que eu não sei onde é, e esse Constantino, com quem nunca travei relações, não valem para mim o preço de uma lamparina.»

É o que sucede com as festas nacionais por acontecimentos públicos. Pertencem muito ao domínio dos princípios e aos movimentos sociais para que o povo, que é todo individualista, sinta por eles a menor migalha de entusiasmo ou carinho. Para que a república pudesse ter uma grande festa, devia organizá-la em favor de um grande republicano. Mas aí é que está a dificuldade. Qual grande republicano? Nenhum reúne a admiração unânime.

Se se decretasse a festa de Robespierre, todos os liberais-girondinos protestariam com furor e haveria sangue.

Se se decretasse a festa de Danton, todos os jacobinos autoritários desceriam à rua com cacetes. Em verdade vos digo, só o céu nos envolve a todos e só S. João pode ser festejado sem descontentar a ninguém.

 

Há, ao que parece, uma grave, muito grave novidade internacional.

A França e a Inglaterra estão arrufadas. Mais: estão franzindo terrivelmente, uma para a outra, o sobrolho e falando com azedume de casus belli. Este latim, que significava outrora «caso de guerra», quer apenas dizer hoje, na moderna linguagem internacional, que dois amigos se zangam, se tratam de pulhas e «malcriados», se mostram mutuamente o punho e mutuamente se voltam as costas.

Este rompimento de relações entre a França e a Inglaterra tem por motivo o Sião. O Sião é um reino do Extremo Oriente, muito rico e, portanto, muito apetecível. Tem um rei bastante curioso, segundo se depreende da sua fotografia, porque da cinta para cima anda vestido à chinesa, e da cinta para baixo à Luís XV! E todo o reino, ao que dizem, participa assim da Ásia e da Europa. As suas fortalezas oferecem uma arquitectura fantasista de mágica – e estão armadas de canhões Krupp. Além do seu rei, Sião possui toda a sorte de riquezas naturais, em plantações e em minas. É portanto um delicioso e proveitoso país para possuir. Se eu tivesse meios de me apoderar de Sião, já esse reino seria meu, e eu exerceria lá os meus direitos de conquistador com doçura e magnanimidade. Mas não tenho meios de me apoderar de Sião. A França tem. A Inglaterra também. E ambas, muito naturalmente, se encontram há anos nesses confins do Oriente, lado a lado, com o olho guloso cravado sobre Sião. E não as censuro. Eu próprio, como disse, se possuísse exércitos e frotas, teria já empolgado Sião. O animal inconsciente foi posto sobre a Terra para nutrir o animal pensante – e por isso com bois se fazem bifes. Os países orientais são feitos para enriquecer os países ocidentais – e por isso com os Egiptos, os Tunes, os Tonquins, as Cochinchinas, os Siãos (ou Siões?) se fazem para a Inglaterra e para a França boas e pingues colónias. Eu sou civilizado, tu és bárbaro – logo, dá cá primeiramente o teu ouro e depois trabalha para mim. A questão toda está em definir bem o que é ser civilizado. Antigamente pensava-se que era conceber de um modo superior uma arte, uma filosofia e uma religião. Mas como os povos orientais têm uma religião, uma filosofia e uma arte melhores ou tão boas como as dos ocidentais, nós alteramos a definição e dizemos agora que ser civilizado é possuir muitos navios couraçados e muitos canhões Krupp. Tu não tens canhões, nem couraçados, logo és bárbaro, estás maduro para vassalo e eu vou sobre ti! E este, meu Deus, tem sido na realidade o verdadeiro direito internacional, desde Ramsés e o velho Egipto! Que digo eu? Desde Caim e Abel.

Em virtude, porém, de um respeito inapto pelas exterioridades (que data da folha da vinha), os homens criaram ao lado deste descarado direito internacional um outro, o direito cerimonial, todo cheio de fórmulas e de mesuras, e segundo o qual não é permitido a qualquer nação apoderar-se de outra com a simplicidade com que numa estrada uma criança colhe um fruto. Hoje está estabelecido entre os povos civilizados que para que o forte ataque e roube o fraco é necessário ter um pretexto. Tal é o grande progresso adquirido.

Ora a França acaba de achar, com júbilo imenso, o pretexto para cair sobre Sião. O pretexto é múltiplo e complicado: há uma vaga questão de fronteira numa região chamada Mekong; há uma canhoneira que ia subindo um rio e que apanhou um tiro siamês; há um marinheiro que foi preso, ou que caiu à água; e há uns siameses que berraram «hu! hu!» Tudo isto é gravíssimo. Parece também (e isso infelizmente é doloroso) que houve em tempos um negociante francês assassinado. E sobretudo sucedeu que uns oficiais siameses arvoraram a bandeira de Sião por cima da bandeira da França. Se não foram eles – foram os seus pais, como disse o lobo ao cordeiro. Enfim, o que é certo é que o povo francês necessita, para sua honra, vingar a afronta feita ao pavilhão tricolor. E não há dúvida que os dias de Sião acabaram. A França tem o seu pretexto. Adeus, meu bom rei de Sião, vestido da cintura para cima à chinesa e da cintura para baixo à Luís XV!

 

Calculem, pois, o furor da Inglaterra! Havia longos tempos que ela se instalara ao pé de Sião, à espera de um pretexto para devorar aquele belo bocado do Oriente – e é a França, a nação entre todas rival, que apanha o pretexto! E contra a França, não contra ela, que os siameses berraram «hu! hu!» É sobre a bandeira da França, não sobre a dela, que os oficiais siameses hastearam imprudentemente a bandeira de Sião! É a França enfim que está na deliciosa posse destas afrontas, que saboreia a preciosa felicidade de ser insultada – e que portanto tem o rendoso direito de se vingar! Tanta fortuna não deve ser tolerada – e a Inglaterra não a tolera. E já o declarou, através dos seus jornais, através do seu parlamento: «Uma vez que nesta ocasião Sião não pôde ser para mim, também não será para ti! Que a França faça o que julgar necessário à sua honra, mas que não toque, nem com uma flor, na independência de Sião! A autonomia de Sião é coisa sagrada. O mundo, para permanecer em equilíbrio, precisa que Sião seja livre. Sião só para Sião (desde que não pode ser para a Inglaterra). E se a França atentar contra a independência de Sião, às armas!» Eis o que diz, num dizer mais diplomático e solene, aquele excelente John Bull.

E aqui está como, de repente, por causa de um pedaço de terra e de um pouco de minério, duas grandes nações, guardas fiéis da civilização e da paz, se assanham, ladram, investem, como dois simples cães vadios diante de um velho osso.

O que mais uma vez prova a suprema unidade do universo, pois que nações, homens e cães todos têm o mesmo instinto, o mesmo pecado de gula, e, diante do osso, o mesmo esquecimento de toda a justiça.

 

 

 

 

 


VI

 

A FRANÇA E O SIÃO

 

A França começou enfim a devorar Sião. Este ingénuo, amável e polido povo recebeu, há quatro ou cinco dias, um ultimato em que era intimado a entregar, sem demora, à França uma imensa porção do seu território e uma não pequena porção do seu dinheiro. Segundo a prudente maneira dos Orientais, o Sião nem consentiu, nem recusou. Com aquela mansidão e humildade que tão própria é de budistas e de fatalistas, replicou que não compreendia bem as exigências da França, que apetecia a paz, e que por amor dela estava disposto a dar algum dinheiro, mas não tanto, e a abandonar algum território, mas não tão vasto. Outrora, quando os costumes internacionais eram mais doces e complacentes, e os povos orientais gozavam ainda (por menos conhecidos) de uma feliz reputação de lealdade, esta discreta resposta teria dado motivo a novas negociações, novos telegramas, infindáveis cavaqueiras de embaixadores.

Hoje, as maneiras internacionais são mais bruscas e rudes: os países do Oriente têm uma deplorável fama de duplicidade e falsidade; e a França, sem se deter em mais explicações com o infeliz Sião, bloqueou-lhe as costas e fez marchar sobre as províncias do interior as suas tropas coloniais da Cochinchina.

Perante estes actos, tão decididos, o furor dos Ingleses tem sido medonho. Mas é um furor unicamente de políticos, de jornalistas e de comerciantes que tinham grandes negócios com o Sião. O povo, a massa do povo, permanece indiferente. Não tem sentimento nenhum pelo Sião, não acredita que ele seja indispensável à felicidade da Inglaterra, não percebe porque a Inglaterra cobice ainda mais terras no Oriente, e vê a França cair sobre o Sião sem que isso lhe irrite o patriotismo ou lhe torne amarga a cerveja. Ora, em Inglaterra, que é uma verdadeira democracia, quando o povo se desinteressa de uma questão, os políticos e os jornalistas têm também de a abandonar, porque aí não se criam artificialmente correntes de opinião; e o Governo que provocasse um conflito europeu sem se apoiar num forte entusiasmo popular não duraria mais que as rosas de Malherbe, que, como todos sabem, duram apenas o espaço de uma manhã.

Não!, não há hoje já a possibilidade que duas nações europeias se batam por causa de terras coloniais. Os Europeus só se movem por interesses ou sentimentos europeus, e só por eles arrancam a espada.

Para as questões de colónias lá estão os congressos e os tribunais de arbitragem. E uma senhora que ultimamente, num salão, considerava como a coisa mais pueril e mais grotesca que duas nações tão elegantes como a França e a Inglaterra, se batessem por causa de bichos tão feios como os siameses – estabelecia, sem o saber, a verdadeira doutrina do século. Quando a França e a Inglaterra não vieram às mãos por causa do Egipto, que é a jóia do mundo, a terra entre todas preciosa pela qual se têm dilacerado todos os povos desde o Dilúvio – não há receio que jamais duas nações da Europa quebrem a doce paz por causa de interesses orientais.

De sorte que todas as declamações dos jornais sobre guerra são um mero desabafo de retórica heróica. E como não há o menor perigo (e eles perfeitamente o sabem) de se chegar à boa cutilada, não é desagradável, nestes ociosos dias de Verão, roncar de alto, com o sobrolho franzido e a mão nos copos do sabre. Assim se vai gastando, com arreganho, alguma tinta – sem medo que se venha a gastar sangue.

 

Em todo o caso, nestas rivalidades coloniais entre a França e a Inglaterra, eu penso que a Inglaterra tem, em princípio, mais direitos. Quando ela se apodera de um desses desgraçados remos do Oriente (como a Birmânia, há pouco) sabe ao menos como há-de utilizar e valorizar a sua conquista.

Em primeiro lugar tem logo um número limitado de homens, enérgicos e empreendedores, que, ou sós, ou com as famílias, embarcarão para ir povoar, colonizar, cultivar, industrializar, por todos os modos explorar a nova terra inglesa. Depois tem uma prodigiosa quantidade de produtos fabris para exportar para lá, e lá vender, sem concorrência. Depois tem uma colossal frota mercantil para fazer com a nova possessão um comércio activo e contínuo. E enfim tem uma formidável frota de guerra para defender a sua aquisição. A França, essa, não tem nada disto – nem frota, nem produtos, nem homens. Não tem sobretudo homens, porque a população da França não chega mesmo para a França. Quando ela se apossa violentamente de Tunes ou do Tonquim, o único acto colonial que depois pratica é remeter para a recente colónia alguns soldados e muito empregados públicos. A França faz conquistas para exportar amanuenses. No Tonquim, por exemplo, ela possui, no solo, ocultas riquezas maravilhosas; mas não tem colonos que as vão explorar. A expansão colonial da França não dá assim lucro nenhum, ou alargamento à civilização geral. Apenas promove, através dos mares, uma deslocação de amanuenses aborrecidos e enjoados. Ao contrário, cada palmo de chão que a Inglaterra ocupa entra no movimento universal da indústria e do comércio.

A Inglaterra tem virilidade colonial e a França só impotência. Quando um homem novo, robusto, activo, penetra numa aldeia e rouba uma linda rapariga, comete decerto um acto escandaloso, e que todos devem condenar, com severidade. Mas esse valente homem tem uma justificação, um motivo que se compreende (e com que mesmo se simpatiza): e se, desse enlace, lamentavelmente ilegítimo, nascerem filhos são, fortes, activos, há ali um positivo lucro para a humanidade e para a civilização. Quando, porém, é um velho de oitenta anos, regelado, caquéctico e a babar-se, que penetra na aldeia e rouba a linda moça, estamos então diante de um escândalo que não tem justificação possível. É um escândalo ignominiosamente estéril. Nada lucra com ele a humanidade, nem o velho. E só podemos cruzar os braços com espanto e indignação, e exclamar: «Para que quer aquele velho aquela moça?»

E é o que exclamamos agora, também, cruzando os braços: «Para que quer esta

França este Sião?»

Eu tenho um amigo que esteve nesse pobre Sião, hospedado pelo rei, no palácio, e conta detalhes bem pitorescos.

Todo o reino de Sião pertence ao rei, tão completamente como aí uma fazenda de café pertence ao fazendeiro. O rei é o dono do solo, dos edifícios, dos habitantes e da riqueza dos habitantes. Pode, querendo, doar, hipotecar, trocar ou vender o reino com tudo o que está dentro das fronteiras.

É uma posse agradável. O povo, por seu lado, considera o rei não só como seu dono, mas como seu deus. E a fórmula religiosa (como se disséssemos o artigo da constituição) que define as relações e deveres entre povo e rei é esta: «Do rei o povo recebe a vida, o movimento e o ser.»

O rei tem um nome imenso, chama-se Prabat-Tomedetch-Pra-Parammdir, etc., etc., etc. Todo ele não caberia em cinquenta linhas. E de cada vez que se fala ao rei (só os nobres gozam esse privilégio) é da etiqueta invocá-lo com o nome todo.

Uma conversa com sua majestade dura assim longas e longas horas, por causa do nome. De facto, a mais laboriosa e pesada ocupação da corte, é pronunciar o nome de el-rei.

Pessoalmente o rei é um homem excelente, cultivado afável, gracejador, bondoso. E mesmo bonito, para siamês.

E as suas maneiras têm nobreza. O que o estraga é o seu ilimitado poder, a sua posição de divindade, e a prodigiosa, inverosímil adulação que o cerca. Assim é uma regra (e cumprida com fervor) que todo o siamês que tem uma filha bonita a dê de presente ao rei. As suas concubinas oficiais excedem em número as de Salomão. São aos milhares. E o rei, apesar de novo, de não contar ainda quarenta anos, já tem cento e oitenta e tantos filhos! Tudo isso, esposas e filhos, vive no palácio, que oferece as proporções de uma vasta cidade. Há ruas inteiras de esposas! Há bairros inteiros de filhos! Toda esta imensa família vive com um luxo imenso, e o rei, apesar de dispor de todas as riquezas do Sião, como suas, está horrivelmente endividado em Londres. As vezes, porém, ele próprio procura fazer economias: e foi assim que, no momento em que o meu amigo estava no Sião, el-rei deu ordens para que, por economia, se não ferrassem mais os cavalos da cavalaria. Havia cem cavaleiros, eram cem ferraduras poupadas. Eis aqui um traço bem siamês!

O rei nunca sai do palácio, não conhece o seu reino, mal conhece a sua capital, que é Banguecoque. Quando por acaso dá um passeio, é uma grande festa, uma grande gala. As ruas são aplainadas e areadas; pintam-se as casas de fresco; os canais (porque Banguecoque assemelha-se a Veneza) levam uma rápida limpeza; toda a população se lava, se alinda, se cobre de jóias; e para que não chova, celebram-se preces nos templos. Depois o rei recolhe, e por muitos e muitos meses Banguecoque recai no usual desleixo e porcaria. Só no palácio há asseio. De resto, o palácio é que é a nação.

 

Mas basta de Sião! A culpa é de Paris que não se quer ocupar senão deste remoto reino cuja existência ele, ainda há oito dias, ignorava. Porque o Francês, e sobretudo o Parisiense, continua a ser aquele que Goethe descreveu – «um indivíduo de muitos cumprimentos, que não sabe geografia». É talvez mesmo para ensinar geografia ao povo francês que o seu Governo empreende conquistas. Para que, fora da Europa, ele conheça uma nação, o Governo previamente faz dela uma colónia.

Assim se irá alargando a instrução geográfica em França. E, com as aquisições coloniais feitas neste século, já o Francês, quando se lhe perguntar quantas são as partes do mundo, poderá (o que outrora não podia) responder com um saber exacto e forte:

– Cinco: a Europa, a Argélia, Tunes, o Tonquim. Sião!

 

 

 

 


VII

 

A QUESTÃO BULOZ — A “REVISTA DOS DOIS MUNDOS” — PARIS NO VERÃO

 

Por fim o Sião cedeu – e, muito avisadamente, para evitar a imensa maçada de se bater (o que é extremamente penoso, no Verão, para um oriental de hábitos doces e lânguidos), para evitar também a horrível seca de ser vencido, e talvez destronado, o rei de Sião entregou à França, incondicionalmente, todos os milhões e todas as províncias que ela reclamava para «vingar a sua honra».

Pode, pois, esse excelente e ameno monarca continuar placidamente a educar nas ideias da civilização ocidental (de que ele acaba de ter uma tão directa experiência) os seus cento e oitenta filhos. E o Sião desaparece das preocupações do mundo. Era tempo. Havia semanas que se desleixavam os grandes assuntos, os que verdadeiramente interessam a humanidade, como o caso do Sr. Buloz.

 

Não sei se conhecem aí a questão Buloz. Pois é uma questão tremenda. Basta ver como diariamente os jornais a retomam, a sondam em todos os seus escaninhos, lhe anunciam a evolução, lhe profetizam soluções, fazem depender dela os destinos das boas letras francesas. Não há ninguém que não conheça Buloz. Pelo menos ninguém deve ignorar o seu nome nesses dois mundos que ele, todos os quinze dias, esclarece, educa e entretém, por meio da sua ilustre e famosa Revista. Porque é dele que se trata, de Buloz, do verdadeiro Buloz, o único Buloz, de Buloz director da Revista dos Dois Mundos!

Que memórias este nome de Buloz nos traz da nossa mocidade! Nenhum havia então que nós pronunciássemos com mais alegre horror – porque ele representava, para o nosso grupo revolucionário e entusiasta das formas novas e audazes, tudo quanto na literatura havia de mais conservador e burguês. Toda aquela sua séria e ponderosa Revista dos Dois Mundos, nos parecia então exalar um cheiro horrendo a bafo e a letras mortas.

E escrever na Revista, pertencer à Revista, era para nos uma maneira especial de ser fóssil.

Quantas alcunhas pitorescas postas a essa majestosa Revista! Quantas fantasias edificadas sobre a sua faculdade de adormecer e de embrutecer! Um amigo nosso compusera um conto em que o herói, traído num amor sincero, e apetecendo a morte, escolhia, em vez de um frasco de láudano, um número da Revista dos Dois Mundos – e ao chegar às últimas páginas, à «Crónica da Política Estrangeira», mergulhava com efeito no sono eterno. Ainda me lembro de uma definição da Revista, dada por um de nós: «Uma publicação cor de tijolo, que tem dois leitores no Havre!»

Tudo isto era excessivo e injusto. A Revista de facto tinha leitores por todo o mundo – e, como se sabe, e já tem sido dito, todo o mundo é um sujeito que tem muito mais espírito que Voltaire. Com os seus trinta anos de valente existência, ela era já então uma larga e fecunda remexedora de ideias e de factos – e não houvera de resto nenhum grande francês, desde Alfred de Musset, que não tivesse cometido esse acto, para nós tão vergonhoso: «Escrever na Revista.» Todos tinham escrito – mesmo Murger, o boémio. Nós, porém, só começámos a desarmar do nosso rancor, quando ela publicou versos dos dois grandes ídolos dessa geração – Lecomte de Lisle e Baudelaire. É verdade que os versos de Baudelaire, tirados das Flores do Mal, apresentou-os ao público, por assim dizer, na ponta de tenazes, e com imensas precauções sanitárias, havia por baixo dos versos uma nota da direcção, toda enojada, em que ela repelia qualquer solidariedade com semelhante infecção, e jurava que só a exibia como uma lição moral, para mostrar a que excessos e a que desordens pode rolar a literatura, quando sacode audazmente a salutar disciplina e as boas regras de Boileau. Mas, enfim, publicava Baudelaire (mesmo alguns dos versos mais temerários) – e esta concessão, este começo de homenagem prestada ao satanismo (o satanismo era então uma escola, e todos nós nos considerávamos satânicos) adoçou um pouco as nossas relações intelectuais com a Revista. Modificámos mesmo a definição irrespeitosa. Era então uma «publicação cor de salmão, que tinha já dois leitores no Inferno»!

Tão persistentes são as impressões da mocidade que ainda hoje eu não vejo a Revista dos Dois Mundos sem um sentimento vago e inexplicável de tédio. Sei perfeitamente que ela é cheia de bom senso e de saber especial, possui uma língua sóbria e pura, tem muita elegância e finura académica, e por vezes se lhe encontra, aqui e além, um sopro de forte originalidade. Mas quê! A sua presença é para mim como a de uma grave matrona, pesada, rica, bem colocada no mundo, cujos lábios descorados, faltos de sangue vivo, só deixam cair, com uma arte discreta, o que está absolutamente dentro do decoro e da tradição. Não duvido que a convivência com essa matrona seja salutar, proveitosa e conducente a boas vantagens sociais; mas prefiro ainda assim uma musa alegre do Quartier Latin. E talvez para fingir a mim próprio que ainda sou moço.

 

Foi por isso com certa alegria maliciosa que eu li nas gazetas que o Sr. Buloz e com ele a pudibunda Revista dos Dois Mundos se achavam envolvidos num escândalo de amores e de intrigas. O quê! Ela, a Revista que, com tão austera altivez, denunciara durante tantos anos Zola à execreção pública, ei-la agora atolada, e até ao pescoço, numa aventura escabrosa! Como assim? Buloz, o próprio Buloz, que fazia uma tão severa polícia dentro da sua Revista, que esquadrinhava todos os romances, com terror de que lá estalasse nalgum canto algum beijo mais voraz, que perseguia rancorosamente, com a férula da honestidade, e em nome do «pudor doméstico», toda a literatura de observação, sincera e livre, ei-lo agora por terra, enrodilhado em saias ligeiras e ilegítimas! Como assim? E tudo isto, pelo contraste eterno entre o que frei Tomás prega e o que frei Tomás faz, me parecia divertido.

Depois, mais informado, lamentei sinceramente o excelente Buloz e a excelente Revista. Porque não havia aqui realmente um romance desses que o próprio Buloz condenava sombriamente como «infectos» – mas um roubo, um longo e abjecto roubo, organizado contra Buloz, e portanto contra a Revista de que ele é a encarnação viva, por dois desses horríveis personagens a que Balzac chamava impropriamente os tubarões de Paris. Tubarões sim, no sentido de nadarem ansiosamente no oceano parisiense à cata da presa. Mas isso mesmo fazem todos os peixes, no mar e em Paris.

Os tubarões, porém, e é essa a sua feição característica, engolem indiferentemente e com igual apetite uma velha garrafa vazia, ou uma gorda e suculenta pescada; e estes tubarões de Paris, de que fala Balzac, escolhem com cuidado a presa. e só arremetem contra ela quando ela é tão suculenta e gorda como Buloz.

O caso, tal como transparece, através de tantas versões e mesmo de tantas ficções, é lamentável. Buloz há anos, no meio do caminho da sua vida (como diz o Dante, que tinha um modo incomparavelmente magnífico de contar estes casos), encontrou uma rapariga. Não era uma Beatriz, mas uma fulana qualquer, que nem ao menos tinha beleza justificativa. Mas, quando se tem vivido, durante vinte anos, dentro da Revista dos Dois Mundos, toda a face moça, com um pouco de lume no olho, parece uma visão de alto esplendor. Buloz, apesar de director da Revista, era homem e sensível. Teve numa hora nefasta (talvez entre dois artigos de Charles de Mazade!), uma daquelas tentações que, a acreditarmos Santo Agostinho, nenhuma alma, nem mesmo robustecida na constante convivência dos Broglie e dos Remusat, evita ou vence.

Buloz cedeu – ou, antes, a rapariga cedeu. (E o ingrato Buloz agora pretende, em confidências que fez a um repórter do Gaulois, que «foi uma sensaboria».) Sensaboria ou delícia, desde esse momento supremo ele passou a ser o homem mais explorado de toda a cristandade e mesmo de toda a mourama. Pagou, naturalissimamente, as toilettes da menina e da família da menina; mobilou para a menina casa no campo e casa na cidade; e para a tornar mais respeitável, e robustecer a sua posição na sociedade, deu um dote e um marido à menina.

Educado no idealismo incorrigível dos romances da Revista, imaginava Buloz que, tendo fornecido o dote e o marido, liquidara para sempre o erro sentimental da sua vida. Buloz ignorava a realidade humana, e sobretudo parisiense. Desde esse instante, ao contrário, a menina e o marido tomaram posse definitiva de Buloz. Ameaçando o desventuroso homem de revelarem a sua» infâmia de sedutor» a Madame Buloz e à Revista dos Dois Mundos, o horrendo casal passou a saquear Buloz, como se saqueia uma cidade conquistada.

Ao princípio com método, com ordem, mensalmente. No primeiro do mês, os dois bandidos apresentavam a conta do seu silêncio – e Buloz pagava pontualmente o silêncio dos dois bandidos. Depois as exigências foram mais urgentes e tumultuosas. E o comer que faz a fome. O abominável par queria reunir rapidamente uma fortuna – e cada dia, agora, às vezes por dia, Buloz recebia a reclamação de novas somas a pagar. E pagava – para manter intacta no mundo, com a sua posição doméstica, a sua situação social de director grave de uma revista grave. Estava quase arruinado – e a menina e o marido não estavam saciados. Ao contrário! Fartos das pequenas somas «que não luzem» queriam a grossa soma – e, com ameaças mais ferozes, forçaram o infeliz homem a assinar uma letra promissória de perto de setecentos mil francos.

Buloz todavia já tinha dado mais de um milhão!

Segundo ele afirma, Buloz queixou-se à polícia. Mas ao que parece os dois bandidos, por isso mesmo que estavam ricos, tinham já adquirido respeitabilidade e amigos. Havia grossas influências que os protegiam contra as queixas de Buloz – influências pagas talvez com o dinheiro sacado a Buloz. Aliança de «tubarões» – como diria Balzac. O facto e que a polícia se conservou numa marginal indiferença. Então, estonteado, desesperado, Buloz, um dia, foi contar tudo à sua mulher e à sua Revista. Imediatamente, implacavelmente, Madame Buloz se separou do seu marido, e a Revista dos Dois Mundos se separou do seu director. E o grosso escândalo doméstico e literário estalou sobre Paris.

Que fará em definitivo Madame Buloz? Sobretudo, que fará em definitivo a Revista dos Dois Mundos? Era esta, durante semanas, a interrogação ansiosa de Paris, que, mais que nenhuma outra cidade da Europa, se compõe de comadres mexeriqueiras. A solução não tardou – e cruel.

Uma sentença do tribunal dos divórcios pronunciou secamente o divórcio entre Buloz e Madame Buloz. E uma assembleia dos accionistas da Revista pronunciou igualmente o divórcio entre a casta Revista dos Dois Mundos e o seu galante director Buloz. Assim Buloz, ao fim da vida, perde a sua mulher e a sua revista. E porquê? Por ter sido abjectamente roubado, durante anos, por dois odiosos bandidos. Esses é que não perderam nada, os bandidos, nem mesmo a consideração do seu bairro, porque durante todo o escândalo os seus nomes não foram sequer pronunciados, à maneira de nomes sagrados. Tal é Paris.

Sobre a resolução de Madame Buloz, não é permissível fazer comentários. Mas a resolução dos accionistas da Revista parece-me excessivamente austera e ilógica.

Durante esta sua amarga aventura, Buloz não fez senão adquirir noções exactas sobre as realidades da vida – e o seu pecúlio de conhecimentos sobre o homem e a mulher deve-se ter singularmente enriquecido. Está pois, mais que nunca, nas condições experimentais de dirigir uma revista, sobretudo aquela secção da Revista de que ele com mais particular amor se ocupava, a do romance. Agora realmente e que a opinião de Buloz sobre enredos, caracteres tortuosos de heroínas e misérias finais de todo o sentimento teria valor e autoridade. E agora justamente é que o afastam dessa cadeira directorial de alta crítica, para a qual as suas desventuras o tinham, enfim, tornado idóneo! Há aqui evidentemente um erro de critério, além de uma falta de misericórdia.

Em todo o caso, assim acaba na Revista dos Dois Mundos a grande dinastia dos Buloz. Este, se não me engano, era Buloz III. Que diria Buloz I, o fundador, se soubesse que a sua raça fora destronada da Revista por um escândalo de coração? Tal é a ironia das coisas! A mais austera, solene, pudica de todas as publicações europeias, tendo chegado aos sessenta anos, sem que nunca uma realidade ardente das coisas de amor houvesse maculado as suas páginas, tem de repente de se separar do seu director, do homem que a simbolizava, por motivos de patuscada em alcovas ilegítimas! Habent sua fata Revistae.

 

Paris fugiu de Paris. Com este calor de fenómeno (quarenta graus à sombra) em que se pode torrar o café dentro das casas, só com estendê-lo simplesmente sobre o chão, a população abandonou a cidade, num verdadeiro êxodo, e maior que o de Moisés, porque esse foi só de quarenta mil hebreus, e daqui, segundo afirmam os jornais, abalaram ontem, em centenas de comboios, cerca de cento e trinta mil pessoas.

Só ficaram os empregados públicos. E ainda assim, havia há dias uma administração de bairro em que todos os empregados, desde o chefe ao contínuo, se achavam no campo ou no mar.

Era um vizinho da repartição, um lojista, que fazia o serviço, por dedicação cívica.

Em todos os Campos Elísios, só raramente se avista alguma carruagem arquejante. Toda a folhagem das árvores secou.

Aqui e além, nas ruas desertas, passa por vezes, fugindo à pressa, um guarda-sol: é um dos derradeiros parisienses que corre do café onde se atestou de cerveja para outro café onde se vai inundar de limonada. Os cavalos das carroças trazem chapéu; e a acreditar os jornais, já se pensa em lhes fazer usar, por causa da grande reverberação da luz, lunetas defumadas.

Todavia Londres está mais ardente. Aí o calor produz quase uma crise nos costumes. Ontem os membros do parlamento celebraram a sessão, na Câmara dos Comuns, em mangas de camisa.

 

 

 

 

 


VIII

 

AS ELEIÇÕES — A ITÁLIA E A FRANÇA

 

As eleições em França, celebradas no último domingo, foram talvez o mais sólido e completo triunfo que a democracia tem obtido nestes vinte anos: pelo menos foram a sua mais franca, mais positiva e mais corajosa afirmação.

Nessa abrasada manhã de missa, com efeito, o sufrágio universal consultado (esse sufrágio universal que ainda há pouco, em departamentos remotos, os homens de campo consideravam como um personagem vivo, vestido, condecorado, cheio de poder, de quem particularmente dependiam as leis do imposto e do serviço militar) começou por eliminar da representação nacional todos aqueles que, nos derradeiros tempos, se tinham erigido como paladinos da moralidade pública e limpadores valentes de cavalariças de Augias: e assim os que, durante a legislatura passada, se ergueram, na tribuna e no jornal, contra a corrupção parlamentar e financeira, como Drumont, Andrieux, Delahaye, etc., foram derrotados em todos os círculos, com um entusiasmo esmagador e jovial.

Feita esta primeira eliminação, o sufrágio universal passou a riscar cuidadosamente do parlamento todos os políticos profissionais e militantes, que, na direita ou na esquerda, faziam essa política negativa, só diluidora e desmanchadora, ocupada apaixonadamente, e com uma arte subtil, a embaraçar ministros e desorganizar ministérios.

E assim homens como Clemenceau e Cassagnac, que entravam na câmara com unanimidades triunfais, estão, se não já derrotados, pelo menos humilhantemente empatados, e prestes no - próximo domingo a voltar àquela ocupação tão justamente louvada pela sapiência antiga, e que consiste em cada um plantar as suas couves dentro do seu quintal.

Terminada esta segunda limpeza o sufrágio universal passou a expulsar da representação nacional todos os ideólogos, todos aqueles que procuram fazer a remodelação das formas sociais por meio de uma revolução nas ideias morais. E assim um nobre homem como o conde de Mem, o cavaleiro andante do socialismo cristão, é vencido na Bretanha, sua pátria espiritual, por um pequeno advogado bretão que, em vez de anunciar aos eleitores o próximo advento do céu sobre a Terra, lhes promete, muito comezinhamente, uma reforma do imposto rural.

Realizada esta terceira expurgação, o sufrágio universal passou a banir das câmaras, enojado, os artistas, os cinzeladores da palavra, os mestres inspiradores da oratória. «Basta de lira!», gritavam em 1848 os operámos famintos a Lamartine, uma tarde em que ele, na cadeira do hotel de ville estava arengando e sendo sublime. Toda a França industrial e agrícola repete agora o mesmo grito positivo. Basta de lira! Abaixo a eloquência! Fora a retórica e a sua rajada ardente!

E assim todos os grandes oradores contemporâneos da tribuna francesa ficam de repente sem tribuna e sem profissão, porque (caso único na história) a democracia rejeita definitivamente a eloquência como factor do seu progresso.

Tendo realizado estas sucessivas depurações, e repelido para longe, para os seus elementos naturais, os catões, os obstrutores, os ideólogos e os artistas, o sufrágio universal passou a eleger com cuidado e amor uma câmara bem mediana, bem ordeira, bem prática, bem positiva, toda experiente em cifras, superiormente conhecedora dos interesses regionais, capaz de trabalhar catorze horas nas comissões, e feita à imagem e para o útil serviço desta França nova que e simultaneamente um banco, um armazém e uma fazenda. Depois o sufrágio universal descansou – e viu que a sua obra era boa.

Com efeito é uma boa obra de democracia. Em primeiro lugar, todas as superioridades que podiam desmanchar e desnivelar a igualdade intelectual da câmara (e a igualdade deve ser o cuidado sumo de toda a democracia) foram eliminadas com aquela decidida franqueza com que o bom Tarquínio outrora cortava, no seu horto, as cabeças purpúreas e brilhantes das papoulas mais altas.

Na câmara não haverá senão espíritos médios e planos –e toda ela será realmente como uma longa planície, produtiva e chata, sem uma eminência, uma linha que se eleve para as alturas, moinho torneando ao vento ou torre airosa donde voem aves.

Depois todos os moralistas de moralidade rígida, e quase abstracta, foram suprimidos como incompatíveis com a realidade social, com os costumes financeiros de uma democracia industrial, com o regular e fecundo funcionamento dos negócios. O sufrágio universal entendeu que, para bem da democracia, de que ele é o motor inicial, o lugar destes homens, desarranjadores estéreis de todos os arranjos úteis, era não nos bancos de um parlamento, mas nas celas de um mosteiro, ou no deserto entre os santos que, como S. João, lá pregam por gosto e profissão.

Depois todos os ideólogos, os filósofos, os homens de altos sistemas sociais, que constantemente tentam introduzir nas coisas públicas Deus, a alma, o infinito, a bondade progressiva e outras entidades que lhes são inteiramente estranhas e prejudiciais, foram escorraçados como perturbadores impertinentes da boa ordem democrática, onde as massas disciplinadas, com os olhos praticamente postos em terra e na ferramenta, se devem ocupar unicamente de produzir bem e de vender bem.

E finalmente os oradores, os artistas, os poetas, foram, por este sufrágio universal e segundo o prudente preceito de Platão, ignominiosamente expulsos da república.

Estas eleições, pois, foram incontestavelmente uma boa obra de democracia. E por isso os jornais afirmam que a França purificada, enfim, e livre dos elementos mórbidos que a agitavam e debilitavam, vai entrar num período ditoso de estabilidade e de força fecunda. Amen.

Enquanto o sufrágio universal estava assim tonificando a república, um conflito entre operámos franceses e italianos, num departamento do Sul (em Aiguesmortes) veio avivar e exacerbar esta inimizade, mais política que nacional, que há anos vem crescendo entre a Itália e a França.

Foi a antiga história dos salários. O italiano emigra para a França, como emigra para a América, a buscar o trabalho cada vez mais difícil na Itália, que, à parte um bocado suculento da Sicília, e um pingue bocado da Lombardia, é toda ossos e montanha. Ou por ser de uma raça mais sóbria, ou de uma raça mais indigente, o italiano aceita salários muito inferiores aos do operário francês. Como ao mesmo tempo tem muita inteligência e muita destreza, é naturalmente preferido pelos patrões – porque o capital é cosmopolita. Daqui despeito, rancor do operário francês, ameaçado no seu pão – e constantes rixas, em que o italiano naturalmente puxa a faca, essa faca meridional que enche de horror e de asco os povos do Norte.

Foi o que aconteceu em Aiguesmortes, com a agravante lamentável de que um bando de italianos que, depois de uma tremenda batalha, se tinham refugiado numa mata, foram aí perseguidos pelos franceses, monteados como lobos e dizimados a tiro, um a um. Indignação imensa em toda a Itália. Manifestações em Roma, em Génova, em Nápoles. Assaltos aos consulados de França, ultrajes à bandeira da França. E, como nas Vésperas Sicilianas, o velho grito de «morra o Francês!», acompanhado agora, para maior ofensa, do grito novo de «viva a Alemanha!»

Os Franceses ainda podem tolerar magnanimamente que a Itália, que eles consideram como obra sua, feita pelas suas armas e com o cimento do seu sangue, berre: «Abaixo a França!» Há aí apenas, para eles, esquecimento e ingratidão. Mas não podem suportar que a Itália grite: «Viva a Alemanha!» Ai já há um desafio, e como uma afronta à dignidade da nação. De sorte que se os italianos assassinados em França indignaram a Itália – a indignação da Itália, sob esta forma oblíqua e quase irónica de entusiasmo pela Alemanha, indignou muito mais profundamente a França. E as duas nações estavam já assim, há duas semanas, em face uma da outra, quietas, mas penetradas de mútua hostilidade, tanto maior da parte da França quanto tem de ser, por prudência, silenciosa. Mas eis que agora, nestes últimos dias, a Itália praticou, para com o sentimento francês, um outro e supremo ultraje.

O imperador da Alemanha vem este ano dirigir as grandes manobras militares nas províncias francesas conquistadas. Alsácia e Lorena. E quem acompanha o imperador da Alemanha, como seu hóspede e aliado? O príncipe real de Itália. Ora, para os Franceses, esta presença do príncipe italiano na terra alsaciana é uma ofensa monstruosa. E é realmente uma ofensa?

Há aqui uma susceptibilidade, muito delicada, que é difícil criticar. Em boa verdade, hoje a Alsácia e a Lorena são geograficamente e administrativamente províncias alemãs como a Pomerânia ou o Brandeburgo: e não parece que, no facto de o príncipe da Itália ir a Estrasburgo haja maior injúria do que ir a Berlim ou a Leipzig. Além disso a sua presença não vai consagrar a conquista, que é um facto consumado há mais de vinte anos, e não precisa consagração. Acresce ainda que o imperador da Alemanha não vem à Alsácia e Lorena com intenções arrogantes de desafio: e o príncipe de Itália não está portanto colaborando tacitamente numa provocação alemã. Depois ele foi solenemente convidado a assistir às manobras alemãs, que se realizam por acaso nas províncias anexadas: e se o aceitar um convite para essa região é ofender a França, o recusar o convite seria, pelos mesmos motivos, insultar a Alemanha. Tudo isto é indiscutível. Mas o patriotismo, como o amor, não se raciocina, quando ferido. Para os Franceses a Alsácia e a Lorena são duas terras francesas que gemem sob a opressão. E o facto de o príncipe de Itália vir caracolar sobre esse solo vencido e dorido, ao lado do opressor, é para os Franceses uma afronta incomparável. De sorte que uma reconciliação entre a França e a Itália é hoje quase impossível, tanto mais que às questões de política se juntam questões de dinheiro (sempre irritantes), e a estas ainda uma outra questão sentimental de «gratidão», mais irritante que a de pecúnia.

Com efeito, a França pretende que a Itália esteja para com ela num perpétuo e enternecido estado de gratidão. E esta exigência da França tem o condão de enervar a Itália – de a enervar até ao desespero. É um facto psicológico bem conhecido (e Labiche superiormente o pintou numa das suas comédias geniais) que o libertado sente sempre um secreto tédio pelo libertador. Mas quando o libertador constantemente e garrulamente cita, lembra e celebra o benefício da libertação – não é tédio então, e intenso e vivo ódio que o libertado começa a nutrir pelo herói que o libertou. É bem natural – porque o fraco não pode esquecer o que o apoio trazido pelo forte foi uma demonstração pública e aparatosa da sua fraqueza. Todos aqueles que Hércules outrora veio salvar, com grande alarido e grande farófia, ficaram detestando Hércules.

Ora a Itália realmente tem sido libertada de mais pela França desde Carlos VII! E todas estas intervenções libertadoras lhe foram horrendamente caras, além de algumas delas lhe serem desoladoramente inúteis.

A de Napoleão I quase a arruinou, além de a anarquizar. E Napoleão III, que concorreu efectivamente para fazer o reino de Itália, voltou de lá bem pago em boas terras, com Nice e com a Sabóia. Mas além disso a França tomou o hábito arrogante e humilhador de afirmar que ela e só ela criou o reino da Itália, pela força das suas armas e do seu dinheiro, quando realmente a Itália pretende, e com razão, que ela sobretudo concorreu grandemente para esse resultado magnífico com o seu dinheiro, as suas armas, o seu patriotismo e a habilidade suprema dos seus homens de Estado. Nestas condições é fácil compreender a irritação dos Italianos quando os Franceses os acusam de ingratidão, e lhes lembram altivamente que se a Itália hoje é uma nação é porque assim o quis a França na sua magnanimidade.

 

Tudo isto vai levando a uma guerra. E é uma dor que duas nações como a Itália e a França se venham a dilacerar. Há aí o que quer que seja de semelhante a um parricídio. A Itália, é certo, nos seus velhos dias, tem sido ajudada – mas foi ela, na sua soberba mocidade, que nos fez a nós todos, povos da Europa ocidental, e nos civilizou e nos modelou à sua imagem. Ela é e permanecerá a Italia Mater, a mãe venerável das nações. Todos nós somos ainda religiosamente, e juridicamente, e intelectualmente, províncias de Roma. Quando a sua tutela política findou, nós ficámos ainda, e para nossa grandeza, sob a sua tutela espiritual. Ainda não há duzentos anos que, como derradeiro presente, ela nos deu a musica.

 

 

 

 

 


IX

 

ALIANÇA FRANCO-RUSSA

 

Neste momento o Brasil só muito justamente se interessa pelo Brasil – e se pudesse dar ainda aos ecos da Europa uma atenção apressada seria decerto àqueles que lhe levassem a impressão da Europa ou pelo menos de Paris, que é um resumo da Europa, sobre a luta que a ele tão tumultuosamente o perturba.

Mas Paris, apesar de alardear sempre a sua generosidade messiânica e o seu amor dos povos, é uma cidade burguesmente egoísta que só se comove com o que se passa dentro da linha dos bulevares, quando muito dentro do recinto das fortificações.

Além disso, as notícias do Brasil chegam tão truncadas, tão vagas, tão discordantes, que nem sabemos ainda se são simplesmente pessoas, se verdadeiramente princípios que aí se combatem; e esta incerteza esbate, se não impede totalmente, a emoção.

Depois ainda, as nações, à maneira que aperfeiçoam as suas formas de civilização, requintam no sentimento de neutralidade, que é a suprema polidez das nações. De sorte que, nesta dúvida e nesta reserva, tudo quanto a Europa agora pode sentir pelo Brasil é o desejo forte de que o patriotismo aí alumie as almas e que Deus torne bem viva essa luz.

 

De resto, a Europa não está também estendida sobre rosas festivas. Pelo contrário: cada pobre nação sofre dolorosamente da sua chaga ou da sua febre. O Velho Mundo é um verdadeiro hospício onde o ar viciado pelas teorias se tornou mortífero. Países que ainda não têm trinta anos, como a Itália, que todos nós vimos nascer e baptizar, estão inválidos. Mesmo os mais ricos e os mais fortes padecem por motivo da sua própria riqueza, que é uma origem constante de revoluções sociais, e por motivo ainda da sua força, que faz pesar sobre eles a perene e arruinadora ameaça da guerra. Por toda a parte greves, e sangrentas; por toda a parte ruínas causadas pelos apetites materiais ou pelos idealismos políticos. Em Espanha não se passa um dia sem uma revolta regional ou municipal. Até a Holanda, tão tradicionalmente pachorrenta, alimentada a queijo e leite, envolta em névoas emolientes, se tornou uma fornalha de anarquismo. E a única nação que realmente mostra equilíbrio e saúde é a Suíça, não por ser uma república (não parece haver salubridade segura nesse regime) mas talvez por se ter desinteressado de todas as teorias e de todos os ideais, e de ter adoptado, no alto dos seus montes, a ocupação entre todas pacata e higiénica de dona de hospedaria.

Apesar deste estado mórbido, a Europeu todavia ainda se diverte – e aqui temos a França, há um mês, organizando ardentemente, quase convulsamente, uma festa suprema e sumptuosa. A Rússia, ou antes o czar (porque o czar é que é verdadeiramente a Rússia, e todos os jornais de Paris, mesmo os mais revolucionários e os que mais zelam a soberania popular, aconselham que se grite, não «viva a Rússia!» mas «viva o czar!», manda este mês a sua esquadra do Mediterrâneo a Toulon a pagar aquela respeitosa visita que há um ano a esquadra francesa fez à Rússia, quero dizer ao czar. E a França toda, desde Paris até às minúsculas aldeias que quase não têm nome, procura realizar uma demonstração de amizade pela Rússia, tão ardente e estridente que fique histórica e que marque mesmo o começo de uma nova era histórica.

Com efeito, esses quatro ou cinco couraçados russos que vêm ancorar no porto de Toulon, criam quase uma transformação na política da Europa. Desde 1873, e ainda até há um ou dois anos, a França estava numa dessas situações que, pelo contraste violento do mérito e da sorte, são tão particularmente penosas a uma nação altiva.

Fidalga entre todas, com pergaminhos históricos de incomparável nobreza (outrora Deus, quando queria realizar no mundo um grande feito, encarregava dele os Francos – gesta Dei per Francos), a França estava, na Europa, entre as velhas monarquias aristocráticas, com o ar embaraçado de uma merceeira entre duquesas! Guerreira entre todas, poderosamente armada, com três milhões de soldados facilmente mobilizáveis, a França estava entre as grandes potências militares com o ar inquieto e timorato de um fraco entre valentões! Situação absurda mas lógica, porque era republicana e fora vencida. As antigas casas reinantes viam o seu republicanismo com desconfiança, se não com desdém. E a sua derrota, e o isolamento que ela lhe trouxera, autorizavam os chefes de guerra a terem por vezes para com esta nação forte, e apesar da sua força, ares fanfarrões e provocantes que a enervavam. A França realmente estava sempre na possibilidade de ser desdenhada ou brutalizada. Com todos os seus pergaminhos, que datam de Clóvis, com os seus três milhões de soldados, politicamente, na Europa, ela estava de fora, à porta. E só se desforrava desta humilhação por aquela sua outra influência, que é inobscurecível e invencível, a da literatura e da arte.

Para que tal situação mudasse era necessário que uma grande nação amiga, uma potência militar e aristocrática a viesse buscar à porta, a levasse pela mão para dentro do concílio das nações, a proclamasse, apesar de republicana, como sua semelhante e sua irmã, e, pondo fim à sua solidão política, a salvaguardasse para sempre de ameaças e provocações bruscas. E esta nação fraternal foi a Rússia. O czar não veio pessoalmente a Paris, como viria, talvez, se a França tivesse um rei. Mas vem moralmente, mandando uma frota, que é como uma embaixada de aliança. Durante dez ou doze dias, a França e a Rússia, a grande república e a grande autocracia, vão juntar diante da Europa as suas bandeiras, e, pelo impulso sentimental de todas as multidões, as suas almas. E desde esse momento não só a França, como república, recebe o reconhecimento supremo, o último que lhe faltava, o de uma aliança monárquica tão real e natural como se Mr. Carnot fosse um rei de direito divino – mas ao mesmo tempo a França, como França, recebe ao lado da sua própria força o adicionamento de uma força irmã que a torna invencível. De sorte que a visita do almirante Avelane abre, realmente, um novo e interessante capítulo de história.

Há aqui, em resumo, o quer que seja de parecido (salvas, meu Deus, as proporções!) com o caso do corretor de Hamburgo e do velho Rothschild. Não sei se conhecem a anedota, que é clássica. Um certo corretor de Hamburgo, apesar da sua honestidade, da sua inteligência e mesmo de um começo de fortuna, não conseguia vencer na Bolsa uma vaga hostilidade que o envolvia, misturada de desdém; e não lograva portanto arredondar o seu milhão. Parece que o homem casara deploravelmente com uma lavadeira e, ainda em relação com esse erro sentimental, recebera bengaladas em um cais de Hamburgo. Daí a sua situação de pestífero. Um dia, porém, este corretor, feliz ou hábil, apareceu na Bolsa de braço dado com o velho Rothschild, o primitivo chefe da casa imensa. E durante uma hora, a de maior afluência e publicidade, o corretor, desprezado e o banqueiro venerado passearam por entre os grupos, conversando, com as mangas das casacas bem coladas e bem íntimas. Para quem conhece os homens é inútil acrescentar que desde essa manhã o corretor foi cercado de uma consideração ardente, viu a sua doce lavadeira convidada para as festas cívicas e arredondou obesamente o seu milhão. Era o amigo de Rothschild! E quem é visto na intimidade de um poderoso possui desde logo no mundo uma parte do poder.

A diferença aqui está em que o corretor de Hamburgo não experimentava nenhum prazer real e material em sentir a sua manga roçar carinhosamente a manga (decerto gasta e sebácea) do velho Rothschild. Todo o seu prazer, como todo o seu interesse, estava em que os outros corretores e os negociantes espalhados pelo peristilo da Bolsa vissem, durante toda uma manhã, as duas mangas bem juntas e bem casadas.

A França pelo contrário sente um prazer intrínseco e genuíno em abraçar triunfalmente o honesto, e bom, e forte czar. Decerto lhe é grandemente grato que toda a Europa, e sobretudo a Alemanha, veja a estreiteza e a veemência do abraço – e por isso o quer bem demorado, alumiado por todos os lados a fogos-de-bengala, e destacando ricamente num fulgor de apoteose!

Mas a França é uma francesa – com todas as suas graças de sensibilidade e de sociabilidade, e com o coração sempre pronto a bater perante uma homenagem que seja simultaneamente fina e natural. O acolhimento solene e carinhoso que o czar fez no ano passado, com grande surpresa da Europa, à esquadra francesa do Norte, enterneceu a França, de todo a conquistou, e a França, que é uma francesa, está hoje namorada de Alexandre III.

Quando os jornais de Paris o proclamam agora um Justo, quase um santo, escrevem, não com o seu interesse, mas candidamente e com a sua emoção. Ele é o guerreiro forte que inesperadamente abriu os braços fortes à França abandonada, e lhe disse a doce palavra que ela há muito não ouvira: «Sê minha irmã e minha igual.» Como não amar o homem magnânimo, o Teseu salvador? Tudo nele parece belo, a sua estatura, a formidável rijeza dos seus músculos, a sua larga e tocante paternidade, a quietação grave da sua vida familiar. E estou certo que, na alta burguesia conservadora, já muito bom francês pensou secretamente quanto ganharia a França em ter um rei do tipo moral e físico do czar. Por isso estas festas vão ter não sei quê de nupcial.

O czar esposa a França. Não faltarão talvez mesmo as bênçãos da Igreja. E ou me engano, ou esta França racionalista e radical, que riscou Deus dos compêndios e exilou os crucifixos, vai celebrar te-Deums louvando o Senhor por esta aliança cheia de incomparáveis promessas.

Aliança feita particularmente pelo povo francês e pelo czar. Os políticos profissionais, os homens de Estado, os governos sucessivos da república desde 73, não a promoveram nem a previram. Pelo contrário: liberais e parlamentares, as suas simpatias foram sempre pela Inglaterra parlamentar e liberal. O czar, autocrata e absoluto, só inspirava aos estadistas radicais do tipo de Ferry, Spuller, Goblet, etc., uma antipatia que nenhum interesse político podia dominar. E aquela parte de influência que ainda pertencia à França, mesmo vencida e isolada, foi sempre posta por eles ao serviço da Inglaterra, e portanto contra a Rússia. No congresso famoso de Berlim, foi a França que mais concorreu para arrancar à Rússia as vantagens e os territórios que ela conquistara à Turquia, depois de uma longa e penosa guerra. E a desconfiança do grande «déspota do Norte», o horror dos democratas a qualquer imisção dele, mesmo remota, nos negócios republicanos da França, subiu a tal ponto que, quando o general Appert, embaixador de França na Rússia, se começou a tornar muito íntimo e familiar do czar e a tomar chá no Palácio de Inverno mais vezes do que as exigidas pelo protocolo, o general Appert foi brutalmente demitido!

Por baixo, porém, dos políticos estava a multidão (que não tem em França grande compatibilidade de espírito com o pessoal que a governa) – e estavam patriotas como Deroulède e outros, mais intimamente em comunhão com os desejos e as esperanças da multidão. Foram estes que semearam, as mãos-cheias, a boa semente. Na Rússia, porém, nenhuma semente frutifica sem o consentimento do czar. Ora o czar não só admitiu esta semente, mas até a regou. Começaram então essas repetidas visitas dos grão-duques a Paris, que eram como as andorinhas do Norte, anunciando a esperança do renascimento. Pouco mais faziam estes grão-duques do que almoçar pela manhã no Voisin, e jantar à noite no Paillard. Pelo menos os jornais não lhes narravam outros factos, mas já, de restaurante a restaurante, ou por onde quer que fossem, os acompanhava um sulco largo de simpatia popular. E nenhum grão-duque chegava, ou nenhum grão-duque partia, sem que as gares estivessem todas floridas e ressoassem já os primeiros e tímidos clamores de viva o czar!»

Depois, alguns homens de letras, sobretudo Mr. De Nogüé (que já fizera particularmente a «aliança», casando com uma senhora russa), começaram a popularizar a literatura russa. Tolstoi foi revelado à França. O seu neo-evangelismo, nascido do pavoroso espectáculo da miséria rural no Centro da Rússia, entusiasmou aqueles que em Paris também se voltavam para o idealismo, por fadiga e fartura das velhas e secas fórmulas positivistas. Mas Tolstoi e os outros romancistas russos foram, sobretudo, aclamados pelos mesmos motivos por que o eram os grão-duques. A clara e bem equilibrada inteligência crítica do Francês, no fundo, não compreende nem pode amar a dolorosa e tenebrosa literatura russa. A natureza do espírito dos dois povos é tão diferente como os seus dois estados sociais. Não só já nas suas formas de pensar, mas mesmo nas suas formas de sentir, o Francês e o Russo divergem – e quase se pode dizer que um e outro amam e odeiam de modos que são totalmente diversos na sua essência e na sua expressão. Em tudo o que mais fundamente constitui a civilização, em matéria de religião, de família, de trabalho, de estado, as duas nações discordam – porque uma é ainda primitiva, governada por crenças primitivas, organizada por instituições primitivas, enquanto que a outra e uma nação trabalhada violentamente, no fundo da alma e em toda a sua ordem social, por quatro séculos de filosofia e um temeroso século de revoluções.

Mas esta mesma popularização da literatura russa concorreu para a confraternização. A França, repito, é uma francesa – e, como tal, extremamente sensível ao brilho das letras e da cultura.

Não creio que fosse jamais popular em França a aliança com um povo estúpido e sem livros. Todo o ser de alta civilização espiritual gosta que os amigos, com quem se mostra perante o mundo, pertençam à mesma alta élite.

 

Assim lentamente se fez esta fraternidade das duas nações, que marcará talvez na história. Os Franceses agora pretendem que ela realmente existiu sempre (é agradável prender tudo a uma velha tradição) – e vão buscar mesmo a sua origem ao fundo do século XVIII (antes disso também quase não existia a Rússia), ao czar Pedro, o Grande, que foi esplendidamente festejado em Paris, na corte jovial do regente, onde a sua força colossal, os seus bigodões, a sua brutalidade encantavam les petites dames. Mas vão sobretudo filiar esta fraternidade na Guerra da Crimeira em 1851, onde oficiais fran-ceses e russos confraternizavam nas trincheiras, entre dois combates, bebendo champanhe. Boa novidade! Já outrora, durante as velhas Guerras dos Cem Anos, os cavaleiros ingleses e franceses, depois das duras brigas, ou no repouso dos assédios, se juntavam, deslaçavam os morriões de ferro, para bazofiar de armas e de amores, tragando por grossos pichéis a zurrapa do Rossilhão. Em todos os tempos, nos exércitos aristocraticamente organizados, os oficiais fidalgos, quando se não batiam, bebiam, segundo as circunstâncias, zurrapa ou champanhe.

Não! A aliança franco-russa, se se realizar, é obra especial, pelo lado da França, desta nova geração que sucedeu à guerra, e, pela parte da Rússia, do czar. Na Rússia não foi o povo que a fez, porque o povo não tem opinião e portanto politicamente não existe. E em França não foi o Governo que a fez, porque os homens que o constituem são ainda dos que gritavam, há vinte anos: «Viva a Polónia! Abaixo o czar!»

É esta a sua originalidade, de resto consequente com os estados sociais das duas nações. Uma grande democracia trata directamente e particularmente com um grande autocrata. E um homem e uma multidão assinam, sem papel e sem tinta, um tratado formidável e pitoresco.


X

 

AS FESTAS RUSSAS — A “TOILETTE” DE UM PRESIDENTE DA REPÚBLICA — NOTÍCIAS DO BRASIL

 

Estamos, enfim, no redemoinho e brilho e estridor das festas. O almirante Avelane e os oficiais da frota russa desceram sobre Paris. Digo desceram, como se se tratasse de seres chegados da brancas esferas celestes, porque o próprio almirante classificou esta visita de sobrenatural, e o Sr. Hervé, director do Soleil, um académico, um moderado, um céptico, não hesitou em lhe atribuir um carácter miraculoso. Deve haver aqui, pois, o quer que seja de transcendente. E Paris está em delírio – mas um delírio cheio de bonomia e mesmo cheio de diplomacia.

Louvemos sem reserva este povo eminentemente racional. Todos os seus amigos estavam receando (e todos os seus inimigos esperando) que Paris, na alegria do seu grande sonho enfim realizado, e no orgulho da sua nova força, se exaltasse desmedidamente, deixasse escapar, em tumulto e sem escolha, todos os sentimentos que o agitam, e no meio das aclamações aos seus amigos lançasse, aqui e além, alguma grossa injúria ao seus velhos inimigos. Receios iníquos, esperanças indiscretas! Paris está mostrando a prudência de um diplomata encanecido na carreira – e os próprios garotos se comportam como Metternichs.

Nunca decerto, como hoje, Paris pensou tanto na Alemanha; e no fundo, todas estas bandeiras se desfraldam, e todas estas luminárias se acendem, e todo este champanhe estala, tanto pela Rússia como contra a Alemanha. Mas esse pensamento fica cautelosamente aferrolhado nos mais fundos recantos da alma – e o que transborda é apenas o clamor do entusiasmo e da fraternidade. E como se não existisse Alemanha, nem a ingrata Itália, nem tríplices alianças. Há só dois povos, o francês e o russo – e, como eles se abraçam, o mundo todo se converte num amável santuário de paz.

Oito dias são passados desde que os russos estonteiam Paris. A cidade toda está na rua. O tempo vai quente e abafadiço. Por toda a parte a cerveja e o vinho transbordam, como numas colossais bodas de Gamacho. E todavia, em nenhum bairro, mesmo nos mais ruidosos e excitáveis, houve ainda um grito, uma pilhéria num café, uma alusão que desmanchasse a harmonia pacífica do soberbo festival.

Isto prova, uma vez mais, que Paris não é como se pensa a cidade que entre todas se embriaga e se dementa. E prova ainda que nenhuma outra há em que a inteligência geral seja tão aberta, acessível e pronta – isto é, em que uma ideia, considerada justa ou necessária, penetre tão claramente e tão unanimemente nas multidões. Em Londres é fácil, extremamente fácil, fazer sentir às classes cultas, mesmo à pequena burguesia, a beleza ou a vantagem de tomar e conservar, num grande momento público, uma certa atitude, mesmo contraria a sentimentos legítimos; mas como fazê-la sentir àquela turba obtusa e rude, que os Ingleses chamam os roughs, os «ásperos»? Para esses não há interesse público que lhes refreie ou modifique o instinto ou a paixão. E não seriam eles, se Londres tivesse sido durante seis meses cercado e brutalizado pelos Alemães, que se privariam, numa festa igual, de desabafar o velho rancor e de lançar por entre o muito alto grito de «viva a Rússia!» brados ainda mais altos de «morra a Alemanha!» Ainda há pouco o provaram (por ocasião do curto ressentimento entre a França e a Inglaterra, a propósito do Sião) quando uma plateia de rapazes de comércio, no Teatro da Alhambra, ao aparecer, não sei em que bailado, a bandeira francesa, rompeu em urros de furor e se arremessou sobre o palco para despedaçar e espezinhar a tricolor. Foi apenas um momento, uma brusca ebulição do forte sangue saxónio. O bailado continuou – e cada um recomeçou serenamente a rir e a emborcar bocks.

No fundo é tudo talvez uma questão de polidez e doçura. Matthew Arnold, o mais fino crítico que tem tido a Inglaterra, sustentou sempre que estas duas inapreciáveis qualidades faltam inteiramente ao Inglês. Era decerto uma generalização excessiva, que provinha de esse delicado espírito se ter nutrido e enlevado demasiadamente na literatura francesa do século XVIII. Mas é certo que, pelo menos, a polidez e a doçura, em Inglaterra, faltam à população. Em França, nem a essa faltam.

 

Nestas festas russas, com efeito, para mim, a coisa mais interessante e tocante tem sido a multidão. Há dias que dois milhões de parisienses vivem em permanência apinhados em três ruas: o Bulevar dos Italianos, a Avenida da Ópera e a Rua de la Paix. A clássica sardinha na sua clássica lata, um maço de cigarros densamente apertado, grãos de café dentro do saco pançudo que quase estoura – são frouxas imagens materiais para exprimir esta massa compacta de criaturas de Deus, que se move com a espessura e lentidão de um metal mal fundido. É a inumerável multidão do tempo de Boulanger, o derradeiro criador de multidões. Mas não há agora a vivacidade, a vibração petulante e batalhadora desses dias de cesarismo. Esta multidão é enternecida e grave. É sobretudo doce. Não há uma brutalidade, uma impaciência, um empurrão. As mulheres vieram confiadamente, trazendo filhinhos ao colo. Tanto é o decoro e o recolhimento, que lembra uma turba devota dentro dos muros de um templo.

Toda esta parte de Paris, com efeito, em redor do Clube Militar onde se hospedaram os russos, se tornou como um vago templo de fraternidade e de paz.

Esse espírito pacífico e fraternal que aqui erra, esparsamente, até se comunica aos animais.

Na Avenida da Ópera um grande mail-coach, tirado por quatro puros cavalos, fica encravado, atolado na densa massa viva. No tempo de Boulanger seria um escândalo de berros e coices, porque, para homens e bichos, os tempos eram agressivos. Agora, o cocheiro lá no alto, puxou risonhamente a charuteira e acendeu um paciente charuto. Os cavalos não se moveram, discretos e corteses. A gente que se achava colada a eles terminou por se encostar, familiarmente, descansando, às garupas fumegantes. Os animais, por seu turno, também derreados, descansavam os focinhos sobre o ombro do cidadão. Por cima, as janelas embandeiradas estão cheias de mulheres, que atiram flores, atiram mesmo beijos, por entre as pregas amarelas do pavilhão do czar. O próprio céu se enfeita – e toma agora sempre, ao fim da tarde, um tom de ouro e apoteose.

Por vezes, entre couraceiros que cercam um landau, alvejam ao longe os bonés brancos dos oficiais russos. Uma aclamação rompe logo de «viva o czar, viva a Rússia!» Toda a maciça multidão arremete numa ansiosa ondulação; os chapéus tremulam freneticamente entre o esvoaçar dos lenços. E uma curta explosão de amor. De novo o decoro, a compostura risonha se estabelecem, mais largos. Nem sequer se levantou um pó importuno. Ninguém sua. Toda esta turba cheira agradavelmente a água-de-colónia e a violetas de Outono. Até o ar se aveludou. As vidraças dos prédios dardejam lampejos de alegria. Os cidadãos trocam o lume dos charutos com um sorriso de gratidão e concórdia. Tudo é harmónico, suave, polido, amável e fino. No fundo toda esta ordem é simplesmente o resultado precioso de uma muito velha civilização. E é em dias destes, no meio de dois milhões de populares apinhados pelo entusiasmo em três ruas estreitas, que se apreciam os benefícios de uma antiga cultura, que através dos tempos tem afinado o animal humano. Eu por mim, durante toda uma hora que levei a atravessar a Praça da Opera, sem que ninguém me empurrasse, me pisasse, me empecesse, me contrariasse – não cessei de louvar Júlio César, por ter, tão cedo, e tão antes do meu tempo, feito a conquista das Gálias.

Enquanto às festas propriamente, creio que foram medíocres – sobretudo as festas exteriores e de rua. O Francês nunca teve o génio decorativo – nem soube a arte sumptuosa de organizar uma gala. Esse dom pertence ao Italiano. O Francês só é hábil em ornamentar um salão – ainda que ultimamente o classicismo, que é um dos feitios da sua inteligência, o tenha imobilizado em dois géneros que repete monotonamente, infinitamente, o Luís XV e o Henrique II. Em todo o caso, possui grandemente a ciência das luzes e das flores. E todas estas festas realizadas em salão, os banquetes, os bailes, a gala da Ópera (que é um salão), tiveram muito requinte e muito brilho. Nas ruas o esforço inventivo não passou de algumas bandeiras tricolores, fixadas nas varandas, ao lado do pavilhão amarelo com a águia negra de duas cabeças.

A Rue de la Paix oferecia uma decoração de mastros de navios, com vergas, o velame apanhado, e flâmulas no topo, que a assemelhava a uma linda doca de ópera cómica. A Rua Quatro de Setembro, como seu longo toldo de lanternas chinesas, lembrava uma rua de Cantão, em noite de devoção budista.

As festas, além disso, foram muito acumuladas. Todas as instituições, corporações, associações, clubes, armazéns, queriam ansiosamente honrar os russos – e houve tal dia pavoroso em que o almirante Avelane e os seus oficiais foram forçados a partilhar de três almoços, quatro lanches, dois jantares e cinco ceias! Apenas acabavam aqui de engolir o café, tinham de saltar à pressa para dentro das carruagens, para ir além recomeçar a sopa. E grave pensar que estes homens inocentes tiveram de comer oito e dez vezes, por dia, salmão à russa ou codorniz trufada. E como nestas ágapes de aliança o acto importante eram os toasts, as saudações de confraternidade e de reverência pelo czar, não é menos grave considerar que a cada um desses marinheiros fortes, coube, durante o seu dia, esgotar de setenta a oitenta copos de champanhe.

Enfim, se já no tempo de Henrique IV Paris valia uma missa, não há dúvida que, agora, com todos os progressos de três séculos, vale bem uma dispepsia.

Mas as festas foram talvez menos deslumbrantes por causa das casacas pretas do Governo. O Estado em França, como republicano que é, não tem uniforme: nas grandes festas oficiais é obrigado a aparecer de casaca e gravata branca, como os escudeiros que servem o punch. Este inconveniente, tão considerável num país habituado há oito séculos ao esplendor sumptuário da monarquia, nunca ressaltou tanto, nem se tornou tão patente, como agora nestas festas, que eram sobretudo militares. Em meio das fardas, dos penachos, dos bordados, das couraças, dos ouros, das armas ricas – alguns sujeitos circulavam, encafuados, mesmo de dia, sob o esplendor do sol, em sinistras casacas negras. Quem eram? Os ministros, o Governo, o Estado, a França. Aí está a que chegara a seda branca recamada a pérolas dos Valois, o veludo bordado, e os laços floridos, e os diamantes, e os altos empoados dos Bourbons, e as fardas faiscantes dos napoleões: a uma casaca de pano preto, quase sempre mal feita, como a de um criado de copa ou de um servente de enterro!

Todo Paris sentiu e sofreu a humilhação desta pelintrice oficial. E jornais sérios, em artigos sérios, lembram a necessidade de que se estabeleça para o presidente da República, para os presidentes das câmaras, para os ministros (os três poderes do Estado), um uniforme, nobre e severo, que lhes dê prestígio – esse prestígio material e exterior que, para um povo amigo da arte e da beleza das formas, é talvez o mais persuasivo e durável. Isto é extremamente sensato. E necessário que o poder inspire sempre o sumo respeito. Ora, entre dois chefes de Estado – um revestido de uma couraça rutilante, com um capacete emplumado, e outro metido dentro de um paletó negro, com um chapéu-coco – o respeito instintivo da multidão impressionável vai para o guerreiro da bela couraça e não para o sujeito do coco triste. Pelo menos para ele vão os olhares das mulheres – e logo portanto atrás, por uma lei natural, a consideração dos homens. Os filósofos, está claro, não regulam a força moral e o valor por estas exterioridades. A pompa toda de Alexandre não conseguiu impressionar Diógenes. Mas a turba não se compõe de filósofos – e para ela, perpetuamente, a magnificência solene será a prova real do poder.

Mas que uniforme se deverá impor ao Sr. Carnot? Não sei. Evidentemente não deverá ser o fato de Luís XV, de cetim branco, e o manto de papo de tucano que o imperador do Brasil por vezes revestia – e de que ele próprio se ria tão alegremente. Mas é bom que não continue a ser essa lamentável casaca civil, envergada logo de manhã à luz irónica do Sol, de que o imperador tanto gostava e que tanto o prejudicou.

 

E já que, através de fardas e casacas, vim a recordar o Brasil, como não aludir discretamente ao grande silêncio que subitamente se fez em França sobre a revolta que o agita? Apesar de atulhados com as narrações das festas e cõm a Rússia (que é volumosa), os jornais de Paris ainda assim reservam sempre algumas linhas, vinte ou trinta, aos casos curiosos do mundo.

Debalde, porém, se procura agora uma notícia, mesmo falsa, sobre o Brasil. Nada! É como se o almirante Melo e os seus couraçados se tivessem sumido para sempre nas brumas atlânticas. Que digo? É como se o Brasil tivesse desaparecido – ou antes tivesse entrado naquela era de felicidade, classicamente conhecida, em que os povos deixam de ter história. E assim parece ser, pois que o único rasto do Brasil se encontra nalgum boletim financeiro, onde se dizem os sacos de café vendidos e a cotação do câmbio. E até este mesmo câmbio, outrora tão agitado, nos aparece agora cheio de quietação e repouso...

«Un silence parfait règne dans cette histoire» — como diz Musset. É de bom prenúncio este silêncio, é de mau prenúncio? Em todo o caso, é único na história das revoluções. Havia tiros, sangue, cólera, tumulto. De repente tudo se cala, tudo se some – e aqui ficamos na Europa boquiabertos, diante de uma forte revolta que se esvaiu no ar, como uma visão de mágica. Onde estão os couraçados? Onde estão os fortes? Onde estão os regimentos? Não há nada – não se entrevê um vulto, não se escuta um rumor.

Decerto aí, no Rio, se estimaria saber a impressão que se tem aqui em Paris dessa luta desoladora. Pois a impressão é esta, não outra, há uma longa, vagarosa semana. O pasmo diante de uma coisa real e terrível, que troava e flamejava, e que de repente desaparece, se funde na nudez e na sombra. E aqui estamos espantados, arregalando os olhos para o Brasil – tendo apenas a vaga consciência de que lá se continua pacificamente a vender café.

 

 

 

 

 


XI

 

A ESPANHA — O HEROÍSMO ESPANHOL -— A QUESTÃO DAS CAROLINAS — OS ACONTECIMENTOS DE MARROCOS

 

O «teatro dos acontecimentos» (como outrora se dizia), que é decerto um teatro ambulante, atravessou os Pirenéus – e é agora de Espanha que nos chegam esses ecos com que se faz história. Isto desde logo garante que eles devem ser interessantes – porque de Espanha nada pode vir que seja mesquinho ou banal, a não ser por vezes vemos e discursos.

A Espanha é hoje, na Europa, a última nação heróica pelo menos é a última onde os homens publicamente, e nas coisas públicas, se comportam com aquela arrogância, e bravura estridente, e magnífica imprudência, e soberba indiferença pela vida, e desdém idealista de todos os interesses, e prontidão no sacrifício, que constituem, ou nos parecem constituir, o tipo heróico (porque nem os dicionários nem as psicologias estão bem de acordo sobre o que é um herói).

Assim, eu não creio, por exemplo, que haja nada mais espanhol, e que se nos afigure mais heróico, do que o atentado contra o marechal Martinez Campos. O velho general está passando uma revista numa praça de Barcelona, cercado de oficiais e de populares, que em Espanha se misturam sempre familiarmente aos estados-maiores. De repente um rapazola de vinte anos, um anarquista, atravessa o grupo, desata tranquilamente, e de cigarro na boca, as pontas de uma pequena trouxa, e atira sobre o marechal uma bomba de dinamite. Há uma horrenda explosão, uma nuvem de pó e de estilhas, gritos, todo o tropel e tumulto de uma catástrofe. Mas uma grande voz ressoa, uma voz de comando, serena e quase risonha. É Martinez Campos, de pé, coberto de sangue, que brada com a mão no ar: «No és nada, no és nada!» O seu cavalo jazia despedaçado numa poça de sangue. Em torno, no chão escavado pela bomba, estão caídos uns poucos de oficiais e de populares, mortos ou terrivelmente feridos e gemendo. O marechal tem a farda em farrapos, donde pinga sangue. E, todavia, indignado que se erga tanto alarido por causa de uma bomba, continua a encolher os ombros, a gritar: «Pero si no és nada, hombre, si no és nada

Mais adiante soa outro grito ainda mais alto. É o do rapazola, o anarquista, que agita o boné, berra em triunfo: «Fui eu! Fui eu!» Tem vinte anos, acaba de cometer um crime que o levará à forca, e está ansioso por que todos saibam que foi ele, só ele! Não vá outro ser preso, roubar-lhe ali diante do povo, diante de todas aquelas mulheres, a glória do seu feito anarquista! Através do terror, da confusão, podia fugir. Mas quê! Perder todo o prestígio que lhe cabe pela sua façanha? Não! Por isso bate no peito, chama os gendarmes, brada: «Fui eu! Fui eu!» E quando o prendem, vai pelas ruas, já de mãos amarradas, clamando ainda com orgulho para as janelas cheias de gente que fora ele, só ele!

Ao mesmo tempo, por outra rua, vai o velho marechal, em braços, meio desmaiado, continuando a sorrir e a afirmar que «no és nada, que no és nada!»

O quadro é admiravelmente espanhol – e só pode ser espanhol.

 

O Espanhol é heroicamente bravo; mas outras raças, o Inglês, o Russo, o Francês, possuem esse heroísmo especial que consiste em soltar um grito, florear a espada, e correr soberbamente para a morte. Onde o Espanhol se mostra único é no desprendimento com que sacrifica todos os interesses, desde que se trate da honra da Espanha, ou do que ele pensa momentaneamente ser a honra da Espanha. Aí invariavel-mente reaparece o sublime D. Quixote.

E tanto mais heroicamente que ao Espanhol não faltam o raciocínio, e a prudência, e o claro sentimento da realidade, e o amor dos bens acumulados, e mesmo um certo egoísmo pachorrento – como superiormente o prova Sancho Pança. Mas conhecendo e pesando bem o que vai perder – marcha jovialmente e tudo perde com entusiasmo, porque se trata da sua pátria.

Não há na alma espanhola sentimento mais poderoso que este de pátria. Os cafés de Madrid, ou de Sevilha, estão atulhados todas as noites de descontentes, que maldizem da coisa pública, e berram, emborcando largos copos de água e anis, que em Espanha tudo vai mal e que a Espanha está perdida! Mas que alguém de fora passe e atire uma pedra à terra de Espanha, ou finja simplesmente que atira a pedra –e todo esse povaréu se ergue, e ruge, e quer matar, e quer morrer, para vingar não só a pedrada, mas o gesto.

O Espanhol, com efeito, apesar do que tanto resmunga nos botequins, tem uma ideia imensa da sua terra. Basta testemunhar a maneira ardente e ovante como ele pronuncia»mi terra»! Para ele a Espanha é a maior das nações – pela força e pelo génio.

Há aqui certamente um orgulho tradicional, hereditário, vindo dos séculos de dominação e de verdadeira superioridade. Muito bom espanhol vive ainda, por uma ilusão magnífica, na Espanha do passado, e não se compenetrou da decadência, e ainda pensa que os regimentos de Madrid são os velhos e temerosos terços de Carlos V, e que qualquer piloto do Ferrol ou de Cartagena poderia redescobrir as Índias, e que cada novo romancista continua Cervantes, e cada pintor sevilhano ressuscita Murillo. Mas além deste hábito de se sentir grande, natural de resto numa raça que chegou a dominar o mundo e que deu à humanidade algumas das suas almas mais fortes e dos seus génios mais profundos, há ainda no Espanhol um amor prodigioso pela terra de Espanha, pelo torrão que os seus pés calcam, pelo monte e pela planície, pelas cidades ou pelas aldeias que aí se erguem, por cada tufo de cardo que brota entre cada rocha. O Inglês, outro grande patriota, ama ardentemente e exclusivamente a civilização que criou na sua ilha, e as suas instituições, e os seus costumes – mas não tem nenhum entusiasmo pela ilha, ela própria, que abandona mesmo com facilidade e prazer. E contanto que leve para a Itália, ou para outro clima doce, a sua cozinha, os seus sports, os seus jornais, as suas distinções sociais e o seu clube, prefere sempre a suavidade de um ar luminoso aos ásperos nevoeiros do seu sombrio Norte. Por isso emigra, e vai fundando em solos mais amenos que o seu uma correnteza infinita de pequenas Inglaterras. Para o Inglês a pátria é uma entidade social e moral. Para o Espanhol a pátria é o bocado de terra que os seus olhos abrangem, e que ele ama como se ama uma mulher, com um amor ciumento e carnal. Esse amor cria nele naturalmente a ilusão – e o Manchego e o Navarro, que habitam duas das mais feias e tristes regiões da Terra, não as trocariam pelo Paraíso, porque nada lhes parece realmente tão formoso e radiante como a Mancha ou a Navarra. Eu já vi um homem, e muito inteligente, que era de Mérida (um dos mais lúgubres buracos do mundo), declarar muito seriamente e convicto que Paris, como monumentos, e interesse, e brilho, «no valia Merida»! De resto, quem não tem ouvido espanhóis, muito cultos, muito viajados, preferirem candidamente qualquer Mérida sua a Roma ou a Londres, e considerar tal politiquete da sua província maior que Gladstone e Bismarck, e achar em certo folhetim, publicado num jornal de Andaluzia, mais génio que em toda a obra de Hugo? A isto se chama ordinariamente a exageração espanhola. Não! É apenas a cândida ilusão de um patriotismo transcendente.

Considerando assim a sua pátria, tão formosa, tão grande, tão forte, tão genial, e prestando-lhe um culto como à verdadeira e única divindade, como não há-de o Espanhol exaltar-se até ao tresloucamento, quando a supõe ultrajada? Para ele uma ofensa à Espanha é um sacrilégio, e tem então o santo furor de um devoto que visse alguém cuspir num crucifixo. Para castigar a profanação abominável, fará com entusiasmo todos os sacrifícios, e logo imediatamente o da vida.

Todos se lembram ainda da famosa «questão das Carolinas». Uma manhã, Madrid sabe que, muito longe, em mares remotos, um oficial alemão plantara numas certas ilhas vagamente espanholas, e chamadas Carolinas, a bandeira alemã. Ninguém em Madrid conhecia a existência das Carolinas, nem a geografia das Carolinas. Mas os jornais contavam que a Espanha fora ofendida – e Madrid inteiro, todas as classes e todas as idades, fidalgos, carreteiros, toureiros, padres, magistrados, velhos, crianças de escola, senhoras e servas, tudo correu para praticar o acto mais imediato e mais urgente: ultrajar a bandeira alemã, matar o embaixador alemão, arrasar o edifício da embaixada da Alemanha. E depois a guerra! Uma guerra implacável, toda a Espanha em armas, caindo sobre a Alemanha! Não havia tropas?, cada homem seria um soldado! Não havia armas?, cada um tomaria o seu cajado ou a sua navalha! Não havia dinheiro?, as mulheres empenhariam até a cruz do pescoço. E através deste delírio, ninguém ainda percebia onde eram as Carolinas. Também, na Primeira Cruzada, quando as multidões, povos inteiros, partiam a vingar a ofensa feita pelo Turco ao sepulcro do Senhor, ninguém sabia onde era Jerusalém...

Foram dois dias sublimes, esses de Madrid. O velho Bismarck, atónito e aturdido, recuou, mandou retirar a bandeira alemã das Carolinas, apelou para o papa... A Alemanha realmente, perante aquela explosão magnífica da velha alma castelhana, empalidecera. E a Espanha saiu da aventura mais engrandecida, mais consciente da sua grandeza, e cercada das admirações do mundo. É que nada se impõe aos homens como a afirmação heróica de um sentimento justo.

 

Pois agora vai talvez suceder uma igual aventura. A Espanha foi ferida no seu patriotismo e no seu orgulho. A ofensa não veio de europeus, mas de africanos. E, porém, indiferente para a Espanha que o sacrilégio seja forte ou fraco, civilizado ou bárbaro. Houve o sacrilégio, isto é, houve um ultraje à bandeira da Espanha, e, portanto, às armas e guerra implacável!

A Espanha possui no Norte da África, além de Tetuão, de Ceuta e de outros pontos fortificados, uma pequena cidade pouco maior que uma cidadela, que se chama Melila. Em torno há, como em todas as outras possessões, uma zona de cultura, defendida por trincheiras e fortes. E para além são serranias povoadas por tribos mouriscas, a que se dá o nome genérico de Mouros do Rif, ou Rifenhos.

Os Mouros naturalmente odeiam os Espanhóis, seus inimigos hereditários, com o ódio de raça e com o ódio de religião – e os Espanhóis estão ali portanto num permanente estado de defesa. Ultimamente, depois de vagas questões que tinham surgido entre espanhóis e mouros na feira vizinha de Frejana, as tribos rifenhas mostraram uma agitação tão visivelmente hostil que o governador de Melila, general Margallo, mandou reforçar as obras de defesa em torno da zona cultivada, e construir, num certo ponto mais aberto, um forte.

Ora, justamente nesse sítio, existia um antigo cemitério mourisco. Nada há mais sagrado para o muçulmano do que um cemitério, porque não só aí repousam os mortos, mas ai vêm orar e meditar, estudar e celebrar assembleias, e mesmo celebrar festas, os vivos. O cemitério, no mundo maometano, constitui o verdadeiro centro de piedade e de convivência.

Os Mouros do Rif representaram pois ao general Margallo que aquele forte, naquele sítio, vinha dominar e devassar o seu cemitério – e constituía, portanto, uma invasão material e moral do seu território. Foi por um motivo idêntico, por causa da famosa Torre Antónia, que sobrepujava e devassava o templo de Jerusalém, que os Judeus tantas vezes se sublevaram sob a dominação romana. O general espanhol res-pondeu (como costumava responder o procônsul romano) que dentro da sua zona ele tinha o absoluto direito de erguer todos os fortes que julgasse necessários à sua segurança. E mandou construir a obra. Os mouros, de noite, desceram das alturas e destruíram a obra. Com a costumada teima espanhola, em lugar de conciliar, de escutar as razões que eram atendíveis, porque nasciam de um sentimento religioso, o general Margallo ordenou a reconstrução do forte. Os rifenhos desceram mais numerosos e redestruíram o forte. Diabo!, não se podia continuar assim, em plena mourama, esta teia de Penélope tecida ao sol, desmanchada ao luar. O general Margallo recomeçou as obras e colocou-as sob a protecção de um destacamento de sessenta soldados. Os mouros imediatamente soaram o alarme através dos aduares, baixaram e desmantelaram as obras e atacaram o destacamento. Tinha corrido sangue – era a guerra.

O que depois ocorreu, não está ainda bem aclarado. O general Margallo, sem esperar reforços, fez, com a sua pequena guarnição de recrutas, para castigar as tribos, uma surtida temerária – que resultou numa tremenda derrota dos espanhóis (apesar da bravura esplêndida com que se bateram) e na morte do próprio general Margallo, varado, logo no começo da acção, por três balas. Entre os oficiais gravemente feridos havia um infante de Borbón. Os mouros tinham capturado dois canhões e uma bandeira – que os espanhóis retomaram.

Quando o desastre se soube em Madrid, foi outro «dia das Carolinas». Madrid inteiro correu ao palácio, aos ministérios, gritando por vingança e guerra. Todo o homem válido se quis alistar como voluntário. Para que não faltasse dinheiro (e o Governo não o tem), o Banco de Espanha ofereceu oitenta milhões, as grandes casas fidalgas prometeram largos donativos, as próprias igrejas desejavam dar as suas alfaias. A Espanha toda rompeu numa outra das suas sublimes explosões de patriotismo. O reizinho, que tem sete anos, cercado no Passeio do Prado por uma imensa multidão que o aclamava, ergueu-se de pé, no assento da carruagem, largou a gritar: «Vamos todos a matar los momos!» Foi um delírio. E a Espanha, entusiasmada, lá vai para a guerra!

E em que momento ela vem! Quando a Espanha, muito pacientemente, com um esforço em que também havia heroísmo, estava reconstruindo, dia a dia, migalha a migalha, as suas finanças arrasadas. A guerra é a ruína – porque as tribos do Rif podem pôr em armas sessenta mil homens aguerridos, de incomparável bravura, com espingardas Remington, e tendo por couto as suas serranias inacessíveis. Para vencer esta formidável guerrilha – é necessário uma expedição pelo menos de trinta mil homens, que têm de ser alimentados de Espanha, porque no Rif só há areais. São as finanças espanholas desorganizadas por infinitos anos. É ainda O perigo de complicações europeias, porque a Espanha será forçada a penetrar no território de Marrocos (os Mouros do Rif são súbditos do sultão de Marrocos), e aí encontra a oposição da Inglaterra, da França, da Itália, que têm todas três pretensões, por motivos de dominação estratégica no Mediterrâneo, a esse vasto e rico sultanato. A questão de Marrocos substituiu hoje na Europa, pelos seus perigos, a antiga e clássica questão do Oriente.

Lord Salisbury afirmava ainda há pouco que, se a paz do mundo viesse a ser quebrada, seria decerto por causa desse terrível Marrocos. E a Inglaterra já tem em Gibraltar, diante das costas da África, à cautela, uma grossa esquadra de couraçados. Assim a Espanha arrasa as suas finanças, e arrisca uma medonha guerra europeia. Mas que lhe importa? Foram mortos oficiais espanhóis, foi ultrajada a bandeira de Espanha – e ela vende as alfaias dos seus templos, e marcha sublimemente.

Eu, pelo menos, acho sublime este patriotismo veemente, todo este nobre arranque. Heróica Espanha! Deus lhe dê ventura! Ainda que os Mouros do Rif, com o seu piedoso amor pelo seu velho cemitério, não deixem de ser interessantes.

E assim, em pleno século XIX, temos de novo, como no Romancero, a cruz contra a crescente, e a Espanha na sua antiga e laboriosa ocupação de «matar los moros».

 

 

 

 

 

 


XII

 

O SENHOR BARTHOU — A ANTÍGONA DE SÓFOCLES — “LES ROIS” DE JULES LEMAITRE

 

Houve em França subitamente uma queda, ou antes, um desconjuntamento de ministério. Os ministros, que eram uns de substância radical e outros de substância conservadora, estavam mal grudados. O calor das primeiras discussões, na câmara nova, descolou estes pedaços heterogéneos de poder executivo. Imediatamente, porém, se manufacturou outro Governo. E a única feição desta crise, digna de ficar nas crónicas, foi o ter aparecido de repente, e por motivo dela, um homem de Plutarco.

Este homem é o Sr. Barthou.

É necessário reter este nome – Banhou – porque ele representa um justo. A Bíblia diria um «vaso de eleição»; mas esta imagem é arriscada e dá lugar a equívocos lamentáveis, quando se trata de homens e de coisas parlamentares.

Quem é o Sr. Banhou?

Um político e, portanto, um ambicioso. Além disso, um inteligente e ardente.

E que fez o Sr. Banhou?

O Sr. Banhou realizou um feito sem precedentes na história constitucional: convidado, nesta nova organização de ministério, para secretário de Estado das Colónias, recusou.

E recusou por um motivo que o eleva justamente a essas alturas morais em que Plutarco se começa a entusiasmar. O Sr. Banhou recusou, porque (segundo disse) «não estava habilitado, nem pelos seus estudos anteriores, nem pela experiência, a tomar conta dessas funções». Conhecem alguma resolução mais heróica? Eu não conheço. Um político de profissão, um ambicioso que se nega a entrar num ministério por não se considerar competente, nem teórica, nem experimentalmente, para gerir um certo ramo da administração – é verdadeiramente prodigioso! E nós todos os que nascemos sob o regime das canas constitucionais não podíamos realmente supor que existisse algures, nesta Europa política e parlamentar, um bacharel que sinceramente se julgasse inapto para governar, do fundo do seu gabinete, fumando a cigarette do poder, as colónias do seu país!

No antigo regímen de direito divino, frequentemente se viu ser chamado um cabeleireiro para salvar as finanças do reino. Mas nesses tempos deliciosos tudo dependia do bel-prazer de el-rei. As vezes o cabeleireiro, mostrando os seus pentes, confessava aterrado a sua incompetência. El-rei, porém, mandava – e o cabeleireiro, com as mãos ainda gordurentas das pomadas, tomava conta do tesouro real. Quando Filipe II de Espanha deu ao duque de Medina Sidónia o comando da Grande Armada, que partia a conquistar a Inglaterra – o pobre duque escreveu ao seu rei e senhor uma cana desolada, em que lhe dizia que estava velho e cheio de achaques, que enjoava horrivelmente no mar e que não sabia comandar uma frota!... Filipe II franziu o sobrolho e ordenou ao duque que embarcasse. O desgraçado lá embarcou, já enjoado – e todos sabem a boa conta que ele deu da Grande Armada. Para evitar esta deplorável confusão das profissões – se fez a revolução de 89. E dela surgiu então essa classe de políticos, possuidores de aptidões universais e de ciência universal. Todo aquele que, por gosto ou necessidade, se incorporava nessa classe, parecia receber logo do Espírito Santo o dom de tudo conhecer e de tudo poder. O médico largava as suas lancetas e ia, absolutamente seguro da própria capacidade, confeccionar códigos. O folhetinista arrojava a pena, empolgava a espada, e lá partia, com uma soberba confiança, para o Ministério da Guerra a reorganizar os exércitos. Nenhum jamais hesitara. E tal que duvidaria, por causa da sua inexperiência, aceitar a administração de uma horta de couves – estava pronto, soberbamente pronto, a dirigir um Ministério da Agricultura e Comércio.

Esta confiança dos políticos em si próprios terminava por se comunicar ao público. E todos nós, desde que Fulano era eleito deputado, ficávamos certos de que, tocado de uma luz divina, da língua de fogo, como os apóstolos, ele poderia, se não falar todos os idiomas, pelo menos dirigir, sob todas as formas, os grandes serviços públicos da sua terra, e indiferentemente, segundo as circunstâncias, salvar as finanças ou comandar as frotas.

A estranha confissão do Sr. Banhou vem desmanchar esta confortável confiança. O quê! Há pois políticos que não conhecem, nem por estudos anteriores, nem por experiência adquirida, os negócios coloniais? Diabo!, como tem sido então o mundo, até agora, governado? Será possível que tenhamos tido por ministros e governantes outros Barthous que, ao contrário deste, cuidadosamente esconderam a sua incompetência?

Não sei. Mas certamente a declaração do Sr. Banhou, singularmente honrosa para ele, é altamente nociva para a sua classe. Cria uma larga suspeita entre nós outros, os governados.

Se há um político a quem o Espírito Santo não concedeu o dom do universal saber – é bem possível que outros muitos tenham encontrado da pane do Espírito Santo a mesma resistência em lhes outorgar o dom divino. E já não podemos ver um bacharel subindo de cabeça alta e luneta faiscante os clássicos degraus do poder, sem murmurar dentro de nós mesmos, olhando de revés o galhardo moço na sua ascensão: Diabo!, será este maganão um Banhou – que se calou?»

 

Desinteressante pelo lado da política, Paris está, ao que parece, interessante pelo lado dos teatros. Para começar, temos Sófocles, no Teatro Francês, com a sua velha Antígona. Invejável destino o deste Sófocles! Há já mais de dois mil e trezentos anos que ele gozou o seu primeiro «sucesso», em Atenas, no dia em que Címon derrotava os Persas nas margens do Eurímedo – e aí o temos ainda, depois destes vinte e três séculos, fazendo derramar em Paris as mesmas lágrimas que fazia correr pelos belos olhos das atenienses, quando Antígona, cobrindo a face com o véu, marchava para a morte. Quantos impérios, quantas raças, quantas civilizações têm passado? Quando ele em Colona, em casa de seu pai, que era um simples fabricante de armas, desenrolava verso a verso, nas tabuinhas enceradas, à sombra de alguma oliveira, os queixumes de Édipo, Paris não era mais que uma escura floresta, onde de noite uivavam os lobos, vindo beber às lagoas. E no sítio dessa vetusta mata, convertida ela, por seu turno, numa Atenas, infinitamente mais complicada, todas as noites milhares de vozes trémulas de emoção continuam a gritar: «Bravo, Sófocles! E decerto devotos do seu génio iriam, como os soldados de Lisandro, coroar de flores o seu túmulo, se ainda fosse possível saber onde se encontra o seu túmulo. Dizem que era na Decélia – e que, quando já não existia lá o túmulo, nem mesmo já havia Decélia, ainda os pastores notavam que constantemente ali zumbiam abelhas em grandes enxames dourados. E que as abelhas, desde séculos, eram atraídas para aquela colina pela doçura e pelo aroma que exalavam os restos de Sófocles.

Esta Antígona que agora se representa no Teatro Francês, foi para Sófocles a peça mais rendosa – porque valeu ao poeta ser nomeado general ou estratego, como os Gregos diziam, numa expedição a Samos. Singulares direitos de autor! E singular povo que recompensava a beleza de uma tragédia como o comando de um esquadrão! Mas servir a cidade, ganhar a Atenas uma batalha, era, nesses tempos de civismo heróico, a mais esplêndida, a mais nobre das tarefas humanas – e não se podia dar melhor recompensa a um grande poeta do que fornecer-lhe a possibilidade de se tornar um grande cidadão. De resto, Sófocles era soldado – já se batera em Salamina, onde também combatera o velho Ésquilo.

Assim os dois trágicos concorreram pela «pena e pela espada» a assegurar o predomínio da civilização helénica e da civilização ocidental.

E não foi só como combatente que Sófocles cooperou em Salamina – mas como poeta: porque pela sua beleza e pelo seu génio lírico foi escolhido para corifeu dos coros de mancebos, que, com cantos e danças, celebraram durante três dias essa magnífica vitória, que nos salvou a todos nós, homens de raça ariana, de sermos ainda hoje orientais e talvez persas!

Pois a Antígona continua a ser rendosa. Nem Sófocles nem os seus herdeiros aproveitam dos cinco ou seis mil francos que ela lança todas as noites ao cofre do Teatro Francês. Mas não é menos rendoso para a sua glória imortal que, ao fim de vinte e três séculos, este dramaturgo de Atenas continue a enriquecer os outros.

Deixemos porém a Antígona e Sófocles – porque, das peças representadas em Paris, a que mais interessará decerto no Brasil é Os Reis (Les Rois), de Jules Lemaitre.

Este drama, tão esperado, tão louvado, começa com efeito por uma história da revolução do Brasil. Exactamente como lhes conto! Por uma história da revolução do Brasil – da outra, da antiga, da que derrubou o império.

Quando o pano se levanta, vemos diante de nós a sala do trono do palácio real da Alfania. A Alfania é um grande reino, uma monarquia absoluta, com trinta e oito milhões de vassalos – mas esta sala não apresenta mais luxo ou majestade que a da câmara municipal de uma vila democrática. A primeira impressão é que na Alfania as artes decorativas e sumptuárias estão em deplorável decadência – mas dentro em breve se descobre que as colgaduras de seda e brocado que deviam revestir esta sala real foram arrancadas das paredes para se fazerem com elas as toilettes de Madame Sara Bemhardt, que é a princesa real da Alfania.

Pela porta nobre desta sala desguarnecida entram dois senhores de casaca e calção de corte, com grã-cruzes que me pareceram ser da Ordem da Conceição. Um, o mais gordo, é o bibliotecário do rei de Alfania, Cristiano XVI. O outro, um moço louro e alegre, é o ministro dos Estados Unidos do Brasil. Exactamente como lhes conto, ministro do Brasil –que aqui na peça e na Alfania tem o nome de «República das Cordilheiras». O ministro, esse, dá pelo nome cavalheiresco e espanholesco de Alvarez! Muito jovialmente e não sem malícia, este ministro Alvarez começa a contar ao bibliotecário (de quem foi condiscípulo no Colégio Stanislas em Paris) as suas atribulações diplomáticas.

Há dois meses que ele foi nomeado ministro para Alfania, há dois meses que reside na corte de Alfania, e ainda não conseguiu que o velho rei Cristiano reconhecesse a República do Brasil! Bem compreensível, de resto, esta resistência de Cristiano XVI, que tem oitenta anos, é um autocrata de direito divino, vive no santo horror de todo o liberalismo e de toda a democracia, e não pode compreender que o povo da «Cordilheira» expulsasse um velho imperador tão magnânimo e tão paternal.

E todavia (como Alvarez explica, parte para o bibliotecário e parte para o público) nunca houvera no mundo uma revolução republicana mais repassada de bons sentimentos monárquicos.

O povo da «Cordilheira» não detestava, antes amava, o seu imperador. Mas quê! Esse imperador nunca residia no seu império – e constantemente percorria a Europa, cercado de eruditos, robustecendo a sua ciência das línguas mortas e lendo manuscritos no seio das academias. Ora um povo que não se ocupa de filologia –não gosta de ser governado por um filólogo. Sobretudo por um filólogo que parece preferir ao seu trono o seu banco do Instituto de França. O trono estava sempre vazio, a cobrir-se de pó – e o imperador sempre em França, no Instituto, a esmiuçar raízes hebraicas. Além disso aquele império da «Cordilheira» desmachava a harmonia republicana da América do Sul. O quê!, todos os países em redor com uma república – e só a «Cordilheira» sobrecarregada com uma monarquia e uma corte! Era discordante.

De sorte que o povo decidiu despedir o seu imperador. Mas este acto de bom senso político fora feito com toda a delicadeza, todo o respeito, toda a bonomia. A república surgiu uma madrugada serenamente e naturalmente, como o Sol. O Governo Provisório fretou logo um vapor (um vapor muito confortável, acrescenta Alvarez), meteu dentro o seu velho imperador com todas as cautelas, saudou e mandou largar para a Europa. Nem uma palavra, nem um gesto que revelassem azedume ou cólera nesta separação.

Pelo contrário! O povo tinha os olhos enevoados de lágrimas – o imperador também. E durante muito tempo um na praia, outro no convés do vapor confortável se acenaram em um longo, eterno adeus, ambos cheios de simpatia e cheios de saudade. E realmente não havia motivo para que o velho Cristiano XVI se recusasse a reconhecer uma república, uma república tão cortês, tão amável – e no fundo tão monárquica!

Assim narra o ministro Alvarez, no primeiro acto d’Os Reis, esta risonha revolução que fez o ministro. E com que ironia a conta! Não dou muito pela fidelidade deste funcionário. Mas apenas ele terminara a história da tão bela aventura em que se lançou o seu país – entra toda a corte da Alfania.

É que estamos num considerável momento histórico. O velho rei da Alfania vai abdicar. Não é só por velhice, por doença, por fadiga daquela coroa secular. É que já não compreende o seu povo – e receia que o seu povo já não compreenda o seu rei. Até aí ele fora simplesmente o pastor muito solícito de um rebanho muito manso. Agora, porém, sob o seu cajado, via, não carneiros, mas homens. E esta nova ciência de governar homens, e não carneiros, ele, rei de outras eras, não a possuía. Por isso passa o cajado a seu filho, o príncipe Hermann. Esse não só é novo pelo anos –mas é novo pelas ideias. Príncipe de direito divino, foi todavia educado noutros tempos, e por outros livros – e conhece os direitos humanos. Todas essas liberdades estranhas que o povo da Alfania reclama (liberdade de voto, de imprensa, de associação, de reunião, etc.) e que ao velho Cristiano parecem horrendos atentados contra a sua autoridade real são para este bom príncipe Hermann aspirações legítimas, que deverão ser satisfeitas com uma generosidade prudente. De sorte que, com este novo povo da Alfania, tão diferente do velho rebanho gótico, e já hoje cheio de teorias, e meio revolucionado, melhor se entenderá o príncipe novo do que o rei velho – e Cristiano XVI abdica.

Lá está ele na sua poltrona real, todo vestido de verde, com a sua branca cabeça pendida ao peso dos pressentimentos tristes – enquanto o chanceler do reino lê o rescrito que entrega a regência do reino da Alfania ao democrático e humanitário Hermann. Este pobre príncipe também não parece feliz, tomado já pelo terror das suas responsabilidades. Quem resplandece é a princesa, Madame Sara Bernhardt, uma arquiduquesa do seco e puro tipo feudal, sôfrega de majestade e poder. Mas, enfim, eis Hermann regente da Alfania, recebendo as homenagens dos grandes dignitários. E sabem qual é o seu primeiro acto de regente? O reconhecimento da República do Brasil! Exactamente como lhes conto. Quando o ministro do Brasil, por seu turno, o vai saudar e render-lhe preito, o príncipe Hermann diz com ar grave e decidido de quem faz a sua primeira afirmação democrática:

– Senhor Alvarez, apresente-me amanhã as suas credenciais!

Nem mais, nem menos. Está reconhecido o novo Brasil pelo novo rei da Alfania. O pobre Cristiano suspira – e Alvarez parece bem contente.

Obtido este esplêndido resultado, nada mais nos resta senão sair do teatro e da Alfania, esfregando as mãos. Mas não! Devemos ficar para ver no segundo acto uma situação verdadeiramente bela, de um patético novo, e mais comovente e profundo que os que resultam dos conflitos da paixão. E aqui uma verdadeira tragédia intelectual.

O pobre príncipe Hermann, mais que democrata, realmente socialista, já deu ao seu povo todas as liberdades políticas, e até um parlamento e uma carta constitucional.

O velho reino da Alfania está todo transformado e arranjado à moderna, no melhor estilo Luís Filipe. O primeiro-ministro é um jacobino que, como ele mesmo confessa, passou a sua mocidade a fazer revoltas contra o antigo Cristiano, e a ser preso como cabecilha irreconciliável. Mas o povo, todavia, permanece descontente. Há uma crise industrial em toda a Alfania, uma intensa miséria trazida pelas greves, e os operários da capital, obedecendo à velha ilusão de que o exercício de mais direitos políticos lhes trará mais salários, preparam uma tremenda manifestação nas ruas para reclamar o sufrágio universal. O príncipe Hermann permite alegremente a manifestação – porque (como ele diz) se o sufrágio universal não cura os males do proletariado, ao menos serve-lhe de consolação, põe-lhe na alma uma esperança; e o proletário sofre tanto, e está sob o peso de tão fatais injustiças, que por todos os moldes deve ser consolado e atendido nas suas exigências reais ou fictícias. O que o bom Hermann quereria (como ele também declara) era distribuir pelos pobres o supérfluo dos ricos – mas como essa liquidação social não é possível imediatamente, e como se não pode dar ao proletário todo o pão que ele necessita, dê-se-lhe ao menos todo o voto que ele reclame. E a manifestação dos vinte mil operários já vem na rua, imensa e clamorosa.

No palácio reina o terror.

Esses milhares de operários, soltos na capital, permanecerão ordeiros e disciplinados? Os próprios ministros, antigos jacobinos, duvidam – tanto mais quanto a manifestação é capitaneada por anarquistas que estavam presos, e a quem Hermann, apenas regente, logo amnistiou com entusiasmo. E com efeito não tardam as más notícias. Os manifestantes arvoraram a bandeira negra. Já aqui e além houve conflitos – e as tropas foram apedrejadas. E eis que, agora, a enorme massa popular avança sobre o palácio! Mas Hermann sorri tranquilamente. Que pode recear, ele, que ama tão ardente-mente os pobres, e que é na verdade o rei dos pobres? O povo avança sobre o palácio? Pois que se escancarem, bem largas, todas as grades dos jardins, que o povo entre, porque o seu rei ali está e lhe estende com amor os braços. E ele mesmo abre as janelas – por onde penetra um longo, sombrio e suspeito tumulto de brados.

Mas eis um ajudante-de-campo anunciando que a turba está em plena revolta, assalta os postos da guarda e começa a saquear as lojas. Que espanto para o pobre Hermann! O quê! Pois o povo não compreende que ele o ama, e que trabalha para a sua felicidade, e que vai ele próprio, socialista coroado, fazer lentamente, e de alto, a revolução social?

Não, o povo não parece compreender, porque rompeu justamente a apedrejar as janelas do palácio. Já uma pedra ia matando o principezinho real, uma pobre criança doente, nos braços da sua governanta. Hermann, aflito, corre a uma varanda, para gritar ao povo toda a verdade. Cai sobre ele uma saraivada de calhaus. E não são já somente calhaus – são tiros. Outro ajudante, esgazeado, corre a contar que a guarda real está sendo desarmada pelo povo. E a revolução! Que fazer? Madame Sara Bernhardt (que é aqui magnífica) arrasta-se aos pés de Hermann, suplicando-lhe que salve a coroa, que salve o reino! Ainda é tempo! As tropas, absolutamente fiéis, estão nas ruas, só esperam uma ordem para carregar, varrer a populaça!... Mas Hermann hesita, lívido numa agonia, gritando somente: «Oh!, os brutos, os brutos, que não compreendem!

Outro ajudante. A revolução triunfa! Vai acabar o reino secular da Alfania! Já o povo quebra as portas do palácio. Em pouco aquela rica cidade será saqueada por uma plebe feroz. E o general governador manda intimar o rei a que lhe diga claramente o que deve fazer, como general! Hermann, numa voz de moribundo, murmura:

– O seu dever de soldado!

E cai numa cadeira, aniquilado. Fora há um lento rufar de tambores. E o primeiro e lúgubre aviso para que a multidão disperse, antes que sobre ela rompa o fogo. Hermann ainda se precipita à janela, grita: «Não! Não!» É tarde. Uma descarga, outra descarga... E logo após o horrendo clamor dos gritos. São os que morrem!

Um silêncio sinistro. Está salva a ordem, com ela a coroa. Um oficial aparece, todo pálido, com o uniforme em desalinho. A princesa, que caiu de bruços para cima de uma mesa, ergue lentamente a face, pergunta por entre lágrimas:

– Mulheres mortas?

O oficial murmurou:

– Muitas.

– Criancinhas?

– Também...

Hermann, esse, ficou como petrificado, sem voz, sem vida, com os olhos cravados no tapete. É que está vendo nele, cobertos de sangue, os pedaços do seu belo sonho humanitário, que se despedaçou. Ele é o primeiro rei democrata da Alfania; e eis que, por muito amar o povo e o encher de grandes esperanças e o lançar largamente no caminho de todas as satisfações sociais, se vê forçado pela lógica terrível das coisas a erguer-se diante do seu povo como um repressor violento, e a metralhar o seu povo – o que nunca sucedera na velha Alfania quando o povo era um rebanho pastando mansamente a sua ração de erva, sob o cajado dos seus velhos reis. O seu socialismo naufragara em sangue.

A cena é verdadeiramente bela – e pela reaparição da fatalidade, esse grande factor de toda a tragédia, mas uma fatalidade nova, tirada das leis sociais, dá uma tão forte emoção como a podem dar Ésquilo ou Sófocles. Depois o drama acaba mediocremente num desastre de amor, que é ao mesmo tempo vulgar e complicado e cheio de ironia. E não voltamos a ver Alvarez.

Ligeiro e jovial, como me pareceu, estou receando que ele se dedicasse a galantear com as damas gentis da corte da Alfania, em lugar de compor e mandar ao seu governo um relatório instrutivo mostrando, pelo exemplo alfanico, o perigo que se corre em destruir, por amor das teorias, um regime cheio de paz, de ordem, de prosperidade e de crédito, para lançar a nação num caminho incerto e escuro onde ela vai cambaleando através do descrédito, da desordem, da ruína e da guerra.

Mas Alvarez não é homem para compreender as lições da história.

 

 

 

 

 


XIII

 

OS ANARQUISTAS — VAILLANT

 

Desde que nos não vimos, caros colegas e amigos, este velho mundo foi de novo abalado por uma bomba anarquista, a bomba de Vaillant.

Esta, porém, não causou os estragos em pedra e cal da bomba já clássica e quase simbólica de Ravachol: nem fez também a devastação mortal da bomba espanhola do teatro de Barcelona.

A bomba de Vaillant apenas deteriorou alguns veludos de poltronas e pedaços de estuque dourado; e o único ferimento perigoso que causou (e hoje curado) foi o de um primo intelectual do anarquismo, de um socialista neocristão, o doce abade Lemire. Mas espalhou um terror mais intenso que a de Ravachol ou a dos espanhóis, porque, pela primeira vez, a sociedade sentiu a temerosa dinamite arremessada contra um dos seus grandes órgãos vitais, contra o centro regulador das suas funções, contra o parlamento! As outras bombas só pretenderam destruir prédios ricos, como sendo as formas mais materialmente palpáveis do capitalismo – ou então burgueses abastados, no acto de gozarem um luxo que ofende especialmente a miséria, o da Opera. A bomba de Vaillant, porém, estoura com imprevista audácia sobre o seio augusto da representação nacional». Numa república parlamentar, o parlamento é o rei. Portanto Vaillant verdadeiramente cometeu um regicídio. E não há crime que impressione mais do que o regicídio, porque numa sociedade onde se não eliminou inteiramente a ideia de que o chefe é pai, ele participa da natureza do parricídio.

Decerto sabem pelo telégrafo. pelos jornais, a história do feito. No Palais Bourbon. estando a câmara em sessão e um deputado na tribuna, Vaillant atira a sua bomba, composta de pregos e pólvora verde, dentro de uma caixa de lata, que bate numa coluna, estala no ar antes de cair. Densa fumarada, gritos, terror, tumulto – e imediatamente, também, entre os deputados, aquela serenidade corajosa, ainda que um pouco afectada, que é uma tradição das assembleias francesas, acostumadas desde 1789 a ser invadidas, assaltadas e mesmo espingardeadas pelas plebes em revolta. Todas as portas do Palais Bourbon se fecham – e as salas de comissões são convertidas em ambulâncias, onde, sobre colchões trazidos à pressa de um quartel, os feridos recebem curativos sumários. Entre esses feridos há um, com pregos espetados nas pernas, que hesita ao dar o seu nome e o seu endereço, e que desperta portanto o faro embotado da polícia. E conduzido ao hospital por dois agentes que se estabelecem ao lado da cama, e começam com ele, amigavelmente, uma conversa hábil sobre anarquistas e fabricação de bombas. O ferido, por um desses impulsos de vaidade bem francesa, bem humana (e que Balzac se deleitaria em notar), alardeia logo o seu conhecimento íntimo com os chefes do anarquismo e com os processos empregados na composição das bombas. Os outros encolhem os ombros, negam a sua competência. E o homem, irritado com a contradição, termina por gritar:

– Pois bem, fui eu! Fui eu que deitei a bomba! Viva a anarquia! E agora não me macem mais que quero dormir.

Era Vaillant. E sabem, decerto, também, que foi condenado à morte – por um júri que se mostrou feroz, para que em Paris, e sobretudo no seu bairro, não o supusessem medroso. O que é ainda bem francês e bem humano.

 

A bomba de Vaillant e a sentença que condena Vaillant à morte, sendo dois actos no fundo idênticos porque ambos procuram aniquilar um princípio pela violência – são também dois actos absolutamente inúteis.

Num crime como o de Vaillant entram, em resumo, três impulsos ou motivos determinantes. Primeiramente há um desejo de vingança, todo pessoal, por misérias longamente padecidas na obscuridade e na indigência. Há depois o apetite mórbido da celebridade – como o prova o facto de Vaillant, nas vésperas de lançar a bomba, se ter fotografado, numa atitude arrogante, voltado para a posteridade. E enfim há o propósito de aplicar a doutrina da seita, que, tendo condenado a sociedade burguesa e capitalista como único impedimento à definitiva felicidade dos proletários, decretou a destruição dessa sociedade. Só este lado sectário do crime particularmente nos interessa relativamente à sua inutilidade. (Porque, pelos outros dois lados, o acto não foi inútil, visto ter Vaillant realizado a sua vingança e alcançado a sua celebridade.)

Aqui temos pois Vaillant, como anarquista, com a sua bomba na mão, preparado a demolir, para vantagem do proletariado oprimido, um bocado da sociedade que o oprime, alguns dos seus membros mais activos e potentes, e portanto, para ele, mais opressores. Lança a sua bomba – e suponhamos que, causando um máximo inverosímil de destruição, ela mata os seis ministros, aniquila os quinhentos deputados, e arrasa o edifício do parlamento! Que sucederia? Que vantagens traria este feito estupendo ao proletariado escravizado, e que prejuízos causaria à sociedade escravizadora? Primeiramente espalhar-se-ia por toda a Europa um terror, uma comoção maiores (porque hoje somos mais sensíveis, e o telégrafo e a reportagem dão um alimento mais pronto e mais abundante a essa sensibilidade) que a comoção e o terror causados pelo terramoto de Lisboa em 1755. Depois, imediatamente, o poder executivo, que não fora demolido, nomearia um ministério em substituição do ministério assassinado; e esse novo ministério, mesmo assumindo provisoriamente a ditadura, fixaria uma data para que a nação elegesse uma câmara nova em substituição da câmara desbaratada. Em seguida a França faria aos mortos funerais magníficos. Vaillant seria guilhotinado, visto não existir, mesmo para crime tão prodigioso, pena mais completa que a guilhotina.

O Governo decretaria terríveis leis de repressão e, com o apoio entusiasta do país todo, os anarquistas seriam perseguidos, em montarias, como lobos. O Estado reedificaria o edifício do Parlamento com condições mais seguras, e com linhas decerto mais belas. E finalmente de novo a câmara se reuniria no seu novo edifício, e o tempo, que é um grande apagador, iria apagando a impressão pungente da catástrofe, e os pobres sofreriam as mesmas necessidades, e Rothschild gozaria os mesmos milhões, e a sociedade burguesa e capitalista continuaria o seu movimento sem ter perdido um átomo do seu capital e do seu burguesismo. Do feito horrendo só restariam, pelos cemitérios do Père-Lachaise ou de Montmartre, algumas viúvas chorando. E o proletariado anarquista que teria conseguido? O ódio insaciável dos egoístas, a des-confiança dos próprios humanitários. E teria ainda logrado criar, para sua confusão e maior humilhação, ao lado da classe já desagradável dos mártires da liberdade, a classe, ainda mais desagradável, dos mártires da autoridade. De sorte que estas bombas arremessadas contra a sociedade, mesmo quando tivessem meios destrutivos que são hoje ainda inconseguíveis com a nossa limitada ciência, nunca passariam, relativamente à força e estabilidade dessa sociedade, de actos impotentes e tão inúteis como bolhas de sabão lançadas contra uma muralhas.

A isto replicam os anarquistas: «Assim é, mas nós não pretendemos destruir, desejamos só aterrar! Raciocínio vão. O que significa, neste caso, aterrar? Significa provar, pela experiência de uma pequena destruição, a possibilidade de uma destruição imensa. Significa inspirar à burguesia, demolindo-lhe um prédio e matando-lhe três membros, o terror de que lhe possa ser arrasado um bairro e desfeitos em estilhas três mil dos seus mais beneméritos. Mas está comprovado que, por maiores que sejam essas devastações pela dinamite, mesmo quando subitamente por uma delas pudesse desapa-recer todo o poder executivo e todo o poder legislativo, os milhões de burgueses que governam e que conservariam intactos o seu exército, o seu ouro, todas as suas forças, não consentiriam em abdicar de direitos que eles consideram como quase divinos e os únicos capazes de manter ordem e segurança nos agrupamentos humanos. E a eterna inutilidade do regicídio, que, matando o homem, não mata o sistema.

O niilismo russo experimentou essa inanidade da violência: um czar era assassinado, logo outro era coroado, que do próprio crime cometido sobre o pai parecia tirar um acréscimo de força e como uma nova sanção. Por isso Proudhon, que o anarquismo venera como um de seus santos-padres, pregou constantemente contra o tiranicídio, contra as tendências tiranicidas dos jacobinos do Segundo Império (hoje homens de poder e autoritários), como pregaria, se vivesse, contra a bomba dos anarquistas, por constituir uma outra forma de tirania e ser sobretudo um tão lamentável desperdício de energia heróica.

Mas, por outro lado, se a bomba de Vaillant, e de muitos Vaillants, é impotente para arrasar, ou mesmo aterrar eficazmente, a sociedade burguesa – a sentença que condena à morte os Vaillants é impotente para suprimir ou sequer assustar o anarquismo. Com estas sentenças, inspiradas por um dever e por uma esperança, o dever fica decerto cumprido porque o criminoso fica castigado; mas a esperança não se realiza, porque nem os anarquistas diminuem, nem se tomam mais raros ou mais tímidos os seus assaltos contra a sociedade. Pelo contrário! Está demonstrado, e pela própria polícia, que, desde as primeiras bombas e portanto desde ‘as primeiras repressões, o número dos anarquistas tem crescido na proporção formidável de um para mil; e enquanto que a primeira bomba foi lançada contra um simples prédio, a última é já arremessada contra o próprio parlamento em sessão, exercendo soberania. O que era um bando está organizado em seita.

E ódios dispersos, operando sem método e sem dogma, fundiram-se numa religião (ou, se quiserem, numa heresia) em que o ódio decerto é ainda um factor, mas em que é um factor maior o amor, o amor dos miseráveis e dos oprimidos, e que, portanto por este lado, tem uma grande força de propaganda e uma segura condição de vitalidade. Sobre esta seita, a que bem podemos chamar religiosa (ou, se querem, herética) as sentenças de morte não têm acção, porque não fazem mais que vibrar um golpe unicamente material sobre o que é imaterial, a crença, e assemelham-se portanto a cuti-ladas atiradas ao vento. A guilhotina decepa uma cabeça, mas não atinge a ideia que dentro residia. Durante um momento, decerto, à força de buscas, de prisões, que são o acompanhamento usual da sentença, a seita fica desorganizada, desconjuntada – mas para imediatamente se reorganizar além, mais numerosa, mais fanatizada, por isso que vem padecer uma perseguição. Tais sentenças não têm senão o efeito desastroso de criar mártires. Ora não há semente mais fecunda que uma gota de sangue de mártir, sobretudo quando cai num solo tão preparado para que ela frutifique, como é a alma especial dos humanitários que chegaram à exacerbação do humanitarismo, não por teoria, mas através de realidades dolorosas e de uma experiência constante das misérias servis. Pense-se o que será (quando um Vaillant é guilhotinado) uma reunião secreta de anarquista, dos verdadeiros, dos puros, desses milhares de operários de coração generoso e exaltado, para quem o anarquismo é a verdadeira redenção da humanidade, e que admiram no homem que se sacrificou por essa ideia santa um mártir do amor dos homens! O júri só viu o bruto que quis matar: eles só vêem o justo que quis libertar. Numa tal reunião, onde cada um traz a sua cólera e a sua maldição, é inevitável que alguma alma mais violenta se inflame, apeteça também o martírio, e corra dali a fabricar a nova bomba que, na sua ilusão quase mística, concorrera a remir o proletariado. Aqueles que não podem morrer pela causa querem ao menos sofrer de algum modo por ela, e pela sua justiça. Entre os anarquistas presos recentemente havia um que se fizera gerente responsável de um jornal anarquista só para ter a glória, o prazer espiritual de sofrer os meses de prisão em que os redactores incorressem pela violência das suas imprecações. Por isso o anarquismo, como a primitiva seita cristã, tem já os seus Actos dos Mártires. A vida e suplício de Ravachol andam escritos e são meditados como o mais puro exemplo da fé e da confissão anarquista. Todos os objectos que pertenceram a Ravachol ganharam o carácter augusto de relíquias. Há um cântico a Ravachol – a Ravachole. E cada coração anarquista lhe é um altar.

As perseguições, as execuções, em lugar de diminuírem a seita, só lhe comunicam uma veemência mais devota e portanto mais perigosa. E quando a sociedade mata os anarquistas – é a sociedade que fabrica as bombas.

A violência não cura – e o anarquismo é uma doença. O anarquismo é uma exacerbação mórbida do socialismo.

O germe e os desenvolvimentos desta doença não são difíceis de precisar. No Antigo Regime, o proletário, mantido em servidão dentro de uma organização social muito forte, colocara a sua esperança de felicidade, não já nesta vida que ele via irremediavelmente votada à pena, mas na outra vida, para além da campa, como lho recomendava a Igreja, sua mãe e sua educadora, dando-lhe como garantia a promessa de Jesus que reservava para os pobres o reino do céu.

Neste nosso século, porém, o proletário, doutrinado pela classe média que se tornara desde 1789, em substituição à Igreja, a sua nova educadora, começou a acreditar que, sendo homem, e tendo portanto todos os direitos do homem, poderia realizar a sua felicidade ainda em vida, neste mundo, e sob a garantia de leis. Para isso, segundo lhe afirmava a classe média, bastava que ele demolisse o velho edifício social, a monarquia e as instituições monárquicas, que constituíam o único obstáculo à «felicidade das massas». O proletário, convencido, saiu em tamancos dos seus velhos covis e começou a destruir. Fez três revoluções, ergueu barricadas inumeráveis, exilou reis, incendiou castelos, aboliu privilégios – e pediu em gritos, e com as armas na mão, todas as reformas e liberdades políticas que a classe média lhe indicava ao ouvido e que deveriam realizar essa felicidade terrestre tão largamente anunciada. Enfim, ao cabo de setenta anos de lutas, o povo, tendo arrasado o velho edifício da monarquia, construiu o novo edifício da república, cheio dos confortos e invenções novas da civilização política, a liberdade de reunião, de associação, de imprensa, e todas as outras entre as quais, bem agasalhado e bem provido, senhor seu, ele começaria enfim a conhecer a ventura de viver. Assim soberbamente instalado, esperou. Os anos passaram. A felicidade anunciada não veio. Apesar de todos aqueles confortos políticos (liberdade disto, liberdade daquilo), continuava, como no antigo edifício feudal, a ter fome e a ter frio. Quando chegava a neve, o direito de voto não o aquecia – e à hora de jantar, a liberdade de imprensa não lhe punha carne na panela vazia. Pelo contrário, reconheceu que, apesar do nome de «soberano» que lhe tinham dado, continuava na realidade a ser servo – e que o seu novo amo, o burguês capitalista, era muito mais exigente e duro que o antigo amo que ele guilhotinara, o fidalgo perdulário. Todas as suas barricadas, pois, e todas as suas revoluções tinham sido feitas em proveito da classe média, que lhe metera as armas na mão, o impelira ao assalto do Velho Regime! O seu sangrento esforço só servira para entregar o poder à classe média, que se aproveitava desse poder, não para dar ao proletário dentro do novo regime a sua legítima parte de bem-estar, mas para lhe explorar o trabalho como lhe explorava a cólera, e fazê-lo esfalfar para o seu enriquecimento material, como o fizera combater para o seu engrandecimento político!

A decepção foi tremenda – e tremendos o ódio, o desejo de vingança contra o traiçoeiro burguês. A parte mais inteligente, mais pacífica, ou mais legal do proletariado concebeu logo a necessidade de fazer uma outra e derradeira revolução, não contra a estrutura política da sociedade nova mas contra a sua organização económica, porque não era agora por causa do regime político que o proletariado sofria, mas por causa do regime económico, nascido das invenções mecânicas, das descobertas químicas, dos excessos de produção, da concorrência de todos os progressos do século, realizados só em benefício da classe média, e cada vez mais tendentes a separar as duas velhas «nações» de Aristóteles, os pobres e os ricos, atribuindo a uma todos os proveitos e impondo à outra todas as fadigas. Desde esse momento nascera, ou aparecera, organizado na república, o socialismo.

Uma outra parte, porém, do proletariado, a mais inculta ou a mais violenta, ou simplesmente a mais naturalista, concebeu uma outra ideia, e estranha. Para essa, a revolução económica pregada pelo socialismo e concebida ainda dentro de um funesto espírito jurídico é ineficaz, quase pueril, porque não atinge o mal! Associações, trade unions, barateamento do capital, seguros de velhice, reclamação para o domínio social dos serviços colectivos, regularização da concorrência, etc., etc., todas essas reformas revolucionárias tentadas pelo socialismo são tigelas de água morna deitadas sobre uma gangrena. São ainda subterfúgios traiçoeiros do horrendo burguês. O mal, o verdadeiro mal que é necessário extirpar, é a própria ideia de direito, de lei, de autoridade, de Estado.

O homem nasceu livre como nasceu bom, e próprio para ser feliz: e todavia por toda a parte está escravizado, e pena sob essa escravidão. Mas quem o escraviza, quem o faz penar? A sociedade, com toda a sorte de peias, de estorvos que se opõem à livre expansão da natureza humana, que é fundamentalmente e inatamente boa, e que não poderia nunca ser senão um radiante progresso do homem no sentido do bem. Esses empecilhos odiosos são as leis, a autoridade, o Estado. A própria moral é, como o direito, fictícia, e um outro jugo imposto ao homem. Tudo isso pois tem de ser destruído, para que a nova humanidade realize, na absoluta liberdade, a absoluta felicidade. Mas como a sociedade está irremediavelmente impregnada desses funestos conceitos, que são a sua alma, e o seu princípio de coesão, é inútil fazer revoluções para a transformar ou melhorar; porque, qualquer que seja a forma que se dê à sociedade, ela conterá sempre em si o vírus horrível – o princípio do direito, de Estado, de autoridade!

A única solução portanto é arrasar completamente a sociedade, matando e sepultando para sempre sob os seus destroços esses princípios fatais que até agora a têm governado, e depois recomeçar de novo a história desde Adão. E a sociedade tem de ser destruída, em bloco, toda ela, sem se empurrarem para um lado os culpados, e sem se resguardarem para outro lado os inocentes. No mundo actual não há inocentes. Decerto existe uma classe mais especial e odiosamente criminosa – a classe dos ricos, que foi quem concebeu, para seu proveito, e contra os pobres, esses estorvos morais e sociais que se chamam direito, autoridade, Estado, e que são a causa de todo o mal humano. Mas a sociedade inteira é solidária e responsável do mal. Todo aquele que pacificamente se aproveita da protecção das leis é tão culpado como o monstro que inventou as leis. E uma costureira que se priva de apanhar uma flor num jardim público é já uma cúmplice da sociedade, porque, pelo seu consentimento tácito, ela concorre a que se perpetue o despotismo do regulamento. E pois necessário destruir tudo – e atirar indiscriminadamente a bomba redentora contra as classes exploradoras, contra as classes voluntariamente exploradas, contra a cidade onde se realiza a exploração, contra as próprias crianças que nascem, porque elas já trazem em si o vírus da submissão explorável.

Tal é em resumo, muito em resumo, a teoria do anarquismo.

Basta que ela seja enunciada para que se lhe reconheçam logo todos os sintomas de uma alucinação mórbida. Não há nela proposição que não seja quimérica. Uma só é exacta, aquela pela qual o anarquismo se prende ao socialismo, e que estabelece, com razão, que a presente organização social, em que uma classe possui todos os gozos e outra sofre todas as misérias, é iníqua.

Partindo do facto desta grande e atroz injustiça, o anarquista começa, logo que dele se afasta, para lhe procurar a causa e a cura, a delirar. Delira quando, ao procurar a causa do mal, a encontra no princípio do direito: e delira ainda mais quando, ao procurar a cura do mal, a entrevê ou, antes, claramente a vê, na destruição da humanidade pela dinamite. O anarquista é pois, no fundo, um socialista que caminhou seguramente, por um caminho racionável enquanto foi, como socialista, acusando a organização da sociedade – mas que depois, ou impaciente desse lento caminho jurídico, ou cedendo aos impulsos de uma natureza desequilibrada, deu um grande salto para fora da realidade, rolou no absurdo e, cabriolando através de uma metafísica insensata, veio cair miseravelmente em práticas de uma ferocidade selvagem.

Há pois razão para dizer que o anarquismo é uma doença, uma exacerbação mórbida do socialismo.

Mas como é que esta seita de doentes, tão disparatada na sua doutrina e tão impotente nos seus meios de acção (o que obsta sempre à eficácia de qualquer propaganda), se mantém e alastra na proporção de um para mil? O anarquismo decerto se desenvolve, como todas as epidemias, por ter achado em tomo uma atmosfera propícia e mesmo simpática. A verdade é que toda a sociedade que eles desejam arrasar é tacitamente cúmplice dos anarquistas.

Esta cumplicidade, que mal percebemos, mas que é real e activa, tem dois motivos: um extremamente nobre e honroso, que é a nossa filantropia, a nossa crescente piedade pelos que sofrem, e outro, extremamente baixo e vergonhoso, que é o nosso doentio entusiasmo por tudo quanto é extravagante, monstruoso, histérico, fora da calma razão e do equilíbrio da vida. No anarquista nós vemos dois homens, com quem secretamente e sinceramente simpatizamos: um é o desgraçado, que padeceu frio e fome; outro é o alucinado, que se ergue da sombra, com a sua bomba na mão, para fazer de todo este mundo, de todas as suas glórias e de todas as suas riquezas, um montão de negros destroços sem forma e sem nome! E tão pervertidos estamos que eu não sei real-mente por qual deste dois homens nos interessamos mais –se por aquele que sensibiliza o nosso coração, se por aquele que excita a nossa imaginação. Francamente, qual nos emociona mais – o infeliz ou o monstro? Desconfio que é o monstro.

Em todo o caso, nós estamos tacitamente, pelo coração e pela imaginação, em simpatia com o anarquista. E quase se pode dizer que, exceptuando a porção mais egoísta e espessa da burguesia, e alguns homens de Estado a quem por profissão são vedadas a sensibilidade e a fantasia, todas as classes mundanas, intelectuais, artísticas, ociosas, se estão abandonando com voluptuosidade às emoções novas do anarquismo. Desde já existe, e muito contagioso, o diletantismo anarquista. Duquesas moças, cobertas de diamantes, condenam a má organização da sociedade, comendo codornizes trufadas em pratos de Sèvres. Nos cenáculos decadistas e simbolistas, a destruição das instituições pela dinamite aparece como uma catástrofe cheia de grandeza, de uma poesia áspera e rara, e quase necessária para que o século finde com originalidade. E nada caracteriza mais estes estados de espírito, onde alguma sinceridade se mistura a muita afectação, do que a frase já histórica do poeta Tailhade. Ao saber, em uma cervejaria literária, que Vaillant acabava de atirar a sua bomba na câmara dos deputados, este simbolista exclama languidamente e quase em êxtase:

– Já vai pois desabando o velho mundo!... O gesto de Vaillant é belo!

«O gesto é belo! «Todo Paris repetiu, com mal escondida admiração, esta frase que revelava aos profanos a beleza estética do crime anarquista. «O gesto é belo!» E muito honesto moço, incapaz de pisar voluntariamente o pé do seu semelhante, reconheceu, sentiu a beleza do gesto de Vaillant – a beleza daquele braço magro que se ergue lentamente, solenemente, e deixa cair a morte sobre um mundo condenado. Os anarquistas, eles próprios, já falam na beleza do seu gesto. Numa sociedade tão culta como a nossa, e tão saturada de arte, uma revolta social deveria necessariamente ter, além da justiça, a elegância plástica, a graça majestosa mesmo no seu furor. O anarquismo já se sentia justo. Os poetas mais entendidos em harmonia e ritmo acabam de lhe assegurar que ele é também esteticamente belo. Mas é sobretudo na imprensa que o anarquismo encontra um mais vivo estímulo ao seu desenvolvimento. Todos os jornais de Paris, quer sejam ferozmente hostis aos anarquistas, quer nutram por eles uma mal disfarçada benevolência, são unânimes num ponto – em os cercar da mais pródiga e ressoante celebridade. Um general vitorioso, um grande homem de Estado, um poeta como Hugo, um sábio como Pasteur, nunca tiveram na imprensa de Paris um reclamo tão minucioso como tem qualquer aprendiz de anarquista, que atire contra um velho muro uma bombazinha tímida.

Se é anarquista, se lançou a bomba – é dele a fama universal, que nem sempre conseguem os santos e os génios.

Mal se pode imaginar a que excessos se abandonou a reportagem de Paris a respeito de Vaillant. Os menores actos da sua vida, a gola de astracã do seu casaco, o seu modo de enrolar o cigarro, o que comeu, o que disse, o sobrolho que franziu – tudo foi miudamente e clamorosamente contado ao mundo com um calor em que a própria indignação tinha não sei quê de laudativa. De sorte que hoje em Paris, para se ter uma verdadeira celebridade, é melhor atirar uma bomba a qualquer corpo do Estado do que escrever a Lenda dos Séculos.

Assim fanaticamente convencido da justiça superior da sua ideia e tornado mais fanaticamente desesperado pelas brutais leis de excepção que contra ele decreta o Estado; cercado das simpatias dos humanitários; declarado esteticamente belo pelos poetas; apreciado como uma novidade picante pelo diletantismo mundano e magnificamente popularizado pela imprensa – como não há-de o anarquismo alastrar nessa proporção tenebrosa de um para mil?

Para que não crescesse, como planta bem regada, e ao contrário se estiolasse, seria necessário que ele próprio se persuadisse, se não já da falsidade da sua ideia, ao menos da inutilidade das suas práticas; que o Estado não suscitasse contra ele leis de excepção, odiosas e intoleráveis ao espírito de equidade; que os humanitários o reprovassem pela sua indiscriminada condenação de inocentes e culpados; que os poetas e os artistas descobrissem que o gesto é meramente bestial; que o diletantismo se desinteressasse dele como de um banal partido político; e que a imprensa o envolvesse em silêncio regelador.

Então sim! Talvez eliminadas estas condições que a favorecem, a febre que produz o anarquismo se calmasse, e o anarquista, restituído à saúde intelectual, reentrasse no largo e fecundo partido socialista, de que ele se separara em um momento de delírio.

Assim possa ser. As guerras servis (e o anarquismo é uma guerra servil) nunca conseguiram senão desenvolver nas classes opressoras os instintos de tirania e retardar funestamente a emancipação dos servos. Cada bomba anarquista, com efeito, só adia, e por muitos anos, a emancipação definitiva do trabalhador. Além disso, os anarquistas que ate agora têm lançado a bomba não são puros; têm todos no seu passado um crime, e um crime feio, de malfeitor. De sorte que não se sabe bem se a bomba é neles um primeiro acto de justiça, se um derradeiro acto de perversidade. Para que a bomba pudesse ter uma alta significação social, seria necessário que fosse lançada por um justo, ou por um santo. Até que surja esse santo para santificar o anarquismo, o melhor que se pode dizer dele, quando se não seja um capitalista apavorado e enfurecido pelo pavor – é que o anarquismo é uma epidemia moral e intelectual.

Ora, o dever da sociedade, perante uma epidemia, é circunscrevê-la, isolá-la – não criar em torno dela, por curiosidade depravada de um mal original e raro, uma vaga atmosfera de simpatia, de admirações literárias, de piedades estéticas e de delicioso terror que goza à novidade do seu arrepio.

Toda esta larga aragem de favor é um crime – porque, animando indirectamente a obra abominável do anarquismo, retarda directamente a obra útil do socialismo, e concorre para que se prolongue, mais revigorada pela reacção, esta ordem social, que é tão cheia de desordem.

Mas de mais falámos de bombas! Bem vos basta, caros colegas e amigos, as que aí vos caem em casa (e que decerto também não compreendeis bem), sem terdes ainda de vos preocupar, por dever crítico, daquelas que aqui estouram sobre o nosso Velho Mundo. Todas estas bombas, com efeito, são bem difíceis de explicar, de deslindar... Rebentam, matam, há mulheres que choram e a desordem social cresce. Todavia elas são arremessadas com convicção e por um amor ardente do bem público. Enfim, o que podemos afirmar sinceramente é que – cá e lá más bombas há.

 

 

 

 

 


XIV

 

OUTRA BOMBA ANARQUISTA — O SR. BRUNETIÈRE E A IMPRENSA

 

As bombas anarquistas (porque tivemos outra, a bomba de Henry, lançada no Café Terminus e que feriu trinta pessoas) vão entrando lentamente na classe dos acidentes naturais, onde tomam um modesto lugar, logo depois das inundações e dos incêndios. Evidentemente o primeiro rio que alagou os primeiros campos cultivados, ou o primeiro fogo que rebentou na primeira cidade edificada, encheu os homens de um terror tanto mais desordenado quanto por trás dessa rebelião de elementos eles viam a cólera de um Deus ofendido. Cada várzea inundada, cada cabana queimada, dava assim motivos a longas cerimónias expiatórias, à invenção de novas fórmulas litúrgicas, a um desenvolvimento excessivo da autoridade sacerdotal, e mesmo a especulações lírico-metafísicas dos vates, que eram então os filósofos que tudo explicavam. Depois, quando se observou que estas violências da água e do lume ocorriam tão regularmente como as estações, e que cada Inverno os vales se submergiam, e cada Verão ardiam as choças de madeira e colmo, não houve mais coração que palpitasse de pavor místico. Mesmo acreditando sempre que, através de tais desastres, se manifestava o descontentamento divino, foi a autoridade civil e não já à casta sacerdotal que se pediram medidas preventivas ou salvadoras. E nem se lhe conferiram poderes novos e excepcionais, na certeza que, para conter a água e apagar o fogo, bastaria apenas alguma vigilância e saber técnico da administração urbana e rural.

Com efeito há já alguns milhares de anos que os rios devastam searas e o lume devora prédios, sem que por isso a Igreja ou o Estado se comovam ou tremam pela sua estabilidade.

É exactamente o que vai sucedendo com os anarquistas. Às primeiras bombas houve um tumultuoso tenor, como perante uma estranha e demoníaca demência que ameaçava a velha estrutura social. Cada explosão foi motivo para que se promulgassem leis de excepção, para que se reforçasse temerosamente o braço penal dos governos, para que os filósofos formulassem complicadas receitas sociológicas, e mesmo para que certos espíritos mais impressionáveis suspirassem pela intervenção divina de um messias, como único capaz de pacificar os homens. Depois, quando se ouviu cada semana estalar uma bomba, e sem destruir mais propriedades ou vidas do que certos desabamentos de terrenos ou descarrilamentos de comboios, o medo fantasmagórico de uma catástrofe social imediatamente findou: o hábito embotara a emoção, e estas ex-plosões revolucionárias começaram a ser equiparadas às que fatalmente e inevitavelmente se produzem dentro de uma civilização industrial e mecânica, as do gás, das caldeiras de vapor, das peças a bordo dos couraçados e do grisu no fundo das minas. Contra elas já não parece necessário improvisar códigos mais repressivos, nem invocar a interferência messiânica. E a opinião traquilizada só reclama, para domar a bomba, essas medidas preventivas que na indústria se esperam da prudência técnica dos contramestres e na ordem civil da vigilância profissional dos comissários de polícia.

É neste espírito que a polícia em Paris está procedendo à prisão sistemática de todos os anarquistas.

Cada madrugada se faz através da cidade uma colheita de sectários. Ontem quinze, hoje vinte... Os jornais apenas publicam, sem comentários, a lista seca dos nomes. Alguns destes homens têm mulher, têm filhos, a quem o pão vai faltar. Mas desses detalhes mínimos, neste momento de saneação pública, não cura o pretor. A coisa essencial é que não reste, livre nas ruas de Paris, um proletário capaz de misturar um pouco de glicerina a um pouco de ácido nítrico. Nem é mesmo necessário que o anarquista seja militante. Os simples teóricos, que professam e metodizam o anarquismo no livro ou no jornal, são igualmente levados na vasta monteria policial. De resto, o que o Governo pretende, com esta encarceração geral de anarquistas, é conhecê-los, fotografá-los, estudá-los, surpreender as suas ligações e filiações, e formar assim um registo muito minucioso e muito documentado de toda a seita.

Findo este vasto inquérito prático, todos serão soltos, como se soltam as manadas dos bois nas lezírias, depois de bem numerados e bem marcados. Indubitavelmente é uma dura lei – mas vem de uma dura necessidade. Era realmente intolerável que, numa cidade do século XIX, um pacífico homem não pudesse entrar num café, ou num teatro, com a mulher e o filho, sem correr o risco de voltarem de lá, ele e os seus, crivados de pontas de pregos, em nome de uma heresia digna do século III. Porque o anarquista é com efeito um socialista que se tomou herético. Este nosso anarquista está para o socialismo, como estavam para o cristianismo nascente os montanhistas, e os valentinistas, e os carpocráticos que pregavam o amor livre, e os circoncélios que pregavam a destruição universal, e tantos outros, extravagantes e terríveis. Todos esses heréticos, tortulhos venenosos da árvore evangélica, não fizeram senão deturpar e desacreditar a pureza da doutrina, retardar-lhe a obra regeneradora e atrair-lhe perseguições sangrentas. Eram por isso ainda mais odiados pelos bispos cristãos que pelos pontífices pagãos. E quando sobre eles caía a lei do império, com ferocidade, como sobre inimigos do género humano, havia tanto regozijo do lado de Jesus, como do lado de Júpiter.

Igual regozijo acompanha esta perseguição, que nada tem, louvado seja o nosso tempo, da crueldade da de Décio ou de Diocleciano. Mesmo os que lamentam que ela espalhe tanta miséria entre mulheres e crianças abandonadas, desejam veementemente que a seita seja, se não esmagada, ao menos inutilizada. A obra do Estado seria pois perfeita se, inspirada simultaneamente pelo sentimento de ordem e de humanidade, ele, pelo lado da polícia, prendesse os anarquistas, e, pelo lado da assistência pública, lhes socorresse as famílias que ficam sem o pão do salário perdido.

Mas infelizmente, entre tantos órgãos de que está provido o Estado, não há nenhum que tenha a forma, mesmo vaga, de um coração humano.

 

Não sei se conhecem o Sr. Brunetière. O Sr. Brunetière e hoje nas letras francesas um grande personagem – quase devia dizer, dada a qualidade do seu espírito e das suas funções, um grande mandarim. Quando o velho Buloz foi exilado da Revista dos Dois Mundos, por ter amado fora da Revista, e com uma espécie de amor que a Revista não permite, a assembleia de accionistas dessa venerável publicação nomeou para o cargo de director o Sr. Brunetière. Além disso, o Sr. Brunetière era já o director, se não espiritual, ao menos intelectual, das damas letradas do Faubourg St. Germain, tendo portanto a gloriosa missão de ensinar o que, em matéria de literatura, uma duquesa deve aceitar ou deve rejeitar para conseguir um lugar no reino dos bons espíritos. Como consequência destes dois nobres empregos, o de director da Revista e confessor literário das almas aristocráticas, o Sr. Brunetière foi por influência das senhoras (e entre as senhoras incluo a Revista) eleito membro da Academia Francesa. E finalmente, para consagrar a sua reputação, a mocidade das escolas apupou furiosamente o Sr. Brunetière, e, assim como a democracia revoltada outrora queimava o trono dos tiranos (não sei se aí no Rio, na revolução de Novembro, se omitiu esta formalidade clássica), quebrou a poltrona professoral, onde ele, na Sorbona, pregava a boa doutrina, desmantelava o naturalismo e explicava às suas devotas a maneira mais delicada de saborear Bossuet. Eu conto estes guinchos e furores da mocidade como um dos elementos da sua glória, se não já do seu valor, porque desde que as ideias gerais recomeçaram a apaixonar os espíritos moços e que nos pátios das universidades se trocam outra vez bengaladas por causa de teorias, um professor só poderá ser considerado suficientemente original, vivo, forte, fecundo, quando o seu ensino tenha provocado rancores ou entusiasmos.

Os antigos portugueses tinham, da nossa história trágico-marítima, tirado este provérbio: «Só a grande nau, grande tormenta.» E por isso significavam implicitamente um certo desdém por toda a barcaça chata e nua que passava despercebida do vento e da vaga. O Quartier Latin está criando um provérbio paralelo: «Só a grande professor, grande berreiro.» Quando o professor é chato ou oco, em tomo dele ou do seu ensino há indiferença e calmaria. O escândalo, ao contrário, prova um mestre.

Ora, de um homem por tantos motivos importante como o Sr. Brunetière, todas as palavras são importantes. Por isso, a feroz verrina que ele, no seu discurso de recepção na Academia Francesa, lançou contra os jornais e os jornalistas mereceu mais atenção do que geralmente merecem estas grande e usuais imprecações contra a imprensa, as mulheres, o vinho e outros males.

Eu conheço imperfeitamente o Sr. Brunetière, que é um crítico de profissão. Se nesta nossa idade de colossal e quase abusiva produção (só a França publica por ano doze mil volumes!) já não há tempo para ler os autores –quanto menos os comentadores! O Sr. Brunetière ensina agora na Sorbona a compreender e amar Bossuet. Mas quem teve o vagar ditoso de ler primeiramente Bossuet, se é que o não leu no começo da sua educação clássica? Eu, na minha mocidade, folheei os Sermões e as Orações Fúnebres: mas não cheguei a penetrar, como devia, no Discurso sobre a História Universal. E desde então, desgraçadamente, não logrei ainda um momento para absorver a teoria do grande bispo sobre a série dos tempos, das religiões e dos impérios. Quando muito conheço a página clássica, tão majestosa e rica, em que ele pinta a omnipotência de Augusto e a beleza e recolhimento da paz romana, nas vésperas de nascer Jesus. É pouco. Mas se tão pouco conheço Bossuet, não me deve ser censurado o ignorar quase inteiramente o seu apologista.

Pelo que tenho ouvido, porém, parece-me que o Sr. Brunetière está para as letras como um botânico está para as flores. Percorrendo os canteiros de um jardim, o botânico conhece cada flor, e o seu nome latino, e o número das suas pétalas, e todas as suas variedades, e o largo género em que se filia, e a zona e o terreno que melhor convém ao seu desenvolvimento, etc., etc. Há só na flor uma coisa sobre que o juízo do velho botânico sempre claudica, ou porque a desdenhe ou porque a não sinta – e é beleza especial da flor, que está talvez na cor, nas dobras das folhas, na maneira por que se mantém na haste, em mil particularidades indefinidas nesse não sei quê que lhe habita as formas e que faz que diante dela paremos, e a contemplemos, e a apeteçamos, e a colhamos. O Sr. Brunetière é este sapiente botânico entre flores. Que lhe dêem um poeta, e ele imediatamente o classificará, lhe colocará um rótulo nas costas, mostrará o género que cultivou, desfiará as qualidades que revelou nesse género, exporá as influências de raça, e de meio, e de momento histórico que concorreram para o desenvolvimento dessas qualidades, etc., etc. Será superiormente erudito – e só lhe faltará o sentir, pelo gosto, esse não sei quê de íntimo que constitui a beleza ou a grandeza do poeta. O Sr. Brunetière é um botânico das letras. E de resto esta comparação não lhe poderia desagradar, porque ele é um dos que recentemente, ao que parece, mais se têm aplicado a introduzir nas ciências morais o método das ciências naturais, e a considerar as obras humanas, e sobretudo as obras de literatura e de arte, como produtos de que a critica e a estética só têm a verificar os caracteres e a esmiuçar as causas. Isto desde logo o torna para mim um crítico extremamente respeitável e pouco simpático. Ignorante como sou, eu gosto de um critico que me possa explicar as causas e os caracteres da obra de Musset, mas que sinta palpitar o coração quando lê as Noites e a Carta a Lamartine, ou porque se lhe comunicou a emoção do ardente lírico, ou porque se enlevou na contemplação da beleza realizada. Sem a faculdade emotiva e o gosto, o crítico pertence àquela espécie de esmiuçadores de causas e arrumadores de géneros que Carlisle chamava os ressequidos.

Além disso, segundo ouço, o Sr. Brunetière é um ríspido, um inflexível, todo ele dogmatismo e intolerância, sem uma gota, para o amolecer e lubrificar, daquele leite da humana bondade de que fala outro inglês, o muito adorável Dickens. E esta outra qualidade do Sr. Brunetière aumenta a minha antipatia, toda de instinto, para com este homem de talento e de bem. Não posso por isso ser considerado suspeito, no aprovar, como aprovo, todas as acusações que, no seu discurso de recepção na Academia, ele desenrolou contra os jornais, contra os jornalistas e, portanto, contra mim, que sou, a meu modo, e de um modo bem imperfeito, uma espécie de jornalista.

 

O Sr. Brunetière censura à imprensa a sua superficialidade, a sua bisbilhotice e escandaloso abuso de reportagem e o seu sectarismo. Ser superficial, bisbilhoteiro e sectário é ter realmente uma respeitável soma de defeitos.

Uma só basta para desacreditar em matéria intelectual ou social. Todos juntos pedem as Gemónias. E todavia a imprensa, que os possui todos, está num trono e resplandece. Mas Nero e Vitélio governaram o mundo – e a sua triunfal autoridade não lhes tira a indecente monstruosidade!

A imprensa, que também hoje governa o mundo, não é, Deus louvado, nem indecente, nem monstruosa. Todos esses vícios, porém, que lhe atribui o Sr. Brunetière, é certo que ela os pratica, em proporções diversas, segundo o seu temperamento de raça e as suas condições funcionais. O Times e outros jornais ingleses, riquíssimos e possuindo toda uma coorte de especialistas, pronta a tratar todas as matérias, desde as de culinária até as de metafísica, apresentam geralmente, sobre as questões ocorrentes, estudos sólidos em que está resumido muito saber e muita experiência. Por outro lado, na Alemanha, país das ideias gerais, e que só se interessa por ideias gerais, e em Portugal e na Espanha, onde todos herdámos dos nossos avós, Godos e Árabes, o respeito quase sacrossanto da vida íntima – os jornais não são bisbilhoteiros, nem abusam indiscretamente da reportagem miúda.

Em média, porém, afoitamente se pode afirmar que na Europa e na América a imprensa é superficial, linguareira e sectária. Ora, estes defeitos não são, a meu ver, somente perniciosos por enfraquecerem, como pretende o Sr. Brunetière, a autoridade da imprensa e fazer lamentar os tempos sólidos de Armand Carrel, em que se punha na composição de um artigo mais cuidados do que hoje se põe na preparação de uma enciclopédia. Tais defeitos são sobretudo nocivos porque a imprensa os comunica ao público, com quem esta em permanente comunhão, e assim, em lugar de educadora, se tem lentamente tornado uma viciadora do espírito e dos costumes.

Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso tempo o funesto e já irradicável hábito dos juízos ligeiros. Em todos os séculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como no nosso essa improvisação impudente se tornou a operação corrente e natural do entendimento. Com excepção de alguns filósofos mais metódicos, ou de alguns devotos mais escrupulosos, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente do penoso trabalho de reflectir. É com impressões que formamos as nossas conclusões. Para louvar ou condenar em política o facto mais complexo, e onde entrem factores múltiplos que mais necessitem análise, nós largamente nos contentamos com um boato escutado a uma esquina. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo ondeante do charuto. O método do velho Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adoptamos, com magnífica inconsciência, para decidir sobre os homens e sobre as obras. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplêndida facilidade declaramos, ou se trate de um estadista, ou se trate de um artista: «E uma besta! E um maroto!» Para exclamar: «E um génio!» ou «é um santo!», oferecemos naturalmente mais resistência. Mas ainda assim, quando uma boa digestão e um fígado livre nos inclinam à benevolência risonha, também concedemos prontamente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa de louros ou a auréola de luz.

Nestes tempos de borbulhante publicidade, em que não ladra um cão em Constantinopla sem que nós o sintamos, e em que todo o homem tem o seu momento de evidência, nós passamos o nosso bendito dia a promulgar sentenças e a lavrar diplomas. Não há facto, acção individual ou colectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos, apenas elas nos sejam apresentadas, a formular muito de alto uma opinião catedrática.

E a opinião tem sempre e apenas por base aquele pequenino lado do facto, da acção, do homem, da obra, que aparece, num relance, ante os nossos olhos fugidios e apressados. Por um gesto julgamos um carácter, por um carácter avaliamos um povo. A antiga anedota daquele inglês funambulesco que, desembarcando em Calais de madrugada, e avistando um coxo no cais, escreve no seu livro de notas: «A França é habitada por homens coxos», ilustra e simboliza ainda hoje a formação das nossas opiniões.

E quem nos tem enraizado estes hábitos levianos? O jornal, que oferece cada manhã, desde a crónica até aos anúncios, uma massa espumante de juízos ligeiros, improvisados na véspera, das onze à meia-noite, entre o silvar do gás e o fervilhar das chalaças, por excelentes rapazes que entram à pressa na redacção, agarram numa tira de papel e, sem tirar mesmo o chapéu, decidem com dois rabiscos da pena, indi-ferentemente sobre uma crise do Estado, ou sobre o mérito de um vaudeville. Como exemplo picante eu poderia citar o modo por que a imprensa de Paris tem comentado a revolta do Brasil e julgado o povo do Brasil, sobre vagos bocados de telegramas truncados – se não receasse entrar em um caminho escorregadio, onde me arriscaria a esbarrar com os nossos queridos colegas do Pays e do Temps, armados da sua férula.

Lembrarei apenas que, ainda não há uma semana, o articulista encarregado no Figaro de criticar cada dia os acontecimentos políticos da Europa, e que, portanto, deve conhecer a Europa, estudando a situação económica de Portugal, afirmava, e com uma soberba certeza, que «em Lisboa os filhos das mais ilustres famílias da aristocracia se empregavam como carregadores da alfândega, e ao fim de cada mês mandavam receber as soldadas pelos seus lacaios»! Estes herdeiros das grandes casas de Portugal, carregando pipas de azeite e fardos de café no cais da alfândega, e conservando todavia criados de farda para lhes ir receber o salário – formam um quadro simplesmente portentoso. Pois quem o traça é o Figaro, um dos mais considerados jornais de Paris, e um dos que tem um pessoal mais largo e mais remunerado. E Lisboa todavia está a dois dias e meio de Paris! Mas Londres dista apenas sete horas e meia de Paris –e constantemente os jornais franceses escrevem sobre a Inglaterra, e as coisas inglesas, com a mesma segura ciência com que o Figaro descrevia as ocupações da nobreza de Portugal.

Ora, dizia não sei que sentencioso crítico espanhol que, quando se lê constantemente Séneca, ganha-se os hábitos e o espírito de Séneca. E quando se tem como usual alimento do espírito o Figaro e consortes (e é destas magras viandas que hoje se nutre a memória dos civilizados), facilmente se toma o hábito de ir espalhando estouvadamente, sobre os homens e sobre os factos, juízo efémeros e ocos. E eu próprio, por humildade, para não ostentar uma orgulhosa abstenção do pecado comum, comecei por dar aqui, sobre o Sr. Brunetière, um juízo ligeiro, nascido de impressões fugidias.

 

A outra acusação feita à imprensa pelo douto académico éa da bisbilhotice, da indiscreta e desordenada reportagem.

Há aqui alguma ingratidão da parte do Sr. Brunetière. Para a crítica, sobretudo como ele a compreende e exerce, a reportagem é a grande abastecedora de documentos. Quanto mais detalhes a indiscrição dos repórteres revelar sobre a pessoa do Sr. Zola, e os seus hábitos, e o seu regime culinário, e a sua roupa branca, tantos mais elementos positivos terão os Brunetière do futuro para reconstruir com segurança a personalidade do autor de Germinal, e, através dela, explicar a obra. Não é indiferente saber como era feito o nariz de Cleópatra, pois que do feitio desse nariz dependeram, durante um momento, como muito bem diz Pascal, os destinos do universo. Mas, como a reportagem hoje se exerce, não só sobre os que influem nos negócios do mundo ou nas direcções do pensamento, mas sobre toda a «sorte e condições de gente», desde as cocotes até aos jóqueis e desde os dândis até aos assassinos, sucede que esta indiscriminada publicidade, sem concorrer em nada para a documentação da história, concorre, e prodigiosamente, para o desenvolvimento da vaidade.

O jornal é hoje, com efeito, o grande assoprador da vaidade humana. Em todos os tempos houve vaidosos – e não querem decerto que eu estafadamente cite o estafado Alcibíades cortando o rabo do seu estafado cão, para que se fale dele nas praças de Atenas. A vaidade é mesmo muito anterior a Alcibíades, já aparece a páginas três da Bíblia, e a folha de vinha, bem colocada, é o seu primeiro acto mundano. Incon-testavelmente, porém, em nenhum tempo a vaidade foi, como no nosso, o grande, o principal motor das acções e da conduta. Nestes estados de alta civilização, que produzem cidades do tipo de Paris e de Londres, tudo se faz por vaidade, e com um fim de vaidade.

E dessa forma nova e especial da vaidade só o jornal é culpado, porque foi ele que a criou. Essa forma consiste na notoriedade que se obtém através do jornal.

«Vir no jornal!» Ter o seu nome impresso, citado no jornal! Eis hoje, para uma forte maioria dos mortais que vivem em sociedade, a aspiração e recompensa supremas.

Nos regimes aristocráticos, o grande esforço era obter, se não já o favor, ao menos o sorriso do príncipe. Nas nossas democracias é alcançar o louvor do jornal. Para conquistarem essas dez ou doze linhas benditas, os homens praticam todas as acções – mesmo as boas. Não é mesmo necessário que essas linhas contenham um panegírico: basta que ponham o nome, a personalidade em evidência, numa tinta bem negra, que hoje tem um brilho mais desejado que o antigo nimbo de ouro. E não há classe que não esteja devorada por esse apetite mórbido do reclamo. Ele é tão vivo no mundano, no homem de prazer, na mulher de luxo, como naqueles que parecem preferir na vida a obscuridade, o silêncio. Porque vêm agora, nestas semanas, esses frades dominicanos, do fundo dos seus claustros, pregar nos púlpitos de Paris sermões de Quaresma grandemente teatrais e criadores de escândalo? Para terem uma celebridade no género Coquelin, e interviews nos jornais de literatura elegante, e o seu retrato, no hábito do grande S. Domingos, exposto entre jóqueis ilustres e as cancanistas do Moulin Rouge. E esta esperança do «artigo no jornal», que, como outrora a esperança do céu, governa a conduta e as ideias – e para «vir no jornal» é que os homens se arruínam, e as mulheres se desonram, e os políticos desmancham a boa ordem do Estado, e os artistas se lançam na extravagância estética, e os sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os géneros, surge a horda sôfrega dos charlatães. Cada um se empurra, se arremessa para a frente, quer fazer estalar, bem alto no ar, o seu fogo-de-artifício, para que o jornal o comente, e a multidão se apinhe e murmure boquiaberta: «Ah!»

Mas, por Deus!, agora reparo que estou aqui compondo uma página de moralista amargo, o que é faltar ao bom gosto do nosso tempo, e sobretudo aos santos preceitos da ironia. Imediatamente me calo – e estou mesmo pronto a concordar que o jornal também incita à virtude... E tal magnífico banqueiro judeu dá, pelo Natal, cem mil francos aos pobres, para que a sua caridade venha no jornal! Bendito seja o jornal!

Nem mesmo, com receio de tomar o desagradável tom de um censor dos costumes, quero insistir na outra acusação formulada pelo Sr. Brunetière contra a imprensa – a de partidarismo e de sectarismo. De resto, é por pura humildade cristã que eu, que me considero a meu modo um jornalista, confessei, falando do jornalismo, estes pecados em que colaboro impenitentemente.

Estamos na Semana Santa, e é de bom exemplo que cada um rosne o seu mea culpa e cubra a cabeça de uma pouca de cinza. Além disso, queridos amigos e confrades no pecado, esta carta, em que contritamente apontei alguns dos vícios mais dissolventes dos jornais, a sua superficialidade, a sua bisbilhotice, o seu partidarismo, vícios que os tornam tão pouco próprios para serem lidos pelo homem justo, já vai copiosamente larga – e eu tenho pressa de a findar, para ir ler os meus jornais com delícia.

 

 

 

 

 

 


XV

 

AS “INTERVIEWS” — O REI HUMBERTO E O FÍGARO — A MONARQUIA ITALIANA — O QUE PODE DIZER UM SOBERANO A UM JORNALISTA — A SINCERIDADE E O OPTIMISMO OFICIAL

 

Apesar desta democracia crescente que tudo vulgariza, ou antes (sejamos prudentes), que tudo igualiza, nem cada dia um jornalista consegue interviewar um rei.

(Este vocábulo interviewar é horrendo, e tem uma fisionomia tão grosseira e tão intrusivamente ianque, como o deselegante abuso que exprime. O verbo entrevistar, forjado com o nosso substantivo entrevista, seria mais tolerável, de um tom mais suave e polido. Entrevista, de resto, é um antigo termo português, um termo técnico de alfaiate, que significa aquele bocado de estofo muito vistoso, ordinariamente escarlate ou amarelo, que surdia por entre os abertos nos velhos gibões golpeados dos séculos XVI e XVII. Termo excelente portanto para designar um acto em que as opiniões tufam, rebentam para fora, por entre as fendas da natural reserva, em cores efusivas e berrantes. Mas entrevistar tem um não sei quê de sorrateiro que desagrada – e só alguém com muita autoridade e muita audácia o poderia impor. Interviewar, ao menos, é bruto mas franco. Temos pois de empregar resignadamente este feio americanismo – já que os nossos idiomas neolatinos não estão preparados, na sua nobre pobreza, a acompanhar todas as ruidosas intervenções do engenho anglo-saxónio. Vós aí no Brasil, amigos, possuís a arte subtil de cunhar vocábulos que são por vezes geniais. Fabricai um que substitua o interviewar e sereis benditos.

E no entretanto iremos dizendo que, apesar da nossa igualização democrática, nem todos os dias um jornalista interviewa um rei. Não parece de resto haver proveito na tentativa. Se os reis são de direito divino, as suas intenções devem permanecer tão impenetráveis como as de Deus, de quem emanam, e que os inspira. Quando alguém ousasse interrogar o imperador da Rússia sobre os seus planos, ele muito logicamente apontaria silenciosamente para o céu. Os reis desse transcendente tipo são agentes submissos, quase inconscientes, da Providência. Antes trepar às nuvens e formular um interrogatório directo à Providência. Se os reis, porém, são constitucionais, então os seus desejos, como os seus actos, só têm valor quando confirmados pelo ministério, pelo parlamento, por todas as instituições tutelares de que os cercou, com que os peou, a constituição. Mais útil, rápido e de melhor cortesia será interviewar o ministro ou chefe da maioria. É por este motivos certamente que os repórteres, que, com a imprudência dos pardais, se abatem e piam sobre as coisas mais veneráveis, nunca assaltam os tronos.

O caso, porém, é diferente com o rei de Itália. Humberto é um rei constitucional que diz sempre «o meu povo.., o meu exercito.., a minha armada». Estas expressões, indicando um senhorio directo da nação, sancionado pelo direito divino, só o czar, hoje (além do sultão), as pode empregar legitimamente. Por toda a parte, fora da Rússia, da Turquia (e de algumas repúblicas da América Central), os povos pertencem a si próprios, ou pelo menos conservam essa ilusão que lhes é preciosa; e os exércitos pertencem ao Estado, que deixou de ser idêntico com o rei desde que Luís XIV teve a fístula. Estas expressões, porém, do «meu povo, do meu exército», que consideraríamos singularmente impróprias na boca constitucional do rei dos Belgas, não destoam quando usadas pelo rei da Itália. Na realeza de Humberto, chefe da Casa de Sabóia, há um não sei quê de pessoal e absoluto que se nos afigura legítimo. Para os Italianos, em quem possa sobreviver o espírito municipal das velhas democracias, talvez ele seja apenas o primeiro magistrado da Itália – para nós ele aparece, até certo ponto, como o senhor da Itália, porque na sua qualidade de segundo rei de Itália ele é ainda a razão e a força da unidade italiana.

Em todos os tempos foi a ambição dos reis que fez a unidade dos estados. Esta ideia mesmo de unidade, e o amor da unidade, só nasce no povo desde que a vê realizada, e sente experimentalmente a sua grandeza material, ou a sua beleza histórica. A concepção abstracta de uma pátria una nunca pode surgir espontaneamente no povo, que só compreende e ama a sua aldeia ou a sua cidade, e não pensa na cidade próxima e na aldeia vizinha senão para as desdenhar ou para as invejar. Decerto a língua, o parentesco da raça, a identidade de carácter constituem fortes tendências para a unidade: mas de nada servem, se não houver conjuntamente um rei ambicioso que as aproveite para sobre elas construir a união nacional. Sem esse príncipe ambicioso, ladeado por um ministro de género de Bismarck ou Cavour, e instigado por três ou quatro patriotas idealistas, as cidades continuavam a falar a mesma língua, a nutrir-se intelectualmente numa literatura comum, a prestarem um culto irmão aos mesmos grandes homens, mas não sairiam nunca do seu municipalismo ou do seu provincialismo histórico.

Esta lei, que se pode observar em todos os estados, é manifesta na história da Itália. Tendo mantido sempre a unidade da sua civilização, tão sólida que se impôs a todas as raças que a conquistaram; tendo construído na Europa, pelo Papado, a unidade espiritual – a Itália todavia nunca realizou a sua unidade política, e desde a Meia Idade permanece fragmentada em municípios e repúblicas, cuja existência, tempestuosamente agitada entre a anarquia e a tirania, é uma série lacrimosa de martirológios.

O carácter social da Itália é então a divisão levada até à última molécula social. As cidades vivem isoladas, num violento ciúme mútuo, travando constantemente guerras e traindo-se com uma perfídia que ficou proverbial. Dentro das cidades, os cidadãos vivem tão divididos como elas, armando todos os dias brigas de rua a rua, e de cada casa fazendo a cidadela de uma facção. E dentro das casas as famílias estão ainda sombriamente divididas, e pais e filhos e irmãos não se reúnem na mesma sala sem trazerem cautelosamente debaixo dos gibões o seu punhal escondido. Todavia, todo este mundo mutuamente hostil se injuria na mesma língua, lê o mesmo Ariosto, reza à mesma Madona, celebra as mesmas festas cívicas e sente o orgulho comum da grandeza passada. Mas o longo hábito da vida local, do governo comunal, lançara raízes quase irradicáveis, criara no Italiano como um modo especial de pensar e de sentir, que o abandonava indefeso às violências da demagogia, ao abuso da força e da intriga dos pequenos tiranetes, à ferocidade de todos os invasores. Acrescia que estes velhos instintos municipais eram explorados maquiavelicamente pelos papas, que se serviam deles para esmagar em qualquer dos estados a menor tendência à hegemonia, e através dela à formação de uma Itália unida. Soberano espiritual, o papa não podia sofrer ao seu lado um soberano temporal – e para manter a sua independência, fomentava a desunião. A pobre Itália ia assim ficando repartida em republicazinhas anémicas e despotismozinhos sangrentos, amolecendo-se em todas as suas qualidades, depravando-se em todos os seus costumes, sob o patrocínio da tiara, que a impedia de se unir, sem ter a força de a proteger. A consequência é que a Itália foi assaltada, saqueada, espezinhada, retalhada, vendida ou doada, como um despojo de guerra. Caiu em decadência, caiu em servidão... Pior ainda, caiu em ridículo! E a terra fecunda dos génios e dos santos não apareceu mais na história senão como um povo piolhento e sonolento governado por cortes minúsculas, que não passavam de uma colecção bufa de caturras, cortesãos, parasitas, jograis, monsenhores, sacristães, sigisbeus, tenores castrados e bailarinas. E porquê? Porque lhe faltara até aí o rei ambicioso e patriota que, para ser rei da Itália, quebrasse as velhas tradições do municipalismo latino, e no meio das grandes monarquias militares desse à Itália um governo central, leis uniformes, um exército permanente, as condições todas que a ela lhe consolidariam a unidade e a ele a soberania. Este rei salvador surgiu finalmente em Turim. Todos nós fomos ainda seus contemporâneos, e o celebrámos como rè galantuomo. Vítor Manuel foi o instrumento.essencial da ressurreição da Itália. À sua voz é que a grande Lázara, ligada e estendida no sepulcro bourbónico, se ergueu e marchou. Outros decerto trabalharam habilmente e heroicamente na grande obra; mas foi ele que a assinou, e, para os olhos da multidão que nunca aprofunda, só ele ficou com a sua força representativa e a garantia da sua duração. Por maiores limitações que a constituição impusesse à sua autoridade, ela não podia deixar de ser, através das fórmulas parlamentares, suprema como a de todo o criador. Humberto, seu filho, continuador e consolidador da obra, herda ainda desta prerrogativa de chefe paternal. Nunca ele poderá ser um rei do puro tipo constitucional, como Leopoldo da Bélgica, que, segundo a fórmula belga, não é senão o «primeiro dos seus administrados». Os futuros reis da Itália (se os houver) poderão ser reduzidos a esta subalternidade de funcionário irresponsável. Humberto não – e, para ele, reinar ainda há-de ser governar. E quando ele fale do seu povo, do seu exército, a Europa não lhe contestará a legitimidade dessas expressões autocráticas.

Além disso, Humberto foi coroado em Roma. Ora, Roma é essencialmente cesariana, e comunica, imprime carácter cesariano àqueles que a governam. Ela mesma foi sempre cidade-soberana, ou no temporal ou no espiritual. Só há cem anos é que deixou de vir lá de entre as sete colinas, ou sob a forma de édito imperial, ou sob a forma de encíclica papal, a ordem suprema que se impunha a rei e povos, e regia os nossos bens ou as nossas almas. E o senhor da cidade de Rómulo sempre partilhará desta supremacia que lhe é inerente. Mas este ponto de vista é talvez mais estético do que político.

Em todo o caso, por todos os motivos, Humberto é dos poucos reis interviewáveis. E um rei que quer e que pode. E não é todavia bastante de direito divino para se considerar um emissário da Providência, e, como ela, esconder os seus desígnios, que só por ela podem ser compreendidos ou julgados. Ao rei Humberto é permitido dizer: «Eu farei isto, as minhas intenções são estas...» A sua autoridade na nação comporta estas afirmações pessoais e soberanas. Qualquer outro rei, estritamente constitucional, quando atacado por um repórter, só poderá encolher os ombros e murmurar: «Não sei, veremos o que faz o ministério...»

Há, pois, aparentemente, utilidade para um repórter de alta reportagem em sondar e puxar para fora o pensamento íntimo do rei Humberto. A dificuldade única estaria na operação da sondagem – porque, apesar de se ter suprimido a hirta e encarceradora etiqueta do tempo de Carlos V, os reis ainda não são acessíveis a qualquer sujeito de chapéu-coco que se apresente com uma carteira e um lápis, a»fazer perguntas». Mas o Figaro, barbeiro astuto, acostumado desde a sua mocidade a deslizar subtilmente pelas portas escusas e a penetrar no segredo dos Bártolos, realizou esta bela façanha – e interviewou o rei Humberto. E quando ele anunciou, rufando ufanamente o seu grosso tambor, que ia publicar as declarações do rei de Itália, a Europa, excitada, aguçou vorazmente as suas longas orelhas. Com efeito, que maravilhosa ocasião de conhecer enfim o segredo da Tríplice Aliança! E ocasião única! Porque dois dos aliados, o im-perador da Alemanha e o imperador da Áustria, sendo mandatários da Providência, têm de permanecer impenetráveis. O rei de Itália, porém, é apenas o mandatário de um povo, e de um povo ilustre nos fastos da loquacidade. E o rei da Itália ia falar!... Falou. O Figaro, barbeiro ditoso, imprimiu com alarido as suas palavras. E desde então ainda não cessaram, em torno delas, controvérsias que me espantam e devem espantar todos os simples pela sua ingenuidade.

Parece haver, com efeito, imensa ingenuidade em esperar com inquietação, e depois discutir com paixão, as declarações públicas, oficiais, de governos ou de governantes. Por pouco que elas anunciem conduta, e constituam programa, tais declarações têm necessariamente de ser generalidades optimistas e virtuosas. Que pode, por exemplo, um governo novo prometer aos cidadãos, senão que todos os seus esforços tenderão energicamente a manter a ordem, favorecer a moralidade e promover a economia? Não há possibilidade de que um governo se apresente gravemente ante o país e, pondo a mão leal sobre o coração sincero, declare que vai fomentar a desordem, animar o desperdício e proteger a imoralidade! Os cidadãos não acreditariam – e esse governo, talvez verídico, seria escandalosamente expulso como farsante.

Há nos programas políticos uma convencionalidade mutuamente consentida, que é comum a todas as manifestações públicas, e que corresponde à necessidade climatérica e moral, hoje tornada instinto, de cobrirmos a nossa nudez. E uma mera questão de decência, de respeito social, quase de etiqueta. O chefe de Estado, quando fala à nação, tem de exibir uma decorosa virtude nos seus intentos, pelos mesmos motivos por que tem de vestir a sua farda, e trazer o seu séquito, nos grandes cerimoniais. «Todas as minhas forças, caros concidadãos, serão votadas a alargar a prosperidade!, etc., etc.», todas estas patrióticas, íntegras frases, devem ondular em tons claros, como os penachos de gala. Os experientes sorriem, mas murmuram: «Muito bem, muito bem!» E não tolerariam que o chefe de Estado, com honrosa sinceridade, declarasse que se preparava a fazer escândalos e prepotências – como não permitiriam que ele nessa cerimónia, onde viera lançar o seu programa, se apresentasse nu ou simplesmente em ceroulas. E uma questão de decoro. Esta necessidade de pudor público, perfeitamente a compreendo. O que sempre me pareceu incompreensível foi o ingénuo que arregala os olhos, sorve com delícias cada promessa do programa, como se elas caíssem do alto do Sinai, e vai exclamando, radiante: «Enfim, temos um governo, temos um homem que quer implantar a moralidade, reafirmar a ordem, promover a economia, etc., etc.» E ainda menos compreendo talvez os que se lançam sobre o programa e o analisam, o dissecam, tiram dele, por entre as linhas, esperanças ou receios, e discutem apaixonadamente cada uma das suas palavras sacramentais como se fossem realidades vivas.

Que poderia dizer jamais o rei da Itália a um repórter que o interroga sobra as intenções da Itália? Que poderia dizer, justos céus, senão que ele e o seu povo amam todos os seus vizinhos como irmãos e só querem, só apetecem a paz? E foi justamente o que afirmou Humberto. Nem era humanamente verosímil que ele franzisse o sobrolho e exalasse, em vocábulos troantes, o seu ódio à França, a sua sede de guerra... Qualquer declaração sua, destinada a um jornal, tinha de ser inevitavelmente fraternal, pacífica, optimista. Os cépticos podem sorrir, mas têm de murmurar: «Muito bem, muito bem.» O rei da Itália, com efeito, teve a atitude que pedia a decência. Recebendo um jornalista francês, vinha vestido e afiançou a paz. Tão estranho seria que anunciasse a guerra – como que aparecesse em mangas de camisa.

E todavia estas declarações previstas, obrigatórias e que não têm mais significação que a farda ou a sobrecasaca que o rei vestia, estão sendo escrutinadas, pesadas, filtradas, estudadas pelos analistas políticos, com ardor, como se contivessem no fundo das suas sílabas os segredos do destino. Uns, de aquém-Reno, gritam: «O rei Humberto não é sincero, que dê provas....» Outros, de além-Reno, clamam: «Haverá nestas palavras de Humberto intenções de desdenhar as alianças juradas?...» E o Times, há três dias, em pesadas colunas está perguntando aos ecos leais do monarquismo se é lícito duvidar da afirmação de um rei!...

A um inocente, como eu, tudo isto parece funambulesco. Oh, boas almas, ainda uma vez mais, que esperáveis vós que dissesse o rei da Itália? Que pode responder o director de um banco a quem lhe pergunte se ele é pela probidade ou se tende para a trapaça e roubo aos accionistas? Que pode responder um chefe de Estado a quem se pergunte se ele é pela paz – ou se pende para a guerra e mortalidade dos povos?

 

De resto é inata no homem esta tendência a fazer perguntas tão inúteis que são néscias e a que ele sabe de antemão as respostas necessárias e coerentes. Não há ninguém que, entrando numa mercearia a comprar um quilo de queijo, não tivesse já papalvamente perguntado ao merceeiro: «E bom o seu queijo?» Como se jamais, desde que há homens e queijos, um merceeiro tivesse respondido, com asco: «Não senhor, não presta!» E se ele desse esta resposta, por espírito sublime de veracidade intransigente, então é que nós começaríamos a desconfiar do lojista, como de um ser anormal, extravagante e perigoso. Um amigo meu, viajando em Inglaterra, parou num hotel e, depois de instalado e barbeado, desceu a almoçar. O dia era de Junho, ele apeteceu um vinho fresco e leve. Percorreu pensativamente a lista dos vinhos e perguntou ao criado, com a tradicional e humana ingenuidade:

– É bom este Chablis?

O criado, um velho de suíças brancas, grave e um pouco triste como um embaixador em disponibilidade, abanou a cabeça e respondeu secamente:

– É uma peste.

O meu amigo considerou com espanto, e um espanto desagradável, aquele homem verídico. Depois repercorreu a lista.

– Bem, traga-me então deste Médoc... É bom, o Médoc?

O criado, muito sério, replicou:

– É horrível.

Perturbado, o meu amigo murmurou timidamente, numa desconfiança vaga e escura que o invadia:

– Bem, beberei cerveja... Que tal a cerveja?

O criado volveu, convencido e digno:

– Droga muito medíocre... Extremamente medíocre!

O meu amigo tremia já, num positivo terror. Mas ainda balbuciou:

– Que hei-de eu então beber?

– Beba água, ou beba chá... Ainda que o chá que agora temos é realmente detestável.

Então o meu amigo repeliu violentamente guardanapo e talher, galgou as escadas do seu quarto, reafivelou as correias da sua maleta, saltou para uma tipóia e fugiu.

Porquê? Nem ele sabia. Tudo quanto me pôde explicar é que, perante tanta sinceridade, perante tanta veracidade, ele sentiu em torno de si, naquele hotel, alguma coisa de anormal, de extravagante, de perigoso. E o acto do meu amigo, dado o nosso secular hábito da mentira, da ficção, da convenção – é bem humano.

 

 

 

 

 

 


XVI

 

O “SALON”

 

O mês de Maio, em Paris, é dedicado à estética. Então se abre com uma certa solenidade, em que colabora mesmo o chefe do Estado, a exposição de belas-artes, a que os Franceses chamam o «Salão», sem dúvida por causa da graça, da polidez e da sociabilidade da sua arte. Todas as classes de Paris (com excepção dos operários, que só se apaixonam pela política) tomam um interesse, se não intelectual pelo menos social, nesta abertura do Salão, mesmo aquelas que no resto do ano vivem tão indiferentes e separadas das coisas de arte como das coisas da teologia hindu. Há assim, em todas as cidades, um dia tradicionalmente consagrado, ou ao espírito, ou ao sport, ou à devoção, que tem o dom de reunir no mesmo entusiasmo, ou pelo menos na mesma disposição festiva, todos os cidadãos. Em Londres, milhares de pessoas que nunca pegaram num remo, nem compreendem que a honra ou proveito se tire de remar com perícia, mostram, e realmente experimentam, a mais excitada simpatia pela regata clássica entre as Universidades de Oxford e de Cambridge. E em Lisboa, mesmo os ímpios, pelo ar de festa que tomam, concorrem, no devoto 13 de Junho, a festejar Santo António. As almas dos homens, andando hoje tão dispersas, necessitam fundir-se, ao menos uma vez por ano, num sentimento comum.

Acresce que o Salão, no dia cerimonioso da sua abertura, oferece dois grandes atractivos além dos quadros e das estátuas. Nesse dia os artistas expõem, não só as suas obras, mas as suas pessoas – e contemplar um artista, o corte da barba e a forma do chapéu do artista, é um precioso regalo para o Parisiense, como já era para o Grego, que vinha da Grande Grécia e das ilhas a Atenas, não para escutar Platão, mas para ver Platão. No Salão, tal que apenas lança um olhar indolente à telas de Bonnat segue através das salas durante uma hora o próprio Bonnat, repastando-se com delícias na admiração do homem cuja obra lhe foi indiferente. É que para esses, a quem o bom Flaubert chamava com tão truculento rancor»os burgueses», todo o artista é um ser excepcional, vivendo uma vida excepcional, feita de requintes, aventuras, de estranhas festas e de voluptuosidades magníficas. Um tão grande privilegiado excita uma insaciável curiosidade – como tudo o que no bem ou no mal, pelo brilho ou pela força, se ergue acima do cinzento e medíocre nível humano. E mal sabem os»burgueses» que o artista quase sempre (a começar pelo próprio Flaubert) é também um burguês pacífico, sóbrio, cordato e estreito.

Mas no Salão há ainda, no dia da sua abertura, uma outra vistosa atracção que por certos lados se prende às belas-artes – a das toilettes. Com efeito está na antiga tradição parisiense que as mulheres de luxo, aquelas para quem o luxo é um instrumento da profissão, e aquelas para quem o luxo é um hábito natural, que lhes vem da riqueza, da posição, ou do gosto inato, arvorem então as modas novas de Primavera, as criações mais delicadas e mais artísticas das grandes costureiras de arte. São outros tantos quadros que circulam aparatosamente pelas salas, e que a multidão olha e admira, com muito mais curiosidade do que os outros pregados em redor nas paredes, dentro dos seus caixilhos. E ao lado das elegantes enxameiam as próprias costureiras, que vêm, exac-tamente como artistas, observar com ansiedade o»efeito» produzido pela composição, pelo colorido, pelo vigor ou pela finura das suas obras.

Destas obras especiais apenas entrevi duas com alguma fantasia e audácia. Em ambas a figura das senhoras, a sua»plástica» concorria a dar um relevo picante e divertido à toilette e aos acessórios da ornamentação. Uma, muito delgada, bem lançada, com uma gracilidade serpentina, trazia uma saia curta, de seda murmurosa e lustrosa, recoberta de falbalás Pompadour: os cabelos fulvos, pintados com o louro do Ticiano, caíam em cascatas e ondas ricas sobre colo e ombros, como uma juba superiormente frisada e bem empomadada por Lentheric (o mais ilustre cabeleireiro do século); as abas do chapéu eram tão vastas que sob elas se poderia abrigar do sol ou da chuva um grupo de viajantes, com os seus cavalos e com as suas bagagens e estavam ainda encimadas por uma triunfal montanha, fofa e tremente, de plumas multicores; a sua mão, calçada de luva negra, bordada a ouro, e que subia amarrotada até ao ombro, apoiava-se no castão de ónix de uma bengala de marfim, mais alta que um báculo ou que uma lança; a cada passo que dava, as sedas crepitavam e lampejavam, a massa alterosa de plumas tremia e flutuava, o conto do bengalão ressoava majestosamente, e um sorriso fugia dos lábios da dama, tão vermelhos que pareciam uma ferida em carne viva e sangrenta. Assim ia entre a multidão – e eu não comento. Arredai-vos, amigos, e deixai-a passar.

A outra senhora, anda mais pitoresca, era enorme, transbordante, construída de rolos e bolas, com uma pele escabrosa, a que, mesmo sob o pó de arroz aplicado sem economia, se sentia a cor de açafrão. As suas tremendas massas de carne bamboleante vinham apenas envoltas numa túnica diáfana, de um amarelo ardente e brilhante, como as florinhas do campo de Portugal chamadas botões-de-ouro, e feita certamente daquele antigo tecido que se fabricava na ilha de Cós, e que pela sua transparência e leveza aérea os poetas da Grécia diziam ser feito de luz e vento.

Como chapéu tinha apenas alguns amores-perfeitos, em grinalda, também amarelos. Era uma ninfa, e assim montanhosa, sobrancelhuda, beiçuda, de venta larga, com um saracoteio que lhe colava a túnica e lha enrodilhava nos vastos membros de elefante ameno, fendia soberbamente a turba, meneando um imenso leque, ainda amarelo, furiosamente amarelo. Tais eram estas duas parisienses, as duas obras vivas de parisianismo que mais me impressionaram nesta festa de Santa Estética. Dizem que Paris continua a impor ao mundo a regra do gosto e do bem-vestir, e que, tendo perdido todo o predomínio em matéria de filosofia e de ciência positiva, exerce ainda uma influência intensa através das suas costureiras. Por isso traslado fielmente, para uso das raças menos inventivas, estes dois figurinos que se me afiguraram consideráveis.

 

Enquanto às outras obras expostas no Salão, os quadros e as estátuas, a primeira lição que lhes tirei foi meramente sociológica; e por via delas (mirabile dictu!) mais uma vez reconheci quanto é fácil governar as democracias. O grande obstáculo, que os teóricos de temperamento tímido têm antevisto à estabilidade dos agrupamentos democráticos, é a independência da razão individual e o seu livre exercício, garantidos por leis, tornados mesmo alicerces primordiais da estrutura pública.

Desde que não exista uma regra, como a velha regra católico-monárquica, que obrigue todos os espíritos a ter a mesma opinião e a regularem por ela a sua conduta, não parece possível (afirmam esses pálidos teóricos) manter em harmonia alguns milhões de cidadãos, todos eles possuidores de uma ideia original e própria, e determinados, por interesse ou por convicção, a que só ela prevaleça.

A servidão intelectual, entendida à boa e rija maneira dos jesuítas, aparece assim como a condição suprema de toda a harmonia social.

Mas como a democracia, de colaboração com a filosofia, tem justamente por fim abolir esta servidão, dar uma ilimitada alforria aos entendimentos, ela cria desde logo e sem remédio esse estado, previsto tão melancolicamente pelo nosso velho provérbio, em que «cada cabeça dá a sua sentença». E (concluem enfim os teóricos) como não há melhor gozo para uma cabeça humana do que conceber e impor uma sentença, resulta que, apenas se quebre o jugo salutar da regra, todas as cabeças se sacodem desafogadamente, atiram para o ar com ímpeto a sua sentença e fazem uma dessas horripilantes desafinações sociais só comparáveis às de uma orquestra, sem regente e sem batuta, em que cada instrumento geme, silva, tilinta ou rebumba uma música diversa e contrária. Tudo isto é um erro – e os teóricos que a sustentam nunca foram, como eu, ao Salão, no dia da sua abertura, quando em matéria de arte cada cabeça, depois de ter pago a entrada, pode liberrimamente proclamar a sua sentença. Se tivessem feito essa peregrinação instrutiva, verificariam que o servilismo intelectual é no homem um vício irredutível, e que por mais que se facilite o largo e livre exercício da razão, e que se lhe ensine a sacudir o despotismo dos oráculos – sempre ele por instinto, por covardia, por indolência, por desconfiança de si próprio, abdicará o direito de pensar originalmente e se submeterá com prazer, com alívio, a toda a autoridade, que, à maneira de um pastor entre um rebanho, se erga, toque a buzina e lhe aponte um caminho com o cajado. Realmente a humanidade é gado – e o primeiro movimento de toda a cabeça livre é pender para o sulco aberto, enfiar para debaixo da canga.

Estas reflexões, de resto pouco novas (miraculoso seria que ao fim de tantos séculos ainda se pudessem desenterrar novidades do fundo da índole humana), as fiz eu, com alguma tristeza misturada de muita alacridade, notando para que quadros e para que estátuas se dirigiam, no Salão, a curiosidade e a admiração do público.

Como uma fila submissa de bons carneiros, todos estes milhares de seres pensantes, e únicos donos do seu pensamento, marchavam arrebanhadamente para aquelas obras que, na véspera, o estudo crítico, ou antes o guia crítico do Salão, publicado pelo jornal, lhes indicava, ou melhor lhes impusera, como as únicas diante das quais deviam parar, e fazer «ah!» e sentir uma emoção e depor um louvor. Não só o jornal previdentemente lhes apontara a obra, mas lhes ensinara mesmo a emoção especial que deviam experimentar, e até lhes redigira a fórmula laudatória que deviam balbuciar. E os milhares de seres pensantes (muitos com o jornal na mão) lá se apinhavam, em densos magotes, diante da tela, recebendo obedientemente a emoção ensinada, recitando, sem omitir um adjectivo, a fórmula do louvor decretado. Um padre da Companhia de Jesus teria saboreado deliciosamente este salutar espectáculo de disciplina mental.

Todavia este povo fez, com intensa paixão, três revoluções sangrentas para alcançar o direito de livre exame e de livre juízo. Essa conquista, simbolizada sempre na clássica tomada da clássica Bastilha, é, com razão, um dos seus altos orgulhos e foi ela que o autorizou a revestir-se entre as nações do carácter messiânico, e a intitular-se «redentor dos povos», o que tanto fazia rir o amargo Carlyle. Com efeito, a liberdade de ter uma opinião não só em matéria política, mas mesmo em matéria filosófica e portanto em matéria estética, nem sempre foi garantida aos Parisienses, e houve tempos (talvez ditosos) em que ele, tal qual como o habitante de Damasco ou de Bagdade, não podia, sem perigo do cárcere e da tortura, divergir das opiniões dogmáticas dos seus doutores.

Quando a Faculdade de Paris (que, segundo diz Voltaire, tão poucas faculdades possuía) lançou um decreto negando a existência das»ideias inatas», todos os espíritos foram obrigados a repelir com nojo a abominável noção das «ideias inatas»; e quando, anos depois, fazendo uma pirueta metafísica, a mesma faculdade atirou outro decreto afirmando a existência das «ideias inatas», todos os mesmos espíritos, piruetando também, tiveram de proclamar com reverência a certeza das «ideias inatas». A memória dessa afrontosa escravidão intelectual ainda hoje amargura o Francês, que em princípio, teoricamente, considera a vida sem valor logo que ela não seja acompanhada e enobrecida pela liberdade de pensamento.

É essa liberdade alcançada enfim tão penosamente que constitui a sua melhor superioridade sobre o pobre homem de Bagdade ou de Ispahan, a quem ainda não é permitido raciocinar de um modo diferente do que raciocina o cádi ou o ulemá. Ele, Francês, graças às suas três revoluções, pode pensar como lhe aprouver sobre todas as coisas da Terra e do céu. E o seu mais augusto direito. E esta certeza de o haver conquistado lhe basta largamente. Porque, de resto, para ter uma opinião, espera sempre que o seu cádi ou o seu ulemá, dogmatizando no jornal, lhe indique a opinião que ele deve adoptar e a maneira por que a deve exprimir, ou se trate de um ministério e o cádi seja Magnard do Figaro, ou se trate de um vaudeville e o ulemá seja Sarcey do Temps.

Donde se poderia concluir, alargando o conceito, que o homem verdadeiramente não apetece ser livre e apenas deseja que lhe não chamem escravo. Contanto que a sua liberdade esteja consignada em letra redonda, algures, numa constituição ou nas paredes dos edifícios, ele está contente e não exige que essa liberdade se traduza realmente em factos. O dístico lhe basta. Qualquer república se pode converter no mais rígido despotismo, contanto que se continue a denominar «república». Nero, intolerável sob o nome de imperador, é popularmente consentido sob o nome de presidente. Em matéria social é o rótulo impresso na garrafa que determina a qualidade e o sabor do vinho. O governo das sociedades parece portanto ser essencialmente uma questão de léxico. O melhor meio de dirigir os homens será talvez gritar-lhes com entusiasmo: «Vós sois livres!»E depois, com um tremendo azorrague, à maneira de Xerxes, obrigá-los a marchar. E marcham contentes, sob o estalido do açoite, sem pensar mais e sem mais querer, porque a palavra essencial foi dita, eles são livres, e lá está Xerxes no seu carro de ouro para querer e para pensar por eles.

 

De resto, talvez toda esta gente ande bem avisadamente em admirar, sem iniciativa própria, as obras de arte que os críticos lhe mandam admirar. Há aqui uma reserva e economia de força pensante que bem pode ser louvável. Nesta nossa atulhada civilização, em que tão contínuos esforços são exigidos de cada homem, para que lhe possa caber a sua fatia de pão no famoso «banquete da vida», parece realmente excessivo que ele se sobrecarregue ainda com o trabalho de conceber e formular opiniões estéticas. Um amanuense das finanças, que nascera com espírito, dizia outrora a Voltaire: «É para mim uma grande infelicidade, mas nunca me sobrou tempo para ter bom gosto!» Palavra triste e profunda – e que se já era verdadeira no século XVIII quanto mais exacta é no século XIX! Para ter um gosto próprio e julgar com alguma finura das coisas de arte é necessária uma preparação, uma cultura adequada. E onde tem o homem de trabalho, no nosso tempo, vagares para esse complicada educação, que exige viagens, mil leituras, a longa frequentação dos museus, todo um afinamento particular do espírito? Os próprios ociosos não têm tempo – porque, como se sabe, não há profissão mais absorvente do que a vadiagem. Os interesses, os negócios, a loja, a repartição, a família, a profissão liberal, os prazeres não deixam um momento para as exigências de uma iniciação artística – e numa cidade de dois milhões de almas, como Paris, há por fim apenas meia dúzia de almas que possam sentir com verdade e profundidade a beleza ou a grandeza de uma obra, e que diante de um quadro de Velásquez e de um quadro de Bonguereau saibam qual pertence à arte e qual pertence ao artifício. Por isso a oleografia triunfa, e Ohnet e outros tiram a cem mil exemplares, e as comédias mais desprezivelmente idiotas congregam as multidões. E não é culpa da multidão. Ela pode dizer como o amanuense a Voltaire: «Não me sobra tempo para ter bom gosto!»

Por outro lado, hoje, todo o homem civilizado, ou que vive num meio civilizado, está sob o dever de se interessar ou de parecer que se interessa pelas grandes expressões da civilização. Sem essa manifestação de cultura, ele é considerado pelos seus vizinhos como um selvagem. O desdém, ou simples indiferença pela literatura ou pela arte, já não é permitido ao habitante de uma capital: e os tempos vão longe em que os senhores feudais se gabavam com orgulho de não saber ler. Hoje, em todas as classes que estão para cima do lavrador e do carrejão é tão indispensável mostrar um certo gosto pelas coisas do espírito, como usar, pelo menos ao domingo, camisa engomada. É um preceito de decência e respeitabilidade. Por mais bacalhoeiro que se seja, e enfronhado no bacalhau, e indiferente a tudo, fora o arrátel e o meio arrátel, não se ousa desprezar publicamente (ainda que se desprezem em particular), as letras e as artes, como não se ousa ir ao Passeio em chinelos e sem gravata. Tudo neste nosso século é toilette, dizia o velho Carlyle.

O apreço exterior pela arte é a sobrecasaca da inteligência. Quem se quererá apresentar diante dos seus amigos com uma inteligência nua?

Numa cidade como Paris e perante um acontecimento tão artístico como é todos os anos a abertura do Salão, cada bom burguês (para usar o termo querido de Flaubert) se vê forçado pelo decoro a ter sobre três ou quatro quadros uma opinião, uma frase, para trocar com as suas relações no café. Mas construir essa opinião, redigir essa frase é um trabalho que pede reflexão, tempo, um dicionário. E para quem passa o seu cansado dia no escritório, no armazém, na repartição, no bilhar ou na atarefada ociosidade mundana, isto desde logo se torna uma sobrecarga impraticável. O expediente natural portanto é recorrer àqueles que têm por profissão e especialidade fornecer, sobre coisas de arte, opiniões e frases. Estes são os críticos e têm a sua loja de retalho no jornal. Nada mais cómodo, mais rápido, pois, do que comprar ao crítico, pela tolerável soma de dez réis, três ou quatro opiniões, como se compram no luveiro três ou quatro pares de luvas, escuras ou claras. Enverga-se a opinião como se calça a luva, e desde logo se fica apto a aparecer na sociedade com o ar e a elegância moral de um ser culto. Esta é a grande vantagem de viver nas cidades onde tudo se fabrica e tudo se retalha. Um qualquer pode estar de manhã completamente nu, de corpo e de espírito, sem um trapo e sem uma ideia. Daí a um momento, dispondo de algum dinheiro, graças ao armazém de fato feito, e ao armazém de ideias feitas (que se chama o jornal), pode estar todo e dignamente vestido, por dentro e por fora, e sair à rua, e ser um senhor.

Esta gente pois que aqui anda, com o seu jornal na mão, consultando nele as obras que há-de admirar e as frases em que há-de moldar a sua admiração, não é talvez o rebanho humilde que marcha sob a férula da autoridade. E antes uma turba de amanuenses, que, como o outro do tempo de Voltaire, não tiveram vagares para adquirir bom gosto. Quando Voltaire escreveu, não havia quase jornais, o único crítico de arte era Diderot e ainda se andava compilando a Enciclopédia. Aquele amanuense estava realmente muito desajudado. Hoje, com tantos e tão baratos jornais e uma tal legião de grandes e verbosos críticos, não há desculpa para que um amanuense, mesmo sem ter relações com Voltaire, se não forneça de dois ou três quilos de bom gosto. E fornece, porque sabe as vantagens de ter alguma estética e alguma poética, quando se vai à noite tomar chá com senhoras. Aí os vejo todos, trazendo o jornal cheio de opiniões, como um cartucho – e, diante da estátua de Dubois ou do quadro de Bonnat, dizendo com segurança, depois de meter a mão no cartucho, o que este ano se deve decentemente dizer sobre Bonnat ou Dubois.

E aqui está como, divagando com o costumado vício latino, através de um pórtico de considerações gerais, eu vos retive, amigos, todo este tempo, à entrada do Salão, sem vos mostrar sequer um bocado de cor sobre um bocado de tela. Mas quando eu vos tivesse contado do Cavaleiro das Flores, de Rochegrosse, ou do Papa e o Imperador, de Laurens, ou da Brunehilde, de Luminais, vós apenas ganharíeis algumas linhas de prosa desbotada e fugaz.

Estes quadros estão em França, vós estais no Brasil, e de permeio há três mil léguas de longo e sonoro mar. É difícil sentir uma obra de arte a três mil léguas, através de um mero fio de retórica rala. A pintura é, segundo todos os fortes definidores, uma imitação da Natureza. Portanto eu só vos poderia oferecer a descrição de uma imitação da Natureza. Mas como eu próprio só conheço quase todos estes quadros, que são três mil, pelo que deles li numa revista, realmente de boa-fé, só vos poderia fornecer uma reprodução de uma descrição de uma imitação da Natureza. E como desconfio, além disso, que o estudo desta revista era já compilado sobre as notas de jornais, eu, na verdade e sinceramente, só vos dava a transcrição de uma reprodução de uma descrição de uma imitação da Natureza. O que seria petulante.

 

 

 

 

 

 


XVII

 

CARNOT

 

O presidente Carnot foi assassinado em Lião. Para desde logo caracterizar este contra-senso sangrento, eu deveria dizer que o presidente Carnot foi inverosimilmente assassinado em Lião.

Com efeito! Que rara inverosimilhança!

O mais inocente, o mais legal, o mais irresponsável, o mais impessoal dos chefes de Estado, morrendo de uma punhalada, como César, como Henrique IV ou como Marat!

Carnot saía, às nove horas de noite, do banquete que lhe oferecera a municipalidade de Lião, para assistir, no Grand-Théâtre, a uma representação de gala.

O seu landau, aberto e desprotegido, rolava vagarosamente por entre uma multidão que o aclamava no fulgor das ruas iluminadas. Um homem, trazendo numa das mãos um ramo de flores e na outra um papel enrolado à maneira de um requerimento, saltou bruscamente, e como um gato, sobre o rebordo do landau, tocou no peito do presidente com as flores ou com o papel. O maire de Lião, sentado em frente de Carnot, ainda atirou, com o punho, uma pancada à cabeça do homem, que fugira, e que alguém na turba imediatamente filara, por instinto, como um ladão. Tanto o maire de Lião como aqueles mais próximos, que tinham entrevisto num relance o salto mudo e felino, pensaram que o homem se arremessava sobre o presidente para lhe arrancar e lhe roubar a placa de diamantes da Legião de Honra! E esta ideia, a primeira, como a mais natural, que a todos acudiu, perfeitamente define o presidente da República. Carnot era desses homens que se não supõe que possam ser acometidos – senão para serem roubados.

Ele não tinha inimigos. Não tinha mesmo adversários – porque não representava um partido e muito menos um princípio. A Constituição reduzira a sua autoridade a uma sombra incerta e ténue; e essa mesma parcela de autoridade ele a exerceu sempre com uma reserva que a muitos parecia indiferença e a outros nulidade. Carnot passou a sua presidência constantemente torturado e peado pelos escrúpulos pungentes da legalidade. Decerto tinha os seus gostos e as suas preferências – mas eram preferências de homens por homens, e nunca por ideias. Estas mesmas preferências por estadistas do seu tipo, discreto e neutro, como Mr. Loubet, Tirard e outros, tantas vezes lhe foram censuradas pelas oposições extremas que ele terminou por imolar dentro de si esta derradeira e modesta expressão da sua força pensante. Foi então que ganhou a reputação fantasista de ser de pau. A sua vontade imóvel ou imobilizada traduzia-se na rigidez hirta da sua atitude. Quase não ousava mover um braço com receio de magoar um artigo da constituição. Quando muito saudava e sorria. Assim, pelo menos, o pintavam os caricaturistas e os cancionistas. E se a história da sua presidência fosse mais tarde estudada nestas obras ligeiras do humorismo parisiense, elas dariam ideia de um chefe de Estado cujos únicos actos históricos foram saudar e sorrir. Carnot não era mais que a imagem ornamental e simbólica da república, como essa estátua de ouro da Vitória que protegia o Império Romano. E o partido político que, com um fim político, assassinasse este chefe seria tão insensato como uma tripulação revoltada que, querendo apoderar-se de um navio para lhe dar um rumo novo, decepasse expressamente e furiosamente a figura de pau esculpida na proa.

Por isso o crime de Lião foi logo, e sem outro exame, atribuído ao anarquismo – porque só os anarquistas, hoje, nesta nossa civilização raciocinadora, utilitária, conservam, como os selvagens, a ferocidade pueril de cometer crimes inúteis. São eles que, para destruir todo o capital opressor, arrasam um prédio qualquer de três andares, e para demolir a burguesia autoritária matam a estilhas de bomba alguns empregados do comércio sentados num café a beber bocks. Os seus crimes nem somente são inúteis – são ainda contraproducentes, porque vão formidavelmente fortalecer tudo quanto eles querem destruir, e indefinidamente retardam todos os progressos que eles pretendem com ânsia precipitar. Esta seita, que tem por princípio a supressão de toda a autoridade, tomou-se assim uma estúpida e inconsciente fautora do abuso da autoridade. E chegou a um ponto que o anarquismo parece ser secretamente assalariado pelo despotismo.

O assassino de Carnot ainda se não confessou anarquista; de facto, ainda não descerrou os lábios, senão para rosnar algumas indicações de naturalidade e residência, numa rude algaravia incompreensível, que não é francês, nem italiano, e que se não sabe mesmo se é natural, se fingida. Mas desde logo a conclusão geral foi que havia ali um anarquista – porque só um anarquista, com aquele obtuso fanatismo que dementa a seita poderia esquecer quanto o assassinato de um chefe de Estado, tão legal e irresponsável como Carnot, iria, pela natural irrupção de cólera e dor, pela unanimidade de simpatias acumuladas em torno da França e do seu Governo, pelo sentimento do perigo despertado em todos os outros chefes de Estado, exacerbar por toda a parte a reacção e a perseguição, não só contra o anarquismo, mas contra os partidos avançados e de ideias justas, de que ele é o filho bastardo e celerado. Mais que nunca, desta vez o anarquismo trabalhava, furiosamente, contra essa liberdade de que pretende ser a expressão suprema e perfeita – e a sua arma não era mais do que uma nova e ensanguentada ferramenta posta, por ele, de noite, nas mãos da burguesia capitalista.

Anarquista ou não, porém, esse rapaz misterioso, que permanece mudo num cárcere de Lião, fez, se não uma daquelas «vítimas de eleição» de que falam os Evangelhos, uma vítima que todos os homens de bem podem lamentar com mágoa pura e sem mescla de outro sentimento. Carnot foi, por excelência, o magistrado íntegro.

Sem nenhuma das qualidades brilhantes de espírito que cativam os lados imaginativos da raça francesa, ele foi todavia popular, e, apesar dos leves sorrisos que provocava o seu feitio exageradamente empertigado, o mais popular talvez de todos os chefes de Estado, neste últimos cinquenta anos em França. E a razão é que ele encarnava admiravelmente todos os outros lados do temperamento francês, os do bom senso positivo, da prudente moderação, do trabalho zeloso, da probidade e da veneração pela lei. Todos estes traços de carácter se encontram em França, principalmente na burguesia provincial; por isso Carnot era sobretudo querido nas províncias e se podia considerar como um presidente não parisiense, mas provinciano, o que constitui, para quem conhece Paris, um dos seus méritos, se não o seu mérito maior. Decerto para a sua popularidade concorreram três grandes factos que ele pessoalmente não criou, mas a que soube presidir com perfeita dignidade e tacto: a supressão do boulangismo, último ferimento do espírito cesarista; a Exposição Universal de 1889; e a aliança ou festas aliadas da Rússia e França. Todos estes acontecimentos, de resto, se prendiam com aquela ordem de preocupações que nele eram mais vivas, a da grandeza material da

França e do seu predomínio social na Europa. Peado, travado pelos seus escrúpulos de legalidade em tudo o que se relacionava com a política interna (ao contrário de Grévy, que só se interessava pelo parlamentarismo e pelos seus episódios), era para as relações exteriores da França, para a sua situação e glória na Europa, que Carnot dirigia, se não uma franca iniciativa, ao menos aquela porção de iniciativa secreta de que se considerava ainda legalmente senhor. E aí os seus serviços foram reais e eminentes, porque, se não teve em política externa dessas ideias seguidas, novas ou fortes, que outrora, quando havia reis, se chamavam «as grandes ideias do reinado», mostrou na sua conduta de chefe de Estado, exposto à observação das chancelarias europeias, tanta correcção, e prudência pacífica, e sentimento da grandeza nacional, que fez acreditar à Europa numa França tão digna, tão prudente, tão pacífica e tão forte na consciência da sua grandeza como se mostrava o chefe que ela escolhera. Por esse lado, Carnot foi um valioso cooperador da confiança da França em si mesma e da paz em toda a Europa.

Particularmente, era o mais excelente dos homens – afável, caritativo, leal, clemente, cultivado.

A multidão, que o via sempre tão teso, metido numa casaca que parecia de ferro, com a barba muito negra e dura, a barra vermelha da Legião de Honra destacando sem um vinco no peitilho rígido, tendia a pensar que tudo, no homem interior, era também seco, rígido, duro.

A multidão enganava-se redondamente. Carnot era um brando, quase um sentimental.

Há assim destas figuras de madeira, que vivem por dentro de uma vida ignorada, que é cheia de sensibilidade e de calor afectivo.

Um jornal que sempre incondicionalmente o honrou, e que costuma pôr nas suas palavras uma sisudez ponderosa, e mesmo solene, o Temps, resume o elogio fúnebre de Carnot afirmando que ele era un brave homme. A expressão assim, isolada, pode parecer familiar, talvez rasteira, mesmo laivada de vago desdém. Mas, quando junta a todas as outras que definem o seu carácter público, logo se sente que esta as completa, as embeleza, e espalha sobre elas como um indefinido perfume de bondade e doçura, sem as quais nunca há verdadeira superioridade moral. E Carnot, ele próprio, na lista extensa das suas virtudes íntimas e cívicas, apreciaria, mais que todas, esta, que tem um feitio tão simples, de brave homme. Na sua vida, na sua alta magistratura, foi sempre um brave homme.

E isto, no chefe eleito de uma democracia, e talvez a melhor condição – porque dos grandes génios vêm por vezes grandes males, e nunca vem senão bem de uma bondade honesta e grave.

 

 

 

 

 

 


XVIII

 

A MORTE E OS FUNERAIS DE CARNOT

 

Paris, sentado nos terraços dos cafés, bebendo aos goles, devagar, limonada ou xarope de groselha e soda, enxuga a testa e repousa das emoções por que passou nesta semana, com trinta e cinco graus de calor (à sombra). Que emoções, com efeito, e tão atropeladas, tão desencontradas, desde essa manhã de segunda-feira em que cada um de nós foi acordado quase violentamente pelo seu criado, que, sem abrir as vidraças, espalhando logo na penumbra da alcova um pouco do assombro e do horror que invadira a cidade, exclamava ou balbuciava: «O Sr. Carnot foi assassinado em Lião!» Depois disto não era possível, nem readormecer, nem preguiçar. Paris inteiro, sem banho, quase sem almoço, desceu à rua, como Atenas nos grandes dias cívicos, e ficou na rua durante uma semana, falando alto e comprando vorazmente jornais. Tantos jornais arrebatava e logo arremessava que, à noite, macadame e asfalto desapareciam sob uma camada de lixo impresso, o mais triste de todos os lixos.

Esta multidão, tão sobreexcitada interiormente, conservava todavia uma compostura calma, semelhante à de um público num teatro, que, enquanto os heróis agonizam no tablado, se sente perfeitamente seguro, e seguras, em tomo dele, a vida e a ordem da cidade. E que a morte de Carnot só afectou realmente a imaginação de Paris. Era como uma tragédia improvisada por um forte génio trágico, representada inespe-radamente uma noite em Lião, e de que os jornais viessem contando os lances de sangue e luto.

O punhal do italiano, escondido entre as flores, à boa maneira italiana da Renascença, não ferira, ferindo Carnot, nenhum desses interesses que são para o homem, individualmente, como pedaços da sua própria carne, ou para a sociedade como o cimento donde depende a sua estabilidade O bem-estar mais íntimo dos cidadãos, hoje, não se altera com as catástrofes sofridas por aqueles que os governam: e o Estado não sofre uma arranhadura quando o seu chefe morre de uma punhalada. Outrora, a supressão violenta do chefe causava um abalo universal, uma tumultuosa deslocação de interesses, quase uma transformação de costumes. Quando Henrique IV é assassinado na Rua de la Feronnerie, como Carnot, toda a França, horas depois, segundo a viva expressão de Michelet, ficou revirada de dentro para fora como uma luva. A laboriosa obra do reinado desaba bruscamente; o tesouro amontoado por Sully é esbanjado ao vento; todas as construções, por falta de dinheiro, se interrompem; todas as grandes manufacturas se fecham, e os operários vagueiam famintos; a trama das alianças, tão habilmente urdida, num instante está desfeita – e aí temos em breve a Guerra dos Trinta Anos! Aquele rei morto levava consigo para o túmulo o pão, a paz, a posição, as vaidades de milhares de vassalos. Por isso em Paris foi terrível a desolação. Como diz ainda Michelet, cada cidadão se considerou pessoalmente perdido: e nas casas, como uma desgraça doméstica, as mulheres gritavam arrepelando os cabelos!

Com a perda do Sr. Carnot, assassinado como Henrique IV, nenhum cidadão (supérfluo é lembrar) se considera perdido: e as mulheres, em vez de arrepelar o cabelo, põem mais cuidado em o pentear, para assistirem, com uma curiosidade ligeira, à festa dos funerais.

Não há obras interrompidas, nem operários despedidos. Pelo contrário! O trabalho cresce. Os jardineiros, os floristas, os fabricantes de coroas, embolsam mais de três milhões de francos. O assassinato do chefe do Estado anima o comércio. De facto, não há nada mudado em França – apenas um bom francês de menos.

Isto não prova a fraqueza das instituições monárquicas, porque depois de Henrique IV morto houve logo Luís XIII posto, e o trono de França, com as mesmas flores-de-lis, ainda durou triunfalmente dois séculos. Mostra apenas que hoje o Estado já não está todo contido dentro do chefe – e que o chefe é apenas o remate decorativo do Estado, podendo ser bruscamente derrubado por uma rajada de crime sem que o edifício que ele rematava se abale, e nem por um momento diminua, ou se modifique, ou sequer se interrompa, a vida intensa que circula dentro do edifício e que o torna vivo. O regicídio deixou assim de ser uma tragédia política – para se tomar simplesmente uma tragédia doméstica, que no povo não pode interessar mais que a imaginação.

O que Paris durante esta semana sentiu (além de uma compaixão natural pelo bom homem morto e pela admirável viúva) foi uma curiosidade feroz do detalhe trágico. Os jornais concorreram para exaltar esta curiosidade, menos pelas coisas dolorosas que vinham contando, como pela maneira terrifica com que as anunciaram, em tipo disforme, letras de três polegadas, de um negrume sinistro, enchendo toda uma folha, e na sua nudez mais estridentes que gritos! São estas letras de descomedido espalhafato, imitadas da América e exageradas como toda a imitação interesseira, que exacerbam a sensibilidade moderna. As pestes, as guerras, as quedas de impérios, eram outrora narradas pelos jornais no seu tipo miúdo e ordinário e a notícia das catástrofes entrava no nosso espírito de um modo manso e discreto, sem produzir nele alvorotos violentos. Agora, estas letras espaventosas invadem com pavor o nosso pobre cérebro; e à maneira de touros que se precipitam dentro de um templo, põem a quieta assembleia das nossas ideias em confusão e terror. Uma tarde desta semana, nos bulevares, um jornal astuto e videiro, a Cocarde, apareceu ostentando na sua primeira página, larga como uma página da Gazeta, estas duas linhas únicas, num tipo despropositado, sem precedentes, que se avistava a uma milha: «O embaixador de França foi assassinado em Roma!» Vi mulheres, ao receberem nos olhos desprevenidos este tremendo berro tipográfico, quase desmaiarem: e por onde passavam os vendedores, agitando o cartaz pavoroso, a multidão redemoinhava, como sob um grande vento de medo e cólera!

Assim, durante a longa semana, andou veementemente sacudida a nossa imaginação. De resto a tragédia de Lião era bem própria a agitar as imaginações mais ronceiras e dormentes. Raramente o destino ou o acaso (se é que o destino se conservou indiferente) envolveu um regicídio em cenário mais comovente, de contrastes mais patéticos, acumulando nele uma tal profusão de detalhes horríveis na sua trivialidade, e quase medonhamente grotescos através do seu horror. Essa noite parece composta por Shakespeare e retocada aqui e além, depois, por Hoffmann. Quem mais a saberá e a contará em toda a sua miúda realidade? E que contraste intenso já, em que o mais doce e ordeiro dos homens assim findasse na mais ementa e atabalhoada das tragédias! Carnot morre com um requinte dramático que faltou a César! Vede logo o cenário! Não é a sala grave do Senado, onde os punhais se erguem com a serenidade raciocinada de uma votação – mas a rua iluminada de uma cidade em festas, numa noite de gala. Todas essas flâmulas, e bandeiras, e rutilantes arcos de gás, e festões multicores de lanternas chinesas, e esparsos fogos-de-bengala, e escudos de luz, e palanques, e orquestras são para celebrar o homem que passa no seu landau, e saúda, e sorri. Uma multidão sincera, de uma boa sinceridade provinciana, para quem esse homem, com a placa e grã-cruz da Legião de Honra, cercado de couraceiros, encarna realmente a majestade de França, grita: «Viva Carnot! Viva Carnot!» E de repente a majestade da França cai para cima das almofadas do coche, com a face descomposta, lívida! Foi um qualquer, surdindo das profundidades da plebe, com os sapatos rotos, uma velha jaqueta de pano cor de mel, que, num relance, lhe enterrou um punhal no ventre. Punhalada quase impessoal, em que o braço não é mais do que a prolongação inconsciente da lâmina de ferro, e que vem de baixo, de longe, de muito longe, das camadas escuras do proletariado esfaimado... E o landau lá vai, lá foge a galope, entre o ansioso tropear da escolta, levando o chefe de Estado que se escoa em sangue. (O Estado, recentemente, para o proteger, gastara mais um milhão de francos em reforçar a polícia!)

Oh!, esta sinistra fuga, para o palácio da Prefeitura, do landau de corte tornado bruscamente carro de hospital! Já para dentro saltara um cirurgião, que, de mangas arregaçadas, tendo desabotoado as calças do presidente, palpava a ferida, vedava o sangue com os lenços emprestados pelos lacaios. E assim galopa um quarto de hora furiosamente, sob as bandeiras, os arcos de buxo e as grinaldas de luzes. Um mero cidadão seria logo transportado, e em braços, ao pátio de uma casa, ao balcão de uma botica. Mas o presidente tem de recolher ao palácio, ainda que se esvaia em sangue, porque, mesmo numa república, é severa a regra do protocolo! Nas ruas, a multidão, que nada sabe da punhalada e vê passar entre os couraceiros o landau de Estado, onde vagamente se agitam e brilham plumas e dragonas de generais, bate as palmas festivas, aclama Carnot! Mas em cima, nas janelas, a gente que as enche tem uma visão estranha, terrível, quase burlesca – o chefe do Estado estendido, com a grã-cruz, a placa de diamantes da Legião de Honra e o ventre nu, a fralda da camisa flutuando, já tingida de sangue! Visão espantosa que passa entre ovações – ao clarão dos fogos-de-benguela, sob o estalar dos foguetes. Passa, desaparece, num galope de cavaleiros, deixando apenas o sulco arrepiador daquela fralda branca e sangrenta!

À porta do palácio da Prefeitura a confusão é tão grande que dois repórteres, sôfregos de se envolverem num acontecimento histórico, se apoderam do corpo do presidente e o arrancam do landau, um agarrando uma perna, outro um braço. Começa o penoso, hesitante transporte através das escadarias e passagens da Prefeitura, um palácio novo, mal conhecido ainda, estreado nesses dias de gala.

Logo no primeiro patamar há um embaraço angustioso... O presidente só devia recolher tarde, depois da representação de gala no Grand-Théâtre; toda a criadagem, com três horas livres, abalara para as festas, para os fogos da Exposição – e as luzes estavam apagadas, todos os corredores em trevas! E ninguém tinha um fósforo! O ferido, desmaiado, arrefece, perde o sangue. E a ansiedade toda é por um fósforo. Enfim, lá dardeja ao fundo um bico de gás. O corpo do presidente é pousado sobre a colcha de seda do seu leito de cerimónia.

Mas, através das portas escancaradas da Prefeitura, penetrara uma imensa turba, que atulhava os corredores, invadia o quarto, estorvava os serviços dos cirurgiões. Foi necessário que acudisse polícia e tropa para rechaçar, através do palácio, aquela multidão, tomada de uma curiosidade furiosa, e onde autoridades, magistrados, ministros, se debatiam, berravam, repelidos no longo rolo. Um magote mais tenaz, em que havia senhoras, permaneceu fincado diante da porta do quarto lamentável. Não há nada, já notou Victor Hugo, que mais aguce a curiosidade do que um muro, uma porta fechada, por trás da qual se está passando alguma coisa de irreparável.

Quando essa desejada porta se abria, dando passagem a algum general com bacias ou panos ensanguentados, todos, homens e senhoras, se empurravam, se esticavam para contemplar o chefe de Estado no seu leito, ainda de casaca, ainda de grã-cruz, com o ventre nu, as pernas fluas...

Assim morria nesta desordem, o mais decoroso dos chefes de Estado.

César ao cair deu um grande movimento à toga, para se tapar todo, numa suprema decência – e em tomo dele não havia senão os brancos mármores do Senado deserto, e ao fundo um personagem consular, muito velho, muito gordo, que adormecera, nada percebera do feito supremo e continuava ressonando, com o lábio pendente, enquanto esfriava o corpo gasto do vencedor das Gálias e se mudava a ordem do mundo.

Enfim o presidente está morto, lavado, vestido, com a sua casaca, as suas insígnias – e apertando na mão já hirta um par novo de luvas brancas. Defunto, Carnot parece manter aquela correcção oficial que fora o seu cuidado durante a vida. Para comparecer na presença de Deus, como chefe de Estado, ele tem a sua placa de diamantes, a sua grã-cruz e nas mãos as suas luvas novas. Estas luvas de além da campa muita gente as acha estranhas! Elas são todavia do velho cerimonial funerário de França. Os reis de França eram enterrados com luvas. O grande cavaleiro Roldão, ao morrer em Roncesvalles, tira, no derradeiro arranco, o seu guante de escamas de ferro e entrega-o ao arcanjo S. Miguel, que ao lado esperava para conduzir ao Senhor o alto paladino da cristandade. Era da etiqueta feudal, nos tempos carlovíngios, que o vassalo, ao penetrar no solar do seu suserano, despisse o guante da mão direita e o abandonasse a um pajem.

Roldão não esquece este acto de vassalagem. Ao transpor as portas do céu, que é o solar de Deus, suserano absoluto, ele tira o guante e gravemente o entrega ao arcanjo, como a um pajem celeste.

Todos sabem, porque bons livros o contam, como Deus acolheu o cavaleiro perfeito e lhe chamou sorrindo seu filho. Assim, através das idades, a tradição liga Carnot a Roldão.

Considerai também como é dramático o modo escondido e calado com que regressou a Paris o corpo de Carnot. Na gare não havia uma autoridade, um ministro, ninguém do grande pessoal do Estado, quando o comboio que trazia o cadáver, apareceu, sem um sinal, sem um apito, sem um rumor, deslizando fúnebre e mudamente, como um fantasma de comboio, vago e coberto de crepes. De uma portinhola saiu, no mesmo silêncio, Madame Carnot, vestida como na véspera, quando correra a Lião, com um chapéu enfeitado de flores vermelhas. O caixão é metido à pressa num carro, sem solenidade civil e religiosa; e à pressa, num trote fugidio, através das ruas mais desertas, onde clareava a madrugada, levam-no para o Eliseu. O morto como que é recolhido às ocultas ao seu palácio, para se instalar metodicamente na sua capela-ardente, e depois, quando não faltasse uma colgadura nem um tocheiro, abertas as portas, e com a sumptuosidade que lhe competia, receber as supremas honras funerais. Atrás dele, pelas ruas desertas (segundo contam) só o acompanhou um fiacre, com vadios e mulheres nocturnas, fumando cigarros, de perna estendida. Estranho remate de uma noitada estroina – seguir num fiacre o cadáver do chefe do Estado!

Ao outro dia, porém, com a luz, começaram a pompa e o luto público. Mas então cessam também os lances inesperados e melodramáticos. Tudo se toma regular, fixo e pautado pelo protocolo. Hoje Paris desfila, com curiosidade e emoção, ante o ataúde do presidente, posto em capela, no devido luxo de flores e de luzes, coberto com a tricolor. Amanhã Paris, numa curiosidade crescente, mas já diminuída a emoção, fará densas alas ao presidente que passa para o Panteão.

Funerais magníficos decerto – mas de uma magnificência muito cerceada pela sobriedade do gosto francês e pela simplicidade oficial da democracia. A democracia, oficialmente, usa casaca de pano preto – e o severo gosto, em França, não permite nestas pompas outro luxo, além do luxo das flores. Tudo o que outrora na Antiguidade, e depois na Renascença, fazia o esplendor das cerimónias fúnebres – a sumptuosidade dos trajes, as sedas negras caindo dos balcões, os incensadores fumegando, os coros dolentes, os corcéis ricamente ajaezados, as insígnias simbólicas, os troféus, os andores, os estandartes, os carros de deslumbrante arquitectura, a riqueza patrícia, as criadagens agaloadas, e o incomparável fausto da Igreja com os seus báculos, as suas mitras, as suas púrpuras, as suas casulas de ouro – toda essa magnificência estética aqui falta. Um pobre carpinteiro de Florença ou Roma, da Florença dos Medicis ou da Roma de Leão X, nunca acreditaria, contemplando esta procissão funeral, que uma opulenta e artística nação estava fazendo a apoteose do seu chefe assassinado. Todavia a França, dentro das restrições impostas pela sobriedade do seu gosto e pela simplicidade da sua democracia, prestou a Carnot, largamente, todas as homenagens e preitos simbólicos. As flores que lhe ofertou foram incontáveis, custaram mais de três milhões de francos, e durante todo um dia perfumaram o vasto ar de Paris. E toda a França organizada, desde os corpos de Estado até aos clubes ginásticos, acompanhou o seu féretro ao Panteão, que a pátria reconhecida reserva aos grandes homens.

Mas essas flores, uniformemente arranjadas em coroas, e acumuladas sobre carros, ou conduzidas isoladamente em andores, algumas enormes, de dois metros de diâmetro, e semelhando bolas pintadas de cores vistosas, não podiam formar, na sua uniformidade dogmática, um quadro de beleza, só impressionavam pela abundância, pela ideia mercantil dos milhões gastos, e em breve murchos.

E a França toda atrás era apenas uma infinita e cerrada fila de casacas pretas. Interminavelmente passavam na irradiação do sol de Julho as casacas negras. Aqui, além, por vezes, um grupo de embaixadores, as fardas de um estado-maior, os juízes com as suas becas escarlates destacavam, numa mancha fugitiva de brilho e cor. Mas logo se prolongavam, se eternizavam, as calças pretas, as casacas pretas, marchando em cadência. Nos olhos pesados, no espírito meio entorpecido, não restava por fim senão a impressão dormente de um mudo e lutuoso perpassar de fato preto.

E aos olhos cansados, ao espírito adormentado, voltava, para embotar mais a emoção artística desta pompa, a memória de outras pompas, a de Thiers, a de Gambetta, a de Victor Hugo, em que também assim marchavam, em longas milhas, calças pretas, casacas pretas.

Uma novidade, porém, e singular, impressionava nestes funerais de Carnot: e era que, atrás do féretro, coberto com a bandeira tricolor, se entreviam num carro batinas e sobrepelizes de padres. Depois, à frente dos embaixadores, marchava o núncio do papa, nas suas grandes vestes roxas. E por todo o préstito, mesmo misturadas aos uniformes, apareciam, aqui, além, sotainas de padres. Novidade considerável! E então se atentava mais em que esta tragédia do presidente assassinado fora realmente, toda ela, em todos os seus actos, seguida e ministrada pela Igreja. Carnot moribundo recebeu os santos óleos das mãos do arcebispo de Lião.

Na capela-ardente, entre os generais que o guardam, rezam padres e freiras desfiam os seus grossos rosários. Ao pé do caixão há um hissope, numa caldeira, com que Paris, ao desfilar, asperge as pregas da bandeira que cobre o corpo, de modo que ao fim do dia a tricolor está toda orvalhada de água benta. E o cura da Madeleine, de cruz alçada, com o seu clero, que vem ao pátio do Eliseu fazer a entrega do corpo, segundo o velho ritual de Paris. Agora aqui vão padres atrás do carro funerário. Toda esta pompa marcha para Notre-Dame. As portas da antiga catedral, o arcebispo de Paris reza os responsos finais, e do púlpito, como nos tempos de Bossuet, faz a oração fúnebre do presidente da República. Os radicais, os livre-pensadores, entraram na sombria nave, e de joelhos, por decência, abalados por vagas memórias, baixaram a cabeça ao levantar da hóstia. E depois outros padres irão ao Panteão, desconsagrado pela república, para rebenzer o jazigo do presidente, que é ao lado do jazigo de Voltaire!

Estranhas vicissitudes! Carnot, morto, leva atrás de si pelas ruas de Paris o radicalismo compungido – e é para os altares que o vai levando.

Conheço uma velha gravura alegórica do século XVI, em que, atrás de um cortejo, e também funerário, se vê um personagem de cornos, de pés de bode, que, todo torcido, como o rabo vexadamente metido entre as pernas peludas, vem rosnando e roendo as unhas, numa evidente mostra de humilhação e rancor. E o Diabo. Pois também neste cortejo derradeiro de Carnot, me pareceu avistar, lá ao longe, o nosso velho amigo, o jacobinismo de barrete frígio, com a face baixa, o ar pelintra, roendo as unhas, horrendamente humilhado.

Toda esta semana, com efeito, tem sido para ele de humilhações. Mas o desventurado já as não conta! Desdenhado pela ciência, mais desdenhado ainda pela filosofia, rechaçado pelas letras, abominado pela arte, espancado pela mocidade no pátio das escolas, troçado pelos caricaturistas, apupado pela plebe, esse pobre jacobinismo, tornado um objecto de escândalo e tédio, anda aí mais escorraçado, neste fim do século XIX, do que o Diabo, nos fins do século XVIII, nas vésperas da sua morte. A sua maior humilhação, porém, vem de que a França, a França que o produziu, e que ainda hoje, de certo modo, o produz, nesse mesmo dia dos funerais, e pela voz de um dos seus melhores espíritos, o declarou, com aviltante desdém – um produto de exportação!

Oh!, empertigados manes de Robespierre! O jacobinismo declarado em Paris – produto de exportação! Tal é a fragilidade das seitas. Sic transit gloria diaboli.

 

 

 


XIX

 

JOÃO DE DEUS

(OS DE PARIS A JOÃO DE DEUS)

 

A alma poética do povo português encarnou em João de Deus. E por esta encarnação, que o tomou um poeta ingénuo e profundo, infantil e sublime, se explica a sua vida e a sua lenda, a sua fluida e singela maneira de improvisador e rapsodo errante, os temas eternos e simples sobre que incessantemente se exerce o seu poder de idealização, a graça da sua melancolia e a suavidade da sua ironia, a viçosa duração dos seus versos, sobrevivendo a todas as evoluções da arte e do gosto, que tanto verso atiram para o lixo das literaturas, a luminosa facilidade com que cativa os espíritos mais primitivos, e ainda os mais saturados de cultura crítica; e enfim esta simpatia que irradia, por todos sentirmos nele como a expressão genuína dos nossos ideais nativos, e que hoje nos traz aqui, com ramos verdes, a cantar os seus louvores em romaria amorável.

João de Deus, o João (porque a popularidade eliminou os apelidos que o prendiam a uma família, e apenas lhe deixou um nome, como aos santos, que são de todos), não se sentiu poeta lendo os poetas. Exactamente como o povo, foi pela música, cantando à viola dos campos, que ele penetrou na poesia. As suas primeiras estrofes foram arrancadas, como soluços naturais, pela morte, pela injusta morte, a daquele «lírio delicado e frágil» que tão docemente se debruçava de uma janela da velha Coimbra romântica, e que murchou antes de abrir. Depois, muito naturalmente também – porque se uma flor seca, outras desabrocham e dão o seu pleno aroma –, cantou a beleza forte e o amor. Mas pelo amor facilmente se vai a Deus, e o seu génio poético tomou o hábito desse caminho transcendente, e por ele se passou a sua existência lírica, peregrinando da Terra ao céu, recolhendo do divino ao feminino, ora arroubado ante o poder do Senhor, ora ante a graça de dois olhos finos, de tal sorte que, na adoração contínua do seu verso, se confunde por fim Maria que está nos céus e aquela que fazia meia, sentada à porta do seu casal, com o peito redondo e arqueado.

 

Como de pomba farta e satisfeita...

 

E para ele, como poeta, não existiram mais senão estes dois interesses, a mulher e a divindade. A todo o seu século, a este fecundo e revoltoso século, permaneceu sempre alheio, senão pela inteligência, ao menos pelo sentimento. Nem a ruidosa deslocação de classes, nem as ilusões humanitárias da democracia, nem a conquista violenta dos direitos políticos, nem a obra grandiosa da ciência experimental, nem as audácias da mecânica, nem revoluções sociais, nem transformações espirituais –o comoveram ou tiraram um som à sua lira amorosa e sacra.

Menos ainda influíram na sua arte de cantar, essa passagem de formas novas que vão surpreendendo e mudando o gosto desde Lamartine até Verlaine. Como se fosse o primeiro homem, antes de nascerem outros homens, e começarem os livros, João de Deus ficou sempre fechado no seu Paraíso poético – com Eva e com Jeová. Mas pela nobreza dos seus instintos religiosos, pela força da sua rectidão intelectual, pelo sentir intenso da beleza –ele, sem passar pelos dogmas, procurou e por vezes encontrou a divindade; ignorando as Poéticas, realizou supremamente a poesia, e, sem atender às metafísicas, chegou, na sua obra e na sua vida, à pura verdade moral.

É pois bem justo, e útil para a dignidade pensante da nossa terra, que entre todos apontemos para este homem, tão poético como os poemas, murmurando, com a reverência e o amor do velho florentino: «Onorate l’altissimo poeta!»

 

Paris, 22 de Fevereiro de 1895.