CENAS PORTUGUESAS

I


A Capital!
(começos de uma carreira)


Eça de Queirós


Capítulo I

A estação de Ovar, no caminho de ferro do Norte, estava muito silenciosa pelas seis horas, antes da chegada do comboio do Porto.
A uma extremidade da plataforma, um rapaz magro, de olhos grandes e melancólicos, a face toda branca da frialdade fina de Outubro, com uma das mãos metida no bolso de um velho paletot cor de pinhão, a outra vergando contra o chão uma bengalinha envernizada, examinava o céu. De manhã chovera e a tarde ia caindo com uma suavidade muito pura. Laivos rosados esbatiam-se nas alturas como pinceladas de carmim muito diluído em água, e longe, sobre o mar, para além da linha escura dos pinheirais, por trás de grossas nuvens tocadas ao centro de tons de sanguínea e orladas de oiro vivo, subiam quatro fortes raios de sol, divergentes e decorativos — que o rapaz magro comparava às flechas ricamente dispostas de um troféu luminoso.
Na estação, havia apenas um passageiro esperando o comboio: era um mocetão do campo que se conservava imóvel, encostado à parede, com as mãos nos bolsos, os olhos duramente cravados no chão; ao lado, sentadas sobre uma arca nova de pinho, estavam duas mulheres, uma velha e uma rapariga grossa e sardenta, ambas muito desconsoladas, tendo aos pés, entre elas, um saco de chita e um pequeno farnel de onde saía o gargalo negro de uma garrafa.
O chefe da estação, gordo, com o queixo amarrado num lenço de seda preta, o boné de galão sujo posto muito ao lado, apareceu à porta da sala das bagagens, de charuto nos dentes. O rapaz magro dirigiu-se timidamente para ele:
— Creio que o comboio vem atrasado...
O chefe afirmou silenciosamente com a cabeça, e depois de uma fumaça:
— Vem sempre atrasado aos sábados... É a demora em Espinho.
O rapaz esteve um momento raspando o chão com a bengalinha — e foi andando devagar ao longo da plataforma. Reparava agora no moço do campo: decerto ia a Lisboa, embarcar para o Brasil; e sensibilizado pela face tão desolada da velha, pensava que o Emigrante daria um motivo tocante de poesia social, quadras de cor rica — os vastos azuis do mar contemplados de uma amurada de paquete, as noites saudosas, longe, numa fazenda do Brasil, quando a Lua é muito clara e os engenhos estão calados... E aqui, no casebre da aldeia, os pais chorando à lareira e esperando o correio... Entrevia mesmo os primeiros versos:

Ei-lo que deixa o lar, a mãe chorosa,
Os verdes campos, o casal risonho...

Procurava a rima, já interessado, quando um sujeito baixote e bochechudo, de boné escocês, apareceu na grade da estação, com uma chapeleira de papelão azul, a galhofar com duas raparigas que o seguiam, oferecendo ovos moles ou mexilhões para ele levar para Lisboa.
— A ti é que eu te levava, Mariquinhas; queres tu vir?
— É já, Sr. Joãozinho... Vou buscar o Sr. Padre Mendes, que nos casa aqui mesmo.
Mas o sujeito bochechudo avistou o rapaz magro, de paletot cor de pinhão, e a estação de Ovar, no caminho-de-ferro do Norte, estava muito silenciosa, pelas seis horas da tarde, antes da chegada do comboio do Porto. exclamou:
— Olá, sô Artur! Então também se vai até Lisboa?
O Sr. Artur sorriu:
— Quem dera! Não; vim apenas esperar meu padrinho que vai de passagem para lá.
O outro puxou as calças para a cinta e disse, rindo:
— Homessa! E vem o amigo de Oliveira de Azeméis aqui, para ver passar seu padrinho no comboio?...
— Então? Para lhe apertar a mão, desejar-lhe boa viagem...
— Diabo! — disse o outro. — Já é ser bom afilhado!... Eu não o fazia nem por meu pai. Pousou a chapeleira, petiscou lume e tirando uma fumaça do cigarro, continuou com satisfação: — Pois eu vou-me até à capital!... Desenferrujar... Se quiser alguma coisa...
— Que se divirta!
— Fica por minha conta! Há-de encher-se este ventrezinho! E então que vamos ter um rico Inverno em Lisboa! Sassi em S. Carlos, cancanistas francesas no Casino... Naturalmente fornada nova de espanholas... Não lhe digo mais nada... Deu outro puxão às calças e foi colocar com prudência a chapeleira de papelão ao lado de um saco de tapete. Artur seguia-lhe o dorso grosso, curvado sobre a bagagem, os quadris de obeso sobre que estalava uma calça cor de avelã; e pensava com desconsolo, que era aquela criatura endinheirada que ia para Lisboa, o Joãozinho Mendes, de Ovar, a quem chamavam em Coimbra o Chouriço e era incapaz de compreender um livro ou mesmo um dito! E lembrava a noite em que o Taveira, no Carneiro, muito bêbedo, improvisava injúrias ricas ao Joãozinho Mendes:

Lá na eterna Salgadeira,
Ensacando duma vez,
Dentro da tripa da Asneira,
Um naco gordo e roliço
Do lombo da Estupidez,
Fez-nos Deus este Chouriço!

O Taveira, com todo o seu génio, era um advogado pobre no fundo de Trás-os-Montes e o Chouriço, proprietário, ia em primeira classe ouvir Meyerbeer... Aquele bochechudo, em Lisboa, parecia-lhe semelhante a um lagarto de couve pousado sobre o mel de um cálice de madressilva; e esta comparação subtil, que o Chouriço nunca poderia ter inventado, consolou-o durante um momento da diversidade amarga da fortuna...
Mas um silvo penetrante de locomotiva cortou o ar calado e imediatamente o comboio apareceu. deslizando sobre os rails, dardejando ao alto jactos direitos de fumo branco.
— Pois eu, disse o Chouriço, aproximando-se com júbilo, enquanto o comboio parava, estendo-me agora ao comprido e levo a noite de uma soneca até Lisboa. Sei-a toda, hem? E amanhã a estas horas, na pândega! Vem pouca gente... Caramba, bonita pequena!
Era uma senhora, com um vestido de xadrez, que se debruçara à portinhola de um vagão de primeira classe; tinha um livro fechado na mão e o seu chapéu pequenino, feito de penas, parecia o peito roliço de uma ave negra.
Artur foi ao comprido do comboio, procurando o padrinho: não o encontrou. Quis interrogar o condutor que ao fundo verificava uma descarga de caixotes. Mas o homem não o atendeu, atarantado, de boné para a nuca, os olhos esgazeados: em volta dele, um guarda, o chefe da estação com as mãos atulhadas de papéis, o cocheiro do char-à-bancs da vila, vociferavam e bracejavam, tão aturdidos em torno dos quatro caixotes, como se os surpreendesse a acumulação inesperada de todas as mercadorias do Universo. Por trás da grade fechada da estação, as raparigas vozeavam também, oferecendo mexilhões e ovos moles de Aveiro. Artur, desconsolado, voltou ainda a olhar pelas portinholas até à terceira classe, onde soldados que conduziam um desertor beberricavam de uma garrafa.
Aí, o rapaz do campo acomodava devagar, debaixo do assento, o seu saco de chita e o farnel, passou depois o lenço pela testa como para limpar o suor, e, muito pálido, com os beiços a tremer:
— Adeus, mãe! — disse.
A velha abraçou-se-lhe desesperadamente ao pescoço:
— Meu filho! meu rico filho, que não te torno a ver! Oh! meu filho, oh! Senhor, que não o torno a ver!
— Adeus, mãe! Adeus, Joaquina! Tem de ser, tem de ser!
Beijou violentamente a velha na face, apertou nos braços a rapariga, saltou para o vagão e ficou com a cabeça enterrada nos punhos, aos soluços.
Artur comoveu-se. Pensou ainda na tristeza dos que emigram, nos pobres, nas existências trabalhosas em que o pão é um cuidado amargo. Quando viria à terra uma revolução de paz e de justiça dar a cada um um campo próprio a lavrar, uma lareira farta na velhice?
Veio andando devagar junto ao comboio. O Chouriço já se instalara numa primeira classe, de gabão pelos ombros, charuto nos dentes.
— E então o padrinho? — perguntou galhofando.
— Não veio.
O Chouriço esfregou as mãos, divertido:
— É boa! É muito boa! E vir o amigo expressamente de Oliveira de Azeméis...
— E depois de um momento: — A propósito, diga-me uma coisa, como vai o Teodósio?
— Não o tenho visto. Está prà quinta.
— E o que faz o amigo por Oliveira?
— Pra lá estou.
— Ainda se faz seu versinho, hem?
Artur sorriu ambiguamente. O Chouriço tirava o relógio, impaciente.
O guarda fechava as portinholas. As raparigas, com os tabuleiros à cabeça, recolhiam à vila; havia agora um silêncio na plataforma, de onde tinha desaparecido o chefe e o condutor. Naquela estação sonolenta, o comboio parecia ter adormecido, sob a tarde serena; só uma rapariguita ia dizendo a espaços, num tom plangente e fanhoso: água! água! E sem descontinuar, adiante, a máquina resfolgava baixo.
— Então nós ficamos aqui toda a vida? — exclamou uma voz irritada.
Era um sujeito gordo, que vinha com a senhora de vestido de xadrez. Artur então reparou nela; e pareceu-lhe tão linda, que ficou com os olhos pasmados num enleio que o invadia, sentindo bater forte o coração: nunca vira aquela delicadeza fina de pele, nem uma doçura tão tenra da linha oval; os seus olhos negros de grandes pestanas, um pouco tristes, enterneciam. Estava ainda debruçada à portinhola com o livro amarelo na mão; era pequenina e delicada e o corpete justo do vestido desenhava um seiozinho que devia caber na cova da mão.
Ela pareceu notar também aquele rapaz tão admirado; retirou-se devagar para dentro da carruagem, mas tornou logo a debruçar-se à portinhola, compondo ligeiramente o laço fofo da gravata de renda — e os olhos de ambos encontraram-se.
— Boa pequena, hem? — disse o Chouriço. — Eu estive para me meter na mesma carruagem e tinha divertimento para toda a noite. Mas embirrei com a cara do marido.
Artur achou-o também odioso — com as suas bochechas balofas e brancas, o chapelinho de casimira sobre o cabelo encarapinhado, o beiço sensual de comilão e um enorme pince-nez, com a fita passada por trás da orelha.
— Eu parece-me que o conheço de Lisboa, creio até que é Barão — disse o Chouriço.
Mas o chefe da estação badalava a campainha e o comboio começou a rolar devagar com estalidos secos dos freios retesados.
— Adeus, amigo, saúde! — exclamou o Chouriço.
— Até à vista!
Os olhos da senhora de vestido de xadrez pousaram-se ainda um momento nos de Artur. Outras faces passaram diante dele, apoiadas aos vidros: os soldados e o desertor galhofavam de garrafa à boca e o rapaz do campo, com os olhos vermelhos como carvões, dizia adeus agitando um grande lenço; a velha ia seguindo o vagão, a gemer, estendendo-lhe ainda desesperadamente as mãos duras e negras. Por fim o trem, com um silvo penetrante, desapareceu na curva, entre os pinheirais já escurecidos.
Artur sentia-se triste. Toda a noite, assim, aquele comboio rolaria, passando as estações iluminadas, as aldeolas adormecidas, levando o Chouriço, feliz, estirado no seu gabão, o pobre emigrante banhado em lágrimas, o desertor para a enxovia, aquela linda mulher para o seu palacete. De madrugada chegariam a Lisboa: a Lisboa que lhe parecia mais desejável, pensando que era só lá que uma civilização superior produzia aquelas belezas delicadas de perfil patrício, como certas flores preciosas que só nascem em terrenos muito preparados! Quem seria ela? O gordo de pince-nez era, decerto, o marido; e sentia ali duas existências discordantes: ele pesado e material, ela de uma sentimentalidade subtil... Desejaria saber o seu nome e o seu passado, os seus gostos, o tom da sua voz e que poeta preferia. Feliz o que escrevera aquele volume que ia lendo e que a fazia cismar: devia ser talvez um romance de Daudet ou de Sandeau, uma obra delicada e nobre. Em que pensaria ela durante essa noite toda, com a cabecinha pálida apoiada ao encosto do vagão, enquanto, defronte, o marido muito prosaicamente ressonasse? Lembrar-se-ia da estação de Ovar!...
Artur deu ainda um olhar aos rails que iam assim, continuamente, paralelos e luzidios, até Lisboa — e ia atravessar para o outro lado da estação onde o esperava o char-à-bancs de Oliveira de Azeméis, quando viu um sobrescrito caído na plataforma, no lugar sobre que ela se debruçara. Apanhou-o vivamente, leu:

Ex.ma Sr.a Baronesa de Pedralva
Hotel Francfort
Porto.

Então imaginou logo que ela o deixara cair, para lhe dar com o seu nome a certeza da sua simpatia; e entreviu, num relance, uma correspondência romanesca trocada entre eles, mais tarde um encontro em Lisboa, ou em Sintra, e um grande amor à Rafael, todo cheio de glórias e martírios... — e estava tão perturbado, que o Manuel cocheiro teve de lhe perguntar duas vezes «se o padrinhinho não aparecera».
— Não veio. Vamos lá, vamos lá!
Atirou-se para um canto do char-à-bancs. Sentia bem uma carta dentro do sobrescrito mas queria lê-la só no quarto em Oliveira, onde o mesmo ar estava repassado dos sonhos e desejos de amor. E enquanto o carro rolava surdamente na estrada já escura, Artur, olhando pela vidraça aberta, uma claridade terna de luar que aparecia por cima da linha negra dos pinheiros, recitava versos de Hugo, sufocado de uma melancolia deliciosa:

Et j'étais devant toi plein de joie et de flamme
Car tu me regardais avec toute ton âme...

Artur tinha então vinte e três anos. Pertencia a uma família burguesa, originária de Lisboa, mas dispersada na província desde a guerra civil. Seu bisavô paterno, que ficara na tradição familiar como uma glória doméstica, pertencera, em Lisboa, ao grupo de poetas parasitas que se entusiasmavam platonicamente nos botequins por Mirabeau e Robespierre, faziam sonetos aos fidalgos em dias de anos, desejavam morrer pela liberdade e espancavam a ronda ao sair dos saraus, onde eram admitidos para recitar elegias às Malvinas. Já velho, começara a traduzir em verso as Ruínas, de Volney, e os seus manuscritos eram propriedade de uma das suas netas, que casara em Oliveira de Azeméis e levara para sua companhia as duas irmãs mais novas, Ricardina e Sabina. Seu avô, esse, fora, no Porto, tabelião correcto e obscuro. Seu pai, depois de ter, na primeira mocidade, publicado duas Meditações funerárias num seminário do Porto, casara com a Srª D. Maria das Neves Alpedrim, senhora pálida e magra, que tocava harpa e fora comparada num folhetim do tempo a uma Virgem de Ossian; mais tarde estabelecera-se seriamente em Ovar, onde tinha obtido o lugar de escrivão de Direito.
Foi lá que Artur nasceu, anos depois — e a mãe, encantada, dera-lhe este nome, em memória dos seus tempos de harpa e dos cavaleiros de xácara, cujos amores e proezas na Terra Santa tanto  a tinham comovido.
O pai, esse, homem excelente e terno que até aí se desolara com a esterilidade do seu casamento, adorou logo a criança e com o seu respeito supersticioso pela magistratura, ainda Artur não fora baptizado, já o bom Manuel Corvelo decidira economizar com método, para mais tarde o levar a Coimbra e fazer dele um bacharel; mas, secretamente, esperava que o filho cultivasse as Belas-Letras, e a sua esperança era que o Arturzinho, um dia, reunisse em si as qualidades dos dois homens que ele mais admirava em Ovar — o delegado Pimenta, de argumentação tão capciosa, nutrido de legislação, um Pegas destinado a uma desembargadoria, e o advogado Silveira, de imagens floridas, célebre na comarca pelos seus folhetins poéticos no Campeão de Aveiro!
Às vezes, quando o pequeno Artur rabujava muito — o pobre pai, alta noite, de chinelos e paletot, embalava-o nos braços pelo quarto, cantarolando-lhe, numa voz roufenha, o Gentil Pajem de El-Rei até o adormentar; e ficava, então, enlevado a olhar para aquele rostozinho amarelo de lombrigas, ainda com uma lagrimazinha nas pestanas, imaginando-o já na sua beca de desembargador, célebre como Lobão e autor de um livro querido como Amor e Melancolia! Ele, por esse tempo, coitado, estaria velho: não poderia trabalhar, mas aquele serzinho que, agora, a sonhar lhe mamava no dedo, seria então um filho ilustre e bom, que, pela posição na Magistratura, lhe faria a velhice farta e pela glória nas Letras lhe tornaria o nome clássico.
Foi grande a sua alegria quando notou que nada calmava as raras perrices do Arturzinho, como folhear algum venerável in-fólio de antiga legislação; e sobretudo, mais tarde, quando viu que o divertimento querido do pequeno, não era rufar em tambores ou cavalgar vassouras, mas, aninhado nas saias da mãe, coser caderninhos de papel, que cobria de capas cor-de-rosa e de que acumulava colecções com a devoção de um velho bibliófilo.
— Sinais de inteligência — dizia muito sério, o bom homem.
Por isso, bem cedo, Artur começou a trabalhar o seu Tito Lívio e o seu Telémaco. Mas a mãe, que depois do parto ficara sempre adoentada, afligia-se do tamanho das lições, e se o rapaz, com sono, não fazia o tema, mandava ao outro dia secretamente um arrátel de chá ou de açúcar ao mestre João Grainha, para lhe acalmar a severidade. De Verão e de Inverno cobria-o de flanelas, e se o ouvia espirrar, fazia-o beber ao jantar copinhos de água quente; nunca o deixava adormecer sem verificar se ele tinha aos pés a sua botija, à cabeceira a imagem de Nossa Senhora, e ao lado a campainha, a lamparina, a chazada, o açucareiro e um ladrilhozinho de marmelada. E o próprio pai o ia buscar à escola, para impedir que os outros pequenos o fizessem correr ou lhe dirigissem chufas.
O rapaz, sob este regime, não se desenvolveu. Tinha a palidez, a graça nervosa de uma menina: uma porta que batia de repente fazia-o despedir um grito. A sua sensibilidade era como a corda muito afinada de uma rabeca: uma história triste, um não de recusa, punham-lhe logo nas pálpebras duas grossas lágrimas. A sua memória, que retinha longas poesias, fazia o espanto dos amigos da casa, e já quando ele tinha oito anos, era para o pai um grande orgulho ouvi-lo, nas noites de partida, entre o semicírculo enternecido das vizinhas, começar numa melopeia:

É noite, o astro saudoso
Rompe a custo o plúmbeo céu...

— Deve ir longe — dizia num tom profundo o escrivão, acariciando compenetradamente os três pêlos da calva. Mas o verdadeiro espectáculo era ouvi-lo recitar ternamente a fábula dos Dois Pombos:

Deux pigeons s'aimaient d'amour tendre...

Já então passava os seus fins de tarde, depois da aula, encostado à janela do quintal, trazendo sempre algum volume da pequena livraria do papá, um tomo de Filinto Elísio ou os Mártires de Chateaubriand, ou, sobretudo, alguma novela da Biblioteca das Damas.
Era de resto, como dizia o advogado Silveira, «uma gentilíssima criança». Tinha naturalmente as maneiras de um homenzinho, e a mãe babava-se toda quando o via, na sala, precipitar-se a recolher das mãos de uma senhora a xícara vazia, ou quando ele dava um shake-hands ao delegado Pimenta, com os pés muito juntos, todo curvado, como na Corte.
Enfim, um dia, o pai, comovido, surpreendeu os seus primeiros versos, copiados a limpo, numa bonita letra cursiva:

Junto a um ribeirinho serpeante
E eu, terno amante...

Foi ao outro dia, no tribunal, com os olhos húmidos, mostrá-los ao advogado Silveira, a maior autoridade literária de Ovar. Silveira elogiou-os largamente — sobretudo o final, de uma cadência lírica tão rica que o surpreendeu:

E eu celebrarei na minha frauta amena
Teus olhos, ó morena...

— Os versos estão todos certos — disse Silveira — e há duas imagens opulentas! Gentilíssimo rapaz! E tomou mesmo tanta afeição a Artur, que o presenteou com um Eurico, e propôs ao pai que nos dias feriados o deixasse ir para o seu escritório, onde lhe franquearia a sua livraria, «um verdadeiro banquete de inteligência». E assim, aos domingos, enquanto o Silveira à banca, de charuto nos dentes, ia entulhando de imagens floridas o seu folhetim semanal, Artur, a um canto, encolhido numa velha poltrona, devorava novelas e versos de Delille, de Garrett, de Volney e de Lamartine... Voltava sempre para casa exaltado. Fechava-se no quarto a trabalhar no seu Poema, de que já tinha quinze oitavas, e que se passava todo num jardim, entre ele, anjos e cavaleiros. Andava perdidamente namorado pela Joaninha das Viagens na Minha Terra, mas de um amor vasto, complexo, que a abrangia a ela, à casinha branca, ao rouxinol e a todo o vale de Santarém!
Era então um rapazola quieto e triste, de olhos bonitos e cabelo corredio. O crepúsculo, o sino das Ave-Marias, o fado à guitarra, afogavam-no em melancolia. Pensava muito no amor e às vezes na morte. Tinha gostos delicados, um pudor ingénuo. A cozinheira, uma forte mocetona de Estarreja de olhos de azeviche, roçava-se constantemente por ele, tentada por aquela pele macia de pajem tenro, e uma noite que os pais tinham ido para a soirée dos Cunhas, e Artur, constipado, ficara só em casa, de cama — a Luísa entrou-lhe no quarto, sentou-se-lhe ao lado, chamando-lhe a brincar «seu filhinho», e de repente, toda abrasada, colou-lhe os beiços ao pescoço. O rapaz repeliu-a, escarlate como uma Ofélia insultada e fechando os punhos de cólera:
— Se tornas a ter desses atrevimentos, digo ao papá, que te corre pela porta fora!
Era de temperamento linfático e calmo — e por esse tempo, tendo já esquecido Joaninha, amava idealmente a mais velha das sete irmãs Teles, senhora alta e vaporosa, sempre coberta de tules esvoaçantes, que ele celebrava misteriosamente sob o nome de Laura de Castela.
O advogado Silveira aconselhara Manuel Corvelo, logo que Artur fez o seu belo exame de retórica, a que o mandasse estudar para Coimbra os últimos preparatórios de Geometria e Introdução:
— «Assim acostuma-se a Coimbra e à vida académica e quando entrar prà Universidade, já não vai como o recruta bisonho, mas bem como o soldado aguerrido» — tinha ele dito com uma das suas formosas e vagas imagens.
E no Outubro seguinte, por uma fusca manhã de chuva que as lágrimas da mãe fizeram parecer a Artur ainda mais triste, foi o pai levá-lo a Coimbra, preciosamente. Com muita economia, instalou-o na casa das Barbosas, da Rua da Matemática, e deixou-o recomendado ao filho de um seu velho amigo, o Teodósio Margarido, valentão de grandes bigodes, terrível aos caloiros, grande matador de gatos, que usava uma moca enorme e frequentava o terceiro ano de Direito.
Todo aquele primeiro ano em Coimbra foi triste, tomado pelo estudo da Geometria, de fórmulas positivas que lhe eram antipáticas, dominado pelo pavor incessante de troças e de graus. Ao toque da cabra, recolhia pontualmente aos seus compêndios, obedecendo àquela sineta melancólica como quem obedece a um ditame de moral; as únicas horas felizes dessa época passou-as extasiando-se com os luares do Penedo da Saudade, onde ia às vezes sob a protecção de Teodósio, armado da sua temerosa dava, ou, sobretudo, nas vésperas de feriado, no Trony, à sombra sempre de Teodósio, onde admirava os bilharistas famosos da Academia, fazendo sob a luz dura do gás efeitos de carambolas. Mas depois do seu exame, voltou a Ovar, vaidoso da sua batina e de pertencer à Briosa, compenetrado da importância social da Academia, dos seus privilégios e do seu Hino, odiando já o futrica, tremendo diante do lente, sonhando futuros artigos na Ideia ou no Instituto e já preso a Coimbra por uma afeição sentimental, que abrangia a paisagem elegíaca do Mondego, o cavaco, a batina e a independência alegre da vida escolástica. Trazia além disso um drama quase concluído, o Conde de Além-Mar, cujo segundo acto, que julgava sublime, era uma festa à moda da Renascença florentina, passada num vago palácio junto ao Tejo, onde se bebia vinho de Siracusa, havia sicários mascarados e no rio, ao fundo, passavam gôndolas, em que o contralto das mulheres se casava ao gemido dos oboés.
No ano seguinte, Teodósio, que se afeiçoara à natureza obediente de Artur e queria «ter o seu caloiro à mão», arranjou-lhe um quarto na casa em que vivia, na Couraça. Foi uma aventura, um entusiasmo para Artur, que conhecia de tradição e admirava de longe os companheiros de casa de Teodósio — rapazes extremamente literários, redactores ardentes do jornalzinho o Pensamento. Esta pequena Revista semanal fora originariamente fundada num alto espírito de fraternidade moça, para criar recursos ao Taveira, rapaz extremamente pobre e o grande lírico do grupo. Ultimamente era dirigida, porém, pelo Damião, o ilustre Damião, que, tendo levado um R, repetia alegremente o seu quarto ano; e apenas o Pensamento ganhara crédito naquela geração, tinham-se precipitado para ele, como espíritos sufocados pelo anonimato para um respiradouro de publicidade, não só todos os amigos de Damião, que se nutriam de Michelet e de Quinet, mas também aqueles que ainda admiravam Pelletan, e até o grupo de Cesário, que, num progresso revolucionário e científico, já devorava Proudhon, Comte, Littré, Stuart Mill e Spencer — sem contar os temperamentos puramente artistas, que tendo horror à abstracção filosófica e aos entusiasmos da Paixão, se retardavam na admiração de Hugo, de Musset, de Vigny e de Byron.
A esta vaga associação de fanatismos, chamavam, em Coimbra, os Filósofos, ou também os Ateus. Eles mesmos se denominavam o Cenáculo. E ainda que não havia sessões regularmente organizadas, quase todas as noites se juntavam no largo quarto do Damião, na Couraça. E Artur sentiu os olhos humedecerem-se-lhe de entusiasmo quando pela primeira vez, na fumarada dos cigarros, onde os três bicos do candeeiro de latão punham três luzinhas sedentárias, ouviu vozes fanáticas discutirem, em estilo de ode, a Arte, as Religiões, o Panteísmo, o Positivismo, a estupidez dos lentes, o Ser, o Ramayana, o Messianismo germânico, a Revolução de 89, Mozart e o Absoluto.
Naquela «cavaqueira filosófica», só o forte Teodósio se conservava mudo, assombrado das ideias, como diante das portas augustas e inacessíveis de um santuário.
Mas a sua presença atlética era querida de todo o Cenáculo: além de excelente rapaz, sempre com dez tostões no bolso para partilhar com um condiscípulo pobre, ele tinha uma admiração servil por todos aqueles «génios». Ao lado de tais espíritos, exclusivamente ocupados da Ideia, ele punha a protecção formidável dos seus músculos e da sua moca. Uma noite que o Cenáculo discutia furiosamente Lutero e a Reforma, sentiram-se ao fundo da escada os gritos do filho da servente, espancado por futricas. Todos se ergueram para acudir. Então Teodósio trovejou, alçando a mão:
Ninguém se mexa! Continue-se a bela discussão! Aqui na casa, para a bordoada, só eu!
Desceu com a imensa moca e daí a pouco, na rua, era uma debandada aflita de futricas desbaratados.
Desde então, tacitamente, entre os membros do Cenáculo, que se consideravam uma aristocracia da Inteligência, semideuses muito acima da obscura humanidade académica, no cimo de um Olimpo — Teodósio, com os seu bigodes, os seus punhos que erguiam arrobas, e sobretudo a sua tremenda maça, foi o Hércules, o Alcides pagão, o subjugador dos rebeldes — e, ao lado dos Sacerdotes da Ideia, a personificação da Força.
Mas isto não bastava a Teodósio e na sua dedicação pelos «génios» com quem vivia, para partilhar mais directamente dos seus interesses espirituais, servir utilmente o Cenáculo, colaborar no culto da Ideia, não podendo fornecer teorias e frases — encarregava-se pouco a pouco de ir comprando os livros. Filho de proprietários ricos, com uma mesada abundante, era ele que fornecia a Biblioteca do Cenáculo, e todas as semanas, seguindo as instruções de Damião ou de Cesário, aparecia trazendo em triunfo um volume de Michelet, de Renan, de Taine, ou de Heine, a que cortava as folhas reverentemente, dizendo com ar finório:
— Ora vamos a ver o que diz cá o patrão!
E depois de ter, por um momento, esgazeado os olhos para o livro, concluía gravemente:
— Já vejo que é obra curiosa e para leitura demorada. Hei-de saboreá-la na cama.
Abandonava o volume a algum do Cenáculo e subia para o quarto a estudar a sua lição de viola francesa.
Mas tinha assim o direito de ser um dos Filósofos. Contribuía também largamente para as despesas do Pensamento — o que o habilitava, se alguém lhe era antipático, a formular paralelamente estas duas ameaças medonhas: «o peso da sua moca e uma desanda no jornal». Mas o que o satisfazia mais, era poder pronunciar frases notáveis que recolhia no Cenáculo: assim, quando saía com os amigos a matar gatos à moca, nunca deixava de exclamar, mostrando o céu estrelado:
— Isto, rapazes, não é lá qualquer coisa. É a lepra luminosa da face de Deus!
Bela frase — que aprendera do Taveira. Foi deste modo que Artur se achou, por acaso, no meio que devia desenvolver as tendências do seu temperamento. Ao princípio, naturalmente, admirou sobretudo os indivíduos, as personalidades, a fraseologia nova, as excentricidades estranhas; tremeu de entusiasmo, vendo, numa noite de trovoada, na Feira, o próprio Damião tirar o relógio do bolso, um cebolão de prata, e numa atitude de Satã rebelde, dar cinco minutos a Deus para que o fulminasse, e, passados os cinco minutos num grande silêncio do Céu, atirar desdenhosamente o cebolão para a algibeira, dizendo com tédio: «está superabundantemente provado que não há nada lá no Céu», e acrescentar, olhando para as estrelas: «a não ser algum pó luminoso de Deuses mortos!» Extasiou-se diante do ilustre Fonseca, que, no seu horror pelas expressões vulgares, pedia um bife no Carneiro, exclamando: «Traga-me uma lasca do velho Ápis, preparado segundo as fórmulas do progresso!» Palpitou de simpatia com o humanitário Vilhena, ouvindo-o responder a quem lhe estranhara a tristeza: «Como querem vocês que o homem ria, quando a Polónia sofre?»
Mas ninguém o impressionou como o grande Marçal, com a sua bela face clássica, a sua cabeleira, e a impassibilidade marmórea de um Deus da Ática. Teve a glória de o acompanhar uma noite que o Marçal ia ver a sua amante, esposa de um professor do liceu. Na rua estreita, ao chegar debaixo da janela, onde se debruçava um vulto claro, o Marçal, soberbamente sereno, erguendo o rico metal de sua voz, perguntou para cima:
— O veado já saiu?
Do vulto alvo veio como um sopro subtil:
— Foi agora mesmo para o Clube.
E então o Marçal, desdenhoso da presença de Artur e de uma família que passava, no mesmo tom sonoro e cheio:

Deita-me então a escada de Romeu,
Que eu subo a ir beijar-te os peitos brancos.

Estas audácias, estas palavras, pareciam a Artur prodigiosas, de uma raça de homens superiores aos mortais e ansiava por poder imitá-las. O que o exaltava, porém, acima de tudo, era o cavaco — aquele faiscante cavaco do Cenáculo, em que todas as noites se formavam, fumando cigarros, novas concepções do Universo, se decidia em quatro palavras de uma nova Ordem para a Humanidade, com uma pilhéria se aniquilava a glória de um herói, e em que argumentações temerárias iam abalar, no fundo dos Céus, os Deuses mais poderosos. Falavam de todas as mulheres com o esplendor do Cântico dos Cânticos; todo o sonho era bem-vindo — e a própria realidade do mundo tangível parecia esvaecer-se quando o Taveira, arrastando pelo quarto a capa esfarrapada, exclamava, atirando com um grande gesto lírico os braços para o Céu:

A galope, a galope, oh, Fantasia!
Plantemos uma tenda em cada estrela...

Então, para igualar estes génios, poder ter uma frase nestas discussões, Artur começou a devorar todos os livros de Teodósio, com uma sofreguidão confusa, indo de Petrarca à História da Revolução Francesa, de Stº  Agostinho a Balzac, começando mesmo Hegel e precipitando-se logo para as Orientais e para a legião dos Românticos. E assim, pouco a pouco, perdendo o culto exclusivo pela personalidade do Cenáculo, elevou-se na admiração mais vaga de personagens da Arte ou da História, de épocas da Humanidade, de civilizações e de ideias. Entusiasmou-o a Meia Idade, as suas catedrais e os seus mosteiros, e o Reno gótico, com os seus castelos de Burgraves heróicos sobre píncaros de rochas; encantou— o o Oriente e as suas cidades eriçadas de minaretes, onde pousam cegonhas — as caravanas no Deserto, os jardins dos serralhos onde suspira, ao murmúrio da água, a paixão muçulmana; depois, atraiu-o a Renascença italiana, os seus decâmerons galantes e as galas dos Papas; um livro de Arsène Houssaye deu-lhe por algum tempo a admiração exclusiva do século XVIII; depois, adorou a Boémia de Murger e de Gerard de Nerval... E tinha outros entusiasmos vagos por paisagens, heroísmos, teorias e atitudes — os rios sagrados da Índia, os corsários patriotas do Arquipélago grego, a regeneração das prostitutas, S. Bernardo em Clairvaux e Danton na Convenção. Torturava-o então o desejo permanente de reproduzir as imagens de que estes entusiasmos e as suas leituras lhe enchiam vagamente o cérebro: mas não sabia ainda que Arte empregaria. Às vezes os seus ideais eram tão indefinidos, que lhe parecia que só árias e melodias os poderiam exprimir; pensava então em estudar música e nenhum génio humano lhe parecia superior a Mozart ou a Beethoven, que nunca ouvira; ambicionava compor sinfonias sobre assuntos que amava e para os quais a poesia lhe parecia insuficiente, como a Morte no Calvário ou o cavaleiro Sir Galaad procurando pela terra e pelos mares o vaso de S. Graal. Outras vezes, era a cor, a beleza das linhas que o interessava: desejava então ser pintor, lançar na tela o rico esplendor dos estofos, as decorações luminosas de um céu do Oriente, cenas de Shakespeare ou episódios grandiosos da História e nenhum destino humano lhe parecia igual ao de um Miguel Angelo, compondo o Julgamento Final, vivendo de pão e de água e, nos intervalos de repouso, escrevendo um soneto imortal.
Já os seus compêndios de Direito Natural e Romano lhe pareciam odiosos e passava as noites a escrever versos. Estes versos só os mostrava a um companheiro que vivia no quarto vizinho, mas que não pertencia ao Cenáculo. Este moço, ainda parente do Taveira e como ele de Bragança, sendo extremamente gordo e falando com frequência do Pote das Almas, como da maior impressão que trouxera de Lisboa, era conhecido no Cenáculo pelo nome de Pote-sem-Alma. Amava loucamente uma prima, que o abandonara por um morgado dos arredores de Bragança, e desde então, a ocupação do Pote-sem-Alma, era decorar pontualmente a sua sebenta e chorar aquele amor perdido. Era porém sempre no calor da cama que aquela saudade o pungia; e todas as noites, regularmente, a voz de baixo do Pote atroava a casa, bramando de entre os lençóis:
— Ai, que rico bocado de pequena! Ai, quem ma dera aqui!
Este berro lúbrico e doloroso escandalizava o gosto delicado dos artistas do Cenáculo. E um dia, ao jantar, Damião, muito severo, voltou-se para o Pote-sem-Alma:
— Pote, você todas as noites lamenta a perda da sua prima Felícia, de um modo que nos é insuportável. Você, como homem e como pote, é livre, e não podemos proibir-lhe o queixume. Mas temos direito ao menos a que dê à sua saudade uma expressão literária e nobre. E já que Deus, para usar este termo obsoleto e convencional, lhe deu em gordura o que lhe recusou em ideia, aqui o amigo Taveira encarrega-se de lhe formular, em duas ou três estrofes correctas, um grito de desespero decente. E o Pote há-de ter a bondade de usar, de ora em diante, esta fórmula, sempre que o dilacere a dor dessa paixão infeliz.
A «fórmula», composta por Taveira, era uma imitação de algumas estrofes de Loksley Hall, a patética elegia de Tennyson, em que o poeta, revisitando os prados e os areais, onde outrora, com sua prima Amy, dera os passeios sentimentais do amor harmónico, solta o grito tão célebre na tradição romântica:

Oh, my cousin shallow hearted! Oh my Amy, mine no more
Oh, the dreary, dreary moorland! Oh! the barren, barren shore!

E a composição de Taveira, depois de falar com amargura dos prados e areais de Bragança, onde Felícia e Pote se tinham amado, na humidade da relva junto às espumas do mar, terminava com a mesma apóstrofe dilacerante:

Oh! minha prima Felícia! Nem minha, nem nunca mais!
Desertos, desertos prados! Tristes, tristes areais!

Agora todas as noites, o Pote-sem-Alma, depois de ter arranjado a cama, com o gabão aos pés, a capa por cima, deitava-se, entalava a roupa nos ombros, dava um ah! regalado de gozo e com o nariz fora dos lençóis, soltando toda a voz, bramava no silêncio:

Oh! minha prima Felícia! Nem minha, nem nunca mais!
Desertos, desertos prados! Tristes, tristes areais!

Ao princípio, este mugido lírico assombrou Artur; depois, a proximidade do quarto, trouxe-lhe a intimidade do Pote; ouviu-lhe a história da prima e os elogios das «pernas da pequena» e nestas confidências, no cavaco da noite, acabou por lhe ler alguns versos — e sobretudo uma elegia intitulada Ofélia, que ele ambicionava publicar no Pensamento. O Pote levou a poesia ao Taveira — e como era a semana de Entrudo, em que faltou original para o Pensamento, Ofélia apareceu em folhetim. Que surpresa para Artur! Que hora deliciosa! Era a entrada numa grande carreira poética. Sentia-se já igual ao Taveira e mais tarde, célebre como Musset, seria o confidente querido das almas ternas. Nesse dia, ao jantar, o Damião disse-lhe protectoramente:
— Você tem a fibra e a forma, caloiro; trabalhe, trabalhe! E necessário ter a ideia. Procure a Ideia!
Artur remeteu logo para Ovar vários exemplares do Pensamento. Não duvidou do seu génio e começou a procurar a Ideia.
Entusiasmou-se então pelo Panteísmo. Decidiu ser o grande poeta panteísta de Portugal; sonhou uma alma nas coisas e parcelas de divindade, nas folhas dos salgueirais. Esboçou imediatamente o plano de um poema dramático, que seria a explicação do Universo, e em que estrelas, montes, rochas e árvores eram personagens e tinham as paixões, os caprichos e as tristezas de uma humanidade inerte e muda.
Esta ideia, porém, era muito vasta para a sua debilidade de anémico e apenas produziu a primeira estrofe, o Coro dos Montes, monologando ao luar, no silêncio de um céu de Verão, com lua:

Nós somos os montes. E a fronte de neve
Coroamos à noite de estrelas brilhantes.
Nós somos os montes, gigantes severos
Cismando ao sussurro das águas cantantes...

Por esse tempo, namorou-se de uma senhora casada, da Calçada, cujos olhos árabes e graça de palmeira nova já tinham sido cantados pelos líricos da outra geração académica; passou então as noites, rolando pensamentos à Romeu, contemplando a janela do quarto, onde ela, de camisola de flanela e os pés sobre a botija, ressonava ao pé do marido. Não ambicionava mais que pousar-lhe um beijo de leve sobre a testa, por um céu de luar; só no seu quarto, apertava convulsivamente as mãos contra o peito, murmurando num delírio vago, «oh, adoro-te!» Esqueceu o seu poema filosófico, caiu no lirismo, prodigalizado em quadras, em que ela era sucessivamente Julieta, a bela Andaluza, ou a Esposa dos Cantares. Julgou que na vida nada valia senão a paixão; compreendeu, admirou René, Wherter, Rola, Manfredo, Lara, outros piores! E como a felicidade desejada, o beijo ao luar, não chegava — para seguir a tradição dos desesperos românticos, começou a embebedar-se. Eram então, com o Taveira, noitadas de exaltação platónica, regadas com meios quartilhos, na tia Pôncia e no Arsénio. Vinha depois aos bordos para o quarto do Pote, declamar os seus desesperos. E o Pote, numa saudade que se lhe comunicava, mas obediente ao Cenáculo, mugia logo de entre os lençóis:

Oh! minha prima Felícia! Nem minha, nem nunca mais!
Desertos, desertos prados! Tristes, tristes areais!

E mais baixo, torcendo-se e roncando de concupiscência: 
— Oh, menino, que se a pilhasse aqui!
Enfim, veio o Acto — e Artur levou um R. Uma tão grande injustiça deu-lhe o ódio a toda a autoridade: odiou os tiranos, desde Jeová até aos lentes, desde o Czar até ao bedel da Faculdade; ambicionou uma República governada por poetas e por génios; pensou mesmo em abandonar a Universidade, o país que desconhecia assim os seus talentos, partir, ir combater pela Polónia; ser-lhe-ia grato morrer numa batalha pela liberdade, entre cânticos patrióticos, pensando nela!
Seu pai teve um grande desgosto com o R. Artur, porém, numa carta poética, provou-lhe que fora vítima da inveja suscitada por um génio nascente, e mandava-lhe uma lista de todos os grandes homens que tinham sido mal apreciados pela Universidade e que, mais tarde, ministros, poetas, sábios, glórias nacionais, conservavam no seu passado camadas de RR injustos!
Foi nessas férias que sua mãe, doente desde o Inverno, morreu de uma tísica de garganta. O pai, muito afectado, teve os primeiros sintomas de uma doença de coração.
Foi um Verão desgraçado para o pobre Artur, naquela casa triste, em que lhe parecia sempre ouvir as marteladas sobre o caixão da mãe e sentir ainda o cheiro das tochas de cera e os suspiros cerimoniosos de pêsames. As últimas semanas, sobretudo, foram as mais melancólicas, diante daquele pai carregado de luto, com os olhos inflamados das lágrimas e que, agora, tomado também de pressentimentos de morte, lhe falava constantemente do futuro, da necessidade de trabalhar, da dor de o deixar sem recursos. Nem ao menos tinha o seu velho amigo Silveira para desabafar: contara deslumbrá-lo com as histórias do Cenáculo e os entusiasmos lá adquiridos, mas o Silveira estava a banhos em Espinho, onde fazia palpitar o coração das senhoras com o seu bigode fatal, as suas imagens, o seu cão da Terra Nova e a sua capa à espanhola. A volta para Coimbra foi para Artur um alívio.
Tinha esquecido inteiramente a senhora da Calçada.
Vinha então com ideias mais definidas de carreira e resoluções de estudar. A publicação feliz do D. Jaime dera-lhe a ambição de compor, durante a formatura, um poema histórico; iria depois estabelecer-se em Lisboa, advogar e lançar a sua epopeia. Andava procurando um assunto, quando a leitura da Vida de Jesus, de Renan, o entusiasmou pela Judeia e pela legenda Messiânica. Veio-lhe a ideia, que julgou grandiosa, de refazer o Evangelho, pintar num poema social um Jesus pálido e louro, errando pelos vales nazarenos e junto dos lagos sírios, amado das mulheres e das crianças, ensinando a Democracia às almas ternas. Mas o Damião, consultado, escarneceu a ideia. No progresso da sua evolução intelectual, lançara-se, com o grupo do Cesário, no culto exclusivo de Proudhon, Stuart Mill e Augusto Comte, e não compreendia realmente o que vinham fazer Jesus, Madalena e os sicômoros da Betânia, em pleno século XIX, à hora do Positivismo e do Socialismo! Que o caro Artur cantasse a Revolução, o povo e o seu antigo opróbrio! Que fosse Virgílio fazendo a epopeia sintética de um novo mundo, ou Juvenal lançando a sátira de um mundo decrépito... Mas que deixasse os lirismos evangélicos às duquesas cloróticas do Faubourg St. Germain!...
Artur não foi Virgílio, nem Juvenal, mas desistiu do poema sobre Cristo, como abandonara o poema histórico sobre D. Sebastião. Caiu então, de repente, sem motivo, numa desconsolação vaga da vida, tomada do tédio de todas as realidades, a alma cheia de ambições enevoadas de felicidades indefinidas. De novo odiou os compêndios; sentia-se vazio de imagens e de rimas: uma quadra custava-lhe os esforços dolorosos de uma epopeia. De tarde, lá seguia pela Sofia, murcho, encolhido dentro da capa, com o gorro enterrado até ao cachaço, arrastando-se para o Choupal, a saturar-se de melancolia; de noite, ou ia para o Penedo da Saudade, olhar para a Lua, no vale, ou ficava no quarto do Damião, no fogo das conversas do Cenáculo, sem achar uma frase, um dito, mais triste por aquela esterilidade.
— Este Artur é prodigioso — dizia o Cesário. Está aos dezanove anos como Byron aos trinta. Com esta precocidade de sentimentos, há-de vir a ser um grande idiota!
Foi por este tempo que Teodósio o levou, uma noite, a casa da Aninhas Serrana, ao tempo a meretriz mais cara de Coimbra, o sonho ardente de toda a academia pobre, a quem o Taveira, numa poesia delirante, chamara «estrofe de carne e Vénus cristã». A Aninhas tinha na janela cortinas de reps amarelo, usava um roupão cor de fogo e lia a Dama das Camélias; contava-se como uma legenda singular que tomava banho e era certo que o Salgado se tinha envenenado por ela. Tanto romantismo fascinou Artur; dedicou-lhe tercetos no Pensamento e a Aninhas, conquistada, concebeu por ele um capricho, grátis. Na madrugada em que ele saiu do seu leito, extenuado de amor, sentiu que toda a melancolia daqueles meses passados se lhe dissipara, como uma névoa ao sol quente de Maio; a sua vida tinha agora um centro e uma significação: queria ser o Armando Duval daquele anjo, regenerá-lo pelo amor e imortalizá-lo num poema, como o Intermezzo.
Duas semanas depois, a Aninhas abandonou-o por um caixeiro da Sofia. Chorou de dor. Na mesma página do Pensamento em que a celebrara, insultou-a agora, com estrofes amargas à Mulher de Mármore; e no baile de terça-feira de Entrudo, no Teatro D. Luís, exaltado de genebra, vendo-a pular vestida de odalisca, numa polca frenética, exclamou com tremendo escândalo:
— Folga, vil Messalina!... És podridão e em podridão te tornarás! Perneia, prostituta! Oh, Serrana, oh, magana, restitui-me as peúgas que te deixei no prostíbulo...
O par de Aninhas, um quartanista desempenado, grande ginasta, esbofeteou-o imediatamente.
Foi um episódio temeroso. Artur queria esperá-lo à saída para o apunhalar. Enfrascou-se de cognac até se tornar feroz... E os companheiros tiveram de o arrastar para casa, idiota de álcool, abraçando-se a todos os candeeiros, regando-os de lágrimas, e gemendo:
— Mulher, teu nome é vileza!
Ao outro dia, quis mandar à Aninhas uma placa de cinco tostões — escrevendo-lhe, como outrora Armando: aí vai o preço do teu amor e do meu insulto. Mas receou os músculos formidáveis do ginasta, e, furioso, descreu das mulheres.
— Só a Arte não trai, Artur — disse-lhe um dia Taveira.
E Artur lançou-se desesperadamente na Arte. Considerou-se cínico à Musset e à Byron e quis, como eles, dar à sua vida um delírio romântico: recomeçou a embebedar-se. E uma manhã que recolhia ainda estremunhado de um lupanar — como convinha a um irmão de Rola — encontrou em casa uma carta do Silveira: na véspera, enquanto ele, no Garrano, com Taveira, brindava à Morte e à Orgia, seu pai, de repente, ao entrar na Assembleia, tinha caído morto para o lado, murmurando apenas: Oh, meu filho!
O pobre moço, que amava o pai, desmaiou, e depois das primeiras lágrimas, ficou aterrado. Ali estava, só na vida, sem recursos para continuar a formatura, tendo de deixar Coimbra, o Cenáculo, a vida poética...
Por conselho do Silveira, foi a Ovar vender em leilão a mobília, algumas pratas da casa. Passou ali uma semana amarga, na hospedaria, coberto de luto, com os olhos vermelhos como carvões, fumando cigarros, fazendo e desmanchando planos, ou, com o nariz contra a vidraça, vendo cair a chuva miudinha de Março. Uma noite, enfim, o delegado Pimenta, que muito solicitamente dirigira o leilão, veio trazer-lhe quarenta e cinco libras em oiro. Ao ver aquela riqueza, rebrilhando sobre o pano verde da mesa, uma esperança desordenada levantou-lhe a alma. Com uma economia sagaz, poderia viver dois anos em Coimbra; durante esse tempo, leccionando, fundando uma Revista, criaria recursos regulares... E apesar de chorar ainda ao olhar para o daguerreótipo do pai, começou a gozar instintivamente da ideia da sua liberdade — sem família que lhe traçasse autoritariamente um destino e com dois fortes cartuchos de dinheiro na maleta.
Voltou para Coimbra — e daí a duas semanas pagava aos líricos do Cenáculo uma orgia na tia Pôncia; depois, comprou todas as obras de Vítor Hugo e um revólver; fez um fato, guitarreou, jogou a batota, alugou caleches para ir a Condeixa jantar no Castelo com o Taveira. No acto final levou outro R. E pelas férias, quando Coimbra começava a ficar deserta, achou-se com oito mil-réis no bolso e uma sífilis.
Foi então que se lembrou das tias, que nunca vira e que viviam em Oliveira de Azeméis. Eram duas, Ricardina e Sabina; a mais velha, a tia Loló, morrera tísica, um ano depois do marido e deixara uma filha, a priminha Cristina; vivia em Oliveira, com as duas senhoras, e às vezes recebiam-se em Ovar notícias das suas doenças, feridas nas pernas, humores nos ouvidos, uma degeneração de raça escrofulosa.
Escreveu-lhes uma carta patética, com frases à Musset, pedindo às duas velhas que «o ajudassem nesta grande batalha da vida, em que ele se sentia fraquejar, porque era desta geração, nervosa e pálida, que necessita o amparo de uma ternura de anjo...».
Como a resposta tardasse — partiu desesperado para Ovar, para a mesma hospedaria, como se esperasse ver outra vez cintilar, sobre o pano da mesa, o oiro de outro punhado de libras. Ali, o seu velho amigo, o advogado Silveira, que rompera com o Campeão e ia casar com uma viúva rica que fascinara em Espinho, irritou-o com conselhos práticos, solidamente burgueses: «a vida não era poesia, era necessário tratar do pão!» Mas onde? Como? Ir rabiscar papel para casa de um tabelião? Ir vender cheviots a um balcão do Porto?— Era imbecilizar-me para sempre, anular as minhas faculdades, Silveira!
Uma manhã, por fim, chegou a carta das tias. Era breve, numa letra bonita de mulher:

«Meu querido sobrinho.
Cá recebemos a tua carta, que mostra que tens muito talento e nos fez chorar a todos, que até o Albuquerquezinho pareceu muito afectado. E eu não teria felicidade maior que poder ajudar-te para a tua formatura, pois se vê que tens vocação para doutor e haverias de fazer boa figura. Mas, infelizmente, como tu não ignoras, pois o mano Manuel estava bem ao facto de tudo, nós pouco temos, apenas o bastante para alguma decência. Tu, porém, és do nosso sangue e por isso te posso dizer que nesta casa hás-de encontrar bom agasalho, porque até temos um quarto com alguma mobília e podia servir para ti e mesmo a mana Sabina já lá anda a escarolar, pois esperamos que aceites este oferecimento, que é feito do coração, tanto mais que o Sr. Vasco diz que, agora, são férias em Coimbra. Escreve anunciando o dia em que vens e recebe um apertado abraço
da tua tia muito amiga do coração
Ricardina.»

O advogado Silveira, a quem ele correra a mostrar a carta, disse-lhe logo, traçando a perna. com uma das suas imagens floridas:
— Aí tens tu! Eras a barca batida da tempestade: abre-se-te o porto hospitaleiro!
Artur, passeando cabisbaixo pelo escritório, imaginava, por aquele estilo da carta da tia Ricardina, a existência em Oliveira de Azeméis, entre as duas senhoras cheirando a rapé, fazendo à noite uma meia sonolenta, depois do terço rezado com a criada, diante da cómoda armada em oratório.
— Quem será este Albuquerquezinho?
— Algum velho amigo da família... Jogador de gamão, naturalmente — disse o eloquente Silveira. Além disso tens a prima...
Artur encolheu os ombros.
— Uma criatura que está sempre doente com furúnculos nas pernas, feridas na cabeça.
— Às vezes, nessas crianças doentes há uma alma profundamente terna. E a alma é tudo! — observou o Silveira, cofiando o bigode romântico.
— Enfim, disse Artur, vamos lá para Oliveira de Azeméis. Alea jacta est!

Partiu de Ovar, ao fim de um dia tórrido de Agosto — e quando entrou, com o moço que lhe levava o baú, no pátio triste do casarão das tias, a torre de S. Francisco, ao lado, badalava as nove horas, sobre a vila silenciosa. As senhoras, carregadas de luto, vieram ao topo da escada receber o sobrinho, de braços abertos:
— Oh, menino, pois tu vens a esta hora! — exclamou a tia Ricardina — e sem prevenir! Jesus, que despropósito! Ai, mana Sabina, que é o retrato do mano Manuel! Ai, dá cá um abraço, filho!
Artur, muito embaraçado, pousou no chão a chapeleira, o paletot, o guarda-sol, para receber o beijo da Ricardina, que o esperava com uma lágrima ao comprido do seu grande nariz de cavalete; depois, foi para os braços da Sabina, toda pequenina, toda enternecida, de uma brancura de marfim sob a sua touca negra.
— Ai, filho — repetia a tia Ricardina, levando-o para a sala — és o retrato do teu pai! Olha, íamos agora mesmo tomar chá.
Sobre a mesa estava o tabuleiro com as chávenas, e ao lado, à luz de um candeeiro de abat-jour transparente, que representava cenas de neve numa paisagem da Noruega, um sujeito nutrido e calvo fazia uma paciência, muito tranquilamente.
— Albuquerquezinho, aqui está o Arturzinho. É o retrato do mano Manuel...
O homem pousou devagar o baralho, voltou-se na cadeira e com as pernas muito abertas, as mãos espalmadas sobre os joelhos, examinou longamente Artur, que torcia o buço, todo acanhado:
— Ora viva o meu amigo! — exclamou subitamente, erguendo-se e arrebatando-lhe a mão, que conservou muito tempo, sacudindo-lha compassadamente. — Ora viva o meu amigo! Ora viva o meu amigo!
Sentou-se e depois de ter acamado com método, de um e de outro lado da calva, os três pêlos grisalhos, retomou gravemente o seu baralho.
Mas o moço esperava à porta, e Artur, remexendo no bolso, estendeu-lhe dois tostões.
— Credo! — exclamou Ricardina. — Tu estás doido, menino! Olha o despropósito! Vai muito bem com quatro vinténs. Vá, Joana, ajude-o a levar o baú para cima. Espera, eu também lá vou. Sempre é melhor que eu lá vá. E tu deves vir a cair de fraqueza, filho. Veja lá se lhe arranja já alguma coisa, mana Sabina. Vá, não fique aí pasmada!
Sabina apressou-se a ir para a cozinha enquanto o Albuquerquezinho, muito sério, ia baralhando sossegadamente as suas cartas.
— Boa viagem? — perguntou, fixando Artur.
— Muito agradecido a V. Exª, fiz muito boa jornada...
— O mar picado?
— O mar?... — murmurou Artur, assombrado. Eu venho de Ovar...
— Hum! — rosnou Albuquerquezinho, com desprezo. — Na diligência! Nélson, o grande Nélson andava em diligência...
— Nélson era um almirante e eu...
— Chut! — fez imperiosamente o Albuquerquezinho, que, tendo disposto um quadrilátero de cartas, ia agora voltando uma a uma as que restavam no baralho: — ás! terno! valete! duque!
Artur examinava com espanto a sua cabeça grave de tabelião, a calva polida e lustrosa como madrepérola, com quatro pêlos brancos sobre cada orelha, a face rubra e bem nutrida, o beicinho luzidio, as duas suíças pequenas, grisalhas e o majestoso colete branco onde serpenteava um grilhão. Mas o que o maravilhava, eram três galões de oiro, de general, que ele trazia cosidos no canhão da manga.
— V. Exª é amador de paciências? — perguntou Artur, para quebrar o silêncio.
Um chuta! despedido com cólera, emudeceu-o. Artur ergueu-se, ofendido; uma das janelas estava aberta à noite cálida de Agosto: defronte, vermelhavam os dois bocais escarlates na vidraça da botica, e em redor, sob o céu negro, todas as casas, a praça, pareciam adormecidas no ar pesado, com uma ou outra janela aberta, mortiçamente alumiada. Devia ser aquele o fim da vila, porque se ouvia no grande silêncio, a distância, para além da massa escura da capela, um coaxar triste de rãs.
Acendeu um cigarro e ali ficou, pensando nas noites de Verão em Coimbra, nos luares sobre o Mondego elegíaco... Via-se na ponte, com os olhos postos na Lua, redonda e branca — que, àquela hora, contemplavam também o pastor na montanha, deitado sobre uma pedra, o marinheiro nos mares calmos, sobre o tombadilho — e ao lado, a voz extática do Taveira, murmurando: « Lua, hóstia do Infinito!...» A sala, dentro, parecia continuar a melancolia da praça e da vila, com o seu alto armário de pau-preto, a mesinha de pés torneados, coberta de uma colcha de cetim, sustentando preciosamente um vaso com flores de cera, e um recanto de alcova, com um velho divã cavado pelo uso, onde decerto, de dia, as senhoras caturravam fazendo meia. E a voz grossa do Albuquerquezinho, uma voz de major enrouquecida nas manobras, continuava:
— Quadra! Dama! Ás! Terno!...
Mas Ricardina apareceu enfim, azafamada:
— Desculpa, que se te andou a arranjar o quarto. Vires sem prevenir, que despropósito!
Calou-se, cheirando em redor:
— Oh, menino! pois tu fumas? Ai, que peste! Ai, que peste!
Agarrou um guardanapo, bateu o ar violentamente:
— Ai, deves perder o hábito, que o Vasco diz que arrasa a saúde e dá más ideias. Pus-te o baú ao pé da cama. Olha, aí vem a tia Sabina. Vai com ela, que te vai mostrar o quarto, que eu vou-me aqui repimpar e estar um bocado caladinha...
Mas não se calou, contando logo os seus achaques, o mal que a seca estava fazendo às terras, os bonitos passeios para os lados do Covo, a maravilha da fábrica de vidro...
— Fez a paciência, Albuquerquezinho?
— Duas, menina — disse o velho que baralhava as cartas — duas imperiais.
— Logo se marca, que a Sabininha tem de lá ir acima... Ai, que balbúrdia, credo! Pois olha, até estou com dores de cabeça. É do fumo do tabaco. E também de sair dos meus hábitos...
— Chut! — bradou o Albuquerquezinho que recomeçava o quadrilátero.
E Ricardina, baixando a voz:
— Vá, mana Sabina, vá mostrar-lhe o quarto, já que tem pernas.
— Por aqui, menino, por aqui — disse logo Sabina, levantando-se.
Artur, atarantado, seguiu-a pela escada íngreme, mas quando chegou ao corredor, parou espantado, vendo a uma porta, postado, de arma ao ombro, um soldado de papel em tamanho natural, colado a uma tábua que fora recortada pelos contornos da figura.
— Que é isto?
— É o quarto do Albuquerquezinho, é a sentinela — disse Sabininha com um sorriso enternecido.
— Quem é aquele sujeito? — perguntou Artur.
— Ai, é um santo! Não deves fazer caso... tem a cabecinha desarranjada, não pensa senão em navios e coisas do mar.
— Foi oficial de marinha?
— Oh, não! O Albuquerquezinho era um amigo do mano; depois de viúvo começou a tresloucar. E como não tinha parentes e não estava doido declarado para ir para Rilhafoles, trouxemo-lo a viver cá para casa; que o Albuquerquezinho é rico, tem uma fazenda muito boa, ao pé de Santa Eufrásia.
Falava enternecida, com o seu castiçal na mão, ao lado da enorme sentinela de kepi e farda azul, de bigodes napoleónicos. Fora ela que lhe pusera na manga os galões de almirante. Era ela que cosia as velas dos seus navios.
— Ai, coitadinho, é um santo! É só aquela mania das embarcações, que em tudo o mais tem juízo.
Mostrou-lhe então o quarto, pegado ao do Albuquerquezinho. Sobre a cómoda tinham posto um grande ramo de rosas e os lençóis da cama eram bordados.
— Tens aqui água quente... E a vista da janela é linda.
Artur deitou um olhar à janela, mas só viu uma vaga negrura, onde formas de árvores, outra torre distante, punham sombras mais densas, e das quais subia o mesmo coaxar triste das rãs.
Mas Sabininha, ao retirar-se, hesitou um momento e quase com uma suplicação na voz: — Não te rias, menino, queria pedir-te uma coisa. Sempre que falares ao Albuquerquezinho, chama-lhe «Sr. Almirante».
Quando Artur desceu, o chá estava na mesa e Sabina, muito comovida, arranjava sobre o guardanapo a ceia do «menino». Ele teve então de contar dos seus estudos de Coimbra, como recebera a notícia da morte do pai, o que tinha rendido o leilão... Mas, de repente, o Albuquerquezinho arremessou a torrada que tomara do prato e empertigado na cadeira, fazendo estalar os nós dos dedos, olhou sucessivamente as duas velhas com rancor. Exigia as torradas quentes, louras, a escorrer de manteiga e encontrando uma seca, rosnou com azedume:
— Se sabem que me faz mal! Se sabem que me faz muito mal! E não é uma, são todas que estão secas. Já é desleixo!
Foi um desgosto para as senhoras. Tinha sido a atrapalhação. Fora com a chegada do menino!
O Albuquerquezinho havia de perdoar!
— É por culpa minha — disse Sabina — que as deixei fazer pela Joana.
— Está claro — exclamou Ricardina — é culpa sua! Eu bem lhe tinha dito que deixasse os ovos à Joana e fizesse a menina as torradas. Mas não, quer-se sempre regular pela sua cabeça! Veja onde a levou a sua cabeça! — e aflautando a voz, muito tesa: — olhe o desgosto que sofreu!
A Sabininha, encolhida, sorvia a sua pitada. E Albuquerque, voltando-se para Artur, com a testa franzida:
— E que o amigo, que vem de Coimbra, compreende, ou são torradas ou é pão seco! Artur respondeu, muito sério:
— Tem V. Exª muita razão, Sr. Almirante.
Subitamente o velho calmou-se, passando com satisfação as mãos espalmadas sobre os quatro pêlos da calva. As faces das senhoras iluminaram-se num reconhecimento comovido, e a Sabininha, sem se conter, passou os dedos magros pelo rosto de Artur, dizendo enternecida:
— Ai, não podes negar que és filho do mano Manuel. E o mesmo coração de anjo.
E durante um momento Artur sentiu-se bem entre aqueles corações antiquados, tão fáceis de alegrar, naquela casa adormecida, a um canto de vila triste, onde errava por entre os móveis, a que o longo uso dera quase uma expressão humana, um cheiro pacato de alfazema. E mesmo o Albuquerquezinho lhe pareceu tocante, quando, estendendo sobre a mesa o seu braço agaloado de oiro, lhe declarou com amizade:
— Hei-de levá-lo amanhã a bordo.
— É uma grande honra — respondeu sorrindo.
Mas tinham dado as dez e meia, e as senhoras iam com as duas criadas ao oratório rezar o seu terço. A Cristininha ficava a fazer companhia ao menino — e corada, tomada agora dum acanhamento, permanecia calada, com o seu gato muito gordo no colo, fazendo girar o abat-jour transparente que representava cenas de neve, numa paisagem da Noruega. Artur, torcia o buço. E o Albuquerquezinho, com as mãos cruzadas sobre o ventre, caíra numa sonolência, que lhe vinha sempre depois do chá.
— É o gato da casa, hein, disse Artur.
— E, respondeu a prima, baixo, para não perturbar o velho. Gostas de animais.
— Gostava de ter um cão da Terra Nova, ou de S. Bernardo. Mas no que tinha gosto, era ter um leão domesticado.
Ela riu, muito divertida, àquela ideia, de passear as ruas da vila com uma fera dos desertos... Que horror! E se o mordesse? E o despesão para sustentar um bicho assim...
Na Índia, disse Artur, que é o país mais poético do mundo, os antigos reis, eram sempre seguidos por leões familiares.
— Ah, fez ela.
E aquele ah! tão seco, mostrando-a alheia, toda indiferente à Índia, e aos seus tiranos legendários, às pompas bárbaras dos cultos védicos, regelou subitamente aquela breve simpatia, que há pouco lhe dera o enternecimento dos seus olhinhos alegres. Quem se interessaria em Oliveira de Azeméis pela Índia e pelo Ramayana? E a certeza duma existência material e mesquinha, naquela terra de três ruas onde as pessoas passam, pesou-lhe na alma dolorosamente.
— Em que te entreténs  tu aqui, perguntou com melancolia. Tu tocas piano?
— Não. Comecei a aprender, mas parece que não tinha jeito. Na sala há um piano. Mas ninguém vai à sala. Faz frio, lá... E há anos que o não abro!...
— Não gostas de música ?
Ela encolheu os ombros.
Gosto, mas... Parece-me estúpido estar ali a martelar valsas... Para-tá, tá-tá ...
— Mas  uma ária de Mozart, uma sinfonia de Beethoven...
Ela não respondeu, numa ignorância, que pareceu odiosa a Artur, daqueles  nomes divinos.
— Ai, disse por fim, a filha do Carneiro, é que toca uma coisa bonita... E a D. Galateia,  a do Vasco ali defronte, da botica, também agora a toca: São os Sinos da Aldeia.
Foi então Artur que encolheu os ombros, com desprezo:
— Uma sensaboria! Música de colégio. Havias de ouvir Meyerbeer, Weber, Bach... — disse, citando os nomes de músicos que lera nos livros do Teodósio, e admirava de tradição, como almas transcendentes.
Então houve um silêncio, e na sala tudo pareceu adormecer também como o Albuquerque, e o gato branco: até o candeeiro que esmorecia, e as janelinhas transparentes cor de fogo nas cabanas nevadas do abat-jour: pela porta, vinha do corredor escurecido uma ciciação dormente de rezas ao lado.
— E que lês tu ? Gostas de ler ?
Cristina pareceu despertar, e procurou um momento, mentalmente, a certeza daquele gosto.
— Não me entretém muito... A D. Galateia às vezes trazia-me aí romances que lhe vinham do Porto. Mas enfastiei-me... É uma trapalhada,  e depois são tudo mentiras...
Artur não respondeu, enojado. Achava-a estúpida, e feia, — com as suas grossas mãos acariciando ternamente o gato gordo, os ombros roliços de plebeia forte, e até o cabelo lhe parecia agora duma dureza rústica. Pensou noutras mulheres, de fina superioridade intelectual, a amante do Marçal que nas cartas lhe citava Lamartine, sobretudo a senhora de olhos árabes da Calçada, cujo oval pálido era como a mesma expressão duma alma romântica. E amou-a naquele momento, tomado duma ternura pela sua cinta fina de palmeira nova, e a sua testa dum marfim puro, — que ele esquecera tão completamente — que agora, no contraste com a prima grossa e vermelha, lhe fazia sussurrar pela alma as ternuras adormecidas... E com melancolia, pensou nos homens a quem fora dado amar George Sand.
— Mas de versos, ao menos, gostas? — perguntou-lhe ainda.
Aquela interrogação  —  parecia fatigá-la: mas riu com bondade, disse:
— Para que fazes tu tantas perguntas ?... Olha quem gosta de versos é a tia Sabina. Fala-lhe a ela em versos que se morre por eles... A mim parecem-me sempre a mesma choradeira... São pieguices...
Artur, escarlate, odiou-a. Ergueu-se,  foi ainda à janela olhar o largo agora escuro: mas para além, numa claridade muito ténue, que recortava uma redondura de árvores juntas, a lua aparecia, como um lustre curvo de prata. Então, sentiu um isolamento de alma, como se toda a humanidade tivesse perecido. E de pé diante da prima, bocejou, espreguiçando-se  longamente  de fadiga e de tédio.
— Estás cansado, menino? exclamou ela.
Sacudiu logo o gato, ergueu-se  também e então foram perguntas, num grande interesse: queria lamparina? Gostava de leite quente pela manhã?... Se se achasse fatigado, podia almoçar na cama...
Artur, importunado com aqueles cuidados que lhe revelavam um espirito abismado nos interesses mesquinhos de conforto caseiro, disse:
— Não obrigado. A que horas se levantam por cá?
— Às sete... mas eu levanto-me logo de madrugada.
—Pra quê ?
Ela riu:
— Pra quê ? E que tenho muito que fazer... Olha logo a primeira coisa é dar de comer à criação.
— Tens galinhas ?
— Tenho galinhas, coelhos, patos, bacorinhos, uma cabra! — Tenho tudo, disse com um entusiasmo que alumiava a face. E depois tenho de ir dar a sopa aos filhos da Micaela.
— Quem é a Micaela?, perguntou  ele, bocejando.
— É uma vizinha. A pobre mulher tem dois pequerruchitos, e vai, secou-lhe o leite... E são tão pobres... Tenho de lhe levar as sopas de leite às criancinhas... E cedo, pobres anjinhos, estão à espera delas toda a noite, e abrem cada boquinha... — E ficou a olhar para Artur, movendo os beiços, com olhos em que parecia subir, a névoa duma lágrima.
Mas as tias entravam, sonolentas daquele longo terço no oratório. O Albuquerquezinho despertou, acamou com furor as suas repas, e erguendo-se,  disse em redor com satisfação:
— Pois senhoras, passou-se o bocadito da noite.
Deram então um castiçal a Artur, com recomendações infinitas: que apagasse a luz antes de adormecer, que não deixasse os fósforos espalhados por causa dos ratos...
— Eu estou lá ao pé, eu estou lá ao pé — disse o Albuquerque. — Eu lá vigiarei. E se o amigo quiser alguma coisa, é bater na parede! Vamos, boas noites!
E subiram para o corredor, o Albuquerquezinho, adiante, devagar, bocejando, puxando-se pelo corrimão.
— Pois amigo — disse — não há nada melhor do que uma sonecazinha, depois das torradas. Que elas hoje estavam más; mas, enfim, foi dia de hóspede. O que o amigo deve vir, é cansado. Três horas de diligência... Oiça lá, as conveniências são ao fundo do corredor.
E Artur pasmava de o ver tão sensato, quando o Albuquerquezinho, parando à porta do seu quarto, fez a continência ao soldado de papel e deu este santo-e-senha, para entrar a bordo:
— Nélson e Sabininha!
Só no seu quarto, Artur, sentado na cama, começava a fumar o seu cigarro, quando de fora a voz de Ricardina falou pela fechadura:
— Pois tu estás ainda a pé, menino? Ai, apaga a luz, apaga a luz... Diz se estás a fumar?— Não, tia Ricardina.
— Ai, filho, pelas chagas de Cristo, tem cuidado com o fogo.
Deitou-se desesperado, pensando no que faria para fugir bem depressa daquela casa embrutecedora, onde nem poderia ler de noite na cama ou trabalhar, sem que uma das velhas viesse, na sua ronda, fazer-lhe soprar a luz e as imaginações.
Ao outro dia, ao erguer-se, foi abrir a janela. Era uma manhã resplandecente. Em baixo, estendia-se toda uma verdura de pomares e hortas, com tanques aqui e além, onde espelhava a água; brancuras de roupa a secar, casas caiadas, faiscavam ao sol. O quintal das tias, de onde se subia por três degraus de pedra para o pátio da criação, era cercado de um muro baixo eriçado de fundos de garrafas. Estava plantado de couves, alfaces, feijões; pés de roseira e dálias faziam um jardinete ao canto; no fundo, debaixo de árvores, era o poço, e sobre o seu pedestal, uma estatueta de gesso da Fortuna, com o pé no ar, a cornucópia alta, branquejava na luz forte.
E Artur, debruçado, fumava, quando da janela ao lado, saiu um braço agaloado de oiro e imediatamente uma voz formidável retumbou:
— Orça a barlavento! Senhor segundo-tenente, abra as escotilhas da proa! — e uma trombeta soou: traiará, traiará, rá, rá, á...
E então de um porta-voz, que apareceu fora da janela, saiu um vozeirão:
— Cerre os traquetes! Fogo! Boum! Boum! Boum! ... Traiará, traiará, rá, rá, á...
Era Albuquerquezinho, de chapéu armado, comandando, do peitoril da janela, a sua fragata de guerra!

Começou então para Artur uma vida desgraçada, em que os dias se seguiam como as páginas brancas de um livro que se vai tristemente folheando. Toda a manhã, as duas senhoras faziam a sua meia na sala, com as janelas cerradas, o soalho regado, num silêncio em que errava a sussurração das moscas. Às vezes, para o distrair, Sabina levava-o ao quintal, ver a criação: mostrava-lhe os coelhos novos pulando sobre as camadas de couves molhadas, de nariz franzido, as orelhas direitas, fitando os olhinhos vermelhos como rubis ou negros como vidrilhos nas côdeas que ela trazia; e em torno dela era um correr de pintainhos, redondos como bolas de penugem, um cué-cué de patos, um despedir de bufos dos dois perus entufados. Mas o cheiro da capoeira, da coelheira, o bafo morno e acre dos pêlos e das penas enjoavam Artur; detestava os bacorinhos, com a pele cor-de-rosa, a suar de gordura, fossando até aos olhos, grunhindo de gozo, na lavagem das gamelas. Só não desgostava do velho galo, o Pimpão, de cauda flamante e passadas pomposas: muito atrevido, o Pimpão plantava-se diante dele, erguendo a crista sanguinolenta, fitando-o de lado com o seu olho rutilante, e de repente, batendo as asas, estendendo o pescoço onde corriam reflexos de esmaltes vermelhos e azuis, lançava o seu toque de clarim; galos, noutros quintais, respondiam; e as galinhas iam dando em redor, no mato estradado, picadelas subtis e vorazes.
Mas Artur declarava que não lhe agradavam senão pombos e pavões — e subia para casa, bocejando, enquanto a tia Sabina, magoada daquela indiferença, ficava a olhar desconsoladamente «a sua bicharada».
Depois do jantar, dadas as graças, era a sesta: tudo parecia adormecer numa lassidão entorpecida, até os móveis e as moscas. E Artur, estirado sobre a cama, olhava vagamente as tábuas do tecto, ruminando pensamentos saudosos de amor, de celebridade, ouvindo fora, nas suas gaiolas de vime, arrulharem as rolas. Ao fim da tarde, as senhoras iam tomar o fresco para o fundo do quintal, ao pé da estatueta da For— tuna, enquanto o Albuquerquezinho fazia navegar no tanque do poço o seu bote cheio de soldados de chumbo; e naquele repouso das folhagens, cansadas da ardência do dia, ouvia-se a água de rega murmurar ao lado, no pomar do Freitas. E ali ficavam até tarde, esquecidas, até que alguma estrelinha tremeluzia no alto e os morcegos esvoaçavam em torno da Fortuna. A essa hora, Artur entrava do seu passeio triste pela estrada de Ovar ou do Covo e o serão começava, com as janelas, por onde entravam borboletinhas brancas, abertas à escuridão tépida do largo.
Era aquela a hora pior. As meias das duas senhoras, as paciências do Albuquerquezinho, os quartos que caíam plangentemente da torre de S. Francisco, davam-lhe um tédio taciturno. As tias imaginavam que eram saudades do papá:
— Não maluques nisso — diziam — quem lá está, lá está.
E Artur detestava-as, por não compreenderem a elevação espiritual da sua melancolia. Depois, o Albuquerquezinho tomara afeição a Artur e queria mostrar-lhe a sua esquadra. Eram dois grossos cadernos de papel em que ele colava em fila os navios e paquetes recortados nos anúncios dos jornais, com os nomes escritos a tinta vermelha: Valoroso, Relâmpago, Fragata Sabina, Nélson... Havia as esquadras de todos os países da Europa, e, como não cessava de recortar, tinha agora esquadras de terras exóticas: a frota da Lapónia, a frota da Cafraria, a frota da Arábia...
— Hem, meu amigo! Que esquadra... E tudo às minhas ordens! — dizia, mostrando os galões da manga. — Dá-me muito que fazer...
— Decerto, Sr. Almirante, decerto!
Ao fim do serão, subindo para o seu quarto, erguia os braços para o céu numa acusação muda! Quando acabaria aquela vida? Quando voltariam noites como as do Cenáculo? Pela janela aberta entrava a paz escura da vila adormecida. Olhava então as casas apagadas, os telhados fazendo na sombra sombras mais densas: àquela hora, toda uma burguesia dormia, roncando de barriga para o ar; nenhum daqueles seres lera Alfredo de Musset ou compreenderia os sonhos que lhe revoavam na alma como bandos de aves cativas; a obtusidade daquele montão de lojistas e de proprietários sem ideal e sem emoção, ignorando os poetas, ocupados com o preço da carne e o adubo das terras, exasperava-o, dando-lhe desejos vagos de uma Revolução, em que o poder, o dinheiro, pertencessem aos génios e às almas delicadas.
Ocupava-se então, para não perder a comunicação intelectual com o Cenáculo, em compor para o Pensamento uma longa elegia, intitulada A Morte e dedicada à memória do pai. Mas Damião, que passava o Verão em Coimbra, devolveu-lhe o manuscrito, com uma carta, dizendo que o Cenáculo decidira não publicar o Pensamento durante as férias; talvez mesmo, no ano seguinte, agora que o Taveira estava formado, o Pensamento se tornasse uma Revista puramente filosófica e científica, de onde os poetas líricos, como na República de Platão, seriam excluídos, «a não ser que, deixando a preocupação estreita da dor individual, se lançassem na simpatia mais larga da humanidade martirizada...». Censurava-lhe a poesia «cheia de lamentações caóticas e lamartinianas»; aconselhava-lhe um livro forte e democrático: «a morte — dizia — é uma transformação banal da substância, e não comporta adjectivos tão espantados, verbos tão plangentes e essas fileiras de interjeições, que parecem renques de ciprestes. Só a vida é interessante porque é fenómeno único. Escreva páginas vivas!...»
Aquele fim do Pensamento, cortando a sua última comunicação com a vida intelectual, desolou-o. Assim se completava o isolamento da sua alma. De resto, sentia-se vazio de ideias, de imagens, de rimas. Atribuía aquela esterilidade ao meio dormente, à ausência de conversas, de excitação inspiradora. A falta de livros amargurava-o. Os que tivera, vendera-os em Coimbra quando vira o fim das libras do leilão, e não podia obter outros, porque os próprios cigarros que fumava no quintal, longe da tia Ricardina, tão avessa ao tabaco, comprava-os com alguma placa que lhe dava a boa Sabininha.
O seu tédio era tão grande que se pusera a desejar, como um acontecimento, a aparição aos serões, do Vasco e de D. Galateia, que então convalescia do seu último parto. Sabininha falara-lhe de D. Galateia como de uma «verdadeira beleza» e, por aquele nome literário, pelo que ouvira do seu amor dos romances, do seu talento no piano, viera a conceber uma mulher de olhos tristes e alma impressionável, sofrendo da existência mesquinha da aldeia e sonhando amores elevados. Mas foi uma desilusão quando eles vieram um domingo. D. Galateia era quase uma quarentona, grossa e branca, de buço forte, com uns seios, umas ancas, que sob o vestido leve de cassa clara, lhe davam a aparência flácida de um odre mal cheio. Atravessara o largo em chinelos, com fitas verdes no cabelo, um cartucho de rebuçados na mão — e a sua conversa sobre o leite da ama e os cuidados em que estava com o sarampo do Pedrinho, e a canastra de marmelos que comprara nessa tarde, revoltou Artur, que fez dela esta definição irreverente: uma vaca! O Vasco, esse, pareceu-lhe odioso. Pouca gente lhe tinha visto o rosto todo: com a testa e os olhos sempre cobertos pela pala enorme do boné de pano, o queixo e a boca constantemente abafados num cache-nez roxo, mostrava apenas a Oliveira de Azeméis um nariz bicudo e lustroso. Vivia numa irritação permanente. E todo o dia era pela botica um passear furioso, fungando, fazendo estalar violentamente os nós dos dedos, com sacudidelas desesperadas da cabeça, como a fugir ao ferrão de uru moscardo invisível, mastigando em seco, dentro do cache-nez, como se a vida lhe soubesse mal. Ninguém explicava na vila aquele azedume hipocondríaco.
Os serões das Corvelos, porém, pareciam calmá-lo: mostrava então as repas grisalhas que lhe cobriam o crânio estreito e o cache-nez, alargado, descobria um queixo mole, que lhe fugia para as cordoveias do pescoço. E a cabeça, emergindo-lhe assim dos agasalhos, com aquela longa saliência do nariz agudo, lembrava a de um pássaro pelado.
Artur compreendeu imediatamente que o Vasco era um ciumento: via-o mudo, de queixo rilhado, os olhinhos de clorótica amarelada cravados ansiosamente, ora nele, ora na grossa Galateia; e quando esta, requebrando-se, o interrogava sobre os seus passeios aos arredores, a sua visita à fábrica de vidro do Covo, o Vasco, retido a distância pela tagarelice da Ricardina, sondava de olhos faiscantes a escuridão debaixo da mesa, no terror de que já houvesse um terno roçar de joelhos. Enfim, quando trouxeram o chá, veio bruscamente plantar-se entre ambos, como um áspero muro eriçado de pregos. Então Artur indignou-se. Ser suspeitado, ele, com a delicadeza fina dos seus gostos idealistas, de desejar aquela matrona de carnes moles!... E para evidenciar bem o seu desdém pela Galateia, pelas palestras caturras, por toda a vila — subiu para o seu quarto, foi estirar-se na cama, gemendo interiormente da solidão do seu coração. Daí a pouco, a voz da tia Sabina dizia de fora:
— Tu estás incomodado? Vai-se fazer um quino.
Ele veio abrir:
— Não, tia Sabina. Não estou para aturar os Vascos. Diga que estou a escrever para Coimbra. Não jogo o quino.
Em baixo, o nariz de Ricardina, a esta explicação, alongou-se:
— Podia escolher outra hora para escrever!
— Rapazes! — disse o Vasco satisfeito. — Deixou o coração em Coimbra.
E o loto começou em torno da mesa, enquanto, diante do álbum aberto das esquadras universais, o Albuquerquezinho fazia a sua soneca.
Já o Vasco, para sair, recolhera a face de ave triste ao boné e ao cache-nez, quando Artur desceu. O farmacêutico tomou-lhe a mão com afecto:
— Estimei conhecê-lo... Aquela casa está às ordens... Eu tinha lido a carta que escreveu às titias... E de muito talento. Eu admiro o talento!
Pobre Vasco! D. Galateia, ainda depois de dez anos de casada, lhe dava ardores imoderados e zelos pungentes. Outrora, interceptara um bilhete do seu praticante, em que o moço a tratava por tu e falava dos «celestes gozos da outra noite»; mais tarde, surpreendera-a positivamente nos joelhos do sobrinho do Carneiro, moço imberbe que estudava geometria. Perdoara, mas desde então a desconfiança, a paixão tenaz, junto à hipocondria de uma doença de fígado, dera-lhe aquele azedume taciturno. A virtude de Artur, que experimentou noutros serões, tornou-lho querido. Depois, tendo conversado com ele sobre assuntos que o interessavam, como a Electricidade, o Magnetismo animal, deslumbrado por algumas recordações dos compêndios de Introdução, que Artur bordava de frases do Cenáculo, concebeu uma consideração ilimitada pelo talento e pela ciência do «Corvelo sobrinho». Mas não se abandonou imprudentemente a esta simpatia, quis sondar-lhe os princípios e o carácter, e um dia que Artur entrara na botica a buscar o xarope da Sabininha, o Vasco fechou a porta, para fazer uma solidão propícia, e cruzando formidavelmente os braços, atirou-lhe esta interrogação:
— Quais são as suas ideias a respeito da família?
Artur, interdito, balbuciou:
— Eu, parece-me que é uma instituição respeitável.
— De modo que um peralvilho que atenta contra a paz do lar, é um canalha?
— Parece-me que é um canalha!
— Muito bem. E se o Sr. Corvelo fosse legislador, que penalidade lhe infligiria?
Artur passou os dedos pela testa, confuso, procurando penalidades:
— Eu, parece-me que o castigo actual do Código é suficiente... Três ou quatro anos de cadeia...
— Muitíssimo bem! — exclamou o Vasco apertando-lhe a mão. — Estimo que se não afaste desses princípios respeitáveis...
E num reconhecimento às Corvelos, por possuírem um sobrinho de tanta virtude doméstica, pesou um quarto de rebuçados, encartuchou-os e exclamou:
— Para as senhoras suas tias, da minha parte. Compreendo o gosto que fazem em V. Exª.
Foi por esse tempo que o Vasco, desgostoso com todos os praticantes moços que tivera, e que invariavelmente tramavam contra a sua honra, obrigado ultimamente a despedir o hábil Alfredo, por ser «atiradiço», concebeu um plano — que dali a dias foi muito gravemente comunicar às Corvelos. Era tomar Artur como seu praticante: oh, ele bem sabia que um moço de tais talentos, com dois anos de Coimbra, merecia uma posição mais elevada na Sociedade. Mas enfim, o Sr. Artur estava ali na vila, inactivo, comendo o pão das titis... O seu desejo de o possuir era tão forte, que lhe oferecia sete mil e quinhentos por mês! De resto, a farmácia era uma Ciência. Ele estava velho, minado do fígado, ávido de repouso, e se o Sr. Artur revelasse talentos verdadeiramente farmacêuticos, poderia mais tarde passar-lhe a botica, a melhor em todo o distrito. Demais a mais, não seria difícil, em alguns meses, com os estudos que ele tinha, iniciá-lo na manipulação dos elementos químicos «que é de tanta responsabilidade, minhas boas senhoras...».
Foi uma alegria violenta para as tias. Ainda o Vasco ia no pátio, já elas estavam batendo à porta do quarto de Artur, que se aferrolhara por dentro na composição ardente de quadras entusiastas:

Eu quero uma existência fulgurante!
Mover-me livre sob o livre céu!
Quero a glória épica do Dante
E os amores sublimes de Romeu...

Ficou petrificado, quando Ricardina, enternecida, lhe anunciou a proposta do Vasco, daquele santo! Praticante de farmácia! Parecia parvo, de pena na mão e os cabelos esguedelhados, rolando assim dos céus poéticos onde pairava até aos almofarizes da botica do Vasco!
— É uma ocupação para ti — dizia Ricardina.
— Tens ao menos para o teu fumo e para as tuas extravagâncias... — ajuntou Sabina. — Que nós, mesada, não te podemos dar. E quando se te acabar o luto, nem tens para mandar fazer um casaco... E são sete mil e quinhentos...
Não podia recusar-se a trabalhar: balbuciou lugubremente que «sim».
Mas a desconsolação que lhe murchara a face magra foi tão visível que comoveu a tia Sabina:
— É para o teu bem — murmurou. — Que, se fôssemos ricas... Mas enfim, se te custa muito...
— Que há-de custar? Que há-de custar? — exclamou Ricardina. — Aí vem a mana com as suas coisas! Olhe o despropósito. Se a deixassem regular-se pela sua cabeça, não iam nesta casa senão desgraças. Veja onde a levou a sua cabeça... Veja o desgosto que sofreu! Vai muito bem, é uma fortuna para ele.
— Sim, tia Ricardina, obrigado. Até estimo...
Quando elas saíram despedaçou os versos. E até ao jantar, movendo-se pelo quarto, tomado de desespero, pensou em fugir de Oliveira de Azeméis. Tinha a certeza de que o seu génio, na frequentação do Vasco, entre os unguentos e os bocais, pereceria como um lírio desfolhando-se numa caverna. Por que não iria para Paris, ser operário, amar uma Mimi republicana do Faubourg St. Antoine e conspirar contra o Império? Pensou em ir para Lisboa, fazer-se escudeiro numa casa fidalga, onde a sua figura e as suas réplicas profundas, lhe dariam bem depressa o amor da senhora condessa ou da mulher do banqueiro...
Mas tinha as desesperações superficiais — e daí a dias, com o casaco de laboratório que pertencera ao hábil Alfredo, preparava resignadamente, sob o olhar paternal do Vasco, a sua primeira garrafada de mistura salina.
Consolava-se achando, na sua sorte, similitudes com biografias ilustres: pensava em Michelet impressor, em Proudhon conduzindo pelo Ródano carregações de madeira; lembrava-se da frase de Damião: «o homem moderno deve trabalhar com as suas mãos e filosofar com o seu cérebro». Depois, eram sete mil e quinhentos por mês...
De resto o trabalho era breve. O principal negócio do Vasco consistia numas pastilhas peitorais que inventara e de que fornecia todo o distrito. À noite, dispensava Artur: a essa hora D. Galateia descia à botica e o Vasco, apesar da sua confiança na virtude heróica do novo praticante, não queria, por sistema, depois do lusco-fusco «corações de vinte anos na botica». Temia sobretudo a noite, como mais propícia às fraquezas ternas e à passagem de bilhetinhos sub-reptícios, destruidores da sua honra.
Depois, veio-lhe outra felicidade. Uma manhã que estava só na botica, a porta abriu-se, como arrombada, e apareceu o colosso do Teodósio. Viera à vila de passagem: vinha buscar pastilhas do Vasco para uma «pequena que se lhe encatarroara»; fez estalar os ossos do caloiro com um abraço, chalaceou sobre a botica, convidou-o a ir à quinta, e, ouvindo-o queixar-se do aborrecimento da vila, da falta de livros, exclamou divertido:
— Ah, caloiro, é isso que te falta? Caramba, está a calhar! Eu trouxe dois caixotes atulhados de livraria, mas lá na quinta não me servem de nada... Se queres, mando-te para cá um caixote... Ou ambos! Tem cuidado com as encadernações, que lá nisso faço gosto.— Dás-me a vida, Teodósio!
— Pois valeu, caloiro!

A chegada dos dois caixotes, uma tarde, foi um alvoroço na casa das Corvelos. Artur precipitara-se, em cabelo, da farmácia. E Ricardina, que subira ao quarto a ver-lhos destapar, aterrou-se diante daqueles montões de volumes amarelos, em que decerto se deviam tramar coisas contra a Religião:
— Tu vais tresler, menino... Olha não te faça mal!
Depois do chá, aferrolhou-se no quarto, atirou-se ao seu tesouro, sofregamente, como se tivesse achado no quintal uma panela de dinheiro. Eram romances, poemas, críticas, dramas, filosofias... Mas só os poetas o atraíam e ia através dos volumes espalhados na cama, lendo uma página ou uma estrofe, logo passando a outra, ávido de versos sonoros, de diálogos, de adjectivos ricos, e cada livro lhe renovava aquela exaltação especial do tempo de Coimbra, acordando-lhe na alma antigos entusiasmos do Cenáculo. Com Vítor Hugo, sentiu-se outra vez panteísta, confundiu-se na alma Universal do Ser, declamou:

Arbres, rochers, roseaux, tout vit! Tout est plein d'âmes!

Todo o platonismo dos meses em que amara idealmente, lhe voltou, com languidezes elegíacas que lhe passavam na alma, relendo em Lamartine:

Un soir, t'en souviens tu, nous voguions en silence!

E os Iambos de Barbier fizeram-lhe bater o coração de novo, com as aspirações de uma democracia lírica:

La liberté n'est pas une comtesse
Du noble faubourg St. Germain,
Que le son d'un fusil fait tomber en faiblesse,
Qui met du rouge et du carmin.
C'est une forte fille, aux puissantes mamelles,
Aux mains rouges et teintes de sang!

Leu toda a noite, sentado aos pés da cama, respirando a largas golfadas, com a delícia de quem sai de um cárcere, a atmosfera que o envolvia, feita das emanações de Ideal, exaladas daqueles volumes românticos. E era, entre aquelas paredes do seu quarto, como uma região luminosa, acima da terra, onde não havia tias nem farmácias, onde o sopro das paixões grandiosas se casava à música dos ritmos novos e em que ele se movia arrebatadamente por entre as criações da Arte. Ali, palpitavam no éter as asas de Eloá; a um canto de taverna romântica, vibrava o riso lúgubre de Rola; além, a cotovia cantava no jardim dos Capuletos; não havia uma carruagem que não levasse uma pálida Dama das Camélias; todos os animais eram poéticos como a cabrinha de Esmeralda e, nos cemitérios, Hamlet meditava, fazendo rolar sobre um chão trágico a caveira de Yorick.
Quando a vela de sebo se derreteu no castiçal de latão, ficou desesperado. Queria prolongar aquela noitada romântica; então saiu pé ante pé, esguedelhado, raspando fósforos. No seu quarto, sob a protecção da sentinela, Albuquerquezinho ressonava; no corredor, os olhos do gato fixaram-no, fosforescentes e aterrados. Não encontrou candeeiro, nem vela... Foi ao oratório. Em cima de uma antiga cómoda com fecharia de metal, erguia-se um alto crucifixo enegrecido dos anos, e em redor apinhava-se toda uma corte celeste, de barro, de massa e de madeira... Uma lamparina ardia perpetuamente aos pés do crucifixo, e naquela alcova abafada, o reflexo da torcida punha uma vaga claridade mística em redor, na auréola pálida de uma santa, no dourado lívido de um Menino Jesus, na brancura de uma renda de toalha, na encadernação canónica de um velho in-fólio. Errava um cheiro adocicado de junquilhos secos, de cera e de maçã camoesa... Artur arrebatou a lamparina, deixou os santos nas trevas, e todo o resto da noite, aquele pavio devoto, habituado a erguer a adoração da sua luzinha para as chagas de Jesus ou o burel de Santo António, alumiou páginas profanas, cheias dos gritos da Paixão e das rebeliões da Dúvida. Adormeceu quando a madrugada aparecia nas frinchas da janela, e sonhava que ia remando num barco, com o Taveira, por um rio de legenda, seguindo o corpo de Ofélia que a corrente levava... quando acordou estremunhado, aos gritos da tia Ricardina, que abrira a janela e apertava as mãos na cabeça, atónita, diante da lamparina seca:
— Tu queres-me matar com desgostos, menino! — gritava sufocada. — Pois tu tiraste a luz do oratório?
Artur explicou que fora uma dor de barriga.
— Se ele se achou doentinho... — murmurou logo a tia Sabina, que entrara atrás dela, assustada.
— Não há doenças! Que chamasse! É um desacato! É um desgosto que me há-de levar à cova. E a primeira vez, em quarenta anos... Como pode alguém esperar a ajuda de Nosso Senhor, se até se lhe tira o bocadinho de luz! Não me venha com as suas, mana Sabina! A sua cabeça bem a conheço. Olhe o que ela lhe custou. Veja o desgosto que sofreu! E saiu aos ais pelo corredor.
Cercado de livros de versos, Artur julgou ter-lhe voltado de novo a «veia», sobretudo, talvez, porque a celebridade, o prestígio poético que eles tinham dado aos seus autores, lhe excitava a ambição. Decidiu reunir, pacientemente, um volume das suas poesias, a que daria o título cintilante de Esmaltes e Jóias! E, antes mesmo de o compor, já o coração lhe batia à ideia de ver o seu livro na vidraça dos livreiros, com uma capa cor-de-rosa. Decidiu que lhe juntaria o seu retrato, numa atitude de cabeça contemplativa: decerto alguma mulher inteligente o amaria, pela nobre melancolia que os seus olhos revelavam... E a sua vida seria uma continuação de beijos arrebatados e de rimas sonoras. Mas os meses passaram, naquela vida de uma regularidade triste de pêndulo, entre a casa e a farmácia — e o grosso livro encadernado, onde ele devia copiar os Esmaltes e Jóias, permanecia ainda quase todo branco. Lá estavam os três poemas que o Pensamento acolhera: Ofélia, A ti — que era a Aninhas Serrana, amada — e Mulher de Mármore — que era a Aninhas Serrana, odiada! Em obediência a Damião, produzira ainda uma Ode à Liberdade. Oliveira de Azeméis fornecera-lhe A Lua, Delírios e Pôr do Sol. Mas depois destes esforços, a corrente de imaginação, onde flutuavam fragmentos de sonetos, pedaços de imagens, fora-se pouco a pouco imobilizando, como um regato que gela. Às vezes, julgava que era o assunto, a matéria poética que lhe faltava, e ia rebuscá-la pelos livros amados; e quando, depois de uma leitura das Orientais, imaginava que o Oriente e o seu pitoresco lhe inspirariam estrofes ricas, ou, depois de uma página de Vigny, lhe vinha o entusiasmo de cantar o amor dos anjos — era a expressão, o verbo que lhe fugiam. Então, desesperado, acusava a monotonia da vila triste que o esterilizava. Ah, se estivesse em Coimbra, em Lisboa sobretudo! Lá, entre os jornalistas, a Opera, os poetas, o seu cérebro que, agora, lhe parecia uma pedra que apesar de muito batida guarda obstinadamente a sua faísca, flamejaria então numa inspiração contínua.
Mas não desistia, sustentado pela ambição histérica de ver o seu nome em folhetins, de ser admirado pelas senhoras sensíveis — e as tias não compreendiam o que ele fazia, passeando até altas horas pelo quarto, consumindo regularmente uma vela de sebo por noite, enquanto o Albuquerquezinho, que era doido, esse, no quarto ao lado, ressonava sensatamente! A tia Sabina, um dia, descobriu que o menino fazia versos, e veio perguntar-lhe, em segredo, se era para alguma senhora de Coimbra. Quem era?
— Não é para nenhuma senhora, tia Sabina. São versos. É para um livro...
Ela não acreditou, ameaçou-o com o dedo, meigamente:
— Ah, menino! menino!... É da tua idade, filho, é da tua idade!
Mas Ricardina, essa, desaprovou com espalhafato «o despautério do menino». E era para isso, para fazer versos, que assim arrasava a saúde, deitando-se de madrugada e trazendo aquela cara esverdeada! Que visse onde os versos tinham levado o tio Teotónio! E era um talentão, esse, íntimo de fidalgos, conhecido na Corte! Pois por lá morrera, numa enxerga de hospedaria, com uma camisa na mala e um montão de papelada!... E no seu horror à Poesia, que ela considerava a origem fatal da fome e do vício, pediu ao Vasco que trouxesse o menino a ideias mais sérias, mais práticas, de carreira e de futuro. O boticário fê-lo em frases muito graves, muito meditadas: se o Sr. Corvelo gostava de empregar os seus vagares, como era justo na sua idade, por que não unia o útil ao agradável? Por que não estudava a bela Física, e bela Química, que lhe seriam de tanto auxílio no seu futuro farmacêutico? E acrescentou com bondade:
— Eu não digo, quando se tem já uma posição na sociedade e alguns vinténs de lado, que não seja bonito poder produzir um bom acróstico, ou, sem malícia, um engraçado epigrama... Mas fazer da poesia a principal ocupação, não! Desculpe-me o Sr. Corvelo, mas é uma grave imprudência e há-de concorrer para o desviar dos seus deveres! Artur empalidecia de raiva. Só na tia Sabina encontrava simpatia. Essa, desde a descoberta do caderno dos Esmaltes e Jóias, parecia estimá-lo mais, como se a habilidade poética fosse uma evidência da ternura da alma. Um dia, mesmo, quando ela estava arranjando o seu gavetão, a doce velha tirou de entre um livro de orações um papel amarelado, de dobras muito gastas e com mistério pediu-lhe que o lesse: mas baixinho! Eram versos, versos à tia Sabina, versos datados do Porto, de 1841!

Eis chegado o momento de partir,
Dor e luto se apossam do meu ser;
Longe de ti, ó anjo feiticeiro,
A vida é treva, não posso viver.

E havia doze quadras neste estilo, trabalhadas ao gosto do tempo, misturando fanatismos de amor e palpites de morte às melancolias do Outono e às tristezas da separação. Artur disse, sorrindo, numa complacência de mestre amável:
— São bonitos, tia Sabina, estão bem feitos...
A velha dobrou silenciosamente o papel:
— E eram verdade nesse tempo, filho — murmurou por fim. — Quando a gente é nova!
Artur teve vontade de a abraçar! O seu acanhamento reteve-o. Mas estimou-a mais desde então: quase desejava contar-lhe as suas melancolias e as suas ambições; mas vendo-a depois, à noite, cabecear com sono sobre a mesa, ou, na sombra do Oratório, enfiando Salve-Rainhas, sentia que a pobre velha não o compreenderia.
Agora, incessantemente, ansiava por alguém com quem desabafar! Desejaria ler os seus versos, aquecer-se a uma admiração amiga, falar dos seus poetas queridos, de entusiasmos, de aspirações revolucionárias. Mas à casa das tias só vinham os Vascos, e a botica era frequentada apenas por um velhote caturra e obsoleto, o Sequeira, e por um proprietário, o Abreu, que todas as tardes, apoiado ao castão da bengala, murmurava sombriamente as mesmas palavras: «Então, que há de política? As coisas vão mal, as coisas vão mal...». Na vila, havia, na verdade, dois moços bacharéis, mas Artur não os conhecia: eram da Assembleia, das famosas soirées das Carneiros, que todos os sábados faziam brilhar na praça escura as três sacadas nobres da sua casa. Muitas vezes, passando por lá, considerava-as com azedume, pensando como lhe seria fácil cativar ali as senhoras, recitando, tendo ditos poéticos. Mas excluíam-no daquela sociedade brilhante a obscuridade das tias e a sua posição subalterna na farmácia; consolava-se então, pensando que seria aquele um mundo burguês, ocupado das intrigas da vila, indiferente à arte e incapaz de sentir em concordância com ele. Mais valia a sua solidão de alma incompreendida.
Porém, nas noites em que se sentia «sem veia», quando odiava os livros — como se a sua esterilidade lhe tornasse antipática a abundância dos eloquentes — aquele isolamento completo amargurava-o como um desterro numa rocha deserta. A nostalgia de Coimbra, das cavaqueiras poéticas do Cenáculo, daquela vida intensa que lhe parecia agora sublime, voltava-lhe mais pungente; e ávido de poetas e de filósofos, tinha de vir sentar-se entre as tias, fazendo as suas meias sonolentas, e o Albuquerquezinho, compenetrado, elaborando paciências ou revistando o álbum das esquadras. Se ao menos tivesse uma irmã, inteligente e poética! Fazia-o suspirar, cerrar os olhos, a ideia de uma mulher de alma romântica, que o amasse, recebesse, reconhecida, a revelação das suas sensibilidades e para o acalmar lhe soubesse tocar ao piano melodias de Weber ou árias de Mozart!
Foi esta necessidade de convivência literária que o levou, decerto, a ligar-se com um sujeito da vila, apesar de haver entre ambos um contraste radical de temperamento, de gostos e de compreensão da vida. Chamavam-lhe em Oliveira de Azeméis o Rabecaz. Era um homenzarrão, de carão audaz e vermelho, fortes bigodes de mosqueteiro, muito teso no seu casaco de alamares debruado de astracã; com o seu chapéu ao lado, a ponta do lenço muito de fora, o grande bengalão de cana-da-índia, parecia a Artur — quando o via passar na praça, revirando para as criadas que iam à fonte os olhos avermelhados de genebra — um destes mestres de armas, capitães a meio soldo, azedados e turbulentos, dos romances de Eugénio Sue. Era empregado da Administração e ninguém sabia como se achava ali havia dez anos. Porque era de Lisboa, amaldiçoava Oliveira de Azeméis; mal sabia redigir uni ofício e trovejava livremente contra os governos. Era um bilharista famoso na vila, grande homem do botequim da Corcovada, onde ficava, das quatro da tarde até à meia-noite, carambolando, atirando para as fauces copinhos de genebra e falando com autoridade de política e de mulheres. Foi ali que se encontraram, uma noite em que Artur, ao passar, se refugiara de uma pancada de água no bilhar quase deserto. O Rabecaz, que batia melancolicamente carambolas solitárias, propôs a Artur uma partida às vinte e cinco.
— Que V. Exª, como frequentou Coimbra, deve ser da confraria do taco.
— Jogo mal.
Mas aceitou, com uma curiosidade daquela figura que tinha em Oliveira um relevo pitoresco. E, carambolando, conversaram. O Rabecaz, imediatamente, injuriou o governo — e a simpatia nasceu de se reconhecerem ambos republicanos. No entanto divergiam: Artur queria os Estados Unidos da Europa, governados pelos grandes génios: Vítor Hugo devia presidir à França, Castelar, à Espanha; não haveria exércitos e os povos federados sentar-se-iam fraternalmente em banquetes simbólicos, cantando a Marselhesa. Rabecaz exigia um Robespierre, um Cromwell, para guilhotinar os fidalgos, confiscar os bens dos capitalistas e escavacar os padres!
— Nem barões, nem sotainas! — berrou, brandindo o taco.
— Pelo que vejo — disse Artur — V. Exª é da escola de Proudhon.
— Eu não sou da escola de ninguém, meu caro senhor. Eu sou uma fera! Quando penso no estado a que chegou este pais, sou uma fera!
Trovejou então contra o clero: — mas não concordavam também sobre questões religiosas. Artur entendia que se devia adorar a Natureza, nos campos, diante do Céu, templo eterno, e admirava Jesus, filósofo e democrata! Rabecaz não admitia Jesus — «porque, uma de duas, meu caro senhor, ou era um Deus e então tinha o poder de se não deixar matar, ou não era um Deus, e então não podia ter ressuscitado: porque deixar-se matar, para ter o prazer de se fazer ressuscitar, parecia-lhe uma trica política, imprópria de um ente divino!»
E pousando o taco, convidou o Artur a cear. A Corcovada tinha ao fundo, para os íntimos, entre a cozinha e a estrebaria, um cubículo com uma mesa de pinho e mochos de palhinha. De uma parede pendia o retrato de Pio IX, de mão erguida numa bênção; defronte, numa litografia colorida, uma odalisca seminua enfiava pérolas. Ouvia-se ao lado rabujar os netos da Corcovada, estalar na lareira a lenha verde e as mulas dos almocreves, puxando a argola das manjedouras, baterem o chão lajeado.
Rabecaz encomendou à Mariquitas, sobrinha da Corcovada, «a bela fritada de ovos e chouriço e dois meios litros reais».
E indicando, com um piscar de olhos, a rapariga sardenta e roliça:
— Boa perna!
Escarrou para o lado, e, instalando-se à mesa, quis saber a opinião de Artur «sobre o gado».
— Que gado?
— O gado, o femeaço...
A expressão brutal escandalizou as delicadezas de Artur e o seu desprezo por Rabecaz foi completo quando o ouviu declarar, com o olho lúbrico, que o que apreciava no gado eram «as boas carnes».
— O amigo nunca esteve em Lisboa?
— Não, disse Artur.
O Rabecaz deu uma palmada na coxa:
— Então, meu caro senhor, não sabe o que é gado! Não faz ideia do que é um pé catita! — E com uma punhada na mesa: — Então, não sabe o que é a pândega!
Falou imediatamente de si. Tinha vivido em Lisboa, ele, com cavalos, com cadeira em S. Carlos, com carruagem! Fora um príncipe! No tempo em que Madama Ortza era uma beleza e o Marrare um céu aberto! Que batidas para as Portas de Algés! Que orgias com a Contadini!
— Comi tudo, mas regalei-me! — disse, dando um puxão ao bigode.
Artur considerava-o agora com interesse, como uma ruína romanesca.
— O Sr. Rabecaz então devia conhecer bem Lisboa...
— Lisboa?
Bebeu um trago «real» e passando pelos beiços as costas da mão cabeluda:
— Meu caro senhor, conheço Lisboa desde o mais alto — e o seu gesto no ar parecia designar dosséis de tronos — até ao mais baixo! Ao mais baixo! — E agitava a mão sob a mesa, como revolvendo lamas.
Rabecaz adquiriu logo para Artur uma autoridade imprevista, por aquela experiência tão complexa da grande cidade, das suas glórias. dos seus mistérios. Naturalmente tinha convivido com escritores, com artistas...
— Grande rapaziada! — exclamou Rabecaz. –Conheço-os a todos, de tu! Belos pândegos!
Citou nomes. O José Estêvão! O Garrett! A Sociedade do Delírio! Uma troça real!
Mas voltou com fogo às mulheres:
— Não há como Lisboa para se apanhar do bom, do alto! Tudo sedas e veludos! – E repoltreava-se, retorcendo as guias, significando que se rolara no leito de condessas. – E as espanholas, ó amigo, hem? E as espanholas?
O olho chamejava-lhe. Para ele, não havia como uma rica andaluza, cheia de salero e de chic, de cinta de anel, pezinho catita... Oh! menino!
Deu um puxão às calças, bufou de concupiscência.
— Agora aqui é chupar no dedo! — concluiu sombriamente. — Que choldra de vida! Até um homem aqui ganha mofo...
— A mim, paralisam-se-me as faculdades...
— E eu estou a perder a tacada...
Estes gostos baixos, as locuções incultas de Rabecaz, revelaram a Artur um brutal que o dinheiro, a petulância, tinham misturado casualmente às existências desordenadas das almas ardentes. E, preocupado só do mundo da Arte e da Literatura, interrogou-o ainda sobre os teatros, as dançarinas. Devia ser uma vida deliciosa nos bastidores... ceias com os jornalistas...
— Um delírio, meu caro senhor! De tremer! De vir tudo abaixo!
E Artur entrevia orgias sonoras, o estalar do champagne, can-cans, em que cabelos soltos perfumam o ar cálido...
— E vive a gente aqui! — suspirou.
— Na estrumeira! — ecoou Rabecaz.
E azedados à ideia das felicidades inacessíveis, uniam-se numa simpatia nascente.
A Artur, o que lhe valia eram os livros. Recolhia cedo a casa, tomava o seu Vítor Hugo...Rabecaz arregalou os olhos.
— Vítor Hugo! — rosnou com uma voz cava.
— Um mundo!
Aquela admiração, precisada numa palavra profunda, entusiasmou Artur. E com a pupila acesa, os cotovelos na mesa:
— Pois não é verdade? As Contemplações! Os Miseráveis! E Lamartine?
O Rabecaz alargou os braços, como para designar um seio de proporções mais que humanas e soltou:
— Lamartine? Um mundo!
— O tipo de Elvira, hem? E o tipo divino de Graziela? Mas Alfredo de Musset?
Oh! Alfredo de Musset!
O Rabecaz reflectiu, com um vinco na testa:
— Desse não estou ao facto... Mas Guizot! Um mundo! De tremer tudo!... Mais dois quartilhos, bela Maria...
Eram onze horas quando saíram da Corcovada. Ao passar diante da Igreja de S. José, Rabecaz, excitado, insultou os padres, disse pilhérias sobre os dogmas.
— Para que serve isto, este covil? — E brandia o bengalão para a fachada da igreja negra e muda.
— Deviam ser convertidas em escolas — disse Artur.
O Rabecaz, indiferente à instrução, encolheu os ombros:
— Devia ser tudo arrasado.
Depois, a casa do Carneiro, o rico lojista de panos, coberta de azulejos, com as suas três varandas de sacada, exasperou-o.
— Grandíssimo burro! Se nós lhe apanhássemos o dinheiro, hem? Era logo comboio para Lisboa, e bater para o Clube, com um par de pequenas.
Enterrou as mãos nos bolsos e tornou-se sombrio.
A chuva cessara: um vento frio ia rolando espessuras de nuvens, espaços azuis estrelavam-se.
— Pois tivemos uma bela cavaqueira — disse o Rabecaz, quando Artur parou à porta de casa. Eu gosto de conversar com quem me entenda e cá o amigo é dos meus. Apareça pela Corcovada. Não se passa mal.
E avistando um gato, atirou-lhe uma bengalada. Aquela brutalidade escandalizou Artur. Deitou-se, convencido que o Rabecaz era um grosseiro, sem educação literária, de uma lubricidade de bode.
Mas vivera em Lisboa, bebera o Champagne das orgias literárias; sobretudo, era republicano — e, daí a dias, Artur voltou à Corcovada, com o pretexto de pagar a ceia ao Rabecaz — realmente para lhe mostrar a sua Ode à Liberdade.
O Rabecaz entusiasmou-se logo, sobretudo quando Artur, afogueado, soltava este final da sua estrofe amada:

Luze o novo arrebol
Em vez do templo o livro! Em vez da estola a pena!
Ao perfume do incenso, prefiro o da vérmina
Prefiro à hóstia, o sol!

Rabecaz atirou uma punhada à mesa, bradou:
— Caramba! Isso é de artista! Você o que deve é ir para Lisboa, que em Lisboa desbanca-os a todos!
Artur não o duvidava — e essa palavra cimentou a intimidade entre ambos. Aquele aplauso tornou-se-lhe então necessário. Rabecaz era o seu público; julgava-o inteligente, de gosto muito certo, desde que ele admirava os seus versos; leu-lhe sucessivamente todas as poesias dos Esmaltes e Jóias e para o lisonjear nas suas antipatias clericais — espírito efeminado, já adulava servilmente os instintos do seu público — compôs uma sátira contra os padres, a quem chamava negros serventes de um estéril dogma. O seu cérebro pareceu degelar ao sopro quente daquela admiração grosseira; fez sonetos; e o que escrevia agora era sob a preocupação «do que diria o Rabecaz». E, todavia, era sempre a mesma a fórmula critica do Rabecaz; escutava com os braços cruzados, nobilitando a sua atitude na presença das rimas: se a poesia era lírica e amorosa, tinha um riso mudo que lhe enchia a face de rugas, lhe mostrava a dentuça negra, e arrastando a voz com deleite:
— Está catita!
Se era «uma peça filosófica», arregalava o olho, o nariz alongava-se-lhe, eriçava-se-lhe o bigode e rosnava cavamente:
— Está de arromba!
E terminava por exclamar, com uma palmada no joelho:
— Caramba, Artur, você deve ir para Lisboa! Você vai a ministro!
Artur suspirava.
A certeza que o Rabecaz lhe dava da celebridade em Lisboa — ele que a conhecia tão completamente — inflamara-lhe o desejo de lá viver e ser uma das suas personalidades essenciais. Lisboa era agora a sua necessidade, o seu ideal, a sua mania. Pensava que lá, na Capital, as suas faculdades se desenvolveriam prodigiosamente, como certas plantas raras que só medram em terrenos ricos; aí encontraria decerto as glórias do coração em amores aristocráticos, e, discutido nos folhetins, recitado nos teatros, muito alto na hierarquia das letras, poderia talvez extrair uma fortuna dos cofres dos editores!
Tudo o que o cercava e o retinha, a casa das tias, a farmácia do Vasco, lhe parecia então mais odioso; tudo na vila lhe dava uma sensação de obscuridade que o abafava — as ruas que se lhe afiguravam estreitas como as ideias, as fachadas que eram inexpressivas como os rostos; detestava aquela gente que nunca leria os seus versos, e que decerto o desprezava: o fiel de feitos que ao meio-dia passava na praça, com o seu saco de lustrina cheio de autos e o Carneiro que, de robe-de-chambre, a face próspera e farta, fumava o seu charuto à varanda...
E trabalhava num ardor contínuo, forçando a imaginação difícil, ávido da terminação dos Esmaltes e Jóias, como se eles fossem o fim de todas as suas desesperanças. As tias, o Vasco, achavam-lhe uma «cara de desenterrado» e as pessoas que moravam na praça, olhavam quase com compaixão aquele moço triste, que passava de manhã e à tarde, de olhos baixos, cabelo muito comprido, encolhido no seu paletot cor de pinhão.
Andava, num desabafo, compondo uma Epístola em quadras, dedicada ao poeta que disse:

Eu nunca vi Lisboa e tenho pena...

Artur, sem o conhecer, tratando-o de tu, numa familiaridade de Parnaso, comungava na mesma ambição. E nas manhãs em que não havia trabalho na farmácia, era pelo seu quarto um passear desordenado, declamando:

Também eu nunca vi Lisboa, amigo.
Profunda Babilónia junto ao mar!
Oh! que me fosse dado ir lá contigo
Unidos ambos para cantar e amar!

E ao lado, do peitoril da janela, estendendo o braço agaloado de oiro, o Albuquerquezinho berrava num acesso:
— Orça a barlavento! Cerra os traquetes da gávea! Fogo!
Um sopro de loucura parecia correr naquele andar da casa, enquanto em baixo, na sala, as tias faziam a sua meia e o gato branco dormia, numa réstia pálida do sol de Novembro.
Foi por esse tempo que Artur recebeu do Porto, do seu padrinho, o rico Guedes Craveiro, uma carta estranha, em que lamentava, ainda depois de dois anos, «a morte fatal do meu nunca de mais chorado amigo Manuel Corvelo», falava misteriosamente «de um desgosto cruel com que a Providência o visitara o mês passado» e prodigalizava frases devotas, pedindo a Artur que o não esquecesse nas suas orações. Em post scriptum, dizia que passaria em Ovar no sábado, em viagem para Lisboa e seria uma alegria para o seu coração, poder apertar nos braços e conhecer seu estremecido afilhado!
Foi um espanto para Artur. Nunca vira o padrinho Guedes. Lembrava-se que em casa, em Ovar, lhe chamavam o carola; mais tarde, durante umas férias, seu pai, voltando do Porto, falara dos escândalos que dava nesse momento o Guedes... Era uma história triste: o pobre Carola, numa dessas paixões brutais que fazem irrupção, por vezes, numa existência devota, apaixonara-se furiosamente por uma Lola, comparsa de zarzuela do Baquet, e teria decerto acabado por casar com ela, se Lola não tivesse já um marido, um bandido, que se instalara na quinta do Guedes, lhe bebia o vinho, lhe vestia a roupa branca e lhe arrancava dinheiro com ameaças de suicídio.
Desde então, não soubera mais do padrinho, o Carola, o amante de Lola! O que significaria esta ternura inesperada, esse «desgosto», tantas declamações lúgubres?
Ricardina decidiu Logo que o menino devia ir à estação de Ovar no char-à-bancs da carreira. Sabina lembrou que Arturzinho lhe levasse um frango frio «para o homenzinho cear na jornada».
— O homenzinho, menina? — exclamou Ricardina. — O homenzinho? Boa! É um dos cavalheiros mais ricos do Porto! Tem trens, tem tudo!
E o Rabecaz, informado, concluiu com autoridade:
— Deve ir a Ovar. E fazer-lhe tagatés. Se o sujeito tem uma pequena espanhola, é homem de gosto, é cá dos nossos. E oiça cá, se a pequena vier com ele, não se me faça acanhado. É grande cortesia o dizer-lhe: Salero! Viva la gracia! Eu conheço as espanholas, gostam disso!


Capítulo II


Quando o char-à-bancs parou à porta de casa, de volta da estação, Ricardina, toda curiosa, estava no alto da escada.
— Então?
Não, o padrinho não viera. — Foi um assombro para as senhoras. Tinha ele procurado bem no comboio?
— Fui ver até à terceira classe! Nem sinais!
— Viu no porão? — perguntou Albuquerquezinho, interessado.
— Vi no porão, Sr. Almirante. Ninguém!
— Jesus! — disse Sabininha — coitadinho, sucedeu-lhe alguma...
— Ai, não me parece bem! Não me parece bem! — exclamou a Ricardina. — Depois de ter prevenido, de obrigar à jornada e à despesa... um despropósito!
— Serviu-me de passeio — disse Artur, acendendo o seu castiçal. — E a noite está linda.
Galgou os degraus, na impaciência de ler a cartas que a sua mão, no bolso, não deixara de apertar, de acariciar, como se o papel conservasse ainda o calor dos dedos dela.
Mas foi, primeiro, ao espelho, olhar-se, como para se certificar de que o seu rosto pálido e fino merecia aquela ternura curiosa de uma senhora, vivendo em Lisboa, na maior elegância. Nunca vira numa mulher um encanto tão cativante. Adorava sobretudo o seu corpo, pequenino, de Venusinha de jaspe, que cabia toda num abraço, podia trazer-se ao colo; todos os seus movimentos tinham uma harmonia rítmica; havia no seu seio uma graça virginal, como que uma provocação sábia, ingénua e coquete. Mas eram os seus olhos negros que acima de tudo o perturbavam; desejaria beijá-los, muito tempo, sentindo entre os lábios as pestanas arqueadas e fortes...
Abriu enfim a carta, que tinha no alto um monograma sob uma coroa, leu :

« Minha querida Clara »

Clara! Que lindo nome!

« Só quatro linhas, que estou com pressa, porque vamos jantar a casa da mamã. Recebi o caixote,  e vinha tudo em ordem. O João achou as morcelas deliciosas, muito melhores que as que tem o Coco. Por aqui nada  de novo. Vai haver um baile pelos anos da Lulu, e eu vou mandar fazer umas alterações no meu vestido azul que ainda pode aguentar mais esta campanha. Vi ontem o Pedro, que fingiu que me não viu. As saudades não o têm emagrecido. Diz que o depenaram em Cascais. O João queria acrescentar  duas linhas a agradecer  o caixote,  mas está-se a vestir. Os pequenos bem. Adeus
tua  irmã  do C.
Eugénia. »

Ficou um momento com a carta na mão, triste, sentindo na mamã, no baile da Lulu, no Pedro, um mundo que a isolava, a separava dele. Certo, porém, da sua simpatia revelada pelos seus olhares, quase declarada naquele sobrescrito arremessado — foi à Corcovada, interrogar o Rabecaz, que devia decerto conhecer de nome a senhora Baronesa de Pedralva.
Mas quando o viu, de cachimbo na boca, taco ao ombro, veio-lhe um pudor, uma repugnância de falar n'Ela, ali, naquele cheiro fétido de petróleo, sob o hálito de genebra do Rabecaz.
— Então viu-os? Que tal é a pequena? — exclamou logo o outro, brandindo o giz.
— Não vi, não vieram — disse Artur.
Quando voltou para casa, fechou-se no quarto e escreveu ao Damião, que então vivia em Lisboa, uma carta em que depois de falar, num lirismo amplo, «da tenebrosa solidão da sua alma», e «das suas aspirações incessantes para um ideal maior», lhe pedia que averiguasse quem era a senhora Baronesa de Pedralva, onde vivia, quais as suas relações, os seus hábitos, — «enfim faça-me sobre ela um estudo à Balzac».
E começou a esperar a resposta — pensando n'Ela. Era um estado de alma muito novo para ele, muito doce.
Sob a influência permanente da excitação poética, o seu coração fora até aí como um altar vazio, em que tudo está preparado para a adoração, tocheiros, incenso, flores, e a que só falta a santa. A santa viera enfim, bem vestida, aristocrática. E todas as suas ternuras, os seus desejos, as ambições que até ali erravam no vago, como aves inquietas fora dos ninhos, acharam um centro, ordenaram-se, pondo perpetuamente em torno daquela imagem a sussurração de um culto.
Idealizava-a, como quem cobre um ídolo de camadas de oiro, tornando-a cada dia mais digna da sua poesia, extraindo das menores coisas certezas da sua perfeição: o seu chapelinho de penas provava a fina originalidade do seu gosto; o livro que levava, quando o char-à-bancs parou à porta de casa, de volta da estação, Ricardina, toda curiosa, estava no alto da escada: Lamartine ou Musset, confirmava o requinte da sua inteligência; a prontidão em se interessar por ele era a garantia da sua constituição amorosa e das impaciências da sua alma ardente.
Mas era apenas um sentimento poético e vago, e, como uma água isolada e perdida que é absorvida ou se evapora, aquele grande amor tendia por vezes a sumir-se; retinha-o então ansiosamente, para manter na sua vida mesquinha um interesse ideal, gozar as melancolias felizes daquela ocupação elevada, possuir também a sua Beatriz. Fazia-lhe versos, tinha com ela longos diálogos imaginados, uma perpétua convivência com a sua imagem invocada; e com efeito — como quem acaba por adorar um Deus que inventou — não tardou a ter por aquela senhora, entrevista de tarde, num comboio, um sentimento real, formado de vaidade, de desejo, da esperança de a encontrar em Lisboa e das suas necessidades de insatisfeita ternura.
Um soneto que produzira então, trabalhado à maneira de João de Deus com toques de idealismo camoniano, e que era a melhor obra da sua curta carreira poética, dava a explicação da sua alma:

A vida, em que os meus anos se passavam,
Era como um terreno abandonado
Que nunca produziu, nem foi arado,
E que as águas do céu nunca molhavam.

Ali jamais abelhas sussurravam,
Nem de ave se escutou meigo trinado:
Um ermo escuro sob um céu nublado,
Onde só duros cardos negrejavam.

Mas tu vieste! Assim, por trás dos montes,
Se ergue o divino Sol no fresco ar...
E eu senti logo — oh claros horizontes! –

Tudo em minha alma reflorir, brotar,
Aves cantarem, murmurarem fontes,
Searas de desejos a ondular!

Enfim, veio a resposta do Damião.

«Caro Artur. — A não ser que a Biografia da sua dama vestida de xadrez se encontre na Enciclopédia do Século XIX do bom P. Larousse, eu não estou habilitado a dar-lhe essas informações à Balzac, que a sua pobre alma reclama. Acho curioso que, num assunto tão mundano que é quase oficial, se dirija a mim: se a pessoa pertence às classes dirigentes e é bisneta de um dos brutos que tinham outrora o nome de cavaleiros — por que não escreve directamente ao Monarca? E se é simplesmente uma Madalena ou, como diziam os nosso honrados avós do terceiro estado, uma barregã — porque tudo é possível no mundo faceto das baronesas constitucionais — dirija-se a qualquer das repartições públicas — onde obterá informação abundante e pitoresca. Eu, caro poeta, vivo muito longe da sociedade estabelecida: habito estes quintos andares das cidades modernas, que são para a Democracia o que foram as catacumbas para o Cristianismo...
Tomei devida nota dos seus desesperos românticos. Acho-os patuscos — ainda que inteiramente adequados à tradição lamartiniana. Console-se fazendo um volumezinho de versos — já que as circunvoluções do seu cérebro o levam fatalmente ao verso — não sobre as estrelas e os lírios — deve deixar essas parcelas de substância aos astrónomos e aos jardineiros — mas sobre o Homem, que é a verdadeira matéria poética moderna. E sobretudo venha para cá. A capital é, no fim de tudo, o único ponto vivo desta fétida lesma morta que se espapa à beira do velho Atlântico, sob o nome desacreditado de Portugal. Venha para cá — e terá uma chance de encontrar, amar, cantar a sua senhora vestida de xadrez, já que um resto do velho espírito teológico quer que todo o Tasso tenha a sua Leonor, e todo o Dante a sua Beatriz: sem que isto seja fazer-lhe a injúria de o comparar ao Tasso, esse pobre rimador em oitavas dos decretos do Concílio de Trento, nem ao Dante, esse sorumbático panfletário gibelino. Se vir a besta imunda e felpuda, que tem na terra o nome jocoso de Teodósio, advirta-o com severidade, de que me levou, entre os livros dele, o meu Darwin, «Origem das Espécies». Repugna-me saber o grande naturalista entre os bárbaros — servindo talvez de peanha, sobre uma cómoda de cerejeira, ao busto de Rodrigo da Fonseca Magalhães, ou outro qualquer dos idiotas clássicos do Constitucionalismo. Vale, como dizia esse odioso burguês, Cícero.
Damião».

Esta carta caiu na sua exaltação como álcool numa fogueira! Todo o seu antigo desejo de Lisboa flamejou. Via-se, num relance, lá no quinto andar do Damião, «essa catacumba moderna», palpitando todo nos interesses da Arte e da Democracia, compondo em silêncio um poema, e saindo, alta noite, para a encontrar, a ela, num boudoir de rendas e sedas!
E foi então, durante semanas, um suspirar quase histérico por Lisboa — agora para ele duplamente maravilhosa: um paraíso da inteligência e um paraíso da paixão — um anelo permanente que o tomava sob as formas mais pueris — a ponto de olhar com saudade as nuvens que o vento ia levando para o Sul, para os lados de Lisboa, e de invejar o recoveiro que todos os quinze dias vinha receber ordens à farmácia e partia, choutando na sua égua, a tomar o comboio em Ovar. Às vezes, sentia-se ridículo, ria; mas o seu desejo não tardava a pungi-lo de novo com uma persistência mórbida.
Lisboa! — Concebia a vida que a enchia, violenta e grandiosa, como o mundo da Comédia Humana, de Balzac. Era, de resto, pelos romances franceses, que reconstruía a sociedade de Lisboa e não tinha uma ideia menos desproporcionada da sua edificação, imaginando-a de ruas enormes, sonora de trens e flamejante de gás, assentando a sua pompa movimentada sobre a larga baía azul, onde esquadras manobravam e salvavam as torres de outros séculos! Mas era sobretudo a existência nocturna de Lisboa que o fascinava: imaginava sentir, nos cafés, entre o oiro dos espelhos, balançar-se a sussurração das conversas literárias; via, à porta dos teatros, apinhar-se uma multidão sôfrega de arte, e em redor, nas praças todas alumiadas, grupos discutirem com subtileza a estética dos poetas e a política dos oradores. Depois, parecia-lhe avistar janelas embaciadas de restaurantes, onde artistas e cortesãs celebravam orgias, poéticas como galas; mais longe, distinguia os balcões dos salões aristocráticos, de onde saía uma claridade discreta tamisada pela seda das bambinelas: aí, idealizava a vida de um mundo superior, em que as faces são pálidas da emoção contida nos sentimentos romanescos; aí, diplomatas, cujos sorrisos tinham a frieza da razão de Estado, trocavam ditos à Talleyrand; aí, sentadas em móveis de veludo e cetim, ideais figuras de beleza patrícia respiravam ramos de violetas, com olhares onde brilhava, sob um fluido, o ardor dos adultérios; aí, vivia Ela, a senhora do vestido de xadrez... E em redor, no mistério da vasta cidade, imaginava a existência das personalidades atormentadas do romance ou do teatro — os Rastignacs, pungidos de ambição, os Vautrins, fazendo temerosamente a caça aos milhões, os Camors, cépticos, os Giboyers, sublimes e os visionários, que, num quinto andar, planeiam a destruição da sociedade. Mas nesta fantasmagoria, entusiasmava-o sobretudo o mundo dos jornalistas: era um ruído incessante de máquinas de impressão, salas de redacção resplandecentes de gás, penas que correm sobre o papel, derrubando ministérios ou edificando glórias, e ditos de folhetinistas, que têm a profundidade de uma filosofia, na precisão de um aforismo!... Via-se lá, revendo provas, lendo o seu nome em cada jornal, fazendo civilização!
Às vezes, oprimido por estas imaginações, ia ao acaso, de noite, pela vila, e aquelas ruas apagadas, onde só se sentia um chorar triste de criança nas casas térreas ou um som retardado de tamancos, mandava-lhe mais vivamente o pensamento para Lisboa, onde, àquela hora, os estribos dos trens se desdobravam no peristilo iluminado dos teatros, e nas salas as rabecas davam as primeiras arcadas... Imaginava-se então numa soirée, já ilustre. Falava baixo, num vão de boudoir acetinado, à senhora do vestido de xadrez, que sorria, fanatizada pela doçura dos seus conceitos; pediam-lhe depois para recitar; ele erguia-se devagar, pensativo; em redor murmurava-se: «é o Corvelo, é um génio!» E Levado na ilusão, declamava alto, na rua:


Enquanto dormes no divan de seda,
Olho-te o mimo desse lindo rosto...
Assim as aves dormem na alameda,
Dormem as águas ao luar de Agosto...

A sua voz fazia estacar, sobressaltado, algum burguês que vinha da Assembleia, embrulhado no seu xaile-manta... E Artur recolhia, triste e fatigado como depois de um excesso, desejando entrar poeticamente num convento, ou viver em Lisboa com um emprego de um conto de réis!
Encontrava em casa o dormente serão em torno da mesa.
— De onde vens, menino? Vens da cavaqueirinha do Vasco?
— Não! — exclamava ele, irritado de que lhe suspeitassem qualquer interesse pelas palestras da botica.
Toda a face de Ricardina, então, com o seu longo nariz sobre a mesa, se cobria de severidade carrancuda: sabia que o menino frequentava a Corcovada, e a convivência do Rabecaz, o bilhar, o tabaco, pareciam-lhe hábitos funestos que lhe trariam a ruína da saúde e a desconsideração da vila.
— Nem sei que gosto se possa ter em semelhantes noitadas! — rosnava.
— Chut! Chut! — exclamava Albuquerquezinho, todo aceso com a sua paciência.
Então, em torno da mesa, fazia-se uma mudez amiga.
— Cá está! — exclamava ele em triunfo. — É a Imperial. Marque lá, Sabininha.
Sabina tomava o caderno das paciências felizes, fazia um traço a lápis.
— Quantas imperiais, este mês, menina?
— Catorze, Albuquerquezinho.
— Bom mês...
Ela folheava o caderno, muito interessada:
— O mês passado foi melhor. Vinte e quatro... Mas faltam nove dias para acabar o mês, é preciso contar com isso.
— Chut! — fazia Albuquerque, que recomeçava a dispor o seu quadrilátero de cartas.
Artur, muito infeliz, subia para o quarto e ali ficava, desesperando-se contra aquela existência., lançando a sua alma para Lisboa, para Ela — até que sentia no corredor a voz de comando de Albuquerquezinho, lançar, ao entrar para bordo, o à sentinela.
Enfim, uma noite, foi à Corcovada declarar ao Rabecaz que estava decidido a partir para Lisboa. Iria em terceira classe e o Damião decerto lá lhe arranjaria um emprego na redacção de um jornal ou no serviço de um editor. Em último caso, com a sua prática, podia colocar-se numa farmácia.
— Despautério! exclamou com ímpeto o Rabecaz.
Se ele queria ir para Lisboa era para gozar, não é verdade? Portanto era necessário ter cheta. Para ir viver num quinto andar, jantar por quatro vinténs na taverna do Fumaça ou ir para outra botica — então, mais valia ficar em Oliveira, com a vaca e o cozido das senhoras suas tias e a amizade do Vasco... Em Lisboa era necessário estar sempre a levar a mão ao bolso...
— Por exemplo, o amigo está num café com a rapaziada: arranja-se uma troça ao Clube, com boas pequenas... E preciso fazer saltar, pelo menos, seus três ou quatro mil-réis, para tipóia, pinguinha de Colares, etc...
— Mas não é isso — disse Artur impaciente. Eu não vou para o deboche! E para estudar, para trabalhar.
Rabecaz cruzou formidavelmente os braços, berrou do alto da sua experiência:
— Trabalhar! Mas em que quer o senhor trabalhar? Nas redacções está tudo atulhado. A maior parte escreve de graça... Fazer vintém pela versalhada, isso até faz rir os mortos! E o amigo não sabe fazer mais nada. Eu conheço Lisboa, homem. Se você escrevesse dramas...
— Com um drama, hem?
— Isso sim, isso é melhor que ser director-geral!
Explicou-lhe o sistema de direitos de autor. Ele fazia uma peça ou uma magicazinha catita, em cinco actos: em dia de enchente, com o tanto por cento, eram cinco ou seis libras na algibeirinha!
— E depois, menino, estando-se de dentro com as actrizes, com as pequenas dos coros, apanha-se do bom, e grátis...
— Não me tinha lembrado — murmurou Artur impressionado.
— Pois pense nisso — disse Rabecaz muito sério. — É de chupeta!
Foi como a aparição de urna luz salvadora! Um drama! O teatro! A ideia atraía-o por todos os seus resultados prováveis: era a glória directa, mais palpavelmente gozada, recebida na face em palmas e bouquets; era a celebridade rápida, penetrando todas as classes, ou letradas ou apenas impressionáveis; era o dinheiro, cobrado todas as manhãs, na caixa, a contado!... E Ela viria ver o seu drama; ele diria tu às actrizes, como um camarada. O Rabecaz tinha razão — devia escrever para o teatro!
Foi para casa no delírio desta esperança. Mas que escreveria? Urna comédia à Sardou? Um drama à Hugo? Pensou durante uma semana, sem achar. Entrevia títulos, lances, decorações; ouvia as rabecas gemerem nos finais dos actos; via-se curvado, agradecendo... Sentia as palmas — mas não tinha a ideia!
O seu temperamento atraía-o para o drama histórico em verso, ornado de arquitecturas curiosas e de chapéus de plumas. Mas que facto, que paixão dramatizaria? Conhecia tão pouco a história de Portugal! Empreendera outrora lê-la: mas desde as primeiras páginas, o estudo das raças iberas, godas, visigodas, galo-romanas, lusitanas, todo aquele mundo bárbaro e defunto, sem episódios e sem personalidades, enfastiara-o prodigiosamente. Desistiu: e todo o passado da sua pátria era para ele como uma vasta treva, onde destacava, aqui e além, num débil relevo gasto do tempo — Egas Moniz com a sua corda ao pescoço, Inês de Castro, morta num trono, um facto vago, que era a revolução de 1640, outro libertino, que era o processo de D. Afonso VI, o marquês de Pombal e o terramoto... Mas nenhum destes factos, destes personagens mal entrevistos, continha para ele a ideia de um drama!
Decidiu-se pelo moderno. E tendo facilmente encontrado um título — Amores de Poeta — deduziu dele uma acção.
O poeta Álvaro — que era ele mesmo, Artur — pobre e sublime, fanatizava e possuía a linda, a doce duquesa de S. Romualdo — que era Ela, a senhora do vestido de xadrez. O duque, um caçador obtuso e brutal, com avós até aos visigodos — a que o valente Teodósio servira de modelo — insultava o poeta, arremessando-lhe a luva branca num sarau de máscaras. Batiam-se de madrugada num cemitério, depois de um monólogo, em que, à maneira de Hamlet, Álvaro, tomando crânios nas mãos, meditava sobre a Morte; ferido, o Poeta ia morrer no regaço da duquesa, que corria, vestida de branco, de entre os renques de ciprestes. O drama passava-se, ora num castelo junto a Sintra, ora num vago palácio, nas proximidades da Rua do Ouro! Em torno da acção moviam-se numerosos personagens subalternos, uns, fidalgos vis e embrutecidos, outros, plebeus invariavelmente nobres e eloquentes. Todo o drama era assim um desabafo amoroso e uma propaganda revolucionária; ele sentia-o e parecia-lhe hábil e profundo pôr na sua obra todos os lirismos da sua paixão por Ela e lançar ao povo, ao mesmo tempo, os avantes de uma Reps. Ela choraria, compreenderia quanto um ardente peito democrático ama melhor que um ressequido coração de barão. Por outro lado, o grande Damião aprovaria o drama. Servindo o seu amor, serviria a democracia! E entusiasmado pela sua ideia, começou ardentemente a trabalhar. Foi um período muito exaltado, decerto o mais feliz da sua vida. Compunha o papel de Álvaro de tudo o que sentia em si de mais sentimental, quando pensava n'Ela e de mais revoltado, quando pisava linhaça no almofariz da farmácia; deu à duquesa todas as graças, todas as dedicações, encheu-a de reminiscências de Julietas, de Carlota, de Lélia, da Dama das Camélias; acumulou no duque o prosaísmo, as materialidades que o indignavam nos burgueses de Oliveira: um dos seus fidalgos era o Vasco, para quem a poesia consistia na habilidade em fazer acrósticos! E pulava pelo quarto, esfregando as mãos, radioso, quando achava réplicas eloquentes para algum dos seus plebeus. Não duvidava então de que o seu drama faria um escândalo social! Relia-o, extasiado; e ia olhar-se ao espelho, como admirando na expressão das suas feições o esplendor das suas faculdades!
Isolou-se. Não apareceu durante muito tempo na Corcovada — onde as tacadas, o cheiro do petróleo, as pilhérias libertinas do Rabecaz lhe pareciam odiosas, depois da frequentação ideal dos seus personagens e da pompa dos seus diálogos. Da farmácia corria para casa, sentindo-se prodigiosamente feliz apenas naquela atmosfera especial do quarto, onde lhe parecia errar, como éter, todo o ideal que se exalava das folhas do seu manuscrito.
As tias queixavam-se agora do menino, que passava todas as suas horas aferrolhado em cima:
— E eu que pensava que nos havia de servir de companhia! — dizia a Ricardina com azedume. É como se não houvesse um homem em casa.
Às vezes mandava a Sabina acima, escutar no corredor «se sentia o menino». Ela voltava desconsolada, dizendo que andava aos pulos pelo quarto, falando só.
— É como o padre Manuel Fernandes, quando andava a decorar o sermão. Que despropósito! Que despropósito! — respondia Ricardina.
E muito chocada, com um carão sombrio, ia picando vivamente a meia com as longas agulhas. Parecia-lhes, a ambas, que o menino não tinha «amizade à família»; sentiam por instinto que ele procurava nos livros e nos papéis distracções melhores do que aqueles serões pacatos; e isto aumentava a antiga desconsolação de o verem tão indiferente aos interesses da casa e da fazenda.
— É como um estranho, é como ter um hóspede — dizia Ricardina.
Ele descia sempre tarde para o almoço, tendo velado toda a noite sobre o manuscrito.
— Ai! estás hoje amarelo como um desenterrado... Isto até te faz mal... Pois não era melhor passares as tuas noites a dormir muito regaladamente...
— Era melhor, era. Mas então? São gostos dizia ele rindo.
— Moço concentradíssimo — afirmou o Vasco, ao domingo, quando o viu abalar depois de engolir as torradas. — Na farmácia não dá palavra. Mas faz o seu serviço com inteligência... Que eu não o perco de olho.
— Macambúzio, macambúzio — disse Ricardina indignada.
Sabina, essa, achava-o apenas «triste».
— Porquê? porquê? Não lhe falta nada — respondia Ricardina. — Pois não é verdade, D. Galateia? É um mono. Ao jantar não se lhe ouve a voz! Depois do chá: é boa s noites e lá abala para o buraco...
— Ai, eu não gosto de gente assim — dizia D. Galateia com tédio.
— Mas moço de bem, moço de bem — costumava resumir o Vasco.
Enfim, um dia, Artur terminou a cópia do seu quinto acto e foi um momento delicioso, aquele em que escreveu, todo comovido, na primeira página branca:

AMORES DE POETA
Drama em 5 actos
por
Artur Corvelo

Ali estava, acabado! Mas então, nos dias seguintes, tomou-o uma lassidão, como que a saudade de um mundo superior perdido, de gloriosas intimidades para sempre cortadas. Mesmo no seu amor pela desconhecida da Estação de Ovar, sentia agora uma diminuição, como se durante o seu trabalho ela se tivesse pouco a pouco esvaído da sua alma, naqueles longos fluxos de lirismo. A Lisboa real já não o fascinava tanto. Era como uma visão que empalidecia — desde que pintara uma Lisboa dramática, com cores tão intensas. Relia a todo o momento o manuscrito, mas as cenas melhores, agora, pareciam-lhe frias, e foi sem fé que escreveu ao Damião, contando-lhe o enredo, pedindo-lhe como um serviço, a ele e à «Ideia democrática», que lhe alcançasse a representação dos Amores de Poeta, em D. Maria ou no Ginásio. E para ele fazer ideia da forma e do estilo, remetia-lhe cópia da grande cena entre Álvaro e a Duquesa, num parque, em Sintra.
Semanas passaram e a resposta do Damião não veio. Enfastiava-o então ter ali o manuscrito sobre a mesa, sem tirar dele um proveito directo em aplausos ou dinheiro. Uma noite, não se conteve: correu à Corcovada com o seu drama debaixo do paletot, a procurar o Rabecaz.
Instalaram-se no cubículo, com uma garrafa de genebra.
Às primeiras cenas amorosas, líricas como um dueto de ópera, o Rabecaz, oscilando a cabeça, de olho cerrado, murmurou apenas:
— Está catita, está catita.
Mas o insulto no sarau de máscaras, a apóstrofe do duque: Quem ousar erguer os olhos sequer para a duquesa de S. Romualdo, pode encomendar a mortalha!, o duelo no cemitério, as declamações da agonia, levantaram o Rabecaz. Atirou um murro à mesa:— Com mil diabos! isso é a coisa de mais efeito que tem aparecido em Lisboa!
Vem a casa abaixo. Irra, que está de arromba! É arranjar empresário! Parabéns, seu diabo! Você tem o diabo no corpo!
Aprovou com furor que Artur tivesse escrito ao Damião.
— Que isso, mal se souber em Lisboa, todos os empresários é mais a mim, mais a mim! Está de arromba! Irra!
Artur, comovido, pagou a ceia.
O Rabecaz fez planos tremendos: apenas o amigo Artur recebesse a primeira cheta, mandava-lhe um vale do correio e ele ia a Lisboa. E ainda tinha amigos em Lisboa, ele, e haviam de lhe oferecer uma coroa! Irra! Que havia de aquele Mata vir abaixo, com uma ceia formidável! Champagne e pequenas! Irra! — Artur entrou em casa, numa excitação absurda; agora, aquecido por aquela admiração do Rabecaz, o seu drama aparecia-lhe com um esplendor imprevisto e não duvidava do «sucesso». Pediria dinheiro adiantado ao empresário, iria ele mesmo dirigir os ensaios! Àquela ideia, o coração batia-lhe, no delírio de uma esperança. Via-se já entrando no palco, vestido de preto, muito olhado pelas actrizes; decerto alguma se namoraria dele: seria um parêntesis carnal no seu grande amor à Petrarca... Até que uma noite, diante de uma multidão imobilizada no santo respeito da Arte, às últimas arcadas da orquestra, erguer-se-ia devagar o pano; Ela lá estava num camarote, com diamantes no colo nu, e choraria... a doce criatura choraria, vendo o poeta morrer! — Mas não, tontinha, eu aqui estou, vivo, amante, cativo! E toda esta glória é como um tapete que te estendo, para pousares em cima os pezinhos subtis e breves que te hão-de levar aos rendez-vous do divino pecado! — E na plateia, num estridor de ovações, sob o brilho do gás, a cidade aclamava-o! Lenços de renda, pelos camarotes, enxugavam rostos mimosos!... Onde se encontraria depois com Ela? Num recanto contemplativo? Na frescura das ramagens molhadas, onde os frou-frous das asas se misturam ao gotejar das nascentes?... E toda a sua vida lhe aparecia assim, ideal e vibrante, com doçuras de égloga e brilhos de triunfo: os Esmaltes e Jóias, publicados, tornar-se-iam as estrofes amadas das almas ternas; a sua Ode à Liberdade faria empalidecer os conservadores e preocuparia o Governo; poderia talvez chegar a uma alta situação no Estado; viveria gloriosamente, discutido nos jornais, num primeiro andar de hotel caro, com um robe-de-chambre de veludo, tendo aos pés um cão de S. Bernardo. E aquilo passava-se longe, num Lugar que devia ser Lisboa, numa cintilação de apoteose!
Abafava: abriu a janela. Uma esplêndida noite de Julho enchia o espaço; estrelas sem-fim rebrilhavam; os quintais, as hortas, dormiam; daquela natureza estendida em baixo, parecia sair a respiração de um ser consciente, adormecido; um cheiro morno subia das telhas escaldadas e nas folhagens muito saturadas de sol, no bafo espesso, cheio da ardência do dia tórrido, a evaporação dos tanques fazia passar hálitos frescos; pelos pomares, ao lado, a água das regas murmurava na sombra, docemente; errava um aroma de clematites e das flores dos feijoais.
— Que bela noite! disse alto.
Ergueu os olhos, esquecido dos seus desejos, enlevado, para aquele céu rico de Verão: era como uma forte poeirada de luz, suspensa e imóvel, muito alta no espaço, com pontos mais grossos que faiscavam numa pulsação febril, outros fixos, num brilho de serenidade eterna. Desejou saber o nome de certas estrelas, desejou habitá-las, e ia seguindo comovido a Via Láctea, que se estendia como uma névoa luminosa, com tons de prata antiga, feita de átomos de sóis. Então, diante daquelas profundidades, enterneceu-se religiosamente; sentiu-se muito puro, muito elevado; necessidades de fé e de sacrifício passaram-lhe na alma; pensou em Deus, num amor santo e imortal, em livros vagos que escreveria, consolando os infelizes, derramando a paz... Foi a hora mais nobre da sua vida.
Com que palpitação abriu daí a dias, enfim, a resposta do Damião! Eram duas laudas da sua letra torcida, que tinha similitudes com o seu estilo. Dizia-lhe que, pela descrição da peça –«Álvaro, lírico de profissão, vadio e cheio de chamas ilegítimas», lhe parecia inteiramente digno da polícia correccional, a duquesa idem, e todo o drama, uma sucursal do Limoeiro. Enquanto «à intenção democrática da obra», afirmava-lhe «que essa democracia lírica, exalada em suspiros, com melancolias humanitárias» — era odiosa. Não era uma ideia, era uma sensibilidade. Se ele, Damião, chefiasse um dia uma ditadura à Robespierre, esse democrata, não o guilhotinaria, para não desonrar o cutelo de aço que cortou a cabeça a Danton — «derreá-lo-ia à paulada».

«Pelo que respeita a empresários — acrescentava — dizem que os há, mas parece que vivem em castelos inacessíveis de onde fazem fogo, e com razão, sobre os poetas românticos. Se o amigo tivesse uma opereta ou uma farsa em calembourgs não seria difícil encontrar um teatro benigno: mas para fazer representar um drama romântico, é necessário ser ministro ou conselheiro de Estado».

Acumulava outras pilhérias, e ajuntava:

«O Artur tem talento e vai por um caminho florido — mas errado. Seja um homem, que diabo! Atire para os estrumes de Oliveira esse romantismo-fêmea, mórbido e estéril. Faça uma obra moderna — e leia Proudhon. Não lhe escrevo mais, porque o meu vizinho brasileiro começou agora, como todas as noites, a harpejar na guitarra o hino da Carta: a execução, na bandurra, deste trecho vil — corta-me pela raiz a crítica e a prosa».

E dizia ainda num P.S.:

«Devolvo a cena que me mandou para apreciar o estilo do drama: francamente, parece-me escrito como um libreto de ópera: há períodos que precisam urgentemente acompanhamento de flautim. Essas florescências de linguagem (que Shakespeare elevou ao sublime, que eram nele a exuberância de um génio bárbaro desprezando as regras, e que são historicamente explicáveis noutros poetas mais calmos e mais conscientes da Renascença), são hoje de um mau gosto deplorável e de um ridículo desopilante. Eu sei, sim, que é nesse estilo que escrevem os génios que gingam pelo Chiado... Mas os génios do Chiado têm por missão histórica fazer rir — rir de um riso consolador e sereno: são a nossa melhor pilhéria, sobretudo quando são tristes, e constituem a única alegria que um Destino inimigo nos mede escassamente, gota a gota: sem eles, Portugal seria o legendário Solar do Tédio. Amigo! Álvaros, poetas líricos, duquesas sentimentais, cemitérios, interjeições, suspiros ao luar — tudo isso é doentio. Cure-se. A Península Ibérica parece que herdou uma nevrose — que em Espanha se tornou em génio raiado de loucura, e em Portugal degenerou em imbecilidade misturada de velhacaria. Junte a isso (para Portugal) as influências hereditárias de uma avaria genérica, e explica muita coisa do País. — Perdoe as observações retrò sobre a sua literatura: elas têm o doloroso e o salutar da cirurgia. Sabe o que lhe aconselho que faça ao seu drama? Como tratamento interno, xarope de Gibert! como tratamento externo, cautério de nitrato de prata. Amigo inalterável, malgré tout.
Damião».

— Pedante! — rugiu Artur, amarrotando a carta com desesperação. — E agora? Não conhecia ninguém mais em Lisboa, e sentia-se como um homem no fundo de uma cova, que olha para os altos onde se respira e se vive, sem ver uma corda, uma escada, um braço, que se lhe estenda compassivamente! Não o magoavam as ironias de Damião. Era a inveja! Um pouco também o desprezo filosófico que ele sempre tivera, o pedante, pela poesia e pelo estilo! Era um teórico, enterrado em sistemas abstractos, sem compreender a paixão!... O que mais o enfurecia era que Damião, um camarada do Cenáculo, um democrata, que sabia que aquele drama era para ele o amor, o pão, a carreira, em lugar de se precipitar por Lisboa, impelindo influências amigas a abrir-lhe as portas de um teatro — se não movesse da sua «catacumba», escrevendo com egoísmo: Empresários, dizem que os há...
Descreu da amizade, do Cenáculo, da Democracia. Nessa noite, na Corcovada, com o Rabecaz, foi excessivo: declamou contra os ricos, o Governo, os poetas publicados, e, como todo o plebeu obscuro e literário, tornando a Monarquia, a sociedade oficial, culpadas da sua obscuridade e da sua literatura inédita, desejou uma Revolução sanguinária... Mas a Democracia, tal como a concebia Damião, tão secamente positiva, ocupada de Direito, ignorando o sentimento, hostil aos poetas, parecia-lhe odiosa.
— Não há nada — exclamava com desalento. Todo o esforço é inútil neste desgraçado País!
O Rabecaz oscilava a cabeça, com os braços soturnamente cruzados; o Governo Civil do Porto, por esses dias, recusara-lhe uma gratificação, e o Rabecaz também atravessava um período especial de rancor à sociedade.
— Uma choldra — rosnou — uma choldra!
Artur deu um repelão ao copo de genebra. Ali estava, por falta de dinheiro, de amizades sociais, encarcerado no anonimato; e as coisas fortes sobre que desejaria apoiar-se na vida, e de onde quereria tirar a sua própria força, tornavam-se-lhe agora inacessíveis.
— Dá-me vontade de queimar tudo o que tenho escrito!
O Rabecaz estendeu com autoridade a mão cabeluda:
— Escute! — disse.
E arrancando, uma a uma, as palavras do peito azedado:
— Escute!... Isto é uma choldra!... Mas eu ainda tenho amigos em Lisboa!... Apesar de ter deixado Lisboa há doze anos, caramba, ainda se lá sabe quem eu sou!... Eu vou escrever ao Melchior, o Melchior da Opinião. O Melchior é catita!...
Artur, pálido, pendia-lhe dos lábios espessos, de onde lhe parecia ver correr um mel consolador.
— O Melchior, hem?
— O Melchior! É gajo! O Melchior arranja um teatro!
— Ó Rabecaz, você salva-me!
O Rabecaz atirou de um golpe para as fauces o cálice de genebra, deu um ronco, e disse com segurança:
— Ainda se tem influência na rapaziada! Ainda se é gajo!
E ali mesmo colaboraram numa carta ao Melchior da Opinião, em que, aos lirismos ditados por Artur, se misturava, como bicho entre flores, o calão do Rabecaz. Um fim de período dizia: «É este pois o esplêndido drama de uma alma de poeta, em que fervem as aspirações sociais mais nobres deste século de Democracia...» e o Rabecaz seguia... «e agora não se me faça você gajo, e bata essa Baixa para arranjar um teatrote que leve a coisa e largue a cheta!»
Artur, então, sentiu a esperança voltar-lhe mais viva. Releu os Amores de Poeta, e com o seu antigo respeito pelo Damião, apesar de o odiar agora, esbateu o que havia no papel de Álvaro de excessivamente lírico, introduziu duas cenas de comédia para quebrar a uniformidade lúgubre, e recomeçou os seus sonhos. Mas as semanas passaram e não veio resposta do Melchior da Opinião.
— É que escreve noutro jornal — dizia o Rabecaz — não lhe chegou a carta à mão. O Melchior é catita!...
Escreveu então a um sobrinho, o Sr. Venâncio Guedes, empregado no Ministério do Reino, pedindo-lhe informações sobre Melchior Cordeiro «que eu preciso cá para umas coisas teatrais». Dizia-lhe ainda que averiguasse se «em D. Maria poderiam levar uma bela peça chamada Amores de Poeta, obra rica por que eu me responsabilizo...
Daí a dias, na Corcovada, Rabecaz, furioso, mostrava a Artur a resposta do sobrinho, escrita em papel oficial: «Não sei onde mora esse Melchior», dizia o Sr. Venâncio Guedes, «ignoro quem seja, e não frequento literatos. Enquanto a teatros e empresários, as minhas ocupações não me permitem que malbarate o tempo nessas pesquisas...».
— Que malcriado! — rugiu o Rabecaz. — Um traste a quem eu empreguei! Fui eu que o empreguei, àquela besta! É onde se encontram as piores víboras, é no nosso próprio sangue!...
— É a minha sorte — declarou sombriamente Artur. Atirou os manuscritos com rancor para o fundo do baú e recaiu numa vida inerte. Agora que da Literatura não podia tirar a celebridade ou uma posição em Lisboa, abandonava os livros. Pouco a pouco o seu espírito, como uma água isolada e presa numa baixa, que se vai enlodando, morrendo, foi perdendo a transparência viva que reflectia os azuis e as nuvens, e Artur, com uma lassidão quase satisfeita, lia agora na farmácia o Almanaque de Lembranças. Por vezes uma mulher entrava, estendia a receita, e sentava-se esperando; algum labrego, de voz entaramelada, vinha pedir um unguento para uma ferida; Artur erguia-se, aviava-os melancolicamente; e quando, num trote cansado, com os tirantes lassos, passava na rua o char-à-bancs da carreira, todos se voltavam numa pasmaceira triste.
Todas as noites, regularmente, marchava para a Corcovada. Lá, começava a encontrar considerações. Sob a direcção do Rabecaz, ia-se tornando um dos bons tacos da vila e já os frequentadores, pelos bancos, em roda do bilhar, fumando e cuspilhando para o chão, lhe admiravam as carambolas. Até aí, vendo-o modesto, julgavam-no nulo; mas quando ele, aquecido por aquela simpatia ambiente, começou a parolar, torcendo o buço, diante do seu cálice de genebra, foi escutado com admiração, e considerado «rapaz de talento».
— É propendote, dizia o Vilela, que, sendo o correspondente da vila para a Verdade, jornal do Porto, era uma autoridade na Corcovada.
Artur, pouco a pouco, habituara-se às fisionomias que achava agora menos alvares, e às conversas que já lhe pareciam menos caturras; ria mesmo com as graçolas muito aplaudidas do João Valente. Ligou-se com o Vilela; e tornara-se uma personalidade eminente do botequim, quando veio a guerra Franco-Prussiana e se proclamou a República em França. Um sopro heróico revolveu subitamente o seu romantismo adormecido: — queria ia bater-se pela França, como voluntário de Garibaldi; lia de pé a proclamação de Vítor Hugo; achava sublime que, diante da força desproporcionada da invasão, Gambetta, com os seus exércitos destroçados, com toda a França vencida, se refugiasse, para morrer, no antigo campo entrincheirado das Gálias...
— Grande talento, grande talento! — rosnava-se em redor, com vozes sensibilizadas.
Mas o violento Vilela, muito alemão por patriotismo, berrava:
— É bem feito! Abaixo a França! É para lhes ensinar a pregarem-nos outra como a do Charles et Georges...
Artur, exaltado, falava do messianismo da França, dos direitos do homem, dos boulevards, de Vítor Hugo; injuriava os Alemães, os bárbaros...
— Mas são muito profundos, são muito profundos — gritava o Vilela, batendo o pé.
— Qual profundos! a França é que é catita! — rugiu o Rabecaz. — Para um bocado de can-can, não há como a bela francesa. Todos riam, cada um remexia o seu café ou dava um sorvo à genebra, e Artur, passando as mãos pelos cabelos, declarava que, dentro em dois anos, toda a Europa seria republicana. Tornava-se excessivo; e mesmo, quando veio a Comuna, impressionado pelo lado dramático da insurreição, disse-se internacionalista, falou em Proudhon, exaltou o operário. Uma noite, e acompanhado pelo Rabecaz que achava a Comuna «de arromba», entoou a Marselhesa. O Vilela pateou, fez alarido; a grossa Corcovada que gostava da animação dos fregueses, correu da cozinha, cercada dos pequenos, escancarando a boca numa satisfação hílare; e na rua, onde chovia forte, pessoas agachadas sob os guarda— chuvas, paravam a olhar pela porta envidraçada.
— Bela orgia! — disse Rabecaz, ao sair com Artur. — Bela orgia!
O Vasco soube-o — e aconselhou Artur com bondade: não lhe censurava as distracções; podia ir ao botequim tomar o seu café, jogar a sua partida de bilhar; mas pôr-se com descantes e troças, e falar em repúblicas e internacionais! Isso devia evitá-lo — por si, para não perder o bom nome na vila, em respeito às senhoras suas tias, e enfim por ele, Vasco, pelos créditos da farmácia...
Artur considerou a sua liberdade de pensamento indignamente violada por esta exigência do patrão, e então, com ódio à obtusidade conservadora do Vasco, que personificava toda uma sociedade, as suas opiniões foram um momento sanguinárias. Desejou o comunismo em Oliveira de Azeméis; e as senhoras em casa, ao vê-lo açucarar melancolicamente o seu chá, mal imaginavam que, sob aquela testa pálida, apoiada à mão, rolavam ideias de incêndios vingadores e de exterminações de classes. Mas estas imaginações ferozes bem depressa se dissiparam. Por esse tempo, o Vilela, por complicações de demandas e de penhoras, tinha-se achado imprevistamente possuidor de um prelo, e viera-lhe a ideia de fundar um jornal em Oliveira. Falou a Artur, que flamejou logo num entusiasmo desordenado. Viu-se imediatamente, do banco da redacção, dominando Oliveira, temido na Assembleia, sendo uma força no distrito, citado em Lisboa. Achou um título: A Nova Era; e foram, durante semanas, entre eles, umas conferências deliciosas sobre o formato, o papel, a casa da redacção, a política e a literatura do jornal. Artur queria publicar os Esmaltes e Jóias em folhetins e defender os princípios da Revolução Francesa. Vilela queria deitar abaixo o administrador do concelho. Foi Artur que redigiu o prospecto: falava da Humanidade, de Vítor Hugo, da Justiça e de Mozart. O Rabecaz declarou-o «de arromba!» e Artur pensava já em se despedir da farmácia e passar os seus dias na redacção, onde ele queria pôr cortinas de reps vermelho e um sofá.
Mas os prospectos recolheram poucas assinaturas. Dos dois jornais que havia em Oliveira, um, chamava-se O Oliveirense, o outro, O Eco de Oliveira, e aquele título A Nova Era, considerado muito «filosófico», representando interesses humanitários estranhos à localidade, não atraiu a adesão da vila. De facto, a autoridade, assustada, conspirava activamente contra a criação da Era: dizia-se que o Sr. Administrador fora de loja em loja, pedindo que se não animasse «uma oposição facciosa que queria lançar cizânia na vila». A Assembleia, hostil ao botequim da Corcovada, recambiou o prospecto. O João Valente, que prometera generosamente duzentos mil-réis para as despesas iniciais — exigiu depois fiador e uma letra do Vilela, a três meses. O Vilela, ofendido, injuriou-o na Corcovada. Romperam: — e a Era morreu, como um facho húmido de sarmento, que depois de fumegar um minuto se extingue, sem acender a pilha de lenha sobre-posta.
Foi um desgosto para Artur. Mas ficara muito impressionado por esta ideia de influência local. Lisboa parecia-lhe agora inacessível; o seu grande amor pela linda desconhecida de Ovar, que o atraía para lá, sumira-se insensivelmente como água que a areia absorve. Sem protecção, vivendo naquele recanto de província, nunca lá poderia fazer representar os Amores de Poeta. A sua carreira estava limitava à vila e à farmácia... Pois bem! por que não aplicaria o seu talento, as suas maneiras, a fazer a conquista de Oliveira de Azeméis? Os seus dois anos em Coimbra, o nome respeitado das tias, habilitavam-no a conhecer o Carneiro, as Guedes; poderia ir-lhes às soirées. Aí, estava certo, faria sensação pela sua conversa, pelos seus versos, recitados ao piano; lançaria a ideia de uma «representação de curiosos». Poderia propor os Amores de Poeta; talvez fosse o meio de fazer um casamento rico...
Começou logo a frequentar a missa das dez, de chapéu novo e luvas pretas: colocava-se junto ao altar-mor, muito grave, mostrando a sua devoção. Ao fim da missa, cumprimentava respeitosamente os cavalheiros do lado, o bacharel Pimenta, o administrador. Evitava mesmo passear com o Rabecaz. Porém, segundo dizia o Vilela, que o admirava e que era o confidente destas ambições, para se «furar em Oliveira» era indispensável pertencer à Assembleia: ele mesmo, cheio de solicitude, se encarregou de sondar o Carneiro, nesse ano presidente da direcção. Às primeiras palavras, porém, o Carneiro recusou; esgazeou os olhos e exclamou:
— O quê? Ora essa! Se deixarmos entrar o ajudante da farmácia, temos cá amanhã o marcador do bilhar!
— Escute, homem! É o sobrinho das manas Corvelos. São pessoas respeitáveis.
— Parente pobre! Têm-no em casa por esmola. Nada de maltas! Nada de maltas!
Sócios ricaços, como o Castro e o Boavida, informados da pretensão de Artur, tinham mesmo rosnado:
— Ora o garoto!
Um repelão tão injustificável enfureceu Artur, e, na vibração do desespero, rimou um soneto terrível contra a Assembleia e o Carneiro, de quem exclamava:

Ei-lo repoltreado na janela,
Remexendo os cordões do ró-de-chambre,
Tendo na pança a forma da panela,
No nariz o vermelho do fiambre...

E no último terceto declarava que só quisera ir da farmácia à Assembleia:

Munido do meu pó insecticida
Para matar, no nojo da minha alma,
Os percevejos — Castro e Boavida!

O soneto foi furiosamente aplaudido, à noite, na Corcovada, e, na manhã seguinte, apareceu afixado, em pasquins, em letras colossais, à porta da Assembleia e à esquina da casa do Carneiro. Que celeuma! Sócios da Assembleia, aterrados como num perigo público, cercavam o administrador, reclamando que se pusesse «a gente de bem ao abrigo da canalha!» S. Sª, torcendo a pêra, afectado, rosnou palavras graves sobre «providências... medidas enérgicas...». Na praça havia grupos: dizia-se que o autor era o Artur das Corvelos, e tendo-se visto, ao anoitecer, o Carneiro entrar impetuosamente na farmácia, gente correu, a espreitar por entre os bocais escarlates, na certeza de «que ia haver bordoada».
Mas Artur a essa hora triunfava na Corcovada. Na manhã seguinte, porém, ao entrar na botica, encontrou sobre o balcão uma carta sobrescrita para ele, com a letra de Vasco — que, no seu canto, parecia abismado no Comércio do Porto. A carta dizia:

«Sr. Artur!
O digno proprietário e lojista de panos, o Il. mo Sr. Carneiro, veio a este estabelecimento queixar-se de um malévolo e ofensivo soneto, que o senhor, sem respeito pela farmácia que goza de antigos créditos, arrojou às faces do digno Sr. Carneiro e de outros membros respeitáveis da sociedade Oliveirense. E não contente com isto, o senhor gaba-se, no aludido soneto, de usar dos produtos deste respeitável estabelecimento, para fins repreensíveis e criminosos. Ora pois! Espero que tal facto se não repita, para honra desta casa. E em consideração aos seus estudos e ao seu comportamento virtuoso até hoje, bem como às suas respeitáveis tias a quem não desejo dar este golpe, que consinto, por esta vez, em cerrar olhos ao monstruoso delito.Mas aqui o aviso solenemente, de que qualquer outra peça lírica, espalhada em desabono do nobre proprietário Carneiro, ou de outro qualquer cavalheiro Oliveirense, me obrigará a tomar a severa medida de livrar esta honrada farmácia de um inimigo do sossego público. Que a minha vontade seja respeitada, é o que exige
O chefe do estabelecimento,
Farmacêutico de 1ª classe
Vasco da Conceição Pedroso»

Artur, pálido, adiantou-se para ele com a carta aberta — mas o Vasco ergueu-se impetuosamente e numa voz sibilante, agitando os braços:
— O que está escrito, está escrito! O que escrevi, escrevi!
Tanta imbecilidade indignou Artur:
— Então, quero as minhas contas!
— Que contas, senhor, que contas? Contas me deve o senhor a mim, que lhe dei uma libra adiantada do mês, e estamos a sete! O senhor foi uma víbora que eu aqueci no meu seio... Um homem a quem eu queria como a um filho... Longe da minha vista, ingrato! Longe desta botica de bem, serpente!
Artur abalou furioso para casa; muito pálido contou, de um fôlego, a «cena com o Vasco». As tias ficaram aterradas. Julgavam-se desacreditadas em Oliveira. Ricardina já imaginava que, por vingança, o Carneiro, a autoridade, lhes aumentariam as décimas!
— Ai que desgraça! Ai que desgraça! — exclamava pela sala, com as mãos na cabeça.
Então, vendo-as chorar tão aflitas, o Albuquerquezinho, que desde a véspera estava agitado, começou a baloiçar-se sobre as pernas, de punhos fechados, o olho vago, murmurando:
— Olá!... olá!
E de repente, largou pelo corredor, galgou os degraus, gritando:
— Ferra o traquete da gávea! Abordagem! Abordagem! Fogo! Poum! Tararará! Hei-de vingá-las! Orça a barlavento!
Artur, aturdido, saiu, e topou na escada com o Vasco, que galgava os degraus, resfolgando furiosamente. Vinha dar às senhoras uma explicação de cavalheiro! Leu-lhes o soneto. Citou-lhes as palavras comovidas do Carneiro: «tenho cinquenta e cinco anos honrados, e é a primeira vez que sou insultado publicamente!» Declarou Artur um perverso:
— E quando eu, na minha bondade, ia perdoar, ia esquecer... rompe contra mim, como uma fera...
Ricardina soluçava.
— Quer-me matar de desgostos! Quer-me matar de vergonha! Pois que se vá, que se vá, que nos deixe no nosso sossego!
— Não foi de mim, minha senhora — dizia o Vasco, comovido — não foi de mim que veio o golpe. Foi dele, foi do ingrato... Mas agora é per omnia secula seculorum... Que eu também tenho o meu brio! Sou Vasco da Conceição Pedroso!... — Olhou para uma e para outra, e repetiu com majestade: — Eu também tenho o meu brio.
E saiu, muito digno.
O jantar foi lúgubre. Até ao cozido, Ricardina não tirou de cima do prato o carão repreensivo. Sabina, muito pálida na sua touca negra, parecia mais pequenina, encolhida na cadeira, limpando a furto os olhos vermelhos. E o Albuquerquezinho, sossegado agora, de guardanapo ao pescoço, devorava: de vez em quando, pousava o talher, piscava o olho para Artur:
— Boa batalha! Meti-lhe dois balázios no costado!... Mau pirata! Mau pirata!
Mas Sabina, muito triste, tinha recusado o arroz. E Ricardina, muito seca:
— Ai, não come, mana Sabina? Não vale a pena ninguém afligir-se por quem não o merece...
Artur, furioso, deu um repelão ao prato, levantou-se, foi fechar-se no quarto. Mas logo um som de dedos bateu na porta timidamente. Era a tia Sabina: vinha fazer-lhe companhia, vinha consolá-lo... A tia Ricardina tinha aquele génio, mas passava-lhe: era tudo pena de lhe ver perder o emprego... Que elas não eram ricas! Mal sabia ele o que lhes custava a viver!... Ai! devia ir pedir desculpa ao Vasco!
— Antes estourar!... Antes morrer de fome!
Rebuscou furiosamente na algibeira, mostrou à tia um punhado de cobre:
— Olhe, é tudo o que tenho neste mundo! Sete vinténs. Não me importa! Estou farto de sofrer! Acabou-se...
— Jesus, menino, o orgulho é que perde os homens!
Mas que queria ele agora fazer?
— Eu verei, tia Sabina, eu verei — disse ele, passeando pelo quarto, mordendo os beiços, com duas grossas lágrimas nas pálpebras.
Lembrou-se então do padrinho e resolveu escrever-lhe, pedindo-lhe um emprego, qualquer colocação... Se nada conseguisse, fazia-se soldado, ia trabalhar de enxada! E à noite foi à Corcovada, desabafar com o Rabecaz.
Mas o Rabecaz, a quem o administrador censurara nessa manhã severamente as suas relações com o poeta, afectou um interesse absorvente pela partida que jogava com o marcador, e fez-lhe apenas, com dois dedos, um aceno seco. O João Valente abismou a face entre as mãos, com o nariz sobre o Comércio do Porto. Pelas mesas estavam outros frequentadores e Artur sentiu logo, nas boas-noites muito secas, nas faces reservadas, uma hostilidade ambiente. O Vilela, por fim, disse-lhe, embaraçado:
— Homem, isto é o diabo... A coisa fez barulho de mais! Sempre foi insultar as pessoas principais da vila. Você compreende... numa terra pequena... todos temos as nossas relações, as nossas dependências... Veja você, lá perdeu o arranjo na botica... Que tolice!... Deve ver se se torna a pôr de bem com todo o mundo. É necessário nesta vida um bocado de sevandijismo...
E enterrando as mãos nos bolsos, foi examinar, de pernas abertas, o jogo do Rabecaz.
Artur empalideceu. O botequim renegava-o! Saiu, atirando com a porta — e andou pelas ruas, furioso, até tarde, planeando coisas vagas que faria para mostrar o seu génio, vingar-se, humilhar Oliveira. Derreado, entrou no seu quarto, pensando no suicídio.
A porta, então, rangeu devagarinho. Era a tia Sabina, de saiote pelos ombros, que vinha trazer-lhe um pires de marmelada e pão, porque o vira comer tão pouco ao jantar.
Aquela bondade comoveu-o e desatou a chorar irreprimivelmente. A velha apertou-o nos braços, beijou-lhe o cabelo, calada. E tirando de uma algibeira um embrulho de papel, com placas de cinco tostões:
— É para as tuas despesas, meu filho, agora que não tens outra coisa. São as minhas economias... São três mil e quinhentos... Era para te comprar pano para camisas — para ti era...

Ao outro dia Artur, para não ver o carão indignado da tia Ricardina, desceu tarde para o almoço; Cristina, ainda pálida, esperava-o costurando, à janela. Ele estendeu-lhe a mão:
— Obrigado Cristina... A tia Sabina lá me disse ontem à noite... És uma boa rapariga, Cristina.
Ela baixou a cabeça, com duas lágrimas pela face. Ele então bateu-lhe de leve no ombro, rindo:
—Tolice. Porque choras? Não é desgraça nenhuma. Olha a desgraça perder um emprego de sete mil reis. E que emprego, pisar linhaça, e fazer misturas salinas... Deixa estar, eu me arranjarei...
Sentou-se, e açucarou o seu chá.
—Estou com ideia de ir para o Porto!
Ela voltou-se, com as mãos caídas no regaço, num assombro:
— Pra o Porto?
— Pois então ? Que faço eu aqui? Vou escrever ao padrinho... Há-de me arranjar por lá um nicho... Escrevente de cartório, caixeiro, qualquer coisa... A tolice foi não ter ido há mais tempo... Escusava de aturar as trombas da tia Ricardina... Dás-me daí o jornal, fazes favor?
Ela enrolou devagar a sua costura, muito branca, mordendo o beiço, ergueu-se, deu-lhe o «Primeiro de janeiro» que o Vasco mandava todas as manhãs, viu ainda se o bule tinha bastante água, e saiu fechando a porta devagarinho.
A tia Ricardina saía da cozinha.
— O primo quer ir para o Porto, tia!, exclamou ela, levando as mãos a cabeça.
— Pois que vá, que vá para onde não faça perca.
— Oh meu Deus! Meu Deus! - foi murmurando Cristina, aos soluços pelo corredor.


Daí a duas semanas, um domingo, Artur, voltando cedo do correio, entrou na Corcovada. Escrevera ao padrinho uma carta imploradora e desolada; a resposta tardava, e agora, quase todas as manhãs, depois do velho carteiro passar pela praça, coxeando, ele punha o chapéu e lá marchava, a perguntar ao Gomes do correio «se por acaso não houvera engano, se não teria vindo uma carta que ele esperava».
— Não lha levaram a casa, não? — resmungava o Gomes, puxando os óculos para a testa. Então?...
O botequim, àquela hora, estava deserto. Uma faixa de sol tépido de Novembro atravessava a saleta, fazendo parecer mais triste o soalho enegrecido, o papel de ramagens azuis riscado de fósforos, a cortina de paninho vermelho sobre a porta envidraçada da cozinha. Um dos pequenos rabujava, e o mestre da filarmónica, que morava por cima, ensaiava-se no clarinete. Artur ficou um momento a fazer no bilhar carambolas melancólicas, depois, a olhar para o João barbeiro, que, defronte, na sua porta, sob a bacia lustrosa de latão, esperava os fregueses com o pente espetado na grenha. Por fim, veio sentar-se defronte do Jornal do Comércio, com a cabeça entre os punhos. Uma local atraiu-o casualmente: era a longa descrição de uma soirée, em Lisboa... Logo interessado, devorou-a. Falava-se «da esplêndida decoração da sala de baile, das toilettes, das jóias — às duas horas tinha-se aberto um delicioso buffet; o amável secretário da Embaixada de Espanha dirigira o cotillon com o seu costumado entram; e depois, era um desfilar de convidados, condes, dons, deputados, conselheiros, diplomatas, e o poeta aplaudido dos Idílios e Devaneios...
Uma tristeza invadiu-o. E relia a local, demorando-se em certas frases, vendo através delas — a uma luz vaga, que vinha, em parte, da cintilação dos lustres, em parte, do raio pálido do sol que atravessava o botequim — a sala com dourados, nudezes de colos, de peitilhos lustrosos das camisas, as casacas negras, e os dois olhos tristes que se tinham fixado nele na estação de Ovar, brilhando agora mais alegres... Ela decerto lá estaria... E, subitamente, o antigo amor reapareceu, enternecendo todo o seu ser: era como numa noite escura um erguer de Lua grave e triste.
E ali ficou muito tempo, com os cotovelos sobre a mesa suja, pensando nela; mas não distinguia já bem as suas feições: pareciam perder-se, dissipar-se no luxo que a cercava, na música da soirée, nas luzes, em tudo o que ele próprio desejava: as ruas de Lisboa, as plateias dos teatros, as redacções dos jornais; isso mesmo se esbatia em longes muito vagos, e luzia a uma distância que lhe era inacessível, rolando num rumor de trens ricos, de óperas, de beijos adúlteros e de poemas aplaudidos... Suspirou, muito triste, e levantando a cabeça, viu defronte, pela porta aberta do João barbeiro, um freguês que esperava de pescoço inclinado, a toalha ao pescoço, os queixos brancos de sabão.
Saiu, foi andando para casa. Ia pensando no poeta dos Idílios e Devaneios. Os seus versos pareciam-lhe bem banais–como a sua fisionomia, que ele conhecia de retratos — o cabelo apartado ao meio, o grande pince-nez sobre o nariz grosso: e estava na soirée, apertava a mão dos embaixadores e os jornais festejavam o seu dia de anos! — E com algumas poesias medíocres, impusera-se à Sociedade!
E isto aparecia-lhe como o resultado de enredos subtis, de influências femininas — porque a Sociedade, que só conhecia através dos romances, afigurava-se-lhe, como o mundo de Balzac, governada pelos caprichos da Beleza e pelo génio dos Intrigantes. Acreditava na influência que pode ter, numa existência, o aperto de mão de um duque, e, como no caso de Vautrin, a protecção secreta de um forçado. A Fortuna era a presa dos fortes — e então, naquela hora de resoluções grandiosas, que atravessam todas as almas débeis — decidiu violentamente ser ele também um forte, sacudir aquelas sentimentalidades estéreis em que se gastava, demolir os obstáculos com o ímpeto de um Alcides, apoderar-se à força da Celebridade, de um lugar na Civilização e de um sofá no boudoir d'Ela. Até aí, o seu desejo carpira — agora, ia lutar... E trilhava a rua, levado por estes ímpetos, a grandes passadas, como se fosse apoderar-se do mundo. O char-à-bancs, que batia a galope para a estação de Ovar, obrigou-o a refugiar-se num portal: teve um momento a tentação de se atirar para dentro, ir tomar o comboio para Lisboa, começar a batalha — mas tinha na algibeira três tostões! E a esta picada mesquinha da realidade, aquela amplificação da vontade, engelhou-se-lhe subitamente, como um balão furado.
Quando entrou em casa, a Joana correu da cozinha, dizendo que o Sr. Coutinho, o tabelião. tinha vindo para lhe falar, e depois mandara uma carta pelo criado... Estava em cima da mesa.
Artur, surpreendido, correu à sala, abriu vivamente a carta:

«Il. mo Senhor.
O meu colega, correspondente do Porto, o Sr. Fernandes Gouveia, da Rua do Loureiro, encarrega-me da dolorosa missão de lhe participar que seu honrado padrinho, Sr. Guedes Craveiro, faleceu no dia 25 do corrente, pelas cinco hora s da manhã — e ao mesmo tempo da grata incumbência de lhe anunciar que por codicilo ao seu testamento de 18 de Abril do corrente ano, lhe lega...

— Oh! Santo Deus!

...lhe lega, para completar a sua educação, como melhor entender, a quantia de seis contos de reis...»

Tremia todo, gritou para a porta:
— Joana! Joana!
A velha acudiu, assustada.
— O padrinho deixa-me um dinheirão! Seis contos!!
— Oh! meu menino, oh! meu menino! Ai! E as senhoras que estão na missa. Vou chamá-las! Vou a correr...
Mas elas nesse momento entravam. Ricardina, no pátio, ralhava com o moço da quinta.
Artur correu ao alto da escada, de braços no ar.
— Tia Sabina! Tia Sabina, o padrinho deixou-me um dinheirão! Seis contos!
— Foram as minhas orações! — exclamou a velha agarrando-se ao corrimão, quase desmaiada. — Oh! meu filho! Oh! meu filho!...
— Que estás tu a dizer? — gritava Ricardina aos tropeções pela escada.
Entraram na sala, a Joana atrás, e quando Artur lhes acabou de ler a carta, em que o tabelião dizia que o legado se compunha de dois contos, depositados no Banco de Portugal — e que, no dia seguinte, ele receberia uma ordem sobre O Sr. Carneiro, lojista de panos, para receber, à vista, quinhentos mil-réis, oiro ou papel, para as primeiras despesas do luto — as três senhoras e a criada, muito trémulas, romperam a chorar!
— Oh! caramba! oh! caramba!! — dizia Artur, andando pela sala, com todo o sangue na face, tropeçando contra os móveis. E pensava com uma alegria tumultuosa no insulto que faria ao Vasco, que presente daria às tias, por que comboio partiria para Lisboa. Já se lá via, assistindo aos ensaios do seu drama, encontrando a senhora do vestido de xadrez...
— Vou a casa do Coutinho — exclamou de repente — vou ver como é isso da ordem de amanhã!
— Almoça primeiro, menino — disse Ricardina.
Mas ele, sem a escutar, abalara. Ricardina, então, pôs os óculos, releu a carta, baixo, impressionada com aquelas palavras, «ordem à vista», «depósito no Banco», tomada inesperadamente de um novo respeito pelo menino.
— O Artur agora há-de querer voltar para Coimbra — disse por fim a Sabininha, que, sentada à beira da cadeira, com o seu mantelete de seda bordado a vidrilhos e o livro de missa no regaço, ainda limpava uma ou outra lágrima.
— Para Coimbra, credo! — exclamou Ricardina — um rapagão de vinte e cinco anos!
Já não está para mestres... O que deve fazer é tomar a farmácia ao Vasco... que ele está morto por a passar! — E depois de um momento: — Pois olhem, até se me embrulhou o estômago. Uma coisa assim de repente... E a mana não se fique agora com as suas lamúrias... e vá acender outra lamparina no oratório, ande, que se deve o agradecimento ao Senhor...
Artur não encontrara o Coutinho: tinha ido para a fazenda. Quando atravessava a praça, saía-se da missa das onze. Então, lembrou-se de Deus — e na humildade do seu reconhecimento, murmurou ali mesmo um Padre-Nosso. O Rabecaz, que apesar do seu ateísmo frequentava a missa, para não ofender as opiniões católicas do Sr.
Administrador, apareceu, majestoso, no seu casacão dos domingos, calçando as luvas pretas. Artur correu para ele numa ânsia de desabafar, e com um riso nervoso:
— O padrinho morreu, deixou-me um dinheirão!
— Com mil diabos!
— É verdade, é verdade — disse Artur com os olhos húmidos, esfregando parvamente as mãos. Seis contos de réis, uma casa na Aguardente!
— E então? Agora para Lisboa?
— Pudera! — exclamou Artur com fervor.
— Ladrão!
Travou-lhe do braço com paixão, trouxe-o a casa — fazendo logo o plano de se ir encontrar com ele em Lisboa, na Primavera. Viveriam ambos juntos, e com a cheta em comum, havia de vir Lisboa abaixo. Artur ressentia-se daquela participação que o Rabecaz se arrogava na sua fortuna; disse muito sério:
— Eu vou passar uma vida retirada... trabalhar...
O Rabecaz bateu firmemente com a bengala no lajedo:
— Não me venha com essas pieguices. Mande a literatura ao diabo. Isso é bom para os pelintras. Você agora tem cheta, é gozar, é refocilar... E a primeira coisa que você há-de fazer, é mandar-me uma boquilha de espuma...
Ao almoço, a tia Ricardina discutiu o emprego do dinheiro do menino. Tinha agora a sua fortuna certa. O Vasco queria passar a farmácia, e, com aquele dinheiro...
Artur, indignado, pulou na cadeira:
— Ora essa! comprar a farmácia! Enterrar-me em Oliveira!
E declarou, dando uma punhada na mesa, que ao outro dia partia para Lisboa.
As velhas estavam assustadas da estridência da sua voz, da insensatez das suas resoluções.
— Tu endoideceste, menino?
— Endoidecia se aqui ficasse!
E numa exaltação, pela sala, falou do seu talento, das altas posições que dão as letras, da influência da Imprensa, de uma cadeira em S. Bento e da posteridade.
— Mas nunca hás-de ser um Nélson — exclamou o Albuquerquezinho, fixando-o.
— Mas posso vir a ser Ministro da Marinha, Sr. Almirante — disse Artur muito sério. De tarde, espalhara-se na vila a notícia da herança: uns diziam vinte contos, outros cem; alguns afirmavam que ia haver demanda. O Vasco veio à noite, comovido, com D. Galateia, para abraçar o herdeiro. Mas, a essa hora, Artur estava na Corcovada, instalado diante dos licores do estabelecimento, com uma caixa de charutos ao lado; e o Rabecaz, a cada freguês que aparecia, exclamava mostrando Artur, com um largo gesto à Ecce Homo:
— Ei-lo! Está milionário!
E às interrogações ansiosas, respondia vagamente, agitando as mãos:
— Um fortunão! De vir tudo abaixo... Vai bater carruagem em Lisboa. E eu estou aqui, estou lá caído!
Artur voltou para casa tarde, pesado de genebra. A tia Sabina veio-lhe em pontas de pés ao quarto, falar ainda na farmácia. O Vasco dissera-lhe que a cedia barata, com pagamento a três meses. Depois, elas estavam tão velhas... não tinham mais ninguém no mundo... Era necessário um homem na casa...
— Por coisa nenhuma fico aqui vinte e quatro horas mais, tia Sabina... E inútil. Irra!
Sabina desceu a chorar. Parecia-lhe que o menino estava embriagado. E diante do leito de Ricardina, já deitada, ia murmurando muito infeliz:
— O maldito dinheiro! O maldito dinheiro! Ao outro dia, Artur entrava na loja do Carneiro com a letra, muito inquieto, no receio de que, por vingança, o lojista «fizesse dificuldades...
— Sei ao que vem, recebi o aviso — disse secamente o Carneiro. — Oiro ou notas?
Então, num reconhecimento, Artur balbuciou:
— Ambas as coisas... Eu realmente, Sr. Carneiro, tenho a pedir-lhe desculpa... foi uma rapaziada...

Àquele cavalheirismo da parte de um herdeiro, de um capitalista, o Carneiro enterneceu-se e estendendo-lhe as mãos ambas numa efusão:
— O que lá vai, lá vai... Não me fez dano. Os meus parabéns. É gozar! É gozar!
Fez-lhe recontar as notas, verificou o peso das libras. À vista daquela fortuna ali amontoada, cintilando sobre o balcão, Artur reprimia uma vontade de rir nervosa, e, quando saiu, abotoando com amor o casaco sobre o dinheiro, sentiu o mundo a seus pés.
As tias, quando ele estendeu sobre a mesa o dinheiro para lho guardarem, ficaram aterradas. O quê! Pois ele queria levar para Lisboa aquela riqueza? Até lhes parecia pecado, e olhavam o oiro, o papel, com pavor, pensando que ia ser devorado na Babilónia, como se vissem reluzir nas libras olhos de sereias e nas notas negrejarem programas de bacanais. E não o queriam guardar! Não queriam responsabilidades...
— Oh, tia, mas eu não hei-de andar com esse dinheiro na algibeira. O meu baú tem a fechadura quebrada. Vou até comprar uma mala.
Por fim, elas cederam, e fecharam o tesouro no gavetão da cómoda que servia de altar, no oratório, pondo-o sob a protecção vigilante dos santos amados.
Nessa noite, por despedida, Artur ceou com Rabecaz, que tinha preparado uma carta de recomendação para o «pândego do Melchior».
— O amigo indaga onde ele vive, entrega-lhe a carta, e ele há-de fazê-lo gozar!
Onde conta o amigo hospedar-se?
Artur tencionava ir viver com Damião. Afinal era o único amigo que tinha em Lisboa. Além disso, um Damião, um génio, devia estar relacionado na literatura, na imprensa... e, enfim, ele queria sobretudo viver no meio intelectual...
O Rabecaz oscilava a cabeça, desaprovando:
— Ferre-se num bom hotel, ferre-se no Universal, no Chiado. Tem as cantoras à mão... Bela mesa redonda... tudo do fino, tudo do catita. Vá com o que lhe digo, ferre-se no Universal.
Mas Artur, nos primeiros tempos, não queria afrontar o luxo desproporcionado de um hotel no Chiado. Mais tarde, sim, quando tivesse feito fato, roupa branca...
— Então, ferre-se no Espanhol, na Rua da Prata. Tem boa pândega também... Vá para o Espanhol.
E até à porta de casa, foi-lhe fazendo recomendações: que visse Sintra, que fosse ao João da Mouraria, para gozar «o verdadeiro fadinho», que não deixasse de ir às espanholas. E que lhe escrevesse! Artur, pesado da ceia, escutava-o vagamente, de mãos nos bolsos, charuto caro nos dentes, e, no fundo escuro da noite, parecia-lhe ver a sua vida em Lisboa erguer-se, muito alta, como um troféu muito ornado, onde, de cima a baixo, felicidades vagas e deliciosas cintilassem. Quando bateu à porta, ficou surpreendido de ouvir uma voz grave que não conhecia, perguntar com desconfiança:
— Quem é?
Houve um ruído de trancas, de ferrolho corrido, e o forte portão abriu-se devagar.
Um rapazote, de espingarda aperrada, esperava no meio do pátio, e a tia Sabina, de saiote pelos ombros, alumiava do patamar. Com tanto dinheiro em casa, não tinham querido ficar sós. O Vasco aprovara, e tinham mandado vir da quinta o moço com a espingarda.
No dia seguinte, a despedida foi triste. Desde manhã, Sabina chorava pela casa. Ricardina, para disfarçar a sua desconsolação, ralhava, muito nervosa. Até o Albuquerquezinho parecia impressionado: toda a manhã passeara pela sala de jantar, de testa franzida, as mãos atrás das costas, rosnando:
— Ingrato... ingrato! Mau pirata, mau pirata!
O dia estava escuro e ventoso. Ao lado, na igreja, tocava a finados pela mulher do Dr. Marques, e aquele negrume de Inverno, o dobre do sino, pareciam aumentar a melancolia da separação.
Artur, comovido, repetia a cada momento que era só por dois meses:
— Mal comece o calor da Primavera, cá estou de volta.
E era sincero, tomado de uma saudade por aquelas afeições simples que deixava, pelo seu quarto, que durante esses longos anos ele povoara de sonhos e de imaginações queridas.
Às duas horas, o moço do char-à-bancs veio buscar o baú e Rabecaz apareceu. Ia acompanhar Artur à estação, e conservava-se à porta da sala, de chapéu na mão, erecto, muito digno na presença das senhoras.
— Adeus, tias, adeus!
Então, num romper de soluços, Artur foi dos braços de Ricardina para os de Sabina.
— É por pouco tempo, é por pouco tempo –balbuciava.
— E vai bem recomendado, excelentíssimas senhoras — disse Rabecaz, curvando-se. E Artur saiu com os olhos arrasados de lágrimas.
No pátio, encontrou o Albuquerquezinho, de braços abertos:
— Boa viagem, Arturzinho. Fique descansado, eu cá vigiarei. Há-de haver ordem a bordo!No meio da estrada, um tirante que se quebrou atrasou o carro. Um vento triste gemia entre os pinheirais; já começava a cair gotas de chuva. Artur ia calado, ainda comovido, e o Rabecaz fumava sombriamente, com a chapeleira de Artur entre os joelhos.
Mas à vista da estação, da máquina que já soprava, voltada para Lisboa, uma alegria tumultuosa invadiu Artur: já no vagão, ria, de nervoso, sentindo a moleza do assento, estofado de casimira suja, ceder confortavelmente, como um antegozo da vida em que se ia instalar agora. À portinhola, Rabecaz continuava os seus conselhos: que fosse às espanholas! Que gozasse!
E de vez em quando, contemplava-o com amargura:
— Seu felizão! — rosnava.
A locomotiva silvou — o comboio rolou.
— Não se esqueça da boquilha! — gritou-lhe ainda o Rabecaz.


Capítulo III

O comboio de Madrid, atrasado, acabava de chegar: o trem ia partir. Fora, chovia, ventava forte, e Artur seguia com os olhos uma lanterna avermelhada que errava, do lado dos rails, na noite tenebrosa, quando a porta se abriu vivamente, e um sujeito esbaforido apareceu, atirando para o assento uma maleta envernizada, um rolo de plaids, outro de bengalinhas, um cesto atado com fitas de seda azul e uma almofada de folhos. Vinha abafado numa peliça, e a alta gola erguida, o gorro de peles sobre os olhos, apenas deixavam ver uma face rosada e nutrida e uma bela barba aloirada.
Artur supô-lo logo estrangeiro — mas o indivíduo, depois de se instalar, cumprimentou cortesmente, dizendo:
— Que terrível noite!
— Terrível — concordou Artur.
Julgou-o então um diplomata, vindo de Madrid ou de Paris. Examinava-lhe a rica peliça, a charuteira com uma coroa de prata em relevo, de onde escolhia um breva, as luvas muito grossas, de uma pele áspera e branca, e pensava, fascinado, que aquela figura digna atravessara salões reais, roçara personagens históricos.
— Para Lisboa, creio eu? — perguntou-lhe o sujeito.
— Sim, vou para Lisboa — disse Artur.
— Que tal S. Carlos este ano?
Artur cuspilhou uma película de tabaco e corando um pouco:
— Este ano?... Este ano, muito bom.
— Valha-nos isso — disse o indivíduo.
E ficou imóvel, com as pálpebras cerradas, fumando com beatitude.
Artur receou logo outras perguntas sobre Lisboa, famílias fidalgas, músicos, e não querendo revelar ignorância plebeia, ia afectar uma sonolência fatigada, repoltreando-se no seu canto — quando viu o sujeito desapertar as fitas do cesto e tirar para o regaço um cãozinho amarelo, que lhe pareceu semelhante a um sapo, de focinho negro e achatado, vincado de duas rugas velhas, e olhos redondos e estúpidos.
— Tem tido uma jornada trabalhosa — disse o sujeito.
— Tem vindo no cesto?
— Desde Paris, pobre John!
Levou-o aos lábios como uma coisa preciosa e santa, e deu-lhe sobre o ventre macio e liso beijinhos chilreados. Chamou-lhe ainda pérola, anjo. Acalentou-o sob a peliça, contra o coração. E exclamava, compenetrado, para Artur:
— É um amor! — E depois de uma fumaça: — É para a Srª Marquesa de Folhes... Conhece talvez?
Artur disse baixo:
— Sim...
— Ah, conhece? — exclamou o indivíduo, com a face clareada de riso.
Inquieto, Artur acudiu:
— De nome!
— Ah!... Excelente senhora.
Acomodou maternalmente John no cesto, sobre o seu leito de algodão, e estirando discretamente os braços, declarou que o que tinham a fazer era dormir até Lisboa. S. Exª dava licença que corresse o transparente da lâmpada, não? Perfeitamente. Arranjou o travesseiro, estirou-se com um ah de gozo, cruzou as mãos sobre a peliça, e cantarolou  com melancolia, como uma oração da noite:

Si tu n'avais rien à me dire
Pourquoi venir auprès de moi?...

Bocejou enormemente, e daí a pouco, ressonava com dignidade Artur, fatigado, foi cerrando os olhos, no seu canto, na penumbra do vagão... Parecia-lhe estar numa sala, toda de oiro e veludo, onde a Srª Marquesa de Folhes conversava com a tia Sabina, falando dele... mas não as ouvia bem por causa de um estrondo de ferragens que rolavam surdamente. De repente, fazia-se um silêncio e acordava: luzes mortiças, ao lado, alumiavam uma estação; vultos abafados, fora, na noite, passavam com lanternas. Chovia sempre; havia um silêncio infinito na negrura dos campos adormecidos, e adiante, na sombra, sem descontinuar, a máquina resfolgava baixo.
Depois o comboio rolava de novo, e o seu sonho retomava-o através de uma sensação de frialdade nos pés: reconhecia que era uru lago muito azul, batido de luar; o Rabecaz e ele remavam num bote, com o Almirante ao leme. Então, junto dele, na escuridão, uma voz de timbre andaluz suspirava o seu nome; voltava-se, via dois olhos árabes, cintilando sob uma mantilha espanhola: ia beijá-los, mas a mantilha, escorregando, descobria uma caveira! Acordou com um estremeção... Uma voz ia dizendo ao comprido do comboio parado:
— Alhandra! Alhandra!
Um ar lívido de madrugada clareava através da neblina chuvosa. Saloios de varapaus, encolhidos nas mantas listradas, passavam; na plataforma, descarregavam-se caixotes; um comboio de mercadorias rolou ao lado, com vagões carregados de pipas, e outros, gradeados, de onde saíam cornos de bois. Depois, um criado de farda passou, correndo, com um ramo de flores na mão. O coração de Artur bateu, invadido da alegria daquela proximidade de Lisboa.
O comboio partiu de novo. Pareceu-lhe, através da névoa, avistar uma superfície de rio cor de aço; depois um campo de oliveiras correu ao lado; e os seus olhos, fixos nos vidros embaciados, foram-se cerrando, na fadiga daquela madrugada fria...
— Póvoa! Póvoa!
Despertou.
O sujeito de peliça, sentado, espreguiçava-se.
— Ora enfim! Nous voilà!
Ergueu-se, ajeitou a peliça, pôs um chapéu de casimira, e entreabrindo o cesto do pug:
— Amor, estamos no fim dos nossos trabalhos. Como tem dormido o amigo John, hem? Chegamos, percebeu?... Aqui está na pátria de Luís de Camões!
Voltou-se para Artur, rindo do seu gracejo:
— Não é má, hem? — e repetiu ao pug que gania: — Aqui estamos na pátria de Camões.
A máquina silvava. E Artur, excitado, via agora, à esquerda, estender-se o rio largo e baço, agitado sob o vento. Os montes da outra banda confundiam-se com o empastamento nas nuvens. Uma falua, de vela cheia, cortava a espuma, à bolina, na manhã áspera. Artur devorava com os olhos aquelas vizinhanças de Lisboa: uma fachada suja de casa que passava, uma pilha de madeira, altas chaminés de tijolo. Nos Olivais, o sujeito da peliça, julgando ver um amigo entre a gente na plataforma, precipitou-se para a portinhola, gritando:
— Oh, visconde! oh, visconde!
Mas o comboio partiu. Antigos vagões desmantelados, um alpendre com fardos, correram ao lado — e um empregado, todo molhado, abrindo vivamente a portinhola, recolheu à pressa os bilhetes.
Artur palpitava todo. Lisboa! Era enfim Lisboa! Abaixara a vidraça e o ar parecia-lhe cheio de uma vida mais intensa, todo penetrado da respiração larga da cidade que ainda dormia na manhã húmida.

Com um grande estrondo o comboio entrou na estação. A plataforma ficou logo cheia de gente, que ia, arrebatada, com embrulhos, chapeleiras, acotovelando-se. Saloios com os passos pesados das suas solas pregueadas, apressavam-se: havia nas faces um ar estremunhado e pasmado; uma criança chorava desesperadamente, e, quando à porta de saída o empregado lhe quis ver as malas, Artur, empurrado, atarantado, envergonhado, não encontrava as chaves. As mãos tremiam-lhe, sentia-se tímido, quase tinha saudades da casa das tias, da pequenez de Oliveira de Azeméis. E depois, com o seu bilhete de bagagem, muito embaraçado, quase aflito, errava pela grande sala de espera, dando aqui e além um olhar aos anúncios, onde se lia em grandes letras nomes de cidades – Sevilha, Córdova, Madrid, Paris — que lhe representavam civilizações magníficas e lhe davam um acanhamento maior.
Enfim, um carregador, que parecia ocupado por deleite próprio em resmungar blasfémias, levou-lhe com um ar soturno o baú a uma caleche, e o cocheiro bateu para o Espanhol.
À beira do assento, com as mãos nos joelhos, Artur, através dos vidros embaciados, ia olhando avidamente as fachadas das casas, os cartazes nas esquinas, a prolongação das ruas. Galegos curvados sob o barril chapinhavam na lama, gente passava encolhida sob os guarda-chuvas. Teve um espanto ao ver de repente os arcos do Terreiro do Paço, o rio, mastreações de esquadras! Pela Rua da Prata, ia lendo avidamente as tabuletas. Quem viveria naquelas altas casas, cerradas ainda? Àquela hora, decerto, os jornalistas, as duquesas, dormiam, depois das agitações intelectuais e amorosas da noite... — E uma felicidade exuberante encheu-lhe subitamente o peito.
A caleche parou.
Da escada do Espanhol, sombria, saía um cheiro enjoativo de amoníaco. Um criado, de suíças e cabeleira esguedelhada, que o tratou por usted, levou-o para um quarto pequeno, forrado de papel verde. A janela abria para um saguão melancólico e a água que caía da goteira cantava em baixo num balde de zinco.
Daí a pouco, encolhido nos lençóis, Artur dormia profundamente.

Acordou ao ruído da porta: o criado, em mangas de camisa, com um par de botas na mão, dizia repreendendo-o:
— Então usted não vai comer? São cinco horas. Já usted vê! La comida é às cinco.
Cinco horas já! Artur sentia os rins doridos; o tom crepuscular do quarto, um ruído de pratos que ouvia ao lado, o rabujar de uma criança, deram-lhe uma vaga tristeza.
O criado, então, revirou as botas na mão, considerou um momento com melancolia o elástico esfiado e o tacão tombado, e rosnou:
— Estão na última...
Artur fez-se vermelho.
— Pois quando usted quiser comer, é lá em baixo — acrescentou o homem. E antes de sair, arrastando os sapatos achinelados, repetiu ainda, indicando com tristeza as botas:— Estão na última! Já usted vê!
Servia-se a sopa, quando Artur se veio sentar timidamente à mesa. Defronte dele, dois espanhóis, de barbas de azeviche e faces cavadas, comiam, soturnos, com as capas ao ombro; na outra extremidade estava uma rapariga gordita e baixa, bonita, de robe-de— chambre escarlate e penteado alto; ao pé dela um indivíduo calvo, de cachaço fradesco, muita cor nas faces rechonchudas, um bigodito grisalho, via-as jantar, com uns olhinhos de ternura babosa, fazendo entre os dedos bolinhas de pão.
Artur admirou um momento as altas fachadas fronteiras, «tão nobres»! Depois, escutou os espanhóis, que devoravam e falavam baixo, desconfiados; e tendo distinguido os nomes de Castellar, Py y Margall, Contreras, Salmeron, concebeu logo uma imensa admiração por eles. Eram republicanos perseguidos; decerto se tinham batido em barricadas, conspiravam; e como um deles estendia o braço para as azeitonas, Artur apressou-se a chegar-lhe o prato respeitosamente. O indivíduo disse, com gravidade, «gracias, caballero» e Artur, muito lisonjeado, pensou que mais tarde poderia conhecê-los, ouvir-lhes episódios históricos, ligarem-se em simpatias revolucionárias! Que boa ideia vir para o Espanhol! Tudo ali lhe agradava — o aparador envernizado, o espelho com o caixilho resguardado por urna gaza cor-de-rosa, e o retrato de Prim, num cavalo empinado, agitando um estandarte. E foi quase com orgulho que, depois do café, acendeu o seu charuto e se foi encostar à varanda: a tarde limpara, as ruas secavam sob o norte frio; uma carruagem que passou, com dois criados de casacos brancos, fê-lo pensar que talvez fosse Ela, a sua desconhecida do vestido de xadrez: quando se agachou para espreitar, entreviu um homem gordo de lunetas! Mas todos os seus desejos de amores, de luxo, de celebridade, tinham-se posto a chalrar como pássaros acordados. Examinava avidamente as toilettes dos homens; achou adoráveis duas senhoras que atravessavam a calçada, com os vestidos apanhados, mostrando as saias brancas que lhes batiam o tornozelo. Nunca imaginara Lisboa tão vasta, tão aparatosa, e parecia-lhe que as ideias deviam ter decerto a amplidão das ruas, e os sentimentos a elegância dos vestuários.
A rapariga de robe-de-chambre escarlate veio então debruçar-se à varanda próxima: erguia o rosto, olhava o céu e o tempo. Artur achou-a deliciosa, com o seu pescoço muito branco, as formas copiosas, toda roliça e cálida.
— Quem é esta senhora? — perguntou ele para dentro ao criado que levantava a mesa, cantarolando.
O moço chegou-se, espreitou:
— É a Mercedes. — E fitando as botas de Artur com um bamboleamento triste de cabeça esguedelhada, repetiu ainda: — Estão na última. Já usted vê!...
Artur encolheu os ombros, furioso. De resto, observando os homens na rua, já pensara que o seu fato de Oliveira era mal talhado e provinciano: por isso só saiu à noite, depois de aceso o gás.
Com que deleite pisou enfim as lajes ainda húmidas dos passeios, respirou a friagem de Inverno, o ar de Lisboa, que, depois do pesadume das ruazitas de Oliveira, lhe parecia ter a vitalidade oxigenada onde se dilatam as faculdades! Embasbacava para as vitrinas alumiadas das lojas; estacava, pasmando para os rostinhos pálidos das mulheres que passavam; voltava-se com admiração para seguir as carruagens de criados perfilados; e da claridade do gás, da vastidão das ruas, da multidão sussurrante, vinha-lhe como que uma sensação de actividades espalhadas, de paixões, de grandezas vagas que o perturbava: era como se a atmosfera estivesse saturada das emanações de uma vida rica, sábia, idealizadora e ardente! Mas sentia-se acanhado: apesar de apetecer prodigiosamente uma gravata azul que viu num mostrador, não ousou entrar na loja; o trotar das parelhas entontecia-o; o andar desenvolto dos homens, falando alto, dava-lhe um medo pueril de agressões; tinha vergonha do seu velho paletot, mais curto que as abas da sobrecasaca que trazia; sentiu-se mesmo agradecido a um sujeito que lhe pediu lume, cortesmente, como se recebesse dele um acto de benevolência. O homem, depois de acender o charuto, disse para outro que esperava, assobiando:
— Para o Martinho, hem?
E Artur foi-os seguindo timidamente, ansioso por ver o Martinho! Pareceu-lhe esplêndido, com a acumulação dos chapéus altos entre os espelhos doirados, sob uma névoa de fumo de tabaco, no brouhaha contínuo das conversas. Não se atreveu a entrar. À porta um grupo palrava, e Artur contemplava-o de longe, com devoção, pensando que deviam ser poetas e estadistas... Subiu-lhe então de repente ao cérebro um vapor excitante de emanações intelectuais: teve pressa de entrar naquela existência — relacionar-se, regalar-se das discussões sobre Arte e Ideal, «ser também de Lisboa»!
Chamou uma tipóia, e mandou bater para a Praça da Alegria, para a casa do Damião! Recomeçara a chover e o lajedo reluzia à luz do gás. E encostado ao fundo do cupé que trotava ao comprido das grades escuras do Passeio, Artur ia pensando no fato novo que faria e nos filósofos que ia decerto encontrar «na catacumba» do Damião.
Ao toque da campainha, uma mulher de pele muito branca e fitas vermelhas no cabelo fê-lo entrar numa sala esteirada, para lhe dizer que o Sr. Damião tinha partido para o Algarve. Examinou rapidamente Artur, e acrescentou logo — que, se S. Sª desejava quartos, os do Sr. Damião estavam devolutos...
— Não, obrigado, eu vinha só procurá-lo.
— Ai, pode V. Sª entrar. — E numa voz muito cantada, muito lisboeta: — O Sr. Damião estava muito contente. É a casa mais sossegada do bairro, tudo na maior limpeza. A Srª D. Ermelinda até me diz sempre: Oh, D. Joana (é o meu nome, minha mana é Adelaide) oh, D. Joana, diz-me a Srª D. Ermelinda, a senhora faz mal em ter tanto cuidado com os hóspedes, olhe que não lho agradecem! E vai eu, digo-lhe: Oh, D. Ermelinda (damo-nos muito) digo-lhe eu, olhe que é génio; em não tendo tudo a preceito, estou num frenesi. O Sr. Damião tinha um quarto só. Tenho também o Faria, há-de conhecer, o Fariazinho...
Aquela verbosidade sem motivo entontecia Artur. Repetia, cumprimentando:
— Sim, eu hei-de voltar.
— Ai, pode vir agora. Eu não sou de cerimónias. Até a D. Ermelinda me diz sempre: Oh, D. Joana, por quem é, a senhora deve-se pôr no seu lugar. E digo-lhe eu: Oh, D. Ermelinda, que quer, são génios! E todo o mundo me estima. O Fariazinho está em minha casa há dois anos. Pode-lhe perguntar...
— Pois eu hei-de voltar — interrompeu Artur, atarantado. Deu as boas-noites, desceu rapidamente a escada.
Aquela ausência do Damião contrariava-o. Estava muito desconsolado. Contava com o Damião para o guiar, lhe mostrar Lisboa, apresentá-lo a escritores, escutar o seu drama, e a sua partida para o Algarve parecia alargar em torno dele uma solidão inesperada.
Felizmente tinha as cartas de apresentação do Rabecaz.
Foi então descendo ao acaso o Moinho de Vento, e ao passar por S. Pedro de Alcântara, penetrou sob as árvores e foi encostar-se às grades. A cidade cavava-se em baixo, no vale escuro, picado dos pontos de luz das janelas iluminadas, e, na escuridão, os telhados, os edifícios, faziam um empastamento de sombras mais densas. Aquelas luzes, debaixo daqueles tectos, que fermentação de vida! Quantos amores, quantos mistérios, crimes talvez! Ali, jornalistas compunham artigos, oradores preparavam discursos, estadistas conferenciavam, mulheres aristocráticas, nas suas salas, falavam de amores, e, nos pianos ricos, gemiam as cavatinas apaixonadas. Que grande, Lisboa!
Voltara-lhe a mesma sensação, sempre repetida, de uma capital vasta, com uma intensa vida social, e olhava, vagamente exaltado, como se todas aquelas existências acumuladas lhe mandassem ao coração o bafo das paixões que lhes supunha.
Uma aragem fria fê-lo encolher-se no seu paletot cor de pinhão. Foi descendo, parando junto às vitrinas, voltando-se para os rostos pálidos das mulheres, meio escondidos sob mantas de lã ou véus escuros, seguindo com os olhos as lanternas das carruagens ricas, que punham claridades sobre os casacos claros dos lacaios. Descendo sempre, chegou junto do rio. Estava escuro, havia um friozinho cortante, e as luzes dos mastros tremeluziam na noite. Veio-lhe, sem razão, uma melancolia, um sentimento de solidão. Àquela hora, todos estavam nas suas casas bem mobiladas, no brilho das soirées, no conforto das convivências íntimas; as mulheres recebiam os seus amantes, amigos discutiam, fumando, em volta do punch... Como conseguiria fazer conhecimentos, relacionar-se, viver, jurar, naquela grande cidade rumorosa? Agora tudo lhe parecia mais difícil, e as grandes fachadas sombrias das casas espalhavam em torno dele uma sensação de isolamento, de inacessibilidade...
— V. Exª quer favorecer um chefe de família desempregado? — disse uma voz lamentosa ao pé dele.
Artur aprumou-se e tirou cinco tostões da algibeira, que meteu na mão que lhe estendia um sujeito de chapéu alto e sobrecasaca coçada, a gola presa com um alfinete.
Aquela miséria entrevista entristeceu-o mais. O Aterro, longo, solitário, com um ventozinho frio, deu-lhe um sentimento de melancolia; o coração confrangeu-se-lhe, sentiu a necessidade de voltar para o Hotel, ver luz, estar debaixo de um tecto, reler o seu drama, para se fortalecer com a certeza do seu talento, e contar o seu dinheiro, para se animar com a evidência dos seus recursos.
Pôs-se a caminhar depressa pela Rua do Arsenal; mas no Terreiro do Paço perdeu-se: confundia as ruas largas, já um pouco desertas, paralelas, infindáveis. Andou, voltou: tinha vergonha de perguntar pelo Espanhol. Numa rua estreita, vozes, por trás de tabuinhas verdes, chamavam-no com psiu! psiu! familiares; dois bêbedos assustaram— no, cambaleando, praguejando — e atarantado, já aflito, chamou uma tipóia que passava devagar.
— Para o Hotel Espanhol! — disse, subindo para a tipóia.
O cocheiro fitou-o um momento, admirado, mas imediatamente bateu a parelha.
Artur sentou-se e acabava de fechar a vidraça, quando o carro estacou.
— Então?
— Cá estamos, meu amo. O Espanhol é aqui.
Artur saiu, vexado.
— Quanto é? — perguntou timidamente ao cocheiro.
— Uma placazinha...
Com medo de uma questão, Artur pagou.
— Muito obrigado a V. Exª, meu fidalgo — disse o homem.
No corredor do hotel, de uma porta vivamente alumiada, saíam sons de guitarra: uma voz mordente de mulher cantava num tom de malagueña:

A la puerta de mi casa
Hay una piedra muy larga,
Lá, rá, lá, lá...

E mãos batiam em cadência, ao repenicar dos bordões.
Imóvel, com o castiçal na mão, Artur escutou: vozes espanholas falavam desenvoltamente, rolhas de cerveja estalaram. Pensou que devia ser a rapariga do robe- de-chambre escarlate e os emigrados que recordavam canções das suas províncias, e aquilo pareceu-lhe muito poético.
Uma voz forte de homem elevou-se então: fazia estalar os dedos, e num ritmo de gaita-de-foles, cantarolava:

Doces galleguiños aires,
Quittadoiriños de penas...

Houve risadas, a porta fechou-se bruscamente. Artur foi subindo devagar. Viera-lhe uma recordação de quando era pequeno e estivera um Verão no Porto, com seu pai, na estalagem do Leão de Ouro. Pelas tardes quentes do domingo, cheias de pó, o criado levava-o a uma horta, para os lados da Lapa: comiam tremoços ao pé de um faval, onde sussurrava a água das regas, e iam ver os galegos dançar debaixo do parreiral, ao som da gaita-de-foles que fazia mu-i-ñe-ra! mu-i-ñe-ra! Depois a caneca de vinho verde passava em redor; sentiam-se ao lado os pah! secos do jogo da bola; então uma galega erguia-se, e com as tranças loiras caídas sobre o colete escarlate, os braços abertos, punha-se a girar devagar ao churre-churre dos pandeiros! — Há quanto tempo isso fora! Se seu pai o pudesse ver agora, em Lisboa, com dinheiro no bolso, manuscritos no baú! E reconfortado, estirou-se na cama, murmurando com voluptuosidade: «Estou em Lisboa, estou em Lisboa»
Ao outro dia, depois do almoço, por um sol magnífico, Artur preparou-se para ir visitar, com a sua carta de recomendação, o sobrinho do Rabecaz, o Sr. Venâncio Guedes. Para se apresentar com chic, comprou, num armazém de fato feito, um paletot de pano azulado com gola de veludo, que lhe aconselhou um caixeiro de ar profundamente infeliz; depois, num sapateiro, ornou-se de botas de verniz, e assim equipado, de luvas pretas, numa bela caleche, dirigiu-se ao largo do Carmo.
Um indivíduo barrigudo, de fartas suíças cor de azeviche, abriu-lhe a porta, e com uma voz de trombone, roncou para dentro:
— Um sujeito que o procura, Sr. Venâncio!
— Mande entrar, Sr. Ferraz!
O Sr. Venâncio, à mesa, almoçava. Os gestos miudinhos com que partia os seus ovos quentes, a sua carinha amarelada, de beiços finos, o cabelo correctamente acamado, revelavam um individuozinho meticuloso, muito admirador do seu director-geral. Abriu a carta do Rabecaz, e começou a lê-la, puxando os pêlos do bigodinho loiro, aparados à tesoura. No quarto próximo, por trás de um reposteiro azul, uma voz cantava aos berros:

Aceita o sabre de meu pai!
Aceita o sabre! Aceita o sabre!

Nas paredes pendiam gravuras violentamente coloridas, onde se distinguiam damas e cavaleiros entre paisagens idílicas; um papagaio, no poial de pedra da janela, meneava-se no seu poleiro,, e o Sr. Ferraz esperava, com uma das mãos papudas apoiada à mesa, a outra encostada com chic ao quadril obeso.
O Sr. Venâncio pousou a carta, ajeitou nervosamente o robe-de-chambre sobre o peito, e com uma vozinha acre, às fisgadas:
— Mas eu não conheço literatos! Eu não conheço literatos, meu caro senhor! Quer que o apresente. Mas a quem? A quem? Se eu não conheço ninguém!

Aceita o sabre, o sabre, o sabre,
Aceita o sabre do papá.
Pan, pa, pa, pa, pum! gritava a voz estridente.

— Eu vivo muito retirado, meu caro senhor. Vivo para as minhas ocupações. Não conheço dessa gente...
Artur, já envergonhado, acudiu:
— O tio de V. Exª disse-me que talvez V. Exª soubesse a morada do Sr. Melchior Cordeiro...
Venâncio teve um pulinho de contrariedade:
— E V. Sª a dar-lhe! Eu não conheço ninguém!
O reposteiro azul abriu-se, e um rapaz de grandes bigodes apareceu, exclamando com ímpeto:
— Salta o almocinho! Papagaio real! Ferraz amigo, os manjares!
— Tu conheces um Melchior Cordeiro? — disse Venâncio, voltando-se para ele, acamando nervosamente o penteado.
O outro estacou, baixou levemente a cabeça a Artur, e retorcendo vivamente o bigode com ambas as mãos:
— Melchior Cordeiro, Melchior Cordeiro... — murmurava.
Artur olhava-o quase com ansiedade; na rua, pregões cantavam, e para o lado do quartel soavam cometas de exercício.
— É um jornalista — lembrou Artur.
— Não conheço! — E dirigindo-se jovialmente ao papagaio: — Papagaio real! Viva a Carta Constitucional!
— Já vê — disse Venâncio, com regozijo mal reprimido. — Ninguém conhece semelhante gente.
— E pôs-se com satisfação a esgaravatar os ouvidos.
Artur, profundamente despeitado, tomou o chapéu.
— E o senhor meu tio ainda se embebeda todas as noites? — perguntou o Venâncio, continuando a partir os seus ovos.
Artur, petrificado, balbuciou:
— Não me consta, não me consta...
Mas o sujeito barrigudo abrira a porta, e descendo a escada, furioso, Artur sentia ainda os gritos do papagaio e a voz jubilante do outro cantar desesperadamente:

Aceita o sabre, o sabre, o sabre!
Aceita o sabre, o sabre do meu papá!

No largo, a manhã resplandecia. Depois dos dias de chuva, aquele sol delicioso dava à cidade a alegria de um renascimento: até dois moços que num pátio lavavam uma carruagem a baldes de água e os galegos que palravam à beira do chafariz, pareciam tão satisfeitos como os canários que gorjeavam nas janelas. Mas Artur estava como que desencantado: Damião partira, o famoso Melchior perdia-se no vago, e naquela cidade tão cheia sentia a concavidade da solidão! A sua vontade, que à maneira de um inválido precisava ser constantemente estimulada e ajudada, recaía desfalecida: a celebridade, as relações, os amores — tudo o que em Oliveira lhe parecera de conquista tão fácil, à mão, recuava agora para cimos inacessíveis: tinha a sensação de massas de obscuridade, sufocantes como abóbadas, que o encarceravam no anonimato. As vitrinas das lojas, os altos prédios, as carruagens, davam-lhe uma opressão indefinida; sentia circular em redor um enorme egoísmo burguês, feito do orgulho do dinheiro e do desprezo das ideias; e os rostos, como as fachadas, tomavam para ele um aspecto obtuso e duro que alguns pobres versos delicados nunca poderiam comover! O sentimento da sua solidão sensibilizou-o: se adoecesse, pensou! E, entontecido pelo movimento, abstracto, infeliz, ia descendo o Chiado, com os pés torturados pelo verniz novo aquecido, sentindo-se «gebo», odiando Lisboa, furioso com o sapateiro! Quando entrou no hotel, atirou-se para cima da cama, e para se reconfortar com a certeza do seu talento, pôs-se a reler, aqui e além, os Esmaltes e Jóias. Mas os versos que em Oliveira lhe pareciam de um ideal tão nobre, lidos agora ali, em Lisboa, tinham um tom de pieguice pueril, no meio das vagas grandezas que sentia em redor e dos vastos interesses que suspeitava. Veio-lhe uma desesperação, achou-se «burro», pensou mesmo em voltar para Oliveira; retinha-o, porém, uma curiosidade da Cidade, a esperança de a ver, a Ela, e o desejo das satisfações que lhe podia dar o dinheiro — teatros, mulheres... Que diabo! tinha ali no baú, em libras, um conto de réis! E espreguiçou-se sobre o leito com voluptuosidade, como se recebesse de repente, de todos os rostos lindos que entrevia, das vozes que na véspera lhe faziam psiu! psiu!, por trás das tabuinhas verdes, um eflúvio afrodisíaco. E desceu para o jantar, resolvido «a atirar-se nessa noite à pândega».

Como na véspera, os dois espanhóis lá estavam, e, soturno, ao pé da Mercedes, o sujeito calvo e baboso. Esperando a sopa, Artur abriu o Jornal do Comércio que estava sobre a mesa, deu um olhar de lado à espanhola — e, de repente, lembrou-se de que talvez no hotel conhecessem o Melchior, um jornalista!
Perguntou imediatamente ao criado, que entrava com a sopa.
— Ah! o Melchiorzinho! — disse o moço; e dirigindo-se ao calvo: — Ó Sr. Videira, usted sabe onde está o Melchior?
— O Melchiorzinho? — respondeu o calvo. — Na redacção do «Século». Para os lados da Rua do Carvalho.
— Já vê usted! — disse o criado com satisfação.
Artur, na sua alegria, indiferente ao jantar, agarrou o chapéu, correu à rua, tomou uma tipóia, foi à redacção do «Século»: o Sr. Melchior tinha saído, podia encontrá-lo ao outro dia, à uma hora da tarde.

Aquela visita preocupou Artur toda a noite. Melchior era um jornalista, um literato e a conversa rolaria decerto sobre livros, estilos, escolas; desejava mostrar-se elevado nas críticas, original nas frases; preparou mesmo duas definições pitorescas de Lisboa e da Província:
«Lisboa é a estação central da inteligência.»
«A Província é a penitenciária do espírito.»
E ao outro dia, muito comovido, apeava-se à porta da redacção. Um rapazito de blusa azul fê-lo atravessar um pátio sujo, penetrar num corredor carunchoso, e abrindo uma porta:
— Um sujeito, Sr. Melchior!
A uma larga mesa coberta de oleado, dois indivíduos trabalhavam. Um deles, de cabelo à escovinha, escaveirado e de lunetas defumadas, cortava tiras num jornal, com uma tesoura de alfaiate; o outro, baixo e grosso, com a cabeça fincada entre os punhos, parecia absorvido no estudo de uma folha de papel escrevinhada: ergueu-se bruscamente, inquieto. Era Melchior. Tinha a calva precoce, chamada do deboche, sobre a qual repuxava um cabelo fino como teias de aranha; sob o nariz carnudo, arqueava-se um bigode espesso.
Abriu a carta do Rabecaz, de pé. As suas mãos papudas tinham uma ligeira tremura habitual, e apenas leu as primeiras linhas:
— Ah, perfeitamente!... Tenha a bondade de se sentar. Pois não! Por quem é, sente-se! E como vai ele, o maganão? Hem? Sempre patusco? Se V. Exª me permite, eu acabo aqui um pequeno trabalho e sou todo seu. Tenha a bondade de se sentar. Isto está um pouco desarranjado. Se quer ler os periódicos...
Artur tomou um jornal e sentou-se ao pé da janela. Nas paredes, maços de jornais desdobrados pendiam de ganchos, resmas de periódicos atulhavam os cantos e um ténue véu de poeira cobria tudo: os papéis, as cadeiras, o velho mapa de Portugal e Espanha; a rua, fora, tinha um silêncio pacato; numa janela fronteira, um pintassilgo cantava na gaiola, e as tesouras enormes do sujeito de lunetas iam retalhando os jornais.
— Ó Esteves, trouxeram as chegadas? — disse de repente Melchior. E a um sinal afirmativo do outro: — Ditas, fazes favor?
Esteves procurou entre a papelada uma tira rabiscada a lápis e começou imediatamente, numa voz um pouco rouca, extremamente monótona: «O conselheiro Abílio de Azevedo, de Vila Nova de Famalicão, hospedado nos Embaixadores...
Melchior escrevia, murmurando alto:
— «Chegou o nosso prezado amigo o Ex.mo Sr. Conselheiro Abílio... Nova de Famalicão...» — Com um l só?
O outro moveu afirmativamente a cabeça e prosseguiu: «O visconde da Ameixoeira, de Viseu, e sua respeitável família... O nosso assinante Tadeu Carneiro... O ilustre proprietário Eustácio Alcoforado...» — Não, este partiu, partiu para Bordéus.
— Partiu ou chegou, menino? É que não é a mesma coisa! — exclamou Melchior. Deu uma risadinha, voltado para Artur, tomou uma fumaça do charuto e pediu a Esteves que «por caridade lhe ditasse os anos».
Esteves, com um gesto lasso, tirou de uma gaveta um Almanaque, com folhas brancas intercaladas, bocejou profundamente e começou no seu tom soturno: «Dia 14 de Dezembro... O comendador Figueiredo... grandíssimo besta! A Srª D. Ernestina da Conceição Valadares... O engraçado actor Maldonado...»
Melchior suspendeu a pena e olhando para Esteves fixamente:
— Está lá engraçado? Isso é de há dois anos! Agora ele faz papéis sérios.
Esteves reflectiu, tirando películas dos beiços:
— Põe o esperançoso.
O esperançoso? um homem que representava havia doze anos!...
E olhavam-se embaraçados, na urgência de um adjectivo.
Então Artur adiantou o rosto, risonho, obsequiador, e disse:
— O impressionante, talvez.
— Magnífico; — exclamou Melchior, escrevendo regalado. E, um momento, olhou Artur com respeito. — Que mais, Esteves? Vá, homem, vá! «O vereador Fernando Cardoso... A inocente filha da Srª D. Elvira Cunha Rego... O distinto poeta Augusto Roma, ilustre autor dos Idílios e Devaneios...»
Uma porta lateral abriu-se, e uma face branca e balofa, com lunetas de oiro e um bigode tão preto que parecia de crepe postiço, mostrou-se, dizendo com voz de papo:
— O Melchior, redige aí uma notícia da chegada do Meirinho, de Paris... O homem já me falou nisso três vezes. Trouxe-me uma lapiseira, coitado. Sete ou oito linhas catitas.
E a porta fechou-se.
Melchior tomou-se grave, esfregou as mãos devagar, acendeu reflectidamente outro charuto, e com os cotovelos sobre a mesa, os olhos cerrados, pôs-se a coçar lentamente a calva; depois, escreveu, riscou, releu, recomeçou e por fim, recostando-se na cadeira, murmurou exausto:
— Não estou de maré. Hoje não vai...
Nesse momento, o sujeito de lunetas de oiro voltou de dentro, de chapéu na cabeça, calçando as luvas:
— Fizeste?
Melchior confessou que estava pesado da cabeça.
— Escreve lá, homem! — disse o de lunetas de oiro, encolhendo os ombros com o desdém de um ricaço de ideias: — «Temos entre nós o nosso prezado amigo João Meirinho, um dos ornamentos mais brilhantes do nosso high-life. S. Exª que é igualmente estimado em todas as capitais da Europa...». Hesitou, passou os dedos pelas sobrancelhas e com a testa muito franzida, «...da Europa, onde as suas qualidades eminentes o tornam o alvo dos respeitos de todas as classes, é sempre bem-vindo à formosa cidade do Tejo, onde...».
— Há dois ondes — advertiu baixo Melchior.
— Deixa haver! Põe: «...a cuja sociedade ele traz a animação, que é o distintivo da brilhante...».
— Há dois brilhantes — corrigiu Melchior.
A observação, diante de um estranho, decerto irritou o sujeito, que replicou secamente:
— Mete-te lá com a tua vida! — Põe: «...da esplêndida capital da França, esse esplen... esse resplandecente centro da Arte e das Letras». — Ora aí tem o menino, uma noticiazinha chic!
Ia a sair, mas Melchior, erguendo-se cerimoniosamente:
— Quero-lhe apresentar o Sr. Artur Corvelo, um poeta; o Sr. Saavedra, o nosso director.
Saavedra apertou, protectoramente, a mão que Artur lhe estendeu com servilismo — e pondo o chapéu mais ao lado:
— Ah, esquecia-me. O João Carolino, do Ministério do Reino, deu-me um folhetim para amanhã... Manda para dentro, e ele vem rever as provas.
E antes de atirar o manuscrito sobre a mesa, abriu, leu alto:

«À BEIRA-MAR. — Sentado numa penedia, deixo o pensamento vogar sobre a superfície líquida, onde os doirados raios do Sol poente espargem mil cambiantes de luz. E com a alma arrebatada, contemplo a pasmosa maravilha da criação. Oh! materialistas, escondei o rosto na vergonha de vossa perversa blasfémia! Vinde a este penedo, se quereis ter a certeza da existência de Deus. Vinde a este penedo, gigante de granito...»

— Está opulento — murmurou. Atirou o manuscrito a Esteves, abaixou a cabeça a Artur e saiu trauteando.
Melchior ergueu-se logo e com um sorriso:
— Estou às suas ordens, Sr. Corvelo! O Esteves, aqui te deixo as notícias, hem! — E de pé, ia-lhe passando pequenas tiras de papei, de que lia as primeiras linhas, numa verificação rápida: — «Foi despachado aluno pensionista, etc... Foi aprovada a tarifa especial, etc... Parece que o Sr. Vieira não aceita a nomeação, etc... O conhecido Mesquita faz leilão da sua casa de penhores, etc... Foi aceite, pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, a proposta do marchante Augusto, etc... Houve ontem uma desordem no beco do Monete, etc.». Aí tens as duas anedotas que vinham no jornal espanhol. A chegada do Meirinho. É o que há. Não vem mau o número de amanhã...
Foi interrompido por nós de dedos que batiam à porta, e, quase imediatamente, dois homens entraram. Pareciam operários: um deles, atarracado, tinha uma face honesta que atraía, mas foi o outro, franzino e amarelo, quem tomou a palavra. Um pouco embaraçado, puxando os pêlos do bigodito e batendo com o chapéu na coxa, devagarinho, começou, enchendo a voz:
— Nós somos filhos do trabalho... — Hesitou, procurou, na presença dos jornalistas, embelezar as suas frases: — Somos da fábrica de fiação da Pampulha, e, como V. Exª sabe, estamos em greve... A comissão entendeu que deveria publicar um comunicado, para dar coragem, para levantar os ânimos... — Pareceu consultar o companheiro, acrescentou, corando: — Ainda que haja alguma despesa... Que as circunstâncias...
— E estendia o manuscrito.
Melchior e Esteves entreolharam-se:
— Não — disse Melchior — não é nada; os senhores estão em greve e o «Século» está na oposição... Sai amanhã, podem ir descansados.
— A justiça é por nós — balbuciou o rapaz. Pareceu querer colocar uma frase final, hesitou, fez um sinal ao companheiro, e saíram ambos devagar, gingando levemente.
Esteves abrira o comunicado e parecia surpreendido. Melchior então, curioso, foi olhar por cima do ombro dele, e leu alto:

«IRMÃOS DO TRABALHO! Quando do alto do Gólgota, o Redentor do género humano, já exangue, soltou o grito supremo, foi para proclamar uma aurora de paz e de esperança e arrancar a cadeia da escravidão dos pulsos dos filhos da democracia...»

E continuava assim, em duas laudas, falando da «gargalheira de ferro dos tiranos», do «credo da liberdade», da «arca da aliança». Explicava a greve da Pampulha, como sendo a «aurora que raia para as vítimas do despotismo»; aconselhava os operários «a que refrigerassem as frontes fatigadas no puro seio das filhas do povo»; e depois de novas amplificações sobre o Cristo, terminava: «a vossa comissão grita-vos do alto da colina: coragem, heróis do trabalho, coragem!»
— Hem! — fez o Melchior, atónito. — Para ser de um operário! Está esplêndido!
Manda-o pôr na segunda página, caramba!
Também Artur estava surpreendido. Que cidade, Lisboa, em que dos empregados aos tecelões, todos tinham a preocupação da eloquência e a fé na publicidade! Não se conteve, soltou a sua frase:
— Lisboa é a estação central da inteligência...
Mas o rapazito de blusa entrou vivamente na redacção:
— Está ali outra vez o homem do hotel com a conta!
Melchior atirou-se com um salto para a saleta interior e pela porta entreaberta, com grandes gestos, a voz abafada:
— Que não estou, que fui para o campo!
Ouviu-se, fora, um vozeirão irritado e o rapazito, esganiçando-se, replicar, quizilado; depois, houve um silêncio, e Melchior, com cautela, mostrou a face inquieta:
— Foi-se?
Esteves, que assobiava a Sonâmbula, moveu afirmativamente a cabeça.
— Pois estou às suas ordens — disse Melchior, subitamente tranquilo. Tirou do bolso a carta do Rabecaz e sentando-se: — Pois aqui está o que me diz o maganão do Rabecaz: «aí vai o amigo Artur Corvelo, com versos muito catitas e um drama que é de arromba. Aquela cabeça é um mundo! Quer conhecer a bela rapaziada literata e como seu bondoso padrinho lhe deixou grossa maquia, aí o tens, que quer florear na Capital e encher o ventre da bela pândega».
Artur protestou logo:
— Não, eu venho sobretudo por causa do drama.
— Há tempo para tudo! — disse Melchior, com um grande gesto. — E então demora-se? — Naturalmente.
— Pois eu estou às ordens, disponha de mim. Com franqueza... Quando é que V. Exª está em casa? Eu vou por lá, almoçamos, conversamos, e vamos por aí ver o que há. Serve-lhe?
Artur agradeceu, comovido. Melchior foi a um pequeno lavatório que havia ao canto, lavou as mãos e aproximando-se, a puxar as calças para a cinta:
— Amanhã, por exemplo, hem?
— Perfeitamente. Estou no Hotel Espanhol.
— O Esteves, esses livros que aí mandaram para anunciar, leva-os ao Salomão, mas não os largues a menos de três tostões cada um, pelo amor de Deus! — E voltando-se para Artur: — Andiamo?
À porta, porém, lamentou não poder acompanhar Artur; tinha um rendez-vous.
— Sabe o caminho, não é verdade? Bem. Amanhã, às onze, no Espanhol! Almocinho simples! All right! Criado de V. Exª.

Mas não veio na manhã seguinte, nem ao outro dia. E Artur, já inquieto, e querendo ao mesmo tempo aproveitar a oportunidade de mostrar estilo, resolvera escrever-lhe um bilhete muito literário: «Decerto os altos trabalhos desse rochedo de Sísifo, que se chama a Imprensa, têm-no absorvido e esqueceu-se de que prometeu vir partilhar comigo do leite e castanhas, de que fala o divino Virgílio...». Tinha fechado o sobrescrito e limpava com água-de-colónia uma nódoa do fraque preto, para sair, quando a porta se abriu devagar e apareceu Melchior.
— Ia-lhe justamente mandar uma carta! — exclamou Artur.
Melchior alegou afazeres, uma pessoa das suas relações que estivera doente...
— Mas estava a limpar o fatinho, pelo amor de Deus, não se interrompa! Examinou o fraque e observou como entendedor: — Isso, só com benzina.
Artur corou, atirou o fraque para uma cadeira e negligentemente:
— É um fraque velho — disse — tenho de mandar fazer fato...
Melchior tomou um ar muito sério:
— Com franqueza, aconselho-lhe. Em Lisboa é necessário andar bem vestido. Que tal lhe parece isto? — E rodava nos calcanhares, devagar, mostrando o fato de cheviot claro. — Muito chic, não é verdade? Pois, aqui para nós, mas não o diga, por quem é, não o diga... Dezasseis mil-réis. No Strauss eram quarenta. Hem! Que espiga! E em conclusão, provou-lhe que devia fazer fato no «seu homem», que era o Vitorino, o Vitorino dos Calafates. — Está decidido, bem? Vamos ao Vitorino?
Artur aceitou logo, com reconhecimento — e desceram para o almoço.
O criado pareceu rever com alegria o sô Melchiorzinho. Melchior também se regozijou de encontrar o Manuel; perguntou-lhe mesmo se ainda estava no hotel o Vicente... E a Justina, que era tão bem feitinha? Ah, o Espanhol já não era o mesmo! Era igualmente a opinião do Manuel. E tiveram ambos um bamboleamento saudoso de cabeça, deitando o olhar desanimado pela sala, como na muda contemplação de ruínas.
— Usted é que sabe — suspirou o Manuel — usted é que sabe!
O almoço foi longo, copioso, muito saboreado. E, com grande prazer de Artur, Melchior falou longamente de Lisboa. O que havia de melhor, segundo ele, era a bela rapaziada! Porque lá isso de soirées, bailes — histórias! No fim, para que se estava neste mundo? Para gozar, ter amigos alegres, um bom jantarzinho, uma pandegazinha, umas mulherzinhas de vez em quando. E para isso, não havia como Lisboa!
— O amigo verá! — exclamou, batendo no ombro de Artur.
Parecia simpatizar com ele; ao café, propôs-lhe mesmo que deixassem as excelências; o melhor era você cá, você lá, e liberdadezinha... Ele gostava de liberdade...
— Como todo o homem inteligente e que tem o espírito moderno — disse Artur, que procurava, com insistência, elevar o tom do diálogo.
— Não é lá de política que eu falo — acudiu Melchior, chupando o fundo do cálice de cognac — isso são histórias! O que eu digo é cá esta liberdadezinha! Uma cavaqueira com um bom amigo, uma comidazinha num hotel conhecido... bela rapaziada. O mais é parvoíce!
Artur, que a preocupação poética torturava, disse então, um pouco embaraçado, com um sorriso artificial:
— A propósito de liberdade... Se o meu amigo não acha maçada... queria que me desse a sua opinião sobre alguns versos... sobretudo uma Ode à Liberdade. Talvez não desgoste...
Melchior bebeu de um trago outro cálice de cognac e limpando precipitadamente os beiços:
— Às ordens!
E levantaram-se ambos.
Artur, ao subir para o quarto, sentia «cólicas». Ia, enfim, mostrar a sua literatura a um jornalista, a um crítico, a um lisboeta... Abriu o manuscrito com uma tremura nas mãos:
— Que tal lhe parece o título, Esmaltes e Jóias?
Melchior, que se sentara aos pés da cama, pesado do almoço, disse, agradado:
— Tem chic.
Artur procurou a folha, cuspilhou, e começou:

ODE À LIBERDADE

Ei-la que se ergue na colina santa
A Santa Liberdade.
Contempla o céu e desgrenhada canta:
Acorda, humanidade!

E seguia-se, no mesmo desenho estrófico, um longo monólogo da Liberdade: amaldiçoava os Reis, bendizia os povos; dizia-se «virgem imaculada, visão aérea, pomba da arca e bonina do vale»; prometia searas aos humildes, gargalheiras aos grandes; exaltava a túnica de Cristo e as algemas de Espártaco; e, brandindo no ar da manhã uma espada mística, terminava clamando:

A hora já soou, a Aurora vem...
Baqueia a realeza!
E já se ouve na cidade além,
Rugir a Marselhesa!

— Que lhe parece? — perguntou Artur, ainda ofegante de excitação declamatória.
— Está forte, está forte que tem diabo! — E Melchior, olhando-o quase com terror, acrescentou: — Safa, o amigo tem ideias muito exaltadas! É logo Comuna para a frente, hem? Irra!
— Mas se me dá licença, escapou-lhe aí uma cacofonia. É quando a Liberdade entra e diz que arrasta o manto... Ora leia.
Artur releu, inquieto; era uma das suas estrofes queridas:

Chamais-me, Cidadãos? Eu aqui estou:
Alas à Liberdade!
Nunca cauda mais pura se arrastou
Nas lajes da cidade?

— Aí está! — exclamou Melchior. — Cacofonia. Eu digo isto, o amigo desculpe. Mas vê, nunca cauda... ca-cau... cacau! Eu peço desculpa, mas às vezes são coisas que escapam! E aqui em Lisboa, a crítica começa logo a pegar! É muito severa, é de tremer! Começam logo a achincalhar; ca-cau, cacau do Brasil, chocolate... É o diabo! O amigo tenha paciência. São coisas em que é necessário muita cautela!
Artur estava escarlate; aquela cacofonia na sua ode envergonhava-o tanto como um piolho que lhe encontrassem na gola do fraque; riscou logo o verso com rancor. Aquilo, naturalmente, escapara-lhe ao copiar. E para se desforrar — quis ler a Rosa do Vale. Mas Melchior acudiu:
— Olhe que já se faz tarde para o Vitorino, veja lá! — E com um tom profundo: — E melhor irmos ao Vitorino!
Como lhe devia uma conta e o Vitorino se impacientava, Melchior aproveitava com júbilo aquela oportunidade de «o adoçar» levando-lhe um freguês rico — e ia pela rua, muito chegado a Artur, aconselhando-lhe despesas:
— Faça casaca, deve fazer casaca! Em Lisboa é essencial... E é a especialidade do Vitorino! — E apertando-lhe o braço, muito grave: — E sobrecasaca... É de rigor!
Subiram a um terceiro andar, e numa saleta com transparentes cor de oca na janela e raros cortes de pano numa prateleira envidraçada, o Vitorino, um magricela coxo, cor de limão, recebeu-os aos pulinhos sobre a muleta; havia um vago cheiro a refogado; num quarto próximo ouvia-se o rabujar de uma criança e o tiquetique de uma máquina de costura — que fez lembrar a Artur o estabelecimento triste do Serrão, o seu alfaiate de Oliveira. Desejaria ter ido a alguma casa célebre, com rimas de fazendas no chão, figurinos pelas mesas e altos espelhos nas paredes, mas dominado pela loquacidade do Vitorino, pelos conselhos entusiastas de Melchior, na vaga inércia mole que lhe dera o almoço e o sol cálido da rua, consentiu em encomendar uma casaca, uma sobrecasaca, calças, e um fato de mescla, sem entusiasmo, muito descontente com as fazendas; aludiu mesmo, mais por complacência com o Melchior do que por influência do seu antigo sonho, a um robe-de-chambre de trabalho, apertado por cordões de borla.
— Também se lhe faz, também se lhe faz — acudiu o Vitorino, excitado.
— De veludo — disse timidamente Artur.
— Cáspite! — exclamou o Melchior, curvando-se profundamente. — Que freguês, hem? Daquilo não pilhava o sô Vitorino todos os dias!
O Vitorino correra a buscar amostras de veludilho — quando, do quarto próximo, saiu uma mulher bem-feita e de pele muito branca, com uma criança estremunhada ao colo, toda rabugenta. Melchior abriu vivamente os braços com uma exclamação:
— Viva o fidalgo! Então como vai a D. Teresa? Como vai isso?
E precipitou-se a beijocar o pequerrucho, chamando-lhe seu caro amigo, fazendo-lhe beribau no beicinho, cócegas na barriguinha, roçando-se muito pela mãe.
— Tem estado com uma perrice — disse ela.
— Seu maroto, seu maroto — roncou Melchior com voz de papão. E mostrando-o a Artur: — Que beleza, hem? que beleza!
O pequeno, assustado dos bigodes de Melchior, recomeçou a berrar. O jornalista, muito servil, afagou-o, fez glou-glou com a língua, seguiu mesmo a mãe ao quarto, apalhaçando-se, e, daí a momentos, decerto para acalmar a criança, Artur ouviu-o repenicar a viola francesa, cantarolando um fado de pretos.
O Vitorino, diligente, ia tomando as medidas a Artur.
— É cá muito de casa, o Melchior! Grande cabeça! A calcinha larga em baixo, hem? — Sim, larga...
— Há-de ser servido a preceito.
Quando saíram, a D. Teresa veio até ao patamar; o pequeno sossegara, com duas grossas lágrimas nas pestanas. Melchior foi logo puxar-lhe as rosquinhas do pescoço, lambuzou-lhe a face de beijocas, chamando-lhe amor, príncipe; — depois, apertou longamente a mão ao Vitorino, falou-lhe ao ouvido, abraçou-o mesmo pela cinta.
— Grande gente! — dizia, descendo a escada.
— E a mulher não é feia — observou Artur.
— Trago-a de olho — disse Melchior.
Na Rua do Ouro pareceu espantado de serem já três horas.
— Que diabo! Tenho um rendez-vous às três e meia!
Não ocultou mesmo que era questão de fêmea... Mas custava-lhe largar o amigo Artur. Que bela manhã tinham passado, hem? Caramba, podiam fazer uma coisa! Ele vinha buscá-lo às cinco e iam ambos jantar ao Hotel Universal! Havia de ver que jantar! E que bela rapaziada! Valeu, hem? Às cinco!
Artur voltou logo para o hotel. A cacofonia na Ode à Liberdade, torturava-o desde manhã, e como esperava ler as outras poesias a Melchior, toda a tarde, curvado sobre o manuscrito, de lápis na mão — com a atenção esmiuçadora de um jardineiro sobre um canteiro de rosas — catou cacofonias nos versos.
Melchior, muito pontual, encontrou-o ainda trabalhando:
— Com os versinhos a contas, hem? Sentou-se pesadamente na cama e retorcendo os bigodes: — E que tal de mulheres, lá por Oliveira?
— Um horror!
— Pezinho descalço, cheirinho a suor! — E reclinando-se com satisfação: — Não deixa de ter seu cabimento...
Artur achou-o «grosseirão», mas sorriu para o lisonjear — e confessou que desejava ler-lhe a Rosa do Vale.
— Olhe que se faz tarde para o Universal! — exclamou logo Melchior, pondo-se de pé. — Arriscamo-nos a não achar lugar! No Universal é muito sério!
Deu uma penteadela rápida no cabelo, nos bigodes e olhando-se satisfeito ao espelho:
— Verá que rapaziada! Muito chic!
Artur lembrava-se das descrições do Rabecaz: decerto ia encontrar no Universal literatos, deputados, diplomatas, cantores, um mundo de civilização superior — e um pouco envergonhado do seu fraque preto, quis, ao menos, comprar luvas claras.
— Homem! — disse Melchior — também eu preciso de luvas!
Mas que ferro, tinha-lhe esquecido o dinheiro! Artur, imediatamente, antes de entrar na loja, ofereceu o seu porta-moedas aberto. Que diabo, entre rapazes...
— Você calha-me, Artur, você calha-me! — exclamou Melchior, com um ímpeto irreprimível de simpatia.
E ambos, de luvas claras, subiram o Chiado, de braço dado — decididos tacitamente a estimarem-se, ligados já por uma amizade nascente.

Tinha-se servido a sopa, quando entraram na sala do hotel. E no primeiro relance, o aspecto das mesas, com brilhos de vidros e de plaqués faiscando sob a luz crua dos lustres de gás, os ramos de flores fazendo centro à ordenação das sobremesas, as pessoas bem vestidas que julgava ilustres, as gravatas brancas dos criados, deram a Artur um vivo deslumbramento, imobilizaram-no junto da porta, um pouco embaraçado, passando, com um gesto errante, os dedos pelo bigode.
Mas Melchior, que se apossara de duas cadeiras ao pé de um sujeito pálido, chamava-o, muito alto:
— Para aqui, amigo Artur, ficamos aqui ao lado do Carvalhosa!
Ao adiantar-se, perturbado, com as palmas das mãos suadas, tropeçou num criado, que se voltou, furioso, e Melchior, imediatamente, apresentou-o ao Sr. Carvalhosa, o ilustre deputado.
— Eu conheci V. Exª em Coimbra — disse Artur com um esforço, corando.
Conhecera-o, quando Carvalhosa publicava meditações democráticas na Ideia, fazia discursos líricos no teatro académico e era ilustre por vícios que lhe tinham deixado para sempre, na face, uma amarelidão de héctico. No terceiro ano levara um R — e passara desde então a ser na Briosa o republicano mais ardente. Porém, nomeado deputado do Governo por influência de um tio, apresentado em Lisboa a Pares do Reino, introduzido em algumas casas onde recitava, entusiasmara-se pelas Instituições e concebera um respeito desmedido pela Monarquia. Tinha uma gula imensa da pasta da Marinha — e falava de papo sobre questões de política, à porta da Casa Havanesa, torcendo a ponta da pêra com os dedos queimados do cigarro. Era conhecido pelas suas imagens — safadas pelo uso de gerações, como velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI — e os jornais faziam sempre preceder o seu nome do adjectivo inspirado! Abaixou a cabeça a Artur e falou um momento a Melchior com condescendência, como do alto de uma nobre escadaria intelectual. Era da Província, vivia na Província e sentia-se bem, ao ouvi-lo, que os proprietários graves dos Arcos de Valdevez deviam dizer dele na Assembleia, com admiração e desconfiança: — Grande cabeça, mas muito poeta!
— Então deixou Coimbra? — perguntou ele a Artur.
— Há dois anos!
Melchior apressou-se a citar com verve:

Coimbra, terra de encantos
Do Mondego alegre flor...

Artur terminou Logo:

Venho pagar-te em meus cantos
Tributo de antigo amor!

E o Carvalhosa emendou:

Venho pagar-te em escarros
Tributo do meu rancor!

— Bravo! Bravo! — exclamou Melchior com ruído. — Essa é das boas!...
Aquele curto fragmento de diálogos, também pareceu a Artur muito fino, muito da Capital, e recostou-se na cadeira, com uma satisfação comovida. Toda a sua vaidade se dilatava ao sentir-se ali, a uma mesa rica, entre indivíduos que supunha personagens eminentes da Política, das Letras ou da Finança; todos os detalhes lhe agradavam — a luz forte do gás, os molhos, a atenção dos criados, os sifões — mas movia os braços com um cuidado acanhado, como se receasse quebrar alguma coisa, observando-se, impondo-se modos delicados. A sua alegria foi completa, quando um sujeito que estava a seu lado e no qual não reparara, se voltou para ele e lhe disse com amabilidade:
— Então, mais descansadinho da sua jornada?
Não o tinha reconhecido! Era o sujeito do vagão, que trazia um cãozinho no cesto. Falaram das fadigas do comboio, do cão, da chuva no Entroncamento. Então Melchior, reparando no diálogo, estendeu precipitadamente a mão por trás da cadeira de Artur, exclamando:
— Oh João Meirinho, desculpe, homem, não tinha dado por você!
— Lá vi, lá vi! — acudiu logo Meirinho, com o rosto nutrido, luzidio de reconhecimento. — Lá vi, muito boa noticia! Todos gostaram muito. E de amigo, é de amigo. — E indicando Artur: — Fomos companheiros de viagem.
Artur, lembrado agora da notícia que vira compor no «Século», ficou todo alvoroçado com a amizade daquele «ornamento do high-life», estimado em tantas capitais da Europa. Julgou delicado dizer-lhe:
— Eu tinha lido a notícia...
— Fazem-me o favor de me estimar — disse Meirinho, enternecido — fazem-me o favor de me estimar!
Tornou-se então muito afável com Artur; ofereceu-lhe da sua água Apollinaris para misturar com o vinho, deu-lhe notícias do cãozinho: tinha chegado óptimo, fazia o regalo das meninas! Era um amor!
Depois, falou de si. Havia muita verdade na local do «Século»: em geral era estimado, e a razão era esta: é que gostava de obsequiar! Não imaginava o Sr. Corvelo as encomendas que trouxera de Paris! Vivia em Paris, modestamente, porque não era rico... Bom Deus, longe disso! Mas vinha de dois em dois anos a Lisboa. Paris, que deliciosa terriola, não é verdade? Ah, tinha lá bons amigos! Até o duque de Grammont lhe dizia sempre: Merignô, vous êtes tout à fait des nôtres! Ah, lá isso, era estimado... Mas, no fim, este cantinho do nosso Portugal era muito apreciável. E depois, havia outra coisa: em Lisboa não sofria tanto de nevralgias...
Falava com uma voz baixa, afectuosa, acariciando a sua bela barba clara, com a mão bem tratada, onde reluzia um brilhante; tinha na sobrecasaca a roseta da comenda de Carlos III de Espanha. E era tão afável que, ao assado, já dizia a Artur: — meu prezado amigo, meu bom companheiro de viagem! Quis saber se ele vivia em Lisboa.
— Não? Ah, a província é muito apreciável... Há muita bondade na nossa província, muita bondade. Eu, por exemplo...
Interrompeu-se para responder a um sujeito de aspecto pomposo, belo rosto cor de cera e bigodes tão lustrosos que pareciam envernizados — que do outro lado da mesa lhe perguntava por que não fora na terça-feira a casa de D. Joana Coutinho:
— Não pude, meu bom Padilhão! A Srª Marquesa não consentiu, positivamente não consentiu. Tínhamos uma deliciosa partida de manilha...
Pediu então detalhes da soirée: D. Frederico ralhara muito ao whist? Tinha estado a divina Viscondessinha de Lordelo? E tu que fizeste, Padilhão?
O indivíduo alteou o peitilho lustroso e muito decotado:
— Na terça-feira passada? «Oboé» e «Emília das Neves». Gostaram muito.
— Conhece a D. Joana Coutinho? — perguntou Meirinho baixo a Artur.
— Não.
— Ah, pois era um salão adorável. Excelente música, lindas mulheres, dançava-se, recitava-se. Iam muitos estrangeiros. — Deliciosas terças-feiras — disse com beatitude, cerrando os olhos.
Sob a influência daquela intimidade e do jantar, Artur aclimatava-se; tinha mesmo perguntado, acentuando o seu desembaraço, a Carvalhosa:
— V. Exª não voltou a Coimbra?
— O forçado livre não revisita as galés — respondeu Carvalhosa secamente.
Artur procurou inutilmente uma frase pitoresca: não a achou, e, calado, começou a escutar aqui, além, curiosamente. As conversas interessavam-no prodigiosamente e nas palavras triviais, novas para ele, parecia entrever, sob as amplificações da imaginação, revelações de existências superiores. Uma discussão, ao alto da mesa, sobre a dissolução da Câmara, cheia de nomes de ministros e de citações de oradores, deu-lhe a admiração da Vida Política, grandiosa pelo domínio dos fortes, pitoresca pelas emoções da intriga e enobrecida pelos idealismos da eloquência. Sujeitos que falavam pesadamente de Bancos, letras, fundos, corretagens, interessaram-no pela Vida Financeira, onde se revolvem milhões e o génio dos Nucingens, como em Balzac, cria tesouros. Ao seu lado, uma questão sobre S. Carlos excitou o seu amor do teatro. Meirinho recomeçara a elogiar as terças-feiras de D. Joana Coutinho e a vida social aparecia-lhe, com todo o romance dos amores aristocráticos, acompanhada de árias ao piano, em salas espelhadas, onde se movia, graciosamente, a gentil senhora do vestido de xadrez! Que pouco tinha pensado nela, naquele primeiro deslumbramento que lhe dera Lisboa! Decerto, muitos daqueles homens a conheciam, mas eram quase todos de meia-idade, de figuras fatigadas, com interesses positivos, e não sentia ciúmes, na certeza de que nenhum a poderia interessar. E de todo aquele «cavaco» ruidoso se desprendia para ele o indefinido conjunto da vida de Lisboa, complexa, intensa, fortemente dramática — onde, como sobre um fundo luminoso, se destacava a figura delicada da senhora do vestido de xadrez, que adorava agora, naquela dilatação da sensibilidade que lhe dava a excitação do jantar.
Tinha-se servido o café e uma vozearia erguia-se no fumo alvadio dos charutos. Com os cotovelos na mesa, em atitudes pesadas de fartura, sujeitos falavam com intimidade; ao fundo da sala, numa altercação áspera, um indivíduo de lunetas gritava, perguntando se o tomavam por tolo; um homem de pele corada, enfartado, arrotava tranquilamente; o Padilhão queimava cognac no café, e o Melchior, excitado, discutia com o visconde, com palavras muito cruas, as pernas da Vizento, a primeira dançarina de S. Carlos.
Mas Meirinho erguera-se e indo bater no ombro de Melchior:
— Você quer vir cá a baixo ao quarto do Sarrotini? E mais cá o amigo! — acrescentou, dando palmadinhas no ombro de Artur.
— Pronto — exclamou Melchior. E de pé, puxando as calças, o charuto flamejante:
— E daqui para S. Carlos, hem, Artur? Vai dia cheio! –chamou o criado: — Dá a conta a este senhor, ó Vicente; depressa, hem? Bom jantarzinho. Meirinho!
Artur também achara o jantar excelente.
— Melhor que no Espanhol — acudiu Melchior — não é verdade? Você, Artur, o que devia era vir para cá, para o hotel. Aqui goza-se!
Meirinho disse com autoridade:
— E para quem se quer relacionar, nada melhor.
Artur já entrevira, com delícia, aquela possibilidade. E descendo para o quarto de Sarrotini, o tapete do corredor, o retinir de uma campainha eléctrica, um criado apressando-se com um tabuleiro onde tilintavam louças, o som distante de um piano, iam-no persuadindo tentadoramente. Que interessante seria, viver ali!
— Quem é o Sarrotini?
— É o segundo baixo de S. Carlos — disse Melchior. — Grande pândego! Abriram a porta do quarto, mas Melchior, avistando um sujeito de gaforina frisada, que fumava, languidamente estendido no sofá, não entrou: tinham de ir a S. Carlos, não se podiam demorar. Junto da porta, o Sarrotini, de jaquetão de veludilho sobre calças cor de alecrim, grosso e vermelho, abraçou Melchior, «el ilustre periodista»; apertou a cinta de Meirinho, «diletto amico»; deu um shake-hands apaixonado a Artur, falando um italiano misturado de espanhol, verboso e jovial.
Artur olhava curiosamente a saleta: várias pessoas conversavam animadamente, bebendo café; em torno das luzes de um piano aberto, havia uma imponderável névoa de fumo de charutos, e um sujeito de óculos de oiro preludiava, com o olhar errante no tecto; sobre uma mesa estava uma rabeca, livros de música enchiam uma poltrona, e de pé, com gestos vivos, um rapaz de fato claro, falava violentamente: discutia-se Arte — e Artur, entusiasmado, ouvia os nomes de Courbet, Corot, Delacroix...
Mas houve um chuta! E um moço pálido, de buço claro, aproximou-se do piano, ajeitou os cabelos para trás das orelhas com um gesto doce, falou baixo ao pianista de óculos de oiro, e cerrando os olhos, com a cabeça inclinada, os lábios entreabertos, cantou. Pela letra, Artur reconheceu ser o dueto de Romeu e Julieta: era uma melodia de uma adoração mística e contemplativa, e a voz do moço pálido subia, numa suplicação extática, ao dizer:

Ce n'est pas l'alouette.
Non, ce n'est pas le jour;
C'est le doux rossignol, confident de l'amour...

Artur escutava, encantado: parecia-lhe ver, no ritmo da música, dois braços trémulos elevarem-se dos degraus de uma escada de seda para um balcão gótico, de onde se debruça uma forma branca, enquanto o rouxinol canta nos maciços de um antigo jardim... Mas Melchior, fechando a porta, travou-lhe do braço e foi-o levando pelo corredor, ainda deslumbrado daquela soirée de Literatura e de Arte, tão rapidamente entrevista.
— Aquilo é que é passar noite — disse ele.
— O amigo devia vir cá para o hotel — disse Meirinho.
Melchior insistia, achava que era melhor. E Artur, com um vago sorriso, antevia soirées como aquela, cheias de conversas originais, escutando música, na preguiça enternecida das digestões ricas.
— Talvez não haja quarto — lembrou, já seduzido.
— Ora essa! — exclamou Meirinho. E como o guarda-livros passava assobiando, chamou-o logo, levou-o para um canto, e, como se tratasse um negócio grave, falou-lhe com animação: era um hóspede a mais; ele, o que queria, era que o hotel prosperasse, hem! E esperava que compreendessem que ele fazia tudo para chamar hóspedes... O guarda-livros tinha justamente, no terceiro andar, «um quartinho a calhar». E Melchior que se deleitava à ideia de vir jantar repetidamente com Artur, exclamou logo «que o deviam ir ver já, para dar o seu parecer...».
Era um quarto com estofos de reps azul e janela para a rua; a mobília, que à noite, à luz do gás, lhe parecia ter um tom rico, tentava-o. Mas a despesa! No entanto, pensava que era indispensável viver ali, para as suas relações literárias... Era mesmo hábil; depois, um artista devia estudar a vida, não nas suas nobrezas, mas no seu luxo.
— Tem por vizinha a Baretti, a segunda dama — disse o guarda-livros, piscando o olho.
— Rica mulher, caramba! — fez Melchior.
E Meirinho, tocando maliciosamente no braço de Artur:
— É o que lhe convém!
E aquela proximidade de uma cantora bonita, decidiu Artur definitivamente.
Meirinho que voltava para o quarto de Sarrotini, foi-os acompanhar até à escada. Parecia mais afeiçoado a Artur desde que Melchior lhe dissera rapidamente «que o rapaz herdara um fortunão do padrinho». Apertou-lhe extremosamente a mão, dizendo:
— E à mesa hei-de-lhe guardar um lugarzinho ao pé de mim. E para o que quiser, o meu forte é obsequiar... Hei-de levá-lo à casa de D. Joana Coutinho.
Artur fez-se vermelho de prazer. Já se lá via, numa soirée, num recanto menos alumiado, murmurando palavras poéticas junto ao rosto d'Ela, da senhora do vestido de xadrez, que sorria por trás do leque.
— Parece-me boa pessoa este Meirinho — disse ele na rua a Melchior.
O outro rosnou, soltando uma baforada de fumo:
— Espertalhão!
Considerava já Artur como seu e a influência nascente de Meirinho dava-lhe um descontentamento azedado.
— Grande espertalhão — acrescentou.
E começou a explicar por que não quisera entrar no quarto do Sarrotini: é que estava lá a besta do Guerreiro Mendes... Fazia-lhe mal aos nervos aquele animal!
Artur admirou-se: o Guerreiro Mendes? O autor da Margarida, um romance de uma paixão tão intensa, à Werther?
— É uma besta! — resumiu com tédio Melchior, que antes do jantar parecera a Artur tão cheio de bonomia, e que, agora, sob a acção do Colares e do cognac, tinha nas expressões e nas opiniões uma dureza irritada. — Aí tem você S. Carlos: chic, hem?
Levou-o logo à bilheteira a comprar duas cadeiras «do lado do Rei» — o diabo do Saavedra não largava a cadeira do «Século»! Em baixo, pediu ao «porteiro amigo», a quem bateu familiarmente no ombro, o binóculo do sô Mesquita; apagou o charuto meio fumado, que guardou a um canto, porque «os tempos não estavam para desperdícios» e tendo cofiado os bigodes — empurrou o batente verde.

Como escreveu, no dia seguinte, ao Rabecaz, Artur ficou deslumbrado com S. Carlos: «a majestosa arquitectura dos camarotes, a vastidão do palco, a soberba tribuna real e aquela sociedade elegante, silenciosa, escutando uma divina música, é realmente, amigo Rabecaz, impressionante!
Cantava-se a Africana, e o pano erguera-se para o segundo acto. Sentindo-se olhado, ao atravessar para a sua cadeira, Artur, atarantado, com todo o sangue na face, ia pisando sujeitos indignados.
— Oh, senhores! — exclamou alguém, torcendo-se furioso na cadeira.
Artur, aflito, nem pôde «pedir perdão», e imóvel na sua cadeira, com o chapéu nos joelhos, o espírito esmagado, pasmava para uma decoração de cárcere, onde uma dama gorda, cor de cobre, barbaramente ornada, junto a um catre onde um homem dormia, balançava, cantando, um leque de plumas. A sua voz cálida, revibrante nos agudos, lasciva nas modulações doces, deu-lhe um arrepio de emoção.
— É a Sassi — disse-lhe baixo Melchior. — Que lhe parece o teatro?
Artur fez apenas um movimento admirativo com as sobrancelhas. Como Melchior disse depois, «durante todo o acto esteve embatocado». Os personagens, com os seus gestos melodramáticos, pareciam-lhe mover-se vagamente na instrumentação substancial e maciça, como numa atmosfera sonora de sonho. Olhava a decoração, as passadas selvagens de Nelusko, as duas colunas do proscénio, tocadas de alto a baixo de um vivo de luz, os camarotes que lhe pareciam muito distantes, a palidez dos rostos sob a luz do gás, e sentia-se envolvido numa harmonia magnífica e incompreensível, em que por vezes seguia, durante um momento, melodias delicadas que o tumulto da instrumentação bem depressa absorvia. A magnificência orquestral, junto à riqueza social que sentia em redor, davam-lhe uma vaga opressão. Quando o pano desceu, respirou com alivio.
— Vamos ver o gado! — disse logo Melchior, erguendo-se. Saudou em redor com a mão: — Olé, visconde! Viva, amigo Silva! — e depois de examinar rapidamente os camarotes, declarou com desdém que não estava ninguém decente — e que ia acabar o charutinho.
Intimidado pelo sussurro de vozes que se levantara na plateia, Artur não se mexeu. Os seus olhos saciavam-se dos detalhes, sofregamente. E da alta disposição dos camarotes, de um tom rico e escuro, do lustre com fulgurações de pingentes, pondo na tonalidade sombria relevos claros de envernizados brancos e de doirados, da gravidade monárquica da tribuna, desdobrando a sua cortina de veludo cor de cereja entre as cariátides hercúleas, dos Reis, das toilettes, das casacas dos homens, desprendia-se como que a evidência da grandeza da Capital e da magnificência da Monarquia. As mulheres, sobretudo, impressionavam-no: na compostura dos seus movimentos, na brancura dos seus pescoços, sentia a influência das genealogias que as enobreciam e dos palacetes que habitavam, admirou as luvas de oito botões e as formas dos penteados; desejava saber o que diziam, por que sorriam. Estaria Ela? Procurou-a até às torrinhas, com o binóculo. Não a viu — e invadiu-o uma vaga melancolia. O jantar pesava-lhe, o calor amolecia-o. Nas filas clareadas de fauteuils, reparava agora em homens, de cabelo lustroso e bem cortado, com peitilhos resplandecentes, em atitudes lânguidas. O seu fato coçado separava-o daquela sociedade bem vestida, com ruge-ruge de sedas e gravatas brancas: havia em todas aquelas pessoas a afinidade de uma frequentação permanente, conheciam-se, sabiam, uns dos outros, os sentimentos, as fortunas, o timbre da voz, os parentescos; sentia-se vagamente um intruso: desejou ser titular — e que o Vitorino lhe mandasse depressa a casaca! Depois, pressentia naquela sociedade, instintivamente, uma indiferença pela Arte, pela Poesia, pelo Génio; havia nas maneiras alguma coisa de fictício, incompatível com a preocupação do Ideal, nas conversas, o que quer que fosse de ligeiro, que denunciava a trivialidade das ideias. Parecia-lhe agora que o seu livro, os Esmaltes e Jóias, todas as suas poesias, o seu drama, não seriam bastantes para interessar aquelas indiferenças — como, ai! o seu dinheiro era insuficiente para igualar aquelas elegâncias. Veio-lhe uma vaga melancolia, pelas excelências do seu coração desconhecido e as cintilações do seu talento inédito. E triste, com a desconsolação de se sentir mal vestido, de ser obscuro, tímido, olhava para o braço do rabecão, apoiado à grade da orquestra, pensando no seu quarto em Oliveira de Azeméis, nas noites vibrantes de trabalho, em tantas aspirações de então, que a presença de uma burguesia rica, próspera e aparentada, lhe fazia agora parecer irrealizáveis. E lembrava-se de Oliveira de Azeméis, como de um elemento natural em que não contrastava.
Mas os músicos, saindo debaixo do palco, instalavam-se e afinações de rabeca comam na orquestra: o público voltava e o pano, erguendo-se devagar, descobriu um galeão arrogante e decorativo.
Soldados com mosquetes passeavam no castelo da proa. Num cubículo baixo, um fidalgo, de gibão de veludo e gorro de plumas, media com um compasso, sobre um mapa; e cercada de comparsas de faces avelhentadas e gastas, uma dama gorda cantava, sentada numa postura de sarau.
A desafinação dos coros irritava os diletantes: havia ohs! de escárnio. «Que escândalo! rosnava-se grossamente, com indignação. «Ih! Jesus!», gania-se com arrepios. Melchior, afectando um horror de crítico, tapava os ouvidos. A dama corava, empalidecia, via-se-lhe um suor aflito — e não tirava de sobre o seio bojudo a mãozinha papuda. Mas uma sineta deu um toque melancólico, e soldados e marinheiros começaram, num canto largo, a orar a S. Domingos. Então, tacões patearam; um sujeito, ao lado, soltou uma brutalidade irritada. Melchior voltava-se para os lados, acusando o ensaiador, a empresa, o Governo, e acabou por se enterrar na cadeira, numa resignação sombria.
— Isto nem é S. Carlos, nem é nada! É uma choldra!
No entanto, Nelusko, aparecendo junto ao mastro, à proa, soltava, numa grande atitude, o seu Alerta!

Alerta marinari
Il vento cangia...

Apitos de manobra silvaram e na orquestra passaram os rumores grandiosos de um mar desencadeado, que brama sob a cerração temerosa.
Artur, entusiasmado, achava-se em plena História Trágico-Marítima. O período das Descobertas, que só conhecia por fragmentos, sempre tivera para ele uma poesia emocionante, e a antiquada estrutura do galeão, as plumas dos fidalgos, o farol primitivo no castelo de proa, atirando a primeira luz às águas virginais, davam-lhe visões de navegações heróicas: parecia-lhe ver as caravelas do Gama, passando o Cabo; sentia a oração dos homens, com um grande medo no coração; ouvia o brado do mar, dando em vão nos pene dos; os gritos que passam no ar e são a alma errante dos mortos naufragados... e aquelas imaginações da arte exaltavam-no retrospectivamente pelas realidades da história.
— Magnífico, Melchior! — disse baixo.
O outro acotovelou-o:
— Veja-me agora isto.
Era Nelusko, que, entre a marinhagem apavorada, com gestos temerosos e cavidades na voz, cantava a cólera do Adamastor. Palmas estalaram, houve gritos de bis! O ruído dos aplausos electrizou Artur; invejou a glória dos maestros. Nelusko, com o suor luzidio sobre a face acobreada, agradecia, curvado, e a respiração ofegante erguia-lhe sobre o peito os colares de contas, barbaramente coloridos.
Mas o tenor, depois, desagradou: um murmúrio hostil correu nos fauteuils. — E quando, entre tiros de arcabuzes, o pano desceu, Melchior agarrou o chapéu:
— Ora sebo para esta Africana! Vamos a um cigarrinho lá fora.
Artur seguiu-o. Estava vagamente fatigado da atmosfera sobrecarregada das respirações, do gás, da admiração, do Colares. Aquela música forte, ressoando-lhe muito perto dos ouvidos, atordoara-o; não encontrara nela a sensação fina que lhe davam as melodias que conhecia, da Lúcia, da Sonâmbula, que lhe espiritualizavam o cérebro e traziam às suas ideias, na alegria ou na melancolia, um ritmo cantante.
E no pequeno patamar de pedra, em cima, junto ao bico de gás, fumava calado, ao pé de Melchior, com um amolecimento de todos os músculos, um vago bocejo geral.
Um sujeito que descia das ordens superiores embrulhando um cigarro, pediu-lhe «o favor do seu lume». A sua cabeleira, que parecia estopa negra, saía fora da aba do chapéu; era baixo, seco, com uma face trigueira e rapada de seminarista; usava lunetas azuis e a gravata de fustão com pintas brancas caía-lhe, num laço fofo, sobre a sobrecasaca estreita, apertada até acima.
Acendeu o cigarro e agradeceu cortesmente.
— Olha que melro! — rosnou Melchior.
— Quem é?
— O Jácome Nazareno, um republicano da súcia do Matias, um malandro!
Artur quis vê-lo melhor, mas o homem já desaparecera entre a multidão escura dos chapéus altos, que ao fundo dos degraus de pedra se movia num rumor pesado, de onde saía uma espessa fumarada de cigarros.
O Melchior, que parecia detestá-lo e temê-lo, explicava que era um desses meninos que tramavam contra o Rei, contra os fidalgos e que queriam a Comuna.
— Que está você para aí a falar de Comuna, seu Melchior? — disse, parando, um indivíduo alto, de peito côncavo, nariz afilado, que trazia a gola do paletot erguida e tossia secamente.
— Olá, Inglês — fez o Melchior — por aqui? Está cá a pequena?
O sujeito tossiu, cuspilhou:
— Está lá em cima com a Lola. — A sua voz rouca parecia difícil, de respiração escassa; os lábios entreabertos, anémicos, mostravam os dentes mal tratados.
— E como vai isso? — perguntou Melchior.
O outro encolheu os ombros, com um jeito triste dos beiços.
— Menos Vénus! Menos Vénus! — exclamou Melchior, chalaceando.
— Seu gajo — fez o outro, dando-lhe uma palmadinha no estômago, com um tom canalha.
E curvado, tossindo, subiu devagar para os camarotes.
— Está com a Concha — disse logo Melchior — uma beleza, menino, a melhor espanhola que tem vindo a Lisboa. Que ele, está aqui, está na cova! Mas a Concha! — E muito entusiasmado: — Vamos a ver se a pescamos!
Entraram. Melchior, de pé, explorava as torrinhas com o binóculo: queria que Artur a visse! Era de endoidecer, uns modos de duquesa, uns olhos, uma cintura!
Mas não a descobriu — e o pano ergueu-se.
No palco, finas arquitecturas ornadas de monstros quiméricos e de ídolos hieráticos, entre palmeiras cor de bronze e florescências sanguíneas de cactos, esbatiam-se numa pulverização de luz abrasada, como uma névoa imponderável de oiro faiscante.
Pausadas teorias de sacerdotes com barbas de estopa entravam lentamente, magros guerreiros corriam com gestos desengonçados, e as bayaderas, as carpideiras, formavam um bailado, que ora parecia um rito nupcial, ora um cerimonial funerário: cambraietas esvoaçavam misturando o negro e o branco, discos de metal retinham, e a instrumentação, o canto, tinham gravidades de santuário e molezas de serralho.
Em redor, com risadinhas, comentavam-se as dançarinas: havia exames lúbricos de pernas e de quadris, e Artur impacientava-se com aquelas relices de luxúria, cortando sujamente a eloquência da orquestra.
Escutava, imóvel, com a pele arrepiada de admiração, devorando a decoração ardente, o girar das bailarinas, e vinham-lhe pensamentos, reminiscências, sentimentalidades vagas, logo dispersas pelas rajadas da instrumentação. Todo o seu ser, levado nas massas de harmonia, vibrava das emoções que elas continham; os seus ombros vergaram-se quase num movimento de adoração, ao aparecer de Celina, triunfal, no seu palkê refulgente de pedrarias, sob dosséis de plumas. Teve o mesmo êxtase que Vasco da Gama, ao penetrar num recanto de bosque sagrado, em que os aromas têm uma sensualidade venenosa, gorjeios raros erram numa flora flamejante e águas brandas gotejam de taças de jaspe; as largas frases de Nelusko encheram-lhe o peito do sopro das paixões grandiosas; sentiu, com o dueto, todas as febres de um amor asiático e mortal e quando, aos cantos suaves do galeão que se afasta, o pano desceu, ficou como que esmagado, com um cansaço de alma, piscando os olhos ainda cheios dos deslumbramentos da decoração, trémulo de todas as sensações sobrenaturais que percorrera.
Melchior, esse, estava desesperado com o tenor, tinha vontade de lhe dar uma desanda... Um sujeito com tons oleosos na pele e um raminho de alecrim no fraque, quis aplacá-lo: era tão bom rapaz, o tenor...
— Eu não lhe vou às ceias, eu não lhe vou às ceias — interrompeu Melchior irritado, saindo.
— Olha o asno do Melchior — disse o sujeito olhando em redor, atónito. — Forte asno! Que quer ele?
E ia seguindo, ao comprido das cadeiras, com grandes gestos, explicando aos que o interrogavam sobre a sua cólera:
— É o asno do Melchior! Que quer ele? Forte asno!
Artur examinava preguiçosamente os camarotes, quando, de repente, na primeira ordem à esquerda, a viu, a Ela, à senhora do vestido de xadrez! Que surpresa! O binóculo tremia-lhe na mão. Estava com outras senhoras, uma delas, de idade, de luneta de oiro, e decerto, até aí, se conservara no fundo do camarote. Com as costas para o palco, voltava o rosto levemente, olhando em baixo a plateia: Artur reparou no seu vestido, escuro, cor de vinho; a luz contornava docemente a adorável redondeza do ombro e a manga punha-lhe em redor do cotovelo um fofo de rendas brancas; com a mão nua onde reluziam anéis, batia no veludo do rebordo, devagar, distraidamente, como num teclado de piano. Toda a fadiga, toda a melancolia de Artur desapareceram. As coisas ambientes adquiriram um encanto inesperado: uma luz mais viva saía do lustre; já se não sentia isolado nem obscuro! Ela decerto se lembraria, repetiria o doce olhar da estação de Ovar. Esse olhar, queria atraí-lo: fitava-a com intensidade, com magnetismo; tinha vontade de bater as palmas, soltar um grito. Empurrou violentamente uma cadeira: ao lado um velhote que dormitava, encarou-o, estremunhado, com uns olhinhos subitamente arregalados. Sentou-se então, desesperado. Ela agora falava para o fundo do camarote e ele via o seu catogan, onde reluzia alguma coisa de vermelho, flor ou enfeite.
Tinham suprimido o dueto das damas — e o pano ergueu-se, mostrando a negra mancenilheira, numa praia áspera, junto a um mar triste, por uma noite de Lua cheia. As rabecas, em uníssono, romperam os 16 compassos.
Aquela harmonia, que lhe pareceu sobrenatural, mística, imobilizou-o: invadia-o uma sensação estranha, como se os arcos das rabecas lhe tocassem sobre os nervos. Ela, agora, olhava para o palco com o binóculo de marfim, e aquela música, que ora parecia a Artur a expressão do vento e do mar numa região desolada, ora o queixume transcendente de uma grande alma ferida, dava-lhe um delírio de amor poético: todo o seu ser sensível se lançava, numa necessidade de adoração, para aquele camarote da primeira ordem; desfalecia à esperança de lhe beijar as mãos; quereria saber-lhe o nome; decidia imortalizá-la num poema e a sua alma estendia-se pelas longas arcadas das rabecas, toda desfalecida de paixão e dolorida de saudade. Celina, entrando lugubremente sob os seus longos creps, reteve-lhe o olhar um momento. Quando se voltou, o camarote estava vazio e um sujeito de casaca, que se adiantara, sentou-se no lugar d'Ela, bocejou discretamente e ficou imóvel com a cabeça apoiada ao tabique, catando os pêlos do bigode...
E Melchior não voltara, e ele não pudera saber quem Ela era!
Todo o encanto do teatro desapareceu e o canto de Celina, a instrumentação, pareceram-lhe muito distantes, recuados infinitamente para um fundo vago e luminoso.
Um sujeito tocou-lhe no braço:
— Olhe que o chamam.
Era Melchior que da portinha lhe fazia gestos impacientes. Tinha de ir à redacção, estava-se a fazer tarde... Estivera no palco, ao cavaco.
Saíram. Os trens punham no largo escuro fileiras de luzes avermelhadas ou pálidas; grupos recolhiam, onde se destacavam as capas brancas das senhoras. No céu, muito negro, havia uma cintilação de estrelas. Melchior assobiava os 16 compassos e Artur, ao pé, calado, com a gola do paletot erguida, ia pensando em coisas vagas que faria para revelar o seu talento, conhecê-la a Ela, falar-lhe, ser ilustre como Meyerbeer, bem-vestido como o visconde. Reminiscências das melodias do bailado passavam-lhe no cérebro, via a Lua cheia luzir sobre o mar triste, por trás da mancenilheira...
— Então, gostou-se, hem? — perguntou Melchior.
— Se lhe parece!
Na saleta da redacção, sob o bico de gás, um sujeito de barba grisalha revia as provas. Ergueu os óculos para a testa, fixou Artur, rosnou um olá e depois de tomar uma pitada:
— Há mais alguma coisa a mandar, Melchior?
Melchior pareceu ter uma ideia, olhou Artur, sorriu, e sentando-se com o chapéu para a nuca, molhou a pena, meditou com os cotovelos na mesa, os olhos cerrados, cofiando o bigode com a mão gorda e trémula: escreveu, riscou, entrelinhou e por fim, depois de pigarrear:
— Ora oiça lá, Artur. Leu: «Chegou à Capital e acha-se hospedado no Hotel Universal, o nosso amigo e esperançoso poeta Artur Corvelo» — Artur fez-se escarlate — «que brevemente vai publicar o seu formoso livro Esmaltes e Jóias. Alguns dos trechos que ouvimos farão por certo sensação». — Hem?
Artur, com a voz tomada, bateu apenas no ombro de Melchior repetidamente:
— Obrigado, obrigado!
O revisor olhava-o pelo canto do olho, cinicamente.
Daí a pouco, na tipóia que batia a trote para o Espanhol, Artur resumia o seu dia. Fora maravilhoso: fizera fato, jantara no Universal, conhecera deputados, o baixo Sarrotini, o bom Meirinho, vira-a — a Ela — tão linda no luxo da ópera, entre as harmonias divinas da Africana, e finalmente, pela local, entrava na celebridade! Sentia-se agora em Lisboa como no seu elemento natural; a vida ser-lhe-ia fácil, sem abalos, luminosa: os Esmaltes e Jóias torná-lo-iam ilustre; pelo Meirinho conhecê-la-ia, a Ela — amar-se-iam; teria outros dias divinos, com bons jantares, uma ópera escutada de casaca nas cadeiras, e Ela, do camarote, sorrir-lhe-ia de um modo disfarçado e lânguido. A tipóia parou.
— Quanto é?
O cocheiro saltou da almofada:
— O que V. Exª quiser.
Artur, num movimento de generosidade, de reconhecimento supersticioso ao destino, deu-lhe dez tostões.
— Muito agradecido a V. Exª, Sr. Marquês!
No seu quarto, foi direito ao espelho: achou-se bonito, com um ar próspero. Espreguiçou-se, numa voluptuosa confiança na vida. E daí a pouco, sonhava que passeava com Ela, num bosque sagrado, junto de um templo índio: dos tamarindos em flor vinha o cheiro forte do pêlo fulvo das feras; um faquir, nu, descarnado, anquilosado, contemplava filosoficamente o umbigo e tigres familiares rondavam, com a língua pendente e vermelha, como pedaços de sangue coalhado.


Capítulo IV

Ao outro dia instalou-se no Hotel Universal. Arrumou a sua escassa roupa branca na cómoda, pôs na jardineira, que cobria um velho pano de pelúcia, o caderno de papel branco, e penas novas, — e junto da janela aberta, enterrado numa poltrona, de molas rangentes, saturou-se das sensações do luxo ambiente que lhe davam os reps azuis, o espelho grande, os cortinados da cama, — o Chiado em baixo, com o seu movimento de rua rica: e aqueles confortos, traziam-lhe, como um enobrecimento da sua personalidade.
Tinha às vezes uns indefinidos remorsos, pensando na pobreza em que as tias viviam; mas, que diabo, não era com o dinheiro delas que ele se regalava de bons jantares e pagava aquele quarto caro. E depois, esse luxo era-lhe necessário para a sua profissão literária, como um meio de reclamo e de estudo social. Sentia-se, todavia, um pouco só. Meirinho fora para o Porto, Melchior não aparecia e Artur não tinha voltado à redacção, porque, julgando-se conhecido desde que fora publicada a local do «Século», não queria mostrar-se sem o seu fato novo. Ocupou-se então em completar os Esmaltes e Jóias: tinha um plano de poesias novas, suscitado pela impressão que lhe fizera Lisboa — a Nova Babilónia, e o Galeão, em que queria versificar os vagos entusiasmos do tempo das Viagens e das Descobertas, inspirados pela música da Africana. Mas estava «sem veia». As comidas davam-lhe um lânguido bem-estar enfartado que lhe entorpecia a imaginação, e o rumor do Chiado, a vaga sussurração da cidade, traziam-no numa distracção enleada. Com a janela aberta ao dia esplêndido de um Inverno luminoso, fumava, cismando em passeios, soirées a que assistiria, futuras críticas dos Esmaltes e Jóias, aplausos de teatro, gravatas que ambicionava — e com preguiça de trabalhar no seu livro, ficava-se a contemplar, numa vaga e distante fulguração, a celebridade que ele lhe traria.
Por esse tempo recebeu uma carta do Rabecaz que o exaltou: a notícia do «Século» — de que ele remetera para Oliveira seis exemplares — tinha feito sensação na vila. Ao que parecia, aqueles mesmos que nunca lhe tinham falado, afirmavam agora ter-lhe sempre compreendido o génio e antevisto os altos destinos. O Vasco da botica lia a local a todos os fregueses «para que soubessem que espécie de homem era o seu ajudante». O Carneiro gabara-se na Assembleia de que lhe administrava a fortuna. «E eu» — concluía o Rabecaz — «que conheço Lisboa e a rapaziada, todos os dias digo bem alto a esta cambada, que você, e é a minha convicção, vai a ministro!»
Como se aquela glória parcial de Oliveira tivesse saciado por algum tempo a sua gula de celebridade, abandonou todo o trabalho. O Vitorino, muito instado, urgido, mandara o fato; tinha comprado uma boquilha de espuma que representava uma cabeça de cocotte, e, como um cavaleiro impaciente de usar as suas armas, envergou a sobrecasaca nova, e começou «a gozar a rua». A sua vida tinha agora grandes doçuras: o seu melhor momento era, depois do almoço, quando se encostava à janela, a fumar o seu charuto: os dias estavam muito claros, com um pó doirado de luz; no Chiado, os pregões cantavam, os trens rolavam, e ele, no indolente entorpecimento da omeleta e do bife, olhava do alto, com a pupila húmida de bem-estar, a vida em baixo reinar, mover-se, e atirava para o céu luminoso baforadas brancas do charuto caro. Depois, vestia-se com cuidado, encharcava-se de água-de-colónia, e, de luvas claras, ficava um momento à porta do hotel, saboreando a entrada larga, o guarda-portão decorativo; em seguida, ia à Casa Havanesa florir-se com uma camélia, e de boquilha em riste, fazendo vergar a badine, descia o Chiado, errava pela Baixa, dava uma volta no Aterro, numa moleza de vadiagem, procurando encontrá-la, a Ela. Mas todas as mulheres novas lha faziam esquecer, voltar-se, com a esperança indefinida de que ia ser amado por esta ou por aquela, impressionadas pela sua figura, pela sua sobrecasaca azul e pela local do «Século». Dava um olhar distraído às vitrinas dos livreiros — sentindo sempre, por um momento, o desejo agudo de produzir, ver-se impresso: voltavam-lhe então vagos desejos de celebridade literária, mas o rodar de uma carruagem de libré, os cortes de seda numa montra, dispersavam-lhos subitamente — e abandonava-se às ambições indefinidas que o agitavam agora, de frequentações ilustres, amores fidalgos, assinatura em S. Carlos e uma carruagem da Companhia. Depois, vinha de novo estacionar à porta da Casa Havanesa; e sentia um deleite indefinido em estar ali, imóvel, vendo em redor grupos de deputados, de janotas, de empregados, dilatando-se às emanações intelectuais e sociais que lhe pareciam sair das conversações, dos perfis, das atitudes. Era sempre com uma satisfação vaidosa que, ao ouvir, às seis horas, a sineta do jantar, ia descendo para o hotel: já a tarde caía e aquele crepúsculo de cidade, à hora que precede o gás, tinha para ele um tom rico, superior, interessante. Da escada do hotel até à mesa saboreava triunfozinhos — o cumprimento do guarda-livros, o pisar do tapete do corredor, o lustre aceso, os ramos de flores no meio das mesas, o sorriso polido do Padilhão, o adeusinho com dois dedos do Carvalhosa, o respeito dos criados de gravata branca. Comia com um apetite provinciano e os nomes franceses dos pratos, aumentavam-lhes o sabor.
Depois, farto, pesado, com uma vaga voluptuosidade, descia ao Martinho, olhando intensamente as mulheres que passavam, recebendo do movimento do Chiado uma vaga excitação.
No café, encontrava geralmente solitário, diante da sua chávena, o sujeito de cabeleira semelhante a estopa negra, o Jácome Nazareno — o malandro, como dizia Melchior. Artur olhava-o com insistência, imaginando-o chefe de sociedades secretas, temido do Rei, vigiado pela polícia; aquele homem, que julgava ser uma força social, cuja vida, decerto, se movia num perigo dramático incessante, atraía-o com uma simpatia crescente. Ia sentar-se a alguma mesa próxima e espreitava-o por trás de um jornal desdobrado. A sua atitude isolada, fria, muda, dava-lhe a ideia de planos secretos, de preparativos de revolta, que punham na vida de Lisboa um lado pitoresco, parisiense, de insurreição e de tragédia.
À noite, ia a S. Carlos. Tinha comprado um binóculo, e para gozar o cumprimento dos porteiros que já começavam a conhecê-lo, tomava sempre o mesmo lugar, do lado do Rei. De resto, encontrava às vezes o Saavedra e gostava de lhe apertar a mão publicamente. Depois, procurava-a, a Ela, pelos camarotes. Não a tornara a ver, mas o canto, as decorações, consolavam-no; todas as mulheres o impressionavam e amaria qualquer outra de quem recebesse um olhar como aquele que recebera da senhora do vestido de xadrez, na estação de Ovar; às vezes, acontecia que alguma senhora, num camarote próximo, atraída pelo seu binóculo insistente, reparava nele, fixando-o um momento com curiosidade: Artur exaltava-se logo, entrevendo encontros providenciais, uma paixão dramática, lágrimas, poemas; depois, não pensava mais nisso: ela não tornava a olhar — e ele refugiava-se de novo na preocupação da sua desconhecida, como se o amor fosse um complemento tão necessário à frequentação da ópera, como a casaca ou a flor na lapela.
Quando entrava, à noite, no seu quarto, vinha-lhe uma tristeza mole: a música, as luzes, a presença das senhoras, excitavam-lhe os nervos; o rolar dos trens, as janelas alumiadas do restaurante Silva, davam-lhe ideias de ceias, de rendez-vous nocturnos, e desconsolava-se da sua vida estéril, desejando amores fidalgos e orgias sonoras. Se tivesse um título! Se ao menos fosse camarista do Rei! E passeava pelo quarto, de casaca, retardando o momento de a despir, como se ela representasse a encarnação da vida social que o cativava.

Certa manhã, descendo tarde para o almoço, encontrou na sala de jantar o Meirinho, que de madrugada chegara do Porto. Viram-se com júbilo. Que tinha ele feito, o amigo Artur? Tinha visto o maganão do Melchior? Tinha-se divertido?
Artur queixou-se vagamente «de ter estado um bocado só»...
— Ah, mas agora estou eu! — exclamou Meirinho afectuosamente. Pareceu reparar com satisfação na toilette mais correcta de Artur. Afirmou-lhe «que estava um janota» — e julgando-o, decerto, bastante bem-vestido para se relacionar, aconselhou-lhe que se fizesse sócio do Grémio. E se ele quisesse levava-o a casa de D. Joana Coutinho! Ela teria muito gosto!
Artur fez-se rubro de alegria. E reconhecido, interessou-se pela jornada de Meirinho. Muito fatigado, decerto?...
— Derreado, amigo — disse Meirinho lamentosamente. Suspirou: — Já não estou para estes excessos! Já não estou! — Ficou um momento a olhar a parede, como se ali visse, num desenho claro, a representação das suas antigas forças, e disse, pousando delicadamente o talher: — Pois olhe que fui forte, menino!
Contou, então, proezas de vitalidade, que personagens ilustres tinham admirado: andar cinco dias de caminho-de-ferro, passar três noites em claro... E com um risinho lúbrico:
— E pior! pior!
Descreveu façanhas amorosas... Ah, bons tempos!
— Uma sombra do que fui, meu caro senhor! — E com um tom mais grave: — Em todo o caso, para prestar serviço a um amigo, ainda sou homem para andar um dia e uma noite...
Sorveu o fundo do café, limpou a barba e, erguendo-se, espreguiçou-se: mas pediu logo desculpa daquele abandono familiar — que enfim, entre amigos, entre patrícios...
— Que eu sou do Porto, sou da província...
Riu, sem motivo, com a pele em redor dos olhos muito franzida. Achou a Artur melhor cara.
— E o nosso bom Padilhão? Belo rapaz, hem? Venha fumar um charutinho cá acima ao meu quarto...
Estava alojado no segundo andar. O quarto, mais largo, melhor que o de Artur, tinha um arranjo minucioso. Havia, metido num vaso, um espanador de penas, com que ele mesmo perseguia o pó nas frinchas mais cerradas. Entalados no caixilho do espelho, tinha todos os cartões-de-visita das pessoas que o visitavam, como a exposição heráldica das suas relações, sobre a cómoda, dispostos em semicírculo, em passe-partouts de marfim, figurava a galeria dos seus entusiasmos: — a Rainha, sentada no peitoril de uma janela ornada de hera, a Imperatriz Eugénia, fazendo um rosto digno de viúva ilustre, Mademoiselle Theo, das Bouffes, com um sinal assassino, quase na ponta do seio esquerdo, Pio IX, com o seu sorriso quente de pontífice amável, Paulo de Kock, de peliça, Vítor Emanuel, com a sua face de buldogue heróico — e sobre o toucador, uma pregadeira bordada a matiz ostentava um rótulo, como um objecto de museu: — oferecido no meu dia natalício pela nobre Marquesa de Folhes.
Meirinho tinha-se estendido languidamente na poltrona e olhava com satisfação os seus chinelos bordados a missanga. Pela vidraça aberta, uma aragem enfunava os reps das bambinelas; defronte, numa janela de peitoril, uma criada sacudia um tapete e os ruídos da rua tinham uma tonalidade alegre, na manhã muito luminosa.
— Como estará o cãozinho! — disse Meirinho com um sorriso comovido. Pediu licença a Artur para se tornar a espreguiçar, e olhando-o, batendo as pálpebras: — Está— me a chegar a soneca. Quem lhe fez a sobrecasaca? está bem boa.
Artur mirou-se no espelho: parecia-lhe boa, hem?
— Muito boa! — E fitando-o gravemente, como numa resolução profunda: — Mas rica obra vou-lhe eu mostrar!
Levantou-se com esforço e foi tirar do guarda-roupa atulhado um paletot leve, cor de café, com bandas de seda. Expô-lo à luz da janela, e muito sério:
— Que me diz a esta riqueza?
Artur soprou o fumo do charuto para o lado:
— Muito bonito!
— Hem? Pois posso ceder-lho.
Artur, embaraçado, disse:
— Não, não...
— Posso ceder-lho! Palavra! — insistiu Meirinho. — E pelo preço, com franqueza!
Nunca o pus. Não me tenho atrevido, é muito claro para a minha idade! Vista-o, vista-o!
Ele mesmo lho enfiou rapidamente, com uma destreza serviçal de criado fino, assentou-lho nas costas, esticou-o — e levando-o diante de um espelho:
— Parece um príncipe! Hem, que chic? Foi feito para si, com certeza! Fique com ele, com franqueza... Cinco libras. É de graça. É de Paris, de um grande estabelecimento. Aqui não lho faziam.
Artur, tentado pelo paletot e para condescender com o Meirinho, aceitava, corando, quando ele, com um gesto da mão espalmada:
— Perdão, podemos fazer outra coisa.
Foi à cómoda e trouxe solenemente uma pequena caixa de marroquim verde; e com uma lentidão grave:
— Meu caro senhor, vai ver uma preciosidade!
Era um par de pistolas, muito reluzentes, num fundo de veludilho preto.
— Hem? Um primor.
Fez jogar os fechos, colocou-se em atitude de duelo, depois em posição de suicídio. — Que era para rir, ele não se queria matar: o homem que atentava contra a própria vida, era um ateu! Já ouvira essa opinião a pessoas muito instruídas — era um ateu! Depois, fez pontaria aqui, além; explicou a justeza do tiro... Nenhum rapaz elegante podia estar sem um par de pistolas. Em Lisboa era mesmo malvisto! Dava chic num toucador. O conde de Lambertini, o Alonso, Paulo de Cassagnac, Espeleta, todos os grandes atiradores de Paris tinham daquelas pistolas! O preço era prodigioso: cinco libras! Talvez não acreditasse, bem lhe via nos olhos que não acreditava. Pois era verdade, e a coisa explicava-se...
Mas não a explicou: pôs-lhe a caixa na mão, dizendo:
— Não falemos mais nisso. O paletot, o par de pistolas — dez libras. Que achado, hem? Mas enfim, fomos companheiros de viagem, vivemos no mesmo hotel, somos patrícios... Ora aí está!
Artur, corando, disse que não tinha ali no bolso...
— Tolice! — interrompeu Meirinho, com um grande gesto. — Logo, amanhã, quando quiser...
Espreguiçou-se: positivamente ia fazer a soneca, que a viagem fora maçadora. Ah, tinha-se lembrado dele...
— Quando nós trouxemos o cãozinho, porque o amigo ajudou-me: eu disse-o à Srª Marquesa de Folhes. — Sorriu na sua bela barba clara. — Como estará ele, o amor!
– Bocejou enormemente: — Pois positivamente vou à soneca.
E Artur, saindo com o paletot no braço e a caixa de pistolas na mão, ouviu-o ainda do corredor cantarolando melancolicamente:

Si tu n'avais rien a me dire
Pourquoi venir auprès de moi!...

Aquela despesa inesperada contrariou Artur. Já por vezes lhe tinham vindo inquietações de dinheiro... As libras iam-se, iam-se! Estava em Lisboa havia quinze dias e já gastara cinquenta libras! Em quê, Santo Deus? Pôs-se a escrever as despesas que recordava — o fato, o chapéu, a boquilha! Mas quê! faltavam dezoito, vinte libras talvez. Aterrou-se, quis recordar quantas cadeiras em S. Carlos, quantas luvas, quantas tipóias... Confundiu-se, atirou a pena, impaciente, irritado contra a brutal evidência dos números. Decidiu-se, então, a uma economia cautelosa...
Mas apenas na rua, sentia-se logo fraco, sem resistência contra as tentaçõezinhas, as pequenas vaidades: comprava «mais» um par de luvas, tomava em S. Carlos uma «cadeira», em lugar de uma «geral», decidindo sempre que seria a última vez. Desde que fora com Melchior ao Mata comer ostras, tomara o hábito daquela ceia, e para não perder a consideração do criado, apesar dos seus remorsos bebia um Sauternes caro e dava dois tostões de gorjeta. Justificava-se vagamente, pensando que a publicação dos Esmaltes e Jóias, a representação dos Amores de Poeta, encheriam de novo os cartuchinhos de libras que tinha no fundo do baú, alguns já com o papel vazio e amarrotado.
A conta do hotel que lhe foi apresentada por esses dias, decidiu-o a ir falar com Melchior para a impressão imediata do volume. Queria-se mesmo mal por aqueles remansos ociosos, gastos na rua: o drama, representado, dar-lhe-ia todas as noites seis ou sete libras e via já o seu retrato vendido nas lojas, os folhetins cheios da sua biografia. Já àquela hora poderia ter os seus recursos regularizados, ser conhecido d'Ela! E numa súbita impaciência, foi à redacção do «Século».
No começo da Rua do Correio, porém, encontrou Melchior. Vinha com um indivíduo baixo e cheio, de barba preta, fina, a carne mole e baça, as pálpebras inflamadas; a fita do chapéu era gordurosa e o colarinho parecia enxovalhado de roçar no pescoço gordinho; sobre o peito do jaquetão abotoado, pendia um pince-nez enorme de vidros defumados, preso por uma larga fita de moiré. Era o poeta Roma, autor estimado dos Idílios e Devaneios. Teve apenas para Artur um movimento seco de cabeça. E quando Melchior lhe disse que o amigo Artur estivera em Coimbra, teve um sorrisinho franzido, um pouco fungado, e em toda a sua pessoa roliça uma reserva mole. Parecia constipado e de vez em quando ajeitava as calças para cima, com um gesto torpe.
— Ideias muito exaltadas cá o amigo! — disse Melchior, batendo no ombro de Artur.
— Esperemos que não nos venha fuzilar! — acudiu o Roma. Quando falava, torcia ligeiramente a boca.
Artur fez-se escarlate. E constrangido pelo aspecto do Roma, disse a Melchior «que ia ali ao Correio», perguntando «quando se poderiam encontrar»?
— Homem, não se incomode, vou jantar com você. Às seis, hem?
Artur sentiu o Roma dar uma risadinha, ao travar o braço de Melchior. Voltou-se e o poeta, pelas costas, pareceu-lhe mais odioso ainda, com os quadris gordos, as calças esfiadas atrás, a cabeleira seca, cobrindo um cachaço espesso.

Melchior foi pontual, e logo da porta, deitando o chapéu para a nuca:
— Diga cá. Você teve alguma coisa com o Roma?
— Não... Nada. Era a primeira vez que o via!
— Pareceu-me — disse Melchior. E acrescentou, com palavras vagas, que a rapaziada devia ser unida. Questões literárias não serviam para nada... E atirando-se para a poltrona: — Então que me queria você dizer:
Artur explicou: desejava fazer imprimir os Esmaltes e Jóias. Segundo Melchior, nada mais fácil: o Gonçalves, o revisor, o das barbas, um espertalhão, levava-os aos Castros, que lhe faziam um volume catita; depois, o Gonçalves se encarregaria de o pôr nos livreiros à comissão. Lá em editor nem pensar... Um editor para um livro de poesias — era mais fácil achar um diamante no Chiado. Que se fiasse nele!
Artur concordou, e falou dos Amores de Poeta: desejava fazer uma leitura a um director de teatro. O melhor parecia-lhe o D. Maria...
Melchior, fazendo beiços grossos, cofiava o bigode, calado.
— Isso é mais sério — murmurou por fim.
Artur olhava-o quase ansiosamente.
— É mais sério — repetiu o outro, com um bamboleamento grave da cabeça.
Mas a sineta do jantar tocou, e Melchior ergueu-se de um salto: — estava a cair de fome!
E lavando ruidosamente as mãos:
— Havemos de pensar nisso. Isso é mais sério!
Por timidez Artur não insistiu, e mesmo, tirando-lhe a escova das mãos, escovou- lhe nas costas o jaquetão claro.
A extremidade da mesa, junto à porta, estava deserta: sentaram-se ali, e logo depois Meirinho apareceu, esfregando as mãos, jovial, refeito pela soneca; daí a pouco entrou o Padilhão, grave, e, como disse Melchior, «fizeram uma panelinha catita».
Artur, no centro, dilatava-se de prazer. Logo depois da sopa, que era uma má purée de petits pois, e a propósito da nomenclatura francesa dos menus, Meirinho contou anedotas de Paris: era muito bonapartista. Segundo ele, «depois do Império, a França decaía a olhos vistos, Paris já não era Paris». Era também a opinião do Padilhão, que tinha ideias católicas e o amor da aristocracia. Lembrando o Império, Meirinho contou uma história, ligeiramente obscena, da Princesa Matilde, «que era de resto uma excelente senhora». Vieram anedotas sujas: Melchior disse a do padre surpreendido pelo marido, Meirinho acudiu com a do padeiro e o Padilhão, com a sua bela face pálida, contou, imitando as vozes, a da inglesa e do gendarme. A cada trecho mais torpe, torciam-se de hilaridade: às vezes ficavam sobre os pratos, fungando ainda um momento do sabor da indecência. Aquilo punha ali um canto privilegiado de alegria chula, e sujeitos graves, no fundo da mesa, mastigando, olhavam com inveja aquele grupo divertido, todo próspero de riso e de chalaça. Um indivíduo de óculos reclamou mesmo, do topo da mesa, que «contassem alto».
— Isto é cá para nós — gritou Meirinho — isto é cá para a panelinha!
Artur recostou-se com satisfação, feliz de ser «da panelinha». Ria exageradamente: contou também uma porcaria e ficou lisonjeado da gargalhada do Meirinho, do riso solene do Padilhão. Acharam-no engraçado. Então Meirinho lembrou que ele devia pagar a patente, com uma garrafinha de Champagne, mas acrescentou logo, batendo-lhe na perna, que estava a brincar, que era chalaça. Artur porém, insistia — queria pagar a patente — e Meirinho, imediatamente, pediu uma garrafa de Cliquot. Foi um momento muito cordial de simpatia expansiva.
— Você calha-me, Artur — dizia-lhe Melchior; e como Meirinho e Padilhão falavam de relações, de soirées:
— Sabe você o que me parece? É que antes de levar o drama ao D. Maria, você devia conhecer a rapaziada.
Mas como? Ele não podia ir em romaria, pelas casas dos poetas, dos folhetinistas, apertar mãos, travar amizades!...
— Tem-me estado a lembrar — disse Melchior, pondo o cotovelo na mesa, falando-lhe muito intimamente — é necessário apanhá-los juntos. Sabe como? Num jantarinho.
E muito prolixamente explicou que os literatos eram uns esquisitos. Necessitavam de considerações. Não havia como um jantar: — Você convida os principais, e antes da sopa, zás, lê-lhes as principais passagens do drama. Ao outro dia a imprensa fala, a coisa chega aos ouvidos dos empresários, já prevenidos: e como o drama é bom, traz!
Logo em seguida, distribuiçãozinha dos papéis, etc., etc...
Artur, radiante, via-se já no palco, cercado de actrizes lindas, distribuindo criações!
— E depois, há o prazer do jantar — acrescentava Melchior. — Veja você o que nos temos divertido hoje. E então estando a rapaziada! São anedotas, chalaças, saúdes, uma pândega imperial. Que diabo, são oito ou dez libras!
Artur encolheu desdenhosamente os ombros.
— Pois não lhe parece, Meirinho?
Meirinho, esclarecido, concordou com entusiasmo. Era como se fazia em Paris.
Era chic, era de gentleman. Podia-se arranjar um jantarinho delicioso. Era deixar a coisa com ele...
Artur calava-se. Via-se à cabeceira de uma mesa resplandecente e os literatos erguendo para ele, num toast frenético, os copos esguios do champagne!
— Há uma dificuldade — disse Melchior. — É que aqui o amigo não conhece ninguém e não pode convidar... Convidar quem? Se ele não conhece ninguém. Aí é que está! Meirinho reflectiu, passando a mão pela barba.
— É contra a etiqueta — murmurou.
Padilhão, consultado, afirmou que era «inteiramente fora dos hábitos».
— É o diabo! — rosnou Melchior.
E calados, um instante, no embaraço daquela dificuldade, iam mastigando o pudim.De repente Melchior bateu na testa. Uma ideia! O meio era convidar ele! Ele conhecia toda a rapaziada, convidava, apresentava Artur, que era o herói da festa, lia o seu drama, etc... Hem? — E acrescentou baixo:
— Você, já se sabe, paga o jantar; eu convido, e zás! Hem? Catita, não?
Meirinho aprovou: era o melhor! E muito juntos, cochicharam, combinando a festa. — Que diabo estão vocês para aí a conspirar? — perguntou o sujeito de óculos, que decerto se aborrecia no topo da mesa e que aquela animação íntima, limitada aos da «panelinha», irritava.
— Nada! Depois se verá! — disse Melchior.
Meirinho, muito interessado, tinha agarrado na manga de Artur:
— Uma coisa elegante — dizia — duas sopas, hors-d'oeuvres, duas entradas, assado, caça, entremets, um jantarinho para quinze libras...
Artur assustou-se com o preço... Mas os aplausos! A publicidade! Disse mesmo, para parecer largo:
— Sim, quinze ou dezasseis libras...
Meirinho chegou-se-lhe ao ouvido:
— É necessário convidar o Padilhão, homem da sociedade.
— E o Saavedra — acrescentou Melchior, do outro lado — pessoa de influência.
— Com o menu impresso — lembrou Meirinho.
— Para ir para os jornais — acudiu Melchior.
E esfregou as mãos com grande júbilo.
— O jantarinho de casaca — disse Meirinho.
Melchior que tinha a casaca no prego, escandalizou-se: isso estragava tudo! Era um jantar de rapazes, sem espalhafato. Nada de poses!
Esboçaram a lista dos convidados. Naturalmente os quatro, «a panelinha». Depois, Meirinho lembrou pessoas tão inúteis como o velho D. Frederico. Cada um queria trazer o seu íntimo. Enfim, Melchior, conciliador, disse:
— Você é quem dirige o jantar, Meirinho, mas eu sou quem convida. Eu é que sei que rapaziada se precisa. Divisão de trabalho! Cada um na sua repartição!
— Há-de ter um jantarinho falado — afirmou Meirinho.
— E uma sociedade!... — disse Melchior. E deu um assobio admirativo.
Deslumbravam Artur. Iam aperfeiçoando o plano primitivo: além da leitura, poderia haver música; seria necessário convidar o Sarrotini; para fazer um brinde à imprensa, convida-se o Carvalhosa! E Artur via elevar-se pouco a pouco aquela festa, como um grande troféu que se orna. Melchior acabou por afirmar que a coisa «havia de dar brado no país!»
E combinaram com o guarda-livros, que o jantar seria na segunda-feira, às seis horas.

Quando Artur e Melchior entraram no salão reservado, «para ver a mesa», Meirinho, atarefado, dispunha ele mesmo na abertura dos guardanapos raminhos de violetas, com botões de camélia.
A luz abundante do lustre e das serpentinas, os grupos de copos, as lâminas das facas tinham uma faiscação alegre, atraente, sobre o linho branco da toalha. No pesado aparador de mogno, diante de duas filas escuras de garrafas, estavam dispostos os pratos de ostras. Havia um cheiro de creme queimado, em que errava subtilmente um fiozinho de limão. As duas velas do piano estavam acesas, porque Sarrotini prometera uma ária.
Melchior, entusiasmado, pôs-se diante de Meirinho, batendo devagarinho as palmas, com a face banhada num largo sorriso:
— Bravo! Bravo! Bravo!
Meirinho curvou-se profundamente.
— Muita experienciazinha — murmurou — muita experienciazinha! — E mostrou o menu, em cartão acetinado, tendo no alto, em letras douradas: Jantar Literário do dia 15 de Dezembro.
— Real! — disse Melchior triunfante. Estava de sobrecasaca, com uma grande camélia branca na lapela. Chamava os criados, contava as garrafas de champagne, falava «nos seus convidados»: de resto, no hotel, dizia-se «o jantar do Melchior». Ele próprio afirmara num grupo, no corredor, que havia de mostrar «a esses senhores o que era dar um jantar chic» — e mesmo perguntava-se baixo onde arranjaria Melchior o dinheiro para pagar aquela festa...
Artur, no entanto, estava muito nervoso. Ensaiara-se toda a manhã, declamando cenas dos Amores de Poeta; certas frases sonoras davam-lhe a certeza dos aplausos, mas outras vezes tremia, pensando em faces desconhecidas, entreabrindo bocejos fatigados.
Preparara alguns períodos literários para o brinde e só desejava que toda Oliveira de Azeméis pudesse estar, de longe, vendo-o no centro da mesa, entre flores e luzes, aclamado pela Capital!
Quando o relógio deu as seis horas, o estômago contraiu-se-lhe de emoção.
O primeiro que apareceu foi o folhetinista Xavier: debaixo de um nariz grosso, o bigode farto, muito horizontal, tinha a espessura de um rolo de crepe; de face escavada e as fontes reentrantes, usava lunetas defumadas, com o cordão passado atrás da orelha; debaixo do fato preto, adivinhava-se um esqueleto quase sem carne.
Melchior apresentou-lhe logo Artur:
— Tem um drama, cá o amigo, e vai-nos fazer logo uma leiturazinha... Interrompeu-se, correu a apertar a mão do actor Cordeiro, um moço galante, tímido, que, com a cabeça uru pouco de lado, torcia constantemente, num gesto maquinal, um pequeno buço castanho.
— Drama histórico? — perguntou Xavier a Artur.
— Moderno...
— Em que género?
Mas o Padilhão, que entrara solenemente, veio bater no ombro de Artur paternalmente; apresentava-se de casaca, com a pequena cruz de cavaleiro de Cristo.
O Xavier reparou — e fazendo saltar com o dedo a cruzinha:
— Graçazinha régia, hem?
Padilhão escorregou pelo canto do olho um olhar satisfeito à condecoração, e grave:— Foi o Ministro do Reino, à força: que a havia de ter, que a havia de ter! Vá lá! Viu-me fazer imitações em casa de D. Joana Coutinho, gostou... Aceitei!
— E como vai D. Joana, essa sílfide? — perguntou Xavier.
Padilhão pareceu chocado daquela expressão familiar, fez-se sério, disse:
— Um pouco encatarroada! — girou sobre os calcanhares e afastou-se limpando os beiços a um lenço de monograma bordado.
— Grande tipo! — disse Xavier a Artur. — Aí temos o ilustre Sarrotini.
O cantor entrava com as bandas da sobrecasaca deitadas para trás, o arco do peito saliente no colete decotado, uma vermelhidão próspera na pele, o olho chamejante. Deu um abraço a Xavier, que lhe sacudiu todo o esqueleto, beijou, com escândalo de todos, a face bonita de Cordeiro, que corou como uma virgem, e com gestos de palco e voz dominante, ia dizendo para os lados: diletto amico! Caríssimo! hijo mio!
Levantou ao ar Meirinho, que gritou, perneando; riram, falaram de forças. O Sarrotini foi logo erguer pelo pé uma cadeira e conservou-a no ar, com o braço retesado, a face purpúrea. Depois, pediu vermouth e exclamou: Portucallo e Italia siamo fratelli! Achavam-no um maganão delicioso.
No entanto, Artur reparara num indivíduo barrigudo e calvo, que de mãos atrás das costas e passinhos subtis, ia rodando em volta da mesa, das ostras, das garrafas, com um rosto farejante e desconfiado. Ia perguntar a Melchior quem era — quando Saavedra entrou.
Rodearam-no logo. E ele, com a cabeça erecta, consciente da sua importância, o olhar protector, dizia chalaceando:
— Então, que lhes parece o meu Melchior? Que chic que deita! hem?
Sarrotini passava-lhe a mão pelo ombro, apossava-se dele, dava-lhe nomes carinhosos: el gran periodista! diletto amico! Mas Cordeiro arrebatou-lho, levou-o para ao pé da janela, cochicharam:
— Você percebe, Saavedra, a rapariguita tem talento, é necessário animá-la. Vai ter um papel na Princesa Juska...
Saavedra prometeu, com bondade, a protecção do «Século».
— É você quem lavra aquilo? — perguntou.
Cordeiro negou languidamente.
— Seu sultão! — disse Saavedra rindo. E com um movimento desdenhoso dos beiços:— É um feixezito de ossos: eu gosto de carne mais almofadada.
No entanto, junto do aparador, Meirinho e Melchior pareciam questionar vivamente. Artur, inquieto, aproximou-se.
— Estão-se a estragar, estão-se a estragar! dizia Meirinho, excitado. E voltando-se para Artur: — Com o calor, com as luzes, estragam-se. É necessário começar já.
Melchior insistia, mas frouxamente: enfim, primeiro a leitura do drama. Senão depois...
— Depois, depois! — exclamou abafadamente o Meirinho. — O drama pode esperar. As ostras é que não podem esperar, amolecem...
Artur ficou aterrado, pálido: tanta despesa e não fazer a leitura! Olhou para o jornalista tão suplicantemente, que Melchior, compadecido, teimou: primeiro o drama, as ostras que as leve o diabo.
Meirinho recuou, olhou-os ambos com rancor. E com um grande gesto:
— Bem! É um jantar perdido! Eu não me responsabilizo por mais coisa nenhuma!
E ia sair, furioso, quando esbarrou com o Roma.
O poeta entrava devagar, com o seu ar de vago despeito tão singular num homem nédio, descalçando as luvas pretas. Pareceu não reparar em Artur. Deu um olhar de Lado à mesa, e ajeitando um raminho de alecrim que trazia na lapela, aproximou-se de Xavier, puxando as calças para cima com o seu gesto torpe.
— Ecco el eggregio oratore! — fez Sarrotini com uma voz possante que dominou o rumor.Era o Carvalhosa. Vinha abafado num cache-nez roxo e parecia descontente.
Disse logo a Melchior que tinha vindo por grande favor, pois que apanhara uma constipação e precisava cautelas. E palpava a garganta, olhando em volta, desconfiado, procurando uma corrente de ar, uma fresta traiçoeira.
— Isto é um órgão sério — disse para Sarrotini — com a diferença que para os senhores é questão de notas e para nós, de ideias...
E depois de soltar a sua frase, veio para Artur, estendendo-lhe negligentemente a mão: — Como vai o amigo?
Artur interessou-se servilmente pela sua garganta. Não era nada de cuidado, decerto...
— Porque se espera? — perguntou-lhe Carvalhosa, baixo, franzindo o nariz.
Artur, corando, balbuciou:
— Não sei.
Melchior aproximava-se radiante e batendo uma palmada no ombro de Artur:
— Cá o amigo vai-nos ler o seu drama!
Carvalhosa pareceu interdito, fez:
— Ah!
E foi andando, com olhares para a mesa, para as garrafas, direito ao grupo ruidoso, onde Xavier gesticulava:
— Então — disse Carvalhosa baixo, indignado — temos uma estopada de um drama?
Os outros encolheram os ombros com uma resignação sombria. Roma achava aquilo uma partida indecente do Melchior. E era em cinco actos! O Xavier propunha que se fizesse um abaixo assinado pedindo a sopa. Se se fizesse intervir a polícia?...
Chamaram Melchior, cercaram-no, com olhares interpelantes, sacudiram-no. Que escândalo era aquele de lhes impingir um drama? Convidar pessoas inofensivas, desprevenidas...
— Oh, rapazes, por quem sois! — suplicava Melchior. — Então, era uma fatalidade!
O diabo do Artur viera-lhe recomendado, prometera-lhe. O rapaz tinha trazido o manuscrito. De resto eram só duas cenas.
— Nem duas sílabas! — disse com furor o Carvalhosa. — Eu vou falar!
Melchior, aflito, agarrou-lhe o braço.
— Oh, filho, pelo amor de Deus! Que me comprometes! Ih, Jesus, que desgosto! É um instante, coitado do rapaz! E falava-lhe ao ouvido. Havia risinhos fungados.
Artur, pálido, via de longe aquele grupo, e sentindo que ali se tramava alguma coisa de funesto para os Amores de Poeta e para a sua própria dignidade, errava pela sala com as faces abrasadas.
Viu de repente Melchior desembaraçar-se do grupo, correr para a porta e abraçar um sujeito grosso e rubicundo, de xale-manta, o ar hílare e nédio... Era um tio de Melchior.
Proprietário em Beja, exaltado pelas questões da política local, ardendo num ódio de província pelo Governador Civil, fundara um jornal de oposição, A Voz do Distrito, e não tendo encontrado em Beja um escritor bastante eloquente para lhe pôr em períodos floridos os insultos à autoridade — vinha procurar a Lisboa um estilista. Oferecia trinta e seis mil-réis por mês e casa de habitação com hortaliça. Melchior convidara-o, para lhe fazer admirar o seu jantar, a sua posição social, relacioná-lo com literatos, e, enchendo-o de Champagne, dar-lhe uma disposição propícia às doze libras que lhe queria pedir.
Foi logo apresentá-lo ao Xavier, ao Carvalhosa, ao Saavedra.
— Meu tio António de Moura, chefe da oposição em Beja, muito conhecido...
Desembaraçava-o com carinho do xale-manta, abraçava-o; e repetia arregalando os olhos para os lados:
— Muita influência no Distrito... muita influência!
Mas vendo entrar um oficial de lanceiros, de peito enchumaçado e bigodes ferozes, exclamou:
— Viva o exército! Estamos todos! Está toda a bela rapaziada!
No meio do grupo dos literatos, o tio António, muito à vontade, com um risinho fino, explicava as condições em que queria um escritor: destemido, com palavreado, e sem escrúpulos, para dar para baixo. E contava com prolixidade as suas queixas do Governador Civil, a questão da Junta de Paróquia, do muro do cemitério, do regedor de Reguengos. — Hei-de dar cabo deles — dizia, sacudindo a mãozinha gorda.
Em redor chalaceavam, queriam «desfrutá-lo». Xavier aconselhava-o a que se dirigisse a Alexandre Herculano. Porque não escrevia a Vítor Hugo? Vítor Hugo era o sujeito que lhe estava a calhar!
O tio António ria com bonomia, uma ponta de velhacaria nos olhinhos luzidios:
— Qual, quer-se um rapazola como os senhores, que ladre, que ladre! E que morda!
Eh! Eh! Eh!
Artur ia de grupo em grupo: sentia, aflito, uma vaga brutalidade ambiente; batia-lhe o coração cada vez que via um olhar impaciente voltar-se para o relógio, ou uma boca abrir-se devagar num bocejo de debilidade. Aproximou-se um momento de Sarrotini, que, cercado, muito admirado, entre risos, fazia a imitação de um moscardo perseguido: encolhia-se, como no susto de ser mordido, atirava a mão bruscamente para o agarrar, olhando para o ar, a face atenta; depois, de repente, dava uma palmada no joelho para o esmagar... mas o moscardo, escapo, punha sobre o grupo um zumbido acre, dormente, contínuo. Admiravam-no, riam. Padilhão, com a testa franzida num vinco de reflexão crítica, murmurou:
— De artista, de artista! — E tirando o relógio, voltou-se para Artur: — O Melchior?
Está-se a fazer tarde, que diabo!
Artur, fingindo que ia buscar Melchior, afastou-se, rubro. Receava agora que não fosse possível fazer a leitura e vinha-lhe a amargura do desespero. Por uma curiosidade simpática, aproximou-se do sujeito calvo, de fato claro. Estabelecera-se entre eles, por olhares repetidos, uma afinidade: eram os mais obscuros, os mais isolados.
— Muito bonito tempo — disse Artur, sorrindo.
— Lindo — disse o calvo. — E logo mais baixo:
— Diga-me cá, porque se espera? Ouvi falar que tínhamos leitura... Que estopada, hem?
Artur fez-se escarlate. Mas nesse momento Melchior bateu as palmas: rostos voltaram-se com curiosidade.
— Meus senhores... — começou Melchior, junto da mesa, numa atitude grave.
Mas vozes romperam, chalaceando: o Melchior deita fala! Ora adeus! Menos eloquência e mais sopa! Não seja tolo, seu Melchior!
Melchior, irritado, bateu fortemente com uma faca na mesa. Roma disse alto:
— Respeito ao grande orador!
Todos riram.
— Meus senhores — recomeçou Melchior — aqui o meu amigo Artur Corvelo, vai— nos ler o seu drama, isto é, duas ou três cenas do seu drama!
Houve um silêncio côncavo, hostil. Meirinho, que falava baixo com o guarda-livros, ergueu a face para soltar um isolado: muito bem! apoiado!
Tinham arredado dois talheres na mesa, e ao pé de um castiçal estava o manuscrito aberto. Artur sentou-se. Tremia todo. Receava que lhe faltasse a voz, que lágrimas nervosas rompessem.
Melchior ia de um a outro pedindo baixo, por caridade, que se sentassem, que tivessem paciência, era um instantinho...
— Maldito! — murmurou Xavier com raiva.
— Canalha! — fez o Roma, dando-lhe um canelão.
Carvalhosa beliscou-o:
— Hás-de-mas pagar, assassino!
Ele torcia-se, tinha olhares ansiosamente suplicantes:
— Oh, filhos, por quem sois! E um momento! Pelo amor de Deus! Sejam decentes!
Artur, lívido, sentia a hostilidade. Mas não ler agora, poderia parecer uma desfeita... Depois contava dominá-los pela eloquência do drama. Fez um esforço e disse numa voz baixa, estrangulada:
— Eu não leio tudo...
— Sim — acudiram logo. — Uma ou duas cenas, para fazer ideia!
Melchior, por trás da cadeira de Artur, revirava olhos imploradores. As cadeiras enfileiravam-se em semicírculo: o tio António, com as mãos nos joelhos muito separados, arregalava os olhos na sua face nédia; Sarrotini arqueava o busto forte, os braços soberbamente cruzados sobre o peito; Carvalhosa apalpava a garganta, com olhares desconfiados para a porta, para as janelas; Roma, com as pernas muito estendidas, os pés cruzados, conservava a mão sobre a boca, como para esconder bocejos prováveis; havia queixos melancolicamente descaídos sobre as gravatas; os olhares tinham uma resignação mole. E o guarda-livros, andando em bicos de pés, acabava de dispor uma nova, densa fileira de garrafas sobre o aparador. Para Artur, aqueles rostos em linha eram quase pavorosos.
Tinha explicado, trémulo, que os Amores de Poeta eram a luta entre o talento e os preconceitos sociais.
— Álvaro, um poeta, ama a duquesa de S. Romualdo...
Padilhão pulou:
— Ora essa! E então o que há-de pensar a Srª Condessa de S. Romualdo, uma senhora respeitabilíssima!
Artur, atarantado, balbuciou:
— É duquesa...
— Duquesa ou condessa. E um título da casa, um título antiquíssimo. Sou relação da família, pessoas da primeira sociedade...
Concordaram, em redor, que era preciso mudar o título. Então todos falaram, numa balbúrdia, que era a desforra do silêncio forçado, lembrando títulos: duquesa de Val-Formoso — Não! Duquesa de Pedras-Negras — Qual! Duquesa da Casa -Santa...
Enfim, decidiu-se que fosse simplesmente — a Duquesa!
Aquele interesse pelo título, animou Artur. Prosseguiu, mais seguro:
— O que lhes vou agora ler, é quando o Poeta fez, em casa da duquesa, o elogio da poesia... E, enfim, verão... E numa soirée:

O CONDE DE S. SALVADOR
Leu os «Céus Estrelados», marquesa?

A MARQUESA D'ALVARENGA (despeitada)
Até acho impertinente que mo pergunte, conde! Uma pessoa do meu nascimento e da minha educação, não toca nem com luvas...

O VISCONDE DE FREIXAL (gaguejando)
A ma-arquesa e-em que-estões de es-es-trelados só-ó o-vos!

Todos riram. Muito bem! muito bem! O Meirinho afectava torcer-se. Atiraram-lhe mesmo um chut severo!
— Deixem-me saborear, deixem-me saborear — dizia sufocado, com as mãos nas ilhargas. — Magnífico!
Artur, aquecendo, continuou já com inflexões teatrais:

O DUQUE
A Marquesa tem razão. Platão excluía os poetas da sua república e Platão, a meu ver, era um homem de espírito e um estadista. De que servem os poetas?

O POETA (que conversava baixo com a Duquesa, erguendo-se arrebatadamente)
De que servem, Sr. Duque?

A DUQUESA (baixo)
Álvaro, por quem és, não o irrites que nos perdes!

O POETA (sem a escutar)
De que servem? Semeiam o Ideal!

E o poeta, decerto de pé, com gestos nobres, fazia o elogio da Poesia. Amaldiçoava os Preconceitos, as Inscrições, os Fundos Públicos, os Bancos, todo o materialismo económico. Acusava os fidalgos, seguramente cabisbaixos, de não compreenderem a alma da Natureza, o que dialogam as aves com as flores e o que diz o vento aos pinheirais. «De que vos servem os vossos castelos, o vosso oiro, as vossas librés?» — perguntava desgrenhado. «Que almas tendes consolado? Que lágrimas enxugado?» Artur, agora, levantado nas ondulações da retórica, tinha ênfases de voz, e o seu olhar, os seus gestos, dirigiam-se sobretudo ao poeta Roma, como para ganhar a simpatia do versificador, incensando-o com aquela glorificação da rima.
Mas Roma tinha posto o seu enorme pince-nez e na sua posição estendida, fixava os vidros de reflexos sombrios, na ponta romba dos botins. Quando o Poeta invocava Deus, inclinou-se para o Carvalhosa e murmurou:
— Que besta! Que burro!
O Carvalhosa, que a cada momento apalpava o enfartamento das glândulas, encolheu os ombros com uma resignação sombria; todavia, secretamente, aquele estilo às empolas agradava-lhe como orador; e a Saavedra também, que, bamboleando a perna traçada, afectava uma distracção elevada, preocupações políticas. Só o Cordeiro admirava francamente, mediante atitudes de actor, em concordância com a eloquência da prosa. Padilhão mexia-se na cadeira, indignado, vendo em cada frase insultos aos titulares das suas relações; e ao pé, o tio António, com os braços gordos e curtos cruzados, cerrava os olhos, como se a cadência dos períodos lhe desse a sonolência de um embalar soporífero de berço.
Quando Artur, ofegante, terminou a cena, só Melchior e Meirinho tiveram bravos!
Depois de uma pausa, Artur começou a ler o acto do Baile de Máscaras. Era longo: passava-se no palácio do Duque, num lugar indeterminado, na Baixa, com terraços sobre um rio desconhecido de balada. Pelas rubricas, parecia ser uma festa veneziana da Renascença: urna máscara vestida de trovador cantava uma serenata, dois napolitanos dançavam a tarantela, pajens circulavam com taças de vinho de Siracusa, um bobo roubava com destreza a bolsa aos cavaleiros, e no fundo passava um barco, em que flautas e rabecas alternavam com uma voz de mulher, cantando, na noite, versos de Petrarca. Xavier, experiente do teatro, comprimia o riso, roxo.
Havia diálogos singulares: «Marquesa, dizia um dominó, não sente nesta festa errar um pressentimento de morte?» A Marquesa respondia, passando, a arrastar brocados: — «O amor é um goivo que floresce numa caveira!
Dois fidalgos desciam à cena:

1º FIDALGO
Como se portou contigo o destino, no sarau da Princesa?

2º FIDALGO
Perdi seis mil cruzados aos dados!

Quando Artur leu a apóstrofe do Duque, depois de atirar a luva ao Poeta: «Quem ousar erguer os olhos para a Duquesa de S. Romualdo, pode encomendar a mortalha!» — houve um rumor lento, lânguido de: muito bem! muito bonito! de muito efeito! — Os literatos estavam tranquilos, o acto era idiota, o Artur inofensivo, e gozavam com atitudes recostadas, faces risonhas, a evidência daquela mediocridade. Excelente drama para ser representado numa Assembleia de província, por curiosos de uma filarmónica. Pobre tolo! O Roma cofiava a barba com deleite.
Algumas cenas do quarto acto na casa do Poeta, na véspera do duelo, com uma mãe humilde, criatura sacrificada, fatigaram: Sarrotini torcia-se na cadeira, impaciente do silêncio, da imobilidade. O alferes bocejava sem pudor; puxavam-se os relógios às furtadelas; havia olhares desesperados para o aparador; Carvalhosa, com os cotovelos nos joelhos, enterrava a cabeça nas mãos; e Artur, sentindo o tédio ambiente descer-lhe sobre o cérebro como um pano gelado, apressou-se a dizer:
— Agora vou ler o duelo!
Houve uma respiração aliviada: com a morte do Poeta, chegava decerto o fim!
Artur prosseguiu com uma voz lúgubre:
— «Um cemitério. Cruzes, campas, ciprestes. Vem rompendo a madrugada. Um coveiro afasta-se com a enxada ao ombro, cantando». E ele mesmo cantou uma melodia singularmente triste, tocante:

Nascem goivos a-a-ah!
Nascem rosas nas sepulturas.
Morte eterna, morte eterna,
Vida que tão pouco duras!

— Bravo! — gritou Sarrotini.
A melodia impressionara. Artur explicou que realmente a ouvira a um coveiro, no cemitério de Oliveira. Extasiaram-se: ele repetiu-a. E aquela toada, de um vago melancólico, punha ali, na sala, sob o gás, um relance de cemitério de aldeia, num cair de tarde triste.
Animado, Artur começou o monólogo do Poeta, que entrava envolvido numa capa e pousava sobre uma campa duas espadas. As fisionomias recaíram numa fadiga mole, havia uma prostração de fome: o Xavier que sofria do estômago, não se contivera, e, em bicos de pés, fora tirar da mesa passas e amêndoas, partilhando-as com Saavedra que se mexia na cadeira, desesperado; o oficial de lanceiros então foi buscar uma bucha de pão; o Meirinho desaparecera. O grito do Poeta, ao ser atravessado pelo florete do Duque, espalhou nos rostos uma alegria agradecida.
O Poeta expirava; a Duquesa corria, vestida de branco, de entre os ciprestes. Era a cena mais trabalhada, que lhe custara um mês de rascunhos, de vigílias. Leu-a, trémulo; às últimas palavras do Poeta, estava pálido de emoção, e a vela de estearina, ao lado, fazia parecer a sua face mais macilenta — como se lhe espelhasse no rosto a agonia do personagem:

O POETA
Adeus, anjo! Deus te pague toda a felicidade que me deste na Terra. Tu foste a gota de água no deserto, a estrela de alva na cerração. Se alguma vez, nas festas do teu palácio, entre as valsas, os madrigais e os cortesãos, te vier à ideia o poeta que na campa fria é pasto dos vermes, chora e diz contigo: ninguém, como ele, ninguém sabia amar! Velo uma luz... E a pátria divina! Júlia, a tua mão! Oh, sofro! Adeus! Ah! (um grito, morre).

A DUQUESA (caindo de joelhos)
Oh, bem-amado, a minha alma vai contigo e este corpo miserável irá fenecer na solidão de um claustro!

(CAI O PANO)

Ergueram-se com ruído. Havia como que um reconhecimento pela «estopada finda». Artur muito pálido, de pé, com os olhos brilhantes; fitava uns e outros.
— Muito bem! Muito bem!
Mas Roma estava desesperado. No final, reconhecera emoção, ideal, estilo; e muito perfidamente:
— A pilhéria dos ovos é uma obra-prima!
Os outros imediatamente lançaram-se sobre aquele detalhe, exaltaram-no, esmagaram com ele o drama todo. Era divina a saída do gago. Repetiam-na: Estrelados, só ovos! Era soberba. Cercavam-no, pareciam admirá-lo por ter achado aquela facécia.
Carvalhosa disse-lhe, muito sério:
— O amigo deve escrever comédias!
— E é que é um rico calembourg! — insistia Melchior.
Artur sentia-se constrangido daquela admiração exclusiva por uma pilhéria tão patusca no meio de um drama tão sombrio. Perguntou timidamente o que lhes parecia o final. — Sim, muito bem — disse o Saavedra. — Mas a dos ovos é esplêndida... não torna a fazer melhor!
Então Melchior exclamou da porta:
— Messieurs, le dîner est servi!
Atrás, um dos criados entrava com a terrina. Houve uma aclamação, num ruído de cadeiras. Sentavam-se, falando alto, na aproximação gulosa do jantar tão esperado. Mas subitamente Roma ergueu-se, lívido, exclamando:
— Somos treze!
Contaram-se, inquietos. Sarrotini afastou-se com horror da mesa. O alferes refugiara-se, aterrado, ao pé do aparador. O tio António ria:
— Ora nada de pieguices! Nada de enguiços! Era necessário chamar alguém; então Melchior agarrou o chapéu e saiu a correr.
Contavam agora desgraças, mortes inesperadas, depois de jantares de treze; estavam de pé; os criados, imóveis, esperavam.
Pouco depois, Melchior entrou com um sujeito de fato claro, despenteado, muito amarelo e que tinha costuras no pescoço. Apresentou-o como o Sr. Galinha, o seu amigo Galinha. Ninguém o conhecia — era o décimo quarto! E, tranquilos, atacaram alegremente as ostras — enquanto o Sr. Galinha, como que estremunhado, batendo as pálpebras à luz, voltava para os lados uma face avinhada e lívida de deboche!

Na manhã seguinte, Artur correu ao café Tavares, na Rua de S. Roque, para ler no «Século» a notícia do jantar. Havia apenas uma curta local:

«O nosso colaborador Melchior Cordeiro deu ontem um lauto jantar aos seus amigos políticos e literários no Hotel Universal. O adiantado da hora obriga-nos a reservar para amanhã a descrição desta notável festa.»

Aquela apropriação que o Melchior fazia do jantar indignou-o. Mas, afinal, não havia que estranhar, pensou: tinha-se combinado que aparentemente o Melchior lhe oferecia o jantar, a ele, Artur. Decerto, ao outro dia, uma notícia circunstanciada explicaria a intenção da festa e as sensações da leitura.
Na manhã seguinte ergueu-se mais cedo e às nove horas entrava no Tavares, com o coração a bater-lhe alto. A notícia enchia duas colunas; dizia:

O JANTAR LITERÁRIO DO UNIVERSAL
«O banquete do nosso colaborador Melchior Cordeiro foi uma verdadeira festa da Inteligência. No esplêndido salão do Hotel Universal achava-se reunido o que a Literatura, a Política e o High-Life têm de mais eminente: um bouquet de celebridades. Vimos o inspirado orador Carvalhosa, o brilhante poeta Roma, o estimado barítono Sarrotini, o social Padilhão, o espirituoso folhetinista Xavier, esse Jules Janin da imprensa portuguesa, o estudioso actor Cordeiro e o nosso querido director, Sr. Saavedra.
O menu do jantar, elegantemente impresso em cartão acetinado, continha o que a culinária francesa tem inventado de plus raffiné; dir-se-ia uma dessas festas do Segundo-Império em que o Café Inglês recebia, nos seus doirados salões, Imperadores e Reis que vinham curvar-se ante o poder de Napoleão o Pequeno, segundo a imortal expressão do vidente d'Hauteville-House. Eis o menu:

HUÎTRES
HORS-D'OUVRE
POTAGES:
Julienne, Tapioca Grécy
POISSON:
Turbot, sauce hollandaise
ENTRÉES:
Escalope, de veau à la Macédoine
Suprême de volaille à la Melchior
Jambons d'York aux épinards
Filets mignons à la Saavedrá
GIBIER:
Perdreaux rôtis à la crapaudine
ENTREMETS:
Charlotte Russe
Dartois doré
GLACES, DESSERT
VINS:
Bucelas, Colares, St. Julien, Champagne, Porto
CAFÉ — LIQUEURS

«Como os leitores vêem, havia dois pratos dedicados — um, ao simpático anfitrião, outro, ao nosso querido director Sr. Saavedra, que foi objecto das manifestações mais demonstrativas. «A ornamentação da mesa, bem como a composição do menu, foram feitas sob os conselhos inteligentes do popular João Meirinho, que uma longa residência, nas capitais da civilização, torna un artiste nestes episódios da vida elegante e boulevardière. «Os brindes foram numerosos e eloquentes: o do Sr. Carvalhosa, à literatura contemporânea, foi um dos improvisos mais brilhantes que temos ouvido e trouxe a todas as memórias a lembrança do génio do imortal José Estêvão. O Sr. Roma, recebido entre um entusiasmo exuberante, recitou a sua mimosa elegia, O Adeus de Elvira: vimos lágrimas em muitos olhos. Sarrotini cantou, com a sua maestria habitual, uma deliciosa canção napolitana. O amigo Padilhão, sempre obsequiador, deu algumas das suas melhores imitações, que tantos aplausos lhe granjeiam nos salões do High-Life: foram notáveis as do Oboé, Emília das Neves, Perdiz e Partida de comboio. Cordeiro, o inspirado galã, recitou com prodigioso talento o monólogo de Hamlet, do grande bardo da fria Albion, tão primorosamente traduzido por uma pena real. Houve também a leitura de trechos de uma comédia, escrita por um mancebo de Oliveira de Azeméis, o Sr. Corvelo, se nos não falha a memória, que conseguiu fazer sorrir com alguns calembourgs. «A maior cordialidade, o espírito mais picante, as anedotas mais finas, as conversações mais espirituosas, ocuparam a noite. Todos se retiraram bendizendo o Sr.Melchior, que é uma das personalidades mais simpáticas da República das Letras, por ter proporcionado um tão notável meio de se provar que Lisboa não deve ter inveja a Paris, pela sumptuosidade dos hotéis, o talento dos escritores e as boas maneiras do High-Life. Estas festas elevam o espírito e fazem remontar a memória aos tempos de Garrett e de D. João de Azevedo, em que a vida elegante se unia em profícuo convívio à vida literária!

Artur desceu a Rua de S. Roque, até ao hotel, como uma pedra que rola, praguejando alto de indignação; galgou as escadas, soprando; no quarto, atirou o chapéu contra a parede: sentia por Melchior um ódio homicida; pensava tumultuosamente em vinganças vagas, batendo o soalho com passadas nervosas. Reparou então numa carta, que fora metida por baixo da porta. Uma explicação do Melchior, talvez? Propostas de rectificação?... Era a conta do jantar. Verificou a soma, trémulo: vinte e duas libras!
Deixou-se cair numa cadeira com o papel aberto na mão, lágrimas de raiva nas pálpebras, murmurando:
— Canalhas!


Capítulo V

Tinha recebido ao outro dia as provas da primeira folha dos Esmaltes e Jóias, e, muito emendadas, ia levá-las, ele mesmo, preciosamente, à tipografia dos Castros — quando, ao chegar à Praça de Camões, no momento em que se preparava para deixar passar uma carroça, viu, descendo da rua de S. Roque, a Senhora do Vestido de Xadrez! No deslumbramento que lhe deu a presença da sua pessoa, o seu rosto oval, alumiado de dois grandes olhos negros, a graça da sua cabeça, toda a sua figura pequenina e mimosa, ficou imóvel. Uma carruagem a trote quase o atropelou: refugiou-se, atarantado, ao pé das grades da praça e viu-a seguir para a Rua do Correio.
Não reparara nele! Levava pela mão um pequerruchinho. O seu vestido de fazenda azul tinha enfeites de seda de um azul mais escuro; ia devagar, apanhando com graça a cauda do vestido. Trazia luvas de peau-de-suède clara, e, andando, voltava-se, sorrindo para a criança que palrava, com passinhos muito vivos, as perninhas calçadas de meias encarnadas, toda rosada, gorducha, sã, apetitosa como um fruto, fresca como uma rosa.
Foi-a seguindo. Não ouvia os ruídos da rua; as fachadas das casas tinham desaparecido: parecia-lhe que só ela passava nas lajes do passeio e que a claridade do dia adquiria um doirado glorioso. Apesar de magnetizado, retardava o passo: receava ofendê-la indo muito junto dela, como numa perseguição, e devorava com o olhar os folhos baixos do seu vestido, uma brancura de rendas da saia, os tacões altos das suas botinas.
À esquina de uma travessa, num portal, uma pobre pedia, com uma criança no regaço: ela parou, deu-lhe uma esmola e aquela caridade simples comoveu Artur como a revelação de bondades delicadas, de piedades democráticas; discretamente, para se associar com ela numa generosidade comum, pôs dois tostões na mão descarnada da mulher. Um amor ávido de se produzir, de se manifestar, enchia-lhe o peito: aquela cinta fina, direita, atraía-lhe os braços, a trança negra, em catogan, chamava-lhe as pontas dos dedos; punha toda a alma nos olhos, tão intensamente, que não ficaria surpreendido se ela parasse, se voltasse e lhe estendesse a mão.
Notava sofregamente todos os seus movimentos, como revelações do seu carácter; viu-a erguer os olhos para um cartaz e lamentou que não fosse a sua peça, anunciada ali em grossas letras negras; teve ódio a um galego, que, ao passar pesadamente, quase lhe roçou a manga do vestido azul: como correria se alguém a ofendesse ou a pisasse! E apertava com furor a bengala, olhando em redor, pronto a defendê-la, imaginando que um bêbedo, ao sair de uma taberna, lhe passava as mãos imundas pelo rosto... Ele precipitava-se: ela refugiava-se nos seus braços, reconhecia-o — e um amor delicioso começava, que seria a glória, o fim, a alta significação da sua vida. Impelido por aquelas imaginações, ia quase junto dela. Tinham entrado na Rua de S. Bento; pensou então em passar adiante, voltar-se, fitá-la com adoração, dizer-lhe num longo olhar: Sou eu! Olha para mim, não te lembras? Mas uma timidez retinha-o. Ia enfim adiantar-se, quando ela, atravessando a rua, entrou no portão largo de uma casa espaçosa de um andar! Que ferro!
Mas talvez lhe aparecesse à janela! Havia uma vidraça entreaberta, por onde ele via, entre o estofo escuro das bambinelas, reluzirem vagamente, no fundo sombrio, doirados de quadros. Acendeu um charuto e pôs-se a passear devagar, esperando a cada momento ver chegar à varanda a cabecinha pálida e fina, já sem chapéu. Morava decerto ali, e a casa, com sua fachada amarela, as janelas do rés-do-chão gradeadas, o pátio de uma pedrinha miúda, com dois batentes de baeta verde ao fundo, sobre um degrau, atraía-o singularmente, por uma expressão discreta, aristocrática, como se a querida criatura que lá vivia lhe comunicasse uma graça digna e recolhida.
Um guarda-portão grosso, barbudo, veio colocar-se à porta, rolando em redor olhares majestosos, e Artur, receando que ele reparasse na sua curiosidade inquieta, por prudência, tornou a subir a Rua do Correio. Esquecera agora as provas, o livro, e caminhando rapidamente, pensava com energia em coisas vagas que tentaria para se fazer conhecer, e conseguir o seu amor! A casa de D. Joana Coutinho, as suas soirées aristocráticas e literárias, onde ela, tão bonita, tão nobre, decerto ia, ofereciam-lhe o meio mais acessível. Eram o rendez-vous do nosso High-Life, dissera Meirinho quando prometera apresentá-lo. Iria de casaca, com uma camélia vermelha... Pediria delicadamente ao Meirinho que o apresentasse... Qual! devia exigi-lo! Tinha direito a isso: comprara-lhe um paletot e duas pistolas, regalara-o com um bom jantar! Era necessário ser «finório». Meirinho devia saber o nome dela, as suas relações, os seus hábitos; Melchior também, ele que dizia conhecer até os cães vadios da rua...
E de repente deu de rosto com o jornalista, que descia a Rua do Carvalho:
— Homem, vinha a pensar em você — disse expansivamente, esquecido da infâmia da notícia do «Século».
Melchior tivera um movimento para se esquivar, mas deu-lhe um aperto de mão mole, hesitante, com as faces escarlates.
Que tinha feito? Por que não aparecera na redacção? O Saavedra perguntara por ele — gostara imenso do drama, o Saavedra...
Mascava as palavras, espessamente, com um embaraço que lhe entumecia as feições — e de repente, sem transição, muito alto, com grandes gestos que faziam voltar pessoas espantadas, começou a invectivar o Roma.
Fora o Roma quem escrevera o artigo do «Século», aquele patife! Tinha sido uma perfídia! Ele, quando o lera, até arrancara os cabelos...
E cruzando os braços com violência, quase escandalizado com Artur:
— Mas para que me não disse você a verdade? Que tem você com o Roma?
Artur jurou, energicamente, que não tinha nada com o Roma.
— Pois não o pode tragar!
E, para falar com menos reserva, foi-o levando pelas ruas mais isoladas do Bairro Alto. — Você percebe, eu não podia escrever a notícia! Que diabo, eu é que tinha dado o jantar, não era decente. Pedi ao Roma: sempre é um vulto, é um estilista! Recomendei-lhe que falasse no drama, com um belo elogio, um elogio de arromba! Pois senhores, escreve aquela infâmia!
Artur então indignou-se. Que pouca-vergonha! E ele então que até admirava o Roma e os Idílios e Devaneios! Pois que tivesse cuidado! Que havia nos Idílios muitos podres... Versos errados, imitações, erros de gramática...
Exaltado, falava alto, com os olhos brilhantes. Melchior olhava-o de lado, inquieto já daquela cólera, inesperada num moço provinciano e acanhado. E exagerava então ele mesmo o seu ódio ao Roma. A afronta era feita a ele, Melchior. Ah! mas o Roma havia de lhas pagar! Fiara-se nele, quê!
— Você não imagina o desgosto que tive, Artur! Eu sou assim. Para os amigos — e você, caramba, calha-me — para os amigos, tudo! Sou uma vítima da minha dedicação. Sou uma vítima!
Com uma verbosidade impetuosa, contou então outros casos em que a sua boa-fé fora surpreendida, indignamente surpreendida! É que ele era um cavalheiro: acreditava no cavalheirismo dos outros! É por isso que não tinha cheta. Era um mãos-rotas para todos. Já fora o mesmo com o inventário do papá: tinha perdido para cima de dois contos de réis. Por quê? Boa-fé, cavalheirismo! Mas, ao menos, passeava na cidade de cabeça erguida...
Aquelas explicações tão íntimas, tão amigas, confidenciais, quase enterneciam Artur. Sentia-se reconhecido a Melchior de o ver sofrer por causa da notícia do «Século». Veio-lhe por ele um fluxo de amizade trasbordante: desejava passar-lhe a mão pela cinta, oferecer-lhe dinheiro; lembrou-se num relance de lhe dar uma boquilha. Não se tinha zangado com ele, ia dizendo: o Rabecaz sempre lhe afirmara que o amigo Melchior era um rapaz às direitas.
— O Rabecaz é que sabe, o Rabecaz é que sabe! — exclamava Melchior, apossando-se sofregamente daquele testemunho, erguendo as mãos e os olhos para o céu azul.
Ah, mas não se perdera nada! O Roma fizera a infâmia — mas por que era? Inveja. Todos consideravam o drama uma maravilha...
— Disse-mo o Saavedra: o Artur é um grande dramaturgo. É o único! E o Xavier, que é quem entende, estava entusiasmado! Disse-mo ele. Você a publicar o livrinho de versos e ele a fazer um folhetim que o Roma estoira de raiva... Que ele não pode ver o Roma!
E lamentou então aquelas inimizades entre a rapaziada. A rapaziada devia ser unida!
Vinham descendo a Rua de S. Roque, e Melchior, querendo aplacar inteiramente Artur, declarou que para apagar a má impressão da «notícia do jantar», era necessário fazer outra sobre o drama...
— Por exemplo... — e parado defronte do lavares, meditava, com um dedo sobre os lábios, o chapéu um pouco para a nuca. — Uma notícia chic, de estalo... Por exemplo... Espere você...
Mas de repente, dando com os olhos em dois indivíduos que subiam a rua devagar, perturbou-se, murmurou: Oh, diabo, adeus menino! — girou sobre os calcanhares e abalou, fugindo a grandes passadas. Artur, atónito, viu-o cortar, cosido com a esquina, por uma travessa do Bairro Alto.
Os dois sujeitos aproximavam-se tranquilamente, rindo: um deles, grosso, de grande pêra, deu um olhar de lado a Artur e elevou a voz:
— O covarde do Melchior safou-se à correcção. Não as perde. Aquelas orelhas de burro pertencem-me, hei-de arrancar-lhas em tempo competente!
E seguiram com um ar de chacota.
Nessa tarde, ao jantar, no Universal, Artur, timidamente, deu a Meirinho os sinais da senhora do vestido de xadrez, perguntando se a conhecia... Morava na Rua de S. Bento, um palacete de um andar só...
Meirinho pareceu humilhado de a não reconhecer. De resto, como estivera tanto tempo ausente de Lisboa... havia camadas novas. Não era de estranhar que não a conhecesse. E recostando-se na cadeira, fazendo girar nos dedos o anel de armas, como para se comprazer na pureza da sua estirpe, lamentou a formação de uma aristocracia nova, abrasileirada, que era quem tinha o dinheiro, as carruagens... Citou a frase do velho marquês de Arrifana, «aquele original»: «Eu, quando passa um rico landau, volto a cabeça, porque tenho a certeza que é gente pulha, mas se vejo um ónibus, tiro o chapéu. porque estou seguro de que vão lá pessoas de nascimento...».
— É bem dito, hem? — Cofiou com satisfação a bela barba clara e inclinando-se ao ouvido de Artur: — Por quê? Temos conquistazinha?
Artur negou. Era pura curiosidade. Encontrara essa senhora, parecera-lhe bonita... Queixou-se então da sua solidão: não tinha relações... Às vezes, à noite, enfastiava-se. E disse, rindo negligentemente, como gracejando:
— Então quando vamos nós à D. Joana Coutinho?
Meirinho engoliu à pressa, bebeu um gole de vinho e pousando o copo:
— Ah, não me tenho esquecido. Eu até faço empenho... É necessário primeiro, naturalmente — é a etiqueta — pedir-lhe autorização. — E mais baixo: — Lá vi, lá vi a notícia do «Século». Lá me fizeram o favor... fazem-me o favor de me estimar... –
Recostou-se com beatitude, cerrando os olhos, como para saborear a simpatia ambiente:
— Que a festa esteve bonita, muito bonita! Com franqueza — quanto?
Artur corou e disse:
— Vinte e duas libras, salgadinho!
Meirinho reflectiu um momento e com gravidade:
— Muito razoável, muito razoável! E lá vi, lá vi: os calembourgs, muito bem aceites...
E dirigindo-se a um sujeito pesado, de beiços grossos e barba grisalha, que comia com uma gula lenta, um vago suor oleoso na pele avelhada:
— Oh, Bento Correia, tem aqui um rival! Ouvindo o nome de Bento Correia, uma celebridade antiga, quase clássica, jornalista, funcionário, Artur fez-se escarlate.
Bento Correia voltou-se e com uma voz empastada, lenta, a boca cheia:
— Então pertence à confraria?
— Havia de ouvir. No jantar do Melchior, leu-nos uma comédia... Oh, menino, de estalar! Calembourgs deliciosos! — Estava convencido da excelência dos calembourgs, desde que os vira celebrados num jornal.
Artur, desesperado, envergonhado, acudiu:
— Não, não é só isso... É um drama...
— Não senhor, não senhor! — exclamou Meirinho, como para contradizer aquela modéstia excessiva. — Muito bons! Muito bons! O dos ovos é delicioso! É digno do Figaro!
— Vamos lá a ver o dos ovos — disse Bento Correia, com a sua tranquilidade majestosa e enfartada.
Meirinho citou-o, rindo, saboreando-o ainda. Bento Correia parecia satisfeito e disse logo outro que tinha feito na véspera, na reunião da maioria; repetiu o boeuf à la mode e continuou falando no seu tom espesso com um sujeito ao lado que escutava com os olhos, com o queixo, com toda a sua pessoa provinciana, numa admiração de discípulo, esgaravatando os dentes com a unha.
Artur considerava a grossa face lustrosa de Bento Correia, o seu olhar amortecido caindo de sob uma pálpebra pesada, a sua mastigação vagarosa, pensando, exasperado, que, para aquele homem ilustre, ele era apenas um fazedor de calembourgs, um insignificante! Era, decerto, a opinião dos outros, de todos os que tinham lido o «Século». Parecia-lhe ver nos rostos clareados de uma satisfação alvar, repleta, um desdém apático pelas suas habilidades de «arranjador de graçolas». Os lados nobres, elevados, do seu talento, desapareciam sob a popularidade de uma facécia incidental! E fora o Roma, o canalha, que preparara aquela perfídia acabrunhadora! Era o Meirinho, o imbecil, que a exagerava, a prodigalizava! Tinha-lhes ódio! O Meirinho, sobretudo, irritava-o, com o seu gesto de acariciar a bela barba clara, arrebitando o dedo mínimo de unha envernizada. O seu furor cresceu quando o Carvalhosa, que chegara tarde, com o aspecto sujo de quem vem de longe, a testa vermelha do vinco do chapéu, a cabeleira desleixada, lhe disse, sentando-se, com um tom negligente e superior:
— Então temos algum novo calembourg?
Positivamente era uma conspiração! Queriam diminuí-lo, amesquinhá-lo, reduzi-lo às proporções grotescas de um chalaceador de almanaque! Planos vagos atravessaram-lhe o espírito: fazer uma declaração nos jornais, imprimir imediatamente o drama! Desejava, sobretudo, chicotear o Roma. — E, furioso, ia erguer-se, quando apareceu o Sr. Alvim, adiantando para a mesa a sua carinha velha, muito rapada, de rugas duras, com aqueles tons de greda lívida que a caracterização e o gás dão aos antigos cómicos. Pequenino, subtil, errava todo o dia pelo hotel, fazendo vagamente sortes de prestidigitação às pessoas que encontrava, tirando um limão de uma gola, um bugalho de um nariz, empalmando um par de luvas, sob o olhar atónito de algum provinciano; estendia gostosamente a mão a uma placa de cinco tostões e o seu sorriso miúdo tinha um servilismo lisonjeador; dobrava-se em cortesias com a elasticidade de um clown; dizia-se que conhecia agiotas e que geria um lupanar: era geralmente estimado, era o «maganão do Alvim». Parecera desde o princípio simpatizar com Artur, achando nele uma passividade favorável às suas «sortes». E apenas entrou, aproximando-se na ponta das botas cambadas, seguido de olhares já divertidos, tirou-lhe do queixo, com uma surpresa cómica, uma pêra de Inverno. Em redor, riram: Bravo, seu Alvim!
E o Bento Correia concluiu paternalmente:
— Isso é tirar uma pêra de um queixo que a traz rapada!
Era um famoso calembourg! Causou deleite! Aquele diabo do Bento Correia!...
Aquele era de traz! Meirinho, entusiasmado, acotovelou Artur:
— Este é soberbo, homem! Ponha-o na comédia, ponha-o na comédia!
E Carvalhosa, com a boca cheia, repetia:
— Ponha-o na comédia! É soberbo!
— De artista — disse com autoridade o Padilhão, olhando Artur como para o aconselhar a utilizar aquele soberbo calembourg.
Artur sentia diante dos olhos uma névoa sanguínea. Era uma troça com certeza! Abafava. Disse vagamente: que calor! E agarrando o chapéu, saiu, ouvindo ainda as risadas na sala. Riam-se dele, decerto!
Desceu o Chiado, acotovelando gente, com palavras vagas, murmuradas, que lhe saíam da boca como um vapor de cólera. Entrou no Martinho, e o criado, que limpava o mármore da mesa, ficou admirado do gesto brusco com que se atirou para uma cadeira e da voz furiosa com que pediu genebra.
Quando o seu furor se evaporou, Artur. reparou no republicano, no Nazareno, que, ao lado, com a chávena defronte, fumava, a cabeça encostada à parede, as lunetas reluzindo sombriamente. Os burgueses do Universal tinham-no indignado tanto que sentiu, num impulso, uma simpatia ardente por aquele homem, hostil à burguesia, que falava nos Clubes contra ela e lhe preparava a morte. Depois das faces alvares que tinham rido do calembourg do Bento Correia, achava uma alta expressão inteligente, crítica, naquela fisionomia seca de jacobino, que tomava o seu café com uma mansidão filosófica. Como o seu drama, que era a glorificação democrática do génio plebeu, agradaria àquele republicano, àquele igualitário! Parecia-lhe agora que os Carvalhosas, os Padilhões, queriam amesquinhar o seu drama, por sentir nele um grande sopro revolucionário; e na sua indignação contra os Conservadores, os Bentos Correias, os Meirinhos, decidiu servir as ideias do Nazareno, dramatizá-las. Desejava conhecê-lo, desabafar com ele, dizer mal, odiosamente mal, da canalha que lá em cima, no Universal, lambia os bigodes húmidos de café, partindo nozes apaticamente, no enfartamento de uma nutrição cara. Procurava um meio de lhe falar, — quando Nazareno pediu ao criado a Revolução de Setembro que estava diante de Artur, aberta, enxovalhada: apressou-se a oferecer-lha, meio erguido, sorrindo; o republicano agradeceu com um movimento reservado, percorreu o jornal um momento, atirou-o para o lado com desdém e bebeu os últimos goles de café. Aquele gesto encantou Artur: mostrava o desprezo do republicano pela literatura dos Romas, dos Xavieres, da canalha! E pediu outro café, demorando-se, esperando um incidente, um olhar, alguma palavra casual que os reunisse. Mas Nazareno, imóvel, soprava espaçadamente o fumo do cigarro. Era talvez um amigo de Damião, pensou Artur. Poderia perguntar-lhe, muito naturalmente, a morada do Damião ou quando voltaria do Algarve. E ia falar-lhe, animado por dois cálices de genebra, quando o republicano pôs três vinténs sobre o mármore da mesa, ergueu-se, deu um jeito ao cabelo diante do espelho e saiu, direito e seco. Que ferro!
Saiu também, imensamente desconsolado. Aquela contrariedade fez-lhe pensar, com amargura, nas outras, bem maiores, que lhe estragavam a vida: o seu amor por aquela criatura pequenina e pálida, entrevista, logo perdida; a reputação de farsa dada ao seu drama, tão filosófica; as soirées de D. Joana Coutinho, prometidas e sempre adiadas; os seus entusiasmos literários pelo Roma, pelo Carvalhosa, retribuídos com perfídias, desdéns, troças... Tudo na sua vida era assim incompleto, esboçado, fragmentário; não encontrava nada de sólido em que se fixar, a que se dedicar: amor, relações, glória, tudo lhe escapava de entre as mãos, como a água que uma criança quer apanhar e lhe foge entre os dedos. E sentia uma solidão, uma frialdade, que a noite enevoada aumentava. Caíra um nevoeiro, que os altos prédios entalavam, condensavam, em que a luz do gás se amortecia e os vultos tomavam um tom neutro e encolhido; as fachadas escuras pareciam mais tristes, vagamente fundidas na incerteza baça da bruma.
Artur caminhava, triste: sentia a névoa prender-se-lhe ao bigode, às pestanas, amolecer-lhe a goma do colarinho, e toda aquela humidade depositar-se-lhe na alma. Cheio de tédio, sentindo-se mais só nas ruas vazias de onde o nevoeiro afastara a gente, teve um desejo de se embebedar, aquecer o corpo e o espírito com genebra, rolar-se no deboche. Voltou ao Rossio: entrou num pequeno café, onde a cor suja da parede, o soalho negro, o estuque enxovalhado, comiam a pouca luz dos bicos tristes de gás.
Instalou-se a um canto com a garrafinha de genebra, melancólico, pensando no botequim da Corcovada que, agora, lhe parecia mais confortável, mais amável do que tudo quanto encontrara em Lisboa, com a simpatia verbosa do Rabecaz, o lume a estalar do outro lado do tabique na lareira da cozinha, e as vozes conhecidas caturrando no bilhar.Um pigarro pertinaz, numa mesa ao lado, fê-lo reparar num sujeito que tomava um cabaz: pequeno e grosso, trazia um xaile-manta aos ombros e a face redonda, barbeada, mole, tinha uma cor lívida de pele de galinha; no seu olhar embaciado havia um langor mórbido e grotesco. Sorriu para Artur, dirigindo-se-lhe com uma vozinha fina: — Má noite!
— Muito má!
O indivíduo imediatamente, arrastou-se pela banqueta de palhinha até junto de Artur, com um movimento derreado dos quadris, os olhos revirados numa ternura chorosa:
— É servidinho de um cabaz?
Artur recusou. Aquela proximidade do velho embaraçava-o: o indivíduo tinha um não sei quê de pegajoso na pele, um roliço de perna efeminado que repelia, e nos seus olhos, de cor indecisa e que não deixavam Artur, errava uma luxúria turva, equívoca, flácida.
— Então por que não vai um cabazinho? — disse o homem, mais baixo, chegando-se. Artur, instintivamente, recuou com nojo. O outro teve um movimentozinho de quadris, tocou-lhe no joelho e muito canalhamente:
— Não tenha medo, menino!
Artur compreendeu, ergueu-se e com os punhos cerrados:
— Seu mariola!
— Então, menino, então! — disse o outro tranquilamente.
Artur berrou. pelo criado, atirou uma placa para a mesa e saiu furioso.
O nevoeiro cerrava; e Artur, galgando o Chiado, impelido pela indignação, ia murmurando:
— Canalha de cidade!

Daí a dias, de manhã, revia as provas dos Esmaltes e Jóias, quando a porta se abriu discretamente e Meirinho entrou, pedindo muitas licenças, envolvido no seu belo robe-de-chambre de ramagens, o aspecto mais risonho, mais serviçal.
Se estava a trabalhar, não o queria incomodar! A rever as provinhas, hem?
Examinou-as por cima do ombro de Artur, sem o deixar levantar, dizendo:
— Por quem é, por quem é, patrício! Eu não vim incomodar! Bonito tipo; elzeviriano, não? É muito chic. Versinhos de amor, hem? Seu maganão!... Ora vamos a ver, vamos a ver. — E inclinava o rosto para escutar, com êxtase.
Artur, lisonjeado, leu, na folha que revia, algumas quadras às Colinas de Santo Estêvão — «que era lá nos seus sítios»:

Oh! colinas verde-negras
Onde se escondem casais,
Pondo brancuras de cal
Nos ramos dos pinheirais...

Colinas de Santo Estêvão,
Onde eu à tarde passeio,
Colhendo nas nuvens brancas
Motivos de devaneio!

Meirinho achou «de apetite». E sorrindo maliciosamente, quis saber se ele não fazia às vezes «versinhos frescos», como os do Bocage, por exemplo...
Artur corou como uma virgem: decerto que não, que horror!
— Pois têm seu cabimento — disse Meirinho com um ar entendido. — Eu pelo-me! E olhe que na sociedade gosta-se! Gosta-se! Já se sabe, nada de grossa indecência! No género do Padilhão. O Padilhão para isso é um Deus! Conhece o Botão de Rosa, do Padilhão? Não conhece? — E parecia admirado. — Pois olhe, é falado, e como o amigo é literato... Mas em Paris é que há meninos para isso! Oh! — e revirara os olhos. — E poetas de fama! São muito apreciados. É muito chic!
Artur, ainda vermelho, estava indignado. Havia na voz compenetrada, nos movimentos de olhos de Meirinho, fazendo o elogio da poesia obscena, uma satisfação langorosa que lhe lembrava, por vagas semelhanças, o velho do café do Rossio; e aquelas opiniões estúpidas faziam parecer mais irritante a correcção da sua barba e o catitismo do seu belo robe-de-chambre de ramagens.
Meirinho passou o lenço de monograma bordado pelo nariz, e mudando de tom:
— Pois eu vinha saber se o amigo quer ir hoje à D. Joana Coutinho?
Que surpresa! Porém, à alegria repentina que lhe veio, misturava-se um vago medo que lhe fez dizer, sem saber por quê:
— Não, hoje...
Arrependeu-se logo. Queria revogar a palavra. Remexia nervosamente nas folhas impressas do livro, com as orelhas escarlates.
Meirinho exclamou:
— Qual! O amigo não tem que fazer. Eu já falei à D. Joana: ela tem imenso gosto...
Recita-se, naturalmente. É necessário levar uma poesiazinha...
Artur, por fim, aceitou, reconhecido. E para esconder o seu entusiasmo provinciano, perguntou a que horas devia ir, quem estaria...
— Ah — fez Meirinho — talvez lá encontre a tal senhora que mora em S. Bento. Se é pessoa de sociedade, uma ou outra terça-feira, deve lá ir. Vai lá tudo!
Artur fez-se vermelho de prazer. Calculou logo que devia ir comprar luvas cor de palha, uma flor... Sentia uma nova estima por Meirinho: era um bom amigo, este; pensava mesmo em lhe dedicar uma poesia no livro...
— Como o tempo melhorou, hem! — exclamou Meirinho que se aproximara da janela.De manhã ainda chuviscara, mas agora o céu azul, de um azul terno e húmido, reluzia entre largas nuvens algodoadas que a luz orlava de uma tonalidade macia de leite. Artur abriu a janela. Ao contentamento do bonito dia, misturava-se a alegria de ir à soirée: sentia-se vagamente enternecido. Via-se lá, numa sala rica, onde caudas de seda rugem sobre os tapetes, falando-lhe baixo, a ela, muito junto do leque aberto sobre o lindo rosto corado de sensações doces. Que recitaria?
— Recita-se, hem? — perguntou ainda a Meirinho.
— Costuma-se — disse o outro, que parecia distraído, passeando pelo quarto, afagando a barba, apertando os cordões do robe-de-chambre. Às vezes parava, sorria para Artur, cerrava os olhos, dava alguns passos, curvado para as suas chinelas bordadas. De repente disse:
— Então às nove, de casaca...
Dirigiu-se para a porta; mas parando, com um grande gesto:
— Homem, esquecia-me! — E riu baixo um momento, como se fosse dizer alguma coisa de muito cómico: — Sucede-me uma história engraçada. Esperava aí hoje uns dinheiros... Tem graça, não? Coisas do país!... É de um ridículo!
Esperava um dinheiro... Pois senhores, descuidam-se... E aqui estou eu... Tem o amigo dez libras, até amanhã?
Artur, um momento surpreendido, foi logo ao baú tirar as libras de um cartucho. E Meirinho, fazendo-as escorregar negligentemente para o largo bolso do robe-de— chambre:
— E de um ridículo, hem? Coisas do meu procurador! — Tornou a rir ambiguamente: — E então às nove, de casaca. E gravata preta; é escusado gravata branca...
Sorveu outro riso, e já com a mão no fecho da porta:
— A D. Joana Coutinho há-de estimar muito. Já falei nos calemburzinhos. Ela já sabe, ela já sabe!
Riu de novo, e com um deslizar doce das chinelas, saiu, dizendo:
— Au revoir, cher!
Artur ficou extremamente agitado. Ia ver enfim essa coisa extraordinária: a SOCIEDADE! Imaginava vagos diálogos, frases originais que diria, posições em que se sentaria: e sentia já umas indefinidas cólicas, a que se misturava um sopro de vaidade alegre e de timidez retraente. Se ela lá estivesse? Ousaria lembrar-lhe a estação de Ovar? E fumando, pelo quarto, perdia-se em imaginações flutuantes, em que se formava e desmanchava o romance fragmentado dos seus amores com Ela — desde o primeiro olhar até aos ciúmes do marido, até a um duelo possível!
Nesse momento um criado entrou com uma carta: era do Sr. Melchior e o galego esperava a resposta.

«Amigo Artur» — dizia o jornalista — «hoje, por acaso, eu e outro amigo combinámos uma partida ao Clube, com damas espanholas. Despesas divididas como num piquenique de amigos. Quer você vir? O outro rapaz é conhecido, é dos nossos. Resposta. O rendez-vous é às 9 em ponto na Casa Havanesa.
P. S. — A formosa Concha está pronta a ir e você será o seu cavaleiro! Viva a folia!!»

Artur ficou com o bilhete na mão, hesitando: na letra irregular e desmanchada de Melchior entrevia como que uma impetuosidade de troça, desalinhos de toilette. A ideia da Orgia aparecia-lhe toda reluzente de tentações: numa abundância de luzes de gás, jactos doirados de champagne saltando dos gargalos estreitos, mulheres de decotes atrevidos cantando, valsas improvisadas fazendo saltar os cristais sobre a mesa e em que o frou-frou das sedas se misturava ao estalar dos beijos!... Desejava muito ir — mas a sua promessa a um homem tão bem relacionado como Meirinho?... A esperança de a ver, a Ela?...Respondeu, não sem orgulho, «que sentia muito, mas já estava convidado para uma soirée no High-Life».

A casa de D. Joana Coutinho, a Santa Isabel, era um antigo prédio, com um pátio lajeado de pedra miúda, onde às vezes se via, a um canto, desatrelada, a carroça da água.
 Casada com um fidalgo da província, rico e já de idade, D. Joana Coutinho recebia às terças-feiras; aquelas soirées constituíam a sua posição social. De vez em quando, com a prudência de quem esperta uma lareira que tende a esmorecer, alguns amigos (Bento Correia dizia «alguns devotos») faziam publicar nos jornais — «que as deliciosas terças-feiras, da Ex.ma Srª D. Joana Coutinho, continuavam a ser a grande atracção da sociedade elegante». — Dizia-se geralmente que eram «soirées eclécticas»: viam-se, com efeito, nas três salas seguidas, velhos fidalgos, novos deputados, jornalistas, um ou outro banqueiro, algum ministro, poetas e estrangeiros. Às vezes recitava-se; quando dominavam as raparigas, valsava-se ao som do piano; e como seu marido conservava muitas relações na província, via-se também errar entre os grupos caracteristicamente lisboetas, algum sujeito embezerrado, de cores sadias, chegado do fundo da Beira ou das alturas de Trás-os-Montes, incomodado na casaca vincada das dobras da mala. O que sobretudo tornava estas soirées estimadas, era a disposição da mobília e a moderação da luz: as cadeiras e os sofás, cobertos, de Verão ou de Inverno, das suas housses de fustão branco, estavam dispostos de modo a formar retiros favoráveis à intimidade de um grupo ou de uma coterie, recantos obscuros, excelentes para o diálogo murmurado de um par sentimental. Às vezes, via-se assim, num canto mal alumiado, um peitilho de camisa muito chegado a um leque aberto: — era um escandalozinho em plena função, como dizia o maligno Xavier; outras vezes, de uma daquelas alcovas — Bento Correia dizia, impudentemente, «as alcovas de D. Joana» — via-se erguer um sujeito, com o rosto muito sério, entumecido, escarlate, batendo as pálpebras, como um homem mal acordado e a quem se desejaria perguntar: fez a sua soneca, hem? — As luzes, lâmpadas Carcel de globo fosco, com fortes abat-jours, concentravam toda a claridade no meio da sala, sobre inocentes álbuns e honestas vistas estereoscópicas, deixando junto às paredes uma zona de sombra adorável: assim não era necessário às senhoras, como se dizia, «puxar muito à toilette»: ligeiras modificações de enfeites, no mesmo vestido, bastavam durante um trimestre; além disso, a penumbra favorecia os rostos muito pintados e as belezas decaídas tomavam, naquele esbatido doce de tons neutros, um encanto imprevisto.
Por isso D. Joana Coutinho era muito estimada. Apesar de ser casada com um velho monótono e passivo e de ter, com os seus esplêndidos olhos negros, a sua alta estatura airosa, «inspirado um bonito par de paixões», era honesta. Tinha grandes amizades femininas: andava às vezes durante um Inverno inteiro com alguma rapariga que ninguém conhecia, desentranhada dos fundos neutros da burguesia, e que ela trazia a seu lado no landau, instalava no melhor lugar do seu camarote em S. Carlos ou no centro da sua sala, às terças-feiras, cocando-a sempre com olhos brilhantes, erguendo-se de repente para lhe ir murmurar um segredo, com risinhos quentes, muito zelosa dos seus olhares, dos seus apertos de mão. Depois, no Inverno seguinte, «outra favorita reinava»; as suas criadas tinham a reputação de bonitas e os rapazes costumavam, ao entrar, demorar-se nos corredores, tirando o paletot devagar, na esperança de entrever algum dos rostinhos maganos das «escravas de D. Joana». Estas circunstâncias davam lugar a sorrisos malignos: chamava-se-lhe, rindo: D. Juana. Mas ela era tão amável, tinha um sorriso tão bom, os seus apertos de mão faziam-lhe tilintar os braceletes de um modo tão atraente — sempre tão pronta a servir de empenho a um ministro, a organizar um bazar de caridade, a reunir um público para a leitura de um poema triste, que — como dizia Bento Correia — «todo o mundo tinha a caridade de não aprofundar».
Seu marido, de resto, parecia contente e orgulhoso dela. Era um homenzinho amarelo e silencioso, a quem os convidados, ao entrar, davam um aperto de mão mole e as senhoras mostravam os dentinhos num sorriso curto; depois, não se reparava mais nele. Muito metódico, muito económico, toda a noite errava subtilmente pela casa, arranjando uma cadeira, diminuindo no corredor um bico de gás, levantando um paletot caído. Dizia-se geralmente que sofria de um aneurisma: dois sujeitos, ambos empregados no Ministério do Reino, ambos graves, seguiam com impaciência a marcha da enfermidade, estudando-lhe a amarelidão, os cansaços, na esperança de ainda um dia gozarem os dez contos de réis de renda da viúva. Dizia-se porém que, morto o marido, D. Joana Coutinho se retiraria a um convento — onde o número e a idade das educandas satisfariam amplamente as suas necessidades de ternura feminina.
Davam nove horas no relógio do corredor quando Meirinho e Artur entraram, para despir os paletots, num pequeno gabinete alumiado por serpentinas, ao lado de um antigo tremó de província. Artur, muito nervoso, encharcado de água-de-colónia, hirto na sua casaca, com uma compressão de medo no estômago, calçava, um pouco trémulo, as luvas cor de palha, quando ouviu, saindo de uma sala próxima, um zurrar clamoroso de jumento! Voltou-se, espantado, para Meirinho... Mas este apenas sorriu, alteou o peitilho, penteou cuidadosamente ao espelho a bela barba e disse:
— É perfeito, hem?
Ao lado, o burro zurrava convulsivamente e aquele ronco bestial, vindo através de um reposteiro de fazenda escura, com um monograma bordado sob uma coroa, dava a Artur a impressão de uma estrebaria instalada numa soirée.
— É o nosso amigo — disse ainda Meirinho. Deu um puxão à casaca e ergueu o reposteiro.
Era com efeito o Padilhão: no meio da sala, torcido sobre uma cadeira, com as mãos nas ilhargas, a face roxa, fazia a sua grande imitação do «burro com cio»!
Admiravam-no! Sujeitos graves, as mãos atrás das costas, tinham nas faces burocráticas expressões aprovadoras e profundas; dos sofás, na penumbra, estendiam-se magros pescoços avelhentados, bocas de poucos dentes entreabertas de pasmo; e as senhoras, de pé, com o peito alto, a cabeça de lado, o rosto luzidio de satisfação, saboreavam com risinhos cálidos a sensação de bestialidade que espalhava na sala aquele rouco bramar de cio!
— Muito bem! Muito bem! Magnífico!
Ele erguera-se com os olhos injectados, arquejante, alargando o colarinho, murmurando:
— Esta do burro, mata-me!
Trouxeram-lhe água com açúcar; as senhoras cercavam-no, electrizadas, como procurando nele o cheiro, o calor, a excitação de Estio do animal. E pediam-lhe que fizesse a Emília das Neves! Só um instantinho! Padilhão repelia-as, quase brutalmente, inchado, bufando, e foi refugiar-se num sofá, ao pé de duas velhas, abanando-se com o lenço:
— Isto não é forja de ferreiro! Isto não é forja de ferreiro! Esta do burro, mata-me!
Meirinho então, correndo para D. Joana Coutinho que atravessava a sala, apresentou Artur. Ela deu-lhe um grande shake-hands varonil, com um sorriso amigo que lhe descobriu os dentes até às gengivas:
— Muito prazer... É admirável o Padilhão! Tem-nos divertido imenso!
Artur olhava-a: muito alta, de feições um pouco masculinas, as maçãs do rosto salientes e coradas, o nariz grande, os lábios tão vermelhos que pareciam sanguinolentos — a sua força estava nos olhos encovados, muito negros, brilhantes, voluntariosos; da sua cinta espartilhada, móbil, seca, caía uma camada espessa de saias, com um ruge-ruge de engomados e de faille dura; e havia na sua magreza, nos seus movimentos de uma ondulação felina, no seu cabelo preto e forte, no macio das suas mãos longas e estreitas, naquela quantidade de saias rijas, um tom ardente, decidido, que preocupava e irritava.
— Há muito tempo em Lisboa? — perguntou-lhe ela.
Mas Padilhão, erguendo a voz do fundo da sala, de entre um grupo de senhoras:
— Ó Srª D. Joana, venha cá! Venha decidir!
Ela deu um sorriso a Artur e foi logo, balançando a camada sonora das saias.
Artur só, isolado, procurou Meirinho com um olhar inquieto, e, não o vendo, ficou muito embaraçado, com o claque colado à perna, sentindo o acanhamento entorpecê-lo, os dedos errantes sobre o bigode. A penumbra projectada pelo grosso abat-jour verde esbatia as fisionomias num tom neutro, apagado: todas lhe eram desconhecidas. Olhou um momento uma mulher bonita, de vestido de seda amarela, que, enterrada numa poltrona baixa, o leque aberto sobre o colo, o olhar no chão, escutava com um vago sorriso um sujeito de pince-nez, de pulsos magríssimos, que gesticulava, muito chegado a ela; junto da mesa, três meninas cochichavam com risinhos, os rostos unidos, examinando um álbum. Artur, então, desejou também um álbum para folhear e os seus olhos voltaram-se ansiosamente para D. Joana Coutinho, que de pé, defronte do Padilhão, muito estirado no sofá entre vestidos de mulheres, ria, toda animada, com o braço passado pela cinta bonita de uma menina loira e gordinha. Para não, estar imóvel, aproximou-se a examinar um quadro que pendia por cima de uma consola onde havia porcelanas: mas na meia obscuridade que dava o abat-jour, apenas via os doirados desbotados do caixilho; voltou-se, mais embaraçado, infeliz: duas velhas com enfeites negros, as mãos no regaço, um aspecto de placidez embrutecida, pareciam examiná-lo com uma curiosidade desdenhosa; quase angustiado, furioso com o Meirinho que desaparecera, com D. Joana que o esquecera — entrou na outra sala, com a esperança de a ver, a ela!
Na sua turbação, distinguiu apenas, na mesma penumbra que caía dos abats-jours, peitilhos claros de sujeitos recostados, corpetes de seda onde reluziam medalhões; leques palpitavam devagarinho; falava-se francês. Junto de uma jardineira, no meio da sala, uma magnífica mulher de aspecto escultural, de bela e soberba massa de cabelo loiro, remexia distraidamente em fotografias espalhadas: sentada de lado à beira da cadeira, toda a riqueza das suas linhas ficava em relevo e a longa cauda escarlate do vestido estendia-se amplamente sobre o tapete. Mas Ela não estava, não viera, não era talvez mesmo das relações de D. Joana. A soirée perdeu para Artur todo o encanto; todo o atraente calor ambiente pareceu-lhe fictício, de um cerimonial frio. Ia retirar-se, intimidado, quando ouviu a voz de Carvalhosa: gesticulava entre dois sujeitos, ao fundo, junto da chaminé, onde um guerreiro de bronze, sobre um cavalo empinado, brandia uma espada. Aproximou-se logo dele, com um sorriso quase servil, todo reconhecido; o Carvalhosa deu-lhe um olá! seco, desdenhoso, e mesmo abaixou a voz. Artur então, desesperado, examinou um momento o bronze; sentia os pés pesados como chumbo, as orelhas ardentes; muito perturbado, veio tropeçar na longa cauda de seda escarlate: a senhora voltou-se com um olhar que brilhou e aconchegou o vestido com um gesto brusco, quase irritado.
Artur voltou à primeira sala e ficou um momento junto da porta, imóvel: sentia que as articulações se lhe emperravam. E teria de passar toda a noite, errando assim de ombreira em ombreira, mudo, grotesco, lúgubre?... E as três meninas que conservavam ainda egoistamente o álbum! Como desejaria aproximar-se do Padilhão, refugiar-se nele como numa intimidade animadora; mas via-o tão cercado de saias, de sedas, de penteados enchumaçados, de leques abertos!... E sobretudo, a intimidade que unia aquelas pessoas e as envolvia como uma atmosfera — tornava o seu isolamento mais pungente. Deviam decerto pensar: «que provinciano, que lapuz!» Achou aquela gente artificial, egoísta, amaneirada! Que saudades do seu robe-de-chambre de veludo, no quarto do Universal, ou do botequim da Corcovada, em Oliveira! Porém não podia ficar ali, espectralmente colado à ombreira da porta! Já surpreendera olhares de lado, sorrisos que lhe punham nas costas um suor aflito, e com um esforço da vontade retesada, aproximava-se da mesa, para se apoderar das vistas estereoscópicas — quando D. Joana, o peito alto, batendo o leque, num ruge-ruge de faille rica, se dirigiu a ele:
— Então tem gostado de Lisboa?
— Muito, minha senhora! — respondeu com todo o sangue nas faces.
— Ah, gosta-se sempre!... — Sorria por cima do ombro de Artur para o grupo das meninas que folheavam o álbum: ameaçou-as mesmo com o leque, com um rápido brilhar das pupilas negras.
— Está um tempo muito agradável, não?
— Adorável!
— E vai durar, é de esperar!... — Tornou a sorrir para as raparigas, a ameaçá-las com o leque.
— E demora-se?
— E provável!
— Terei muito prazer... — abaixou-lhe a cabeça com um movimento lento que lhe cerrou as pálpebras e com outro sorrisinho que lhe descobriu as gengivas, afastou-se, dizendo ainda: — O Meirinho está com o seu whist...
Artur viu-a um momento falar às meninas, rindo, com a cinta sempre móbil, como que sustentada no ar pelo tufado das saias; depois, debruçar-se para o álbum, falar-lhes sobre o rosto, pondo a mão no ombro de uma ou de outra, viva, radiante; achava-a provocante com o seu longo nariz, os dentes tão brancos, aquela magreza quase masculina onde corria uma vibração de nervos excitados; e mais animado, como se as palavras que dissera lhe tivessem dissipado o entorpecimento, atravessou a outra sala, para ir ver o Meirinho na sua partida de whist. Havia dois reposteiros; abriu um deles, e topou com uma porta fingida: num vão estava uma vassoura! Vermelho até à raiz dos cabelos, ergueu o outro: ao fundo de uma saleta, Meirinho lá estava a uma mesa de whist. Artur apoderou-se avidamente de uma cadeira e instalou-se entre ele e um sujeito de suíças grisalhas e óculos de oiro.
— Então tem-se divertido? — perguntou-lhe Meirinho.
Recebeu as suas cartas e recaiu numa reflexão imóvel, coçando devagar a barba.
Artur não sabia o whist; mas como se fumava, acendeu um charuto, mostrando-se interessado pelo jogo, seguindo atentamente as cartas, estabelecido ali como num refúgio amável, no terror da sala, das ombreiras solitárias, das caudas de seda...
O monótono movimento das cartas ia-lhe dando um torpor sonolento: com o claque nos joelhos, a cabeça vazia, uma vaga sede, abandonava-se numa inércia mole, enfastiada, de que o tirava o Meirinho de vez em quando, dizendo-lhe, com um tom satisfeito:
— Não se faz vintém!
Aquilo escandalizava o sujeito de óculos, que perdia:
— O que não se faz, o que não é decente é ter uma sorte tão escandalosa!
Parecia ter um génio irritável: certas cartadas faziam-no mexer na cadeira com um rosnar hostil; já por duas vezes olhara para Artur, de lado, com rancor.
Artur acendia outro charuto, quando o sujeito de óculos que jogara uma carta com ira, batendo-a fortemente na mesa, ao ver Meirinho estender a mão para a vaza, pulou na cadeira, fez estalar os nós dos dedos, repeliu a caixa de rapé, e disse entre os dentes:
— Eu, quando há calistos, não posso! Não posso! Nem o jogo é um prazer!
Artur não sabia o que era um calisto, mas estranhou o acento sibilante, furioso, daquela voz caturra: sentia que o sujeito de óculos o detestava; o parceiro dele, mais grave, muito calvo, disse:
— Então não se vai fazer a corte às senhoras?
Artur respondeu:
— Estou bem, gosto de ver jogar!
O dos óculos torceu-se na cadeira, soprando.
Meirinho, mudo, cofiava a barba, a face risonha, banhada na alegria do ganho.
Deram de novo as cartas, mas ao ver as suas, o sujeito de óculos deu uma punhada na mesa:
— Uma coisa assim!
Tinha a face injectada e por trás dos óculos, os olhos pequeninos faiscavam-lhe; de repente, a uma cartada infeliz, recuou a cadeira com um oh! surdo, rangeu os dentes e voltando-se para Artur, trémulo de cólera:
— Perdão, eu não tenho o gosto de o conhecer, mas não posso, não posso! Estes amigos sabem, conhecem-me o génio! Tenha a bondade de mudar de lugar! — E não se contendo, berrou com os punhos fechados: — Eu com calistos não posso!
Artur ergueu-se, pálido, balbuciando:
— Pois não, pois não!
Atirou o charuto e pisando o tapete com passos nervosos, saiu para deixar a soirée, indignado, humilhado, furioso contra Meirinho. Ao erguer o reposteiro deu com D. Joana Coutinho, que, muito afável, o chamou:
— Ia procurá-lo! O Meirinho disse-me que e poeta... Queremos que nos recite logo alguma coisa.
Todo o seu despeito se dissipou; sentiu envolvê-lo subitamente uma simpatia ambiente:
— Pois não, pois não, minha senhora! Recitarei A Pomba. Curvou-se, enternecido, e entrando na sala foi apoderar-se do álbum que as três meninas tinham deixado, muito entretidas agora com o Padilhão que lhes lia nas palmas das mãos a buena-dicha, com cerimónias de bruxo, fazendo voz sepulcral. E riam!...
Artur, folheando o álbum — pessoas reais, vistas da Pena, indivíduos de farda — recordava as estrofes de A Pomba. Pelo meio da sala, dois sujeitos passeavam pausadamente: um, muito alto, de perfil espesso, com uma enorme testa deprimida no alto, escutava, com um olhar vazio, sonâmbulo; o outro, magrinho, de passinho dançado, falava com verbosidade, uma das mãos por baixo da aba da casaca, o que lhe mostrava um pouco da camisa saída, a outra, de polegar estendido, furando o ar com gestos vivos, aqui e além; Artur ouvia-lhes ao passarem junto dele: «a portaria..., influências da prima.... o Rei é que quis.... o ministro furioso...». Às vezes paravam e o mais alto rolava em redor o bugalho baço dos olhos pasmados. Um indivíduo nutrido falava com duas senhoras de idade da irreligião dos criados! Era coisa que ele não suportava! As velhas lamentavam a perdição dos tempos... O povo estava ímpio, era obra da maçonaria... Mas um velhote, de colarinho enorme e bochechas fortes, aproximou-se. arrastando a perna: perguntaram-lhe se ia melhor: Não; estava decidido à operação... Talvez fosse fazê-la a Paris. Discutiram então médicos, farmácias, e as vozes tomavam tons dolentes, como num quarto onde se agoniza.
Mas Artur teve de se arredar um pouco para dar lugar, à mesa, à senhora de vestido cor de palha, que se aproximara com o rapaz magro de pince-nez: era alta, com um seio rico, a pele esplêndida, os olhos grandes; sentou-se, tomou uns poucos de retratos soltos que estavam num cesto de filigrana; o rapaz magro disse-lhe ainda algumas palavras baixo e afastou-se de cabeça erguida, limpando as lunetas ao lenço.
Ela deu um olhar rápido a Artur, outro, lento, à roda do vestido, comprimiu de leve um bocejo e começou a examinar distraidamente os retratos: Artur admirava-lhe as mãos de uma brancura láctea, cheias de pedrarias, o começo do braço cujo torneado, polido como um mármore, se perdia num fofo de rendas ricas, quando o Padilhão, que acabara de ler a buena-dicha, lhe veio falar: nunca a vira com melhores cores... Ela riu:
— Sim?... E então não nos faz outra imitação?
— Ah, já contribuí, já contribuí! A do burro cansa-me muito. Aqui o nosso amigo — e indicou Artur — vai-nos recitar...
Ela olhou para Artur um pouco de lado, e Padilhão, muito correcto, apresentou-o:
— O meu amigo Artur Corvelo. E agora — acrescentou — vou ver o D. Frederico, que tem perdido e está furioso... Au revoir, Srª Baronesa!
Artur, vermelho, procurava uma palavra, quando ela, reparando numa das fotografias, lha mostrou:
— É Rochefort, não é?
Artur, quase inconscientemente, soltou:
— Grande apepinador!
E, espantado, aterrado daquela frase quase obscena, que lhe saíra involuntariamente, como um arroto, sentiu a vergonha esbrasear-lhe a pele, pôr-lhe um suor nas mãos, imobilizá-lo. Viu os dois sujeitos que passeavam pararem junto da baronesa: mas através do zumbido que lhe enchia os ouvidos, as suas vozes chegavam-lhe apenas como um murmúrio remoto; percebeu vagamente que falavam do Fim de D. Juan — o poema recente de um poeta ilustre. A baronesa, que justamente o lera nessa manhã, não gostava: achava que tinha páginas incompreensíveis; o indivíduo magrinho atacava o livro: não que o tivesse lido, oh não! — não tinha tempo para se ocupar de versos, de romances, de literatura — mas constava-lhe que estava recheado de imoralidades e de ideias de Comuna... O indivíduo sonâmbulo, esse, parecia procurar uma frase na lâmpada Carcel, no penteado da baronesa, no peitilho da sua própria camisa, com olhares de uma ânsia abstracta; não a achou e passou os dedos devagar pela testa enorme, com uma lentidão cheia de agonia, enquanto o magrinho continuava a falar: parecia furioso com as ideias novas, os livros novos, os rapazes novos! Era de opinião que o Governo devia intervir. O sonâmbulo, com um esforço que lhe entumeceu mais o rosto, disse por fim, numa voz espessa, crassa:
— É todavia um rapaz bastante profundo! — teve outro esforço e murmurou num tom cavernoso: — dizem-me que tem muito fundo!
Era possível — mas a Srª Baronesa preferia a todo o Fim de D. Juan, uma simples quadra das Flores da Alma: «As flores de alma que se alteiam belas...
— Ah! — disseram ambos, concordando impetuosamente.
As palavras que chegavam por fragmentos a Artur, através da sua turbação, faziam-lhe entrever na Srª Baronesa leitura, curiosidades artísticas, um gosto formado, e a sua frase: — um grande apepinador! — parecia-lhe então mais estúpida, mais torpe!
Ergueu-se subtilmente, encolhido de vexame, e foi-se refugiar, com a cabeça a arder, na sala amarela, deserta, onde as luzes das serpentinas erguiam grandes chamas direitas. Atirou-se para o sofá, dando uma punhada no joelho, com um oh! de raiva. O que lhe fizera partir dos lábios aquela palavra abjecta? Ele, que ao nome de Rochefort sentira apertarem-se-lhe no cérebro apreciações finas, originais, pitorescas! E era àquela mulher, formosa, toda vestida de seda amarela, com uma carnação tão pura e que tinha a majestade de um mármore, que atirara uma tal chulice! Apresentado como um poeta, um estilista, um delicado, abria os lábios e soltava uma sandice obscena, ele, que mesmo entre homens. quando se desabotoam os coletes e se fala numa fumaraça de cigarro, tinha sempre uma correcção honesta de expressões!... Oh! Que pensaria ela? Que diria D. Joana?...
Sons de piano tiraram-no da sua modorra. Ergueu-se: o seu rosto, no espelho, pareceu-lhe envelhecido, parvo, e com o claque colado à coxa, chegou-se à porta da sala. Valsava-se.
D. Joana que passava pelo braço do barão, um rapazote gordinho e baixo, de colarinho muito decotado e uma barbinha rala — parou e voltando o rosto para Artur:
— Quiseram antes valsar. Raparigas!... Mas noutra noite, espero ter a ocasião de o ouvir... Tire par para uma valsa...
Artur fez-se escarlate:
— Eu não valso.
— Para uns lanceiros, então?
— Não, obrigado, não danço...
— Ah! — fez ela e afastou-se, rindo baixo com o barão.
Artur teve-lhe ódio. Desejou raivosamente um título, uma pasta de ministro, a glória de duelista, uma celebridade qualquer que o tornasse temido e admirado!
— Tem a bondade de deixar passar! — disse-lhe sobre o ombro uma voz impaciente.
Voltou-se: era o rapaz de pince-nez que trazia pelo braço a magnífica criatura de grande cauda escarlate. Artur recuou bruscamente e vendo junto de uma velha uma cadeira desocupada, refugiou-se ali, numa atitude aniquilada e hostil, por trás de uma poltrona, onde pôs o claque que o impacientava. Como desejaria entrar naquela sala à frente de uma multidão furiosa, numa noite de revolução! Espedaçar os espelhos à coronhada, carregar de algemas aqueles pulsos de magricelas! Ver aquelas mulheres tão triunfantes, de peitos erguidos, arrastarem-se de joelhos aos seus pés, na imploração soluçante de uma casta vencida!
O sujeito magrinho que admirava as Flores da Alma, tocava ao piano o Danúbio Azul, com movimentos ternos de cabeça que condiziam com as suas preferências poéticas; tinham recuado a mesa, e no soalho encerado à francesa quatro pares giravam com um frou-frou de sedas, num rápido resvalar de solas; as porcelanas sobre a consola tremelicavam levemente; os leques tinham uma palpitação mais rápida; falava-se com uma vivacidade comunicada pelo ondear das saias e a vibração do teclado; as meninas, à beira das cadeiras, com os pezinhos impacientes, tinham um brilho mais vivo nas pupilas, e o globo do candeeiro, sem abat-jour, alumiava, defronte de Artur, um vasto quadro à Salvator Rosa, onde havia ruínas, pinheiros mansos e bandidos românticos.
Então a velha senhora de enfeites negros pareceu acordar, bocejou, mastigou em seco e voltando-se para Artur:
— Faz favor de ir dizer à Maria que vão sendo horas.
Artur hesitou, balbuciou:
— Eu não conheço...
A velha olhou-o com curiosidade, desembaraçou uma luneta de oiro dos berloques do relógio, aplicou-o com a cabeça erguida e chamando um rapaz loiro, que veio, todo afável, limpando a testa do suor da valsa:
— Faz favor de dizer à Maria que são horas...
— Oh, Srª D. Sofia, pelo amor de Deus! — acudiu o moço. — Isso é uma tirania.
Mais meia hora, pelo amor de Deus! — e abria os braços suplicantes.
— É que eu depois é que a aturo — murmurou a velha;–vá lá, vá lá...
Tornou a mastigar em seco e pareceu readormecer.
Os sapatos de verniz começavam a torturar Artur: decidiu partir e foi à sala de jogo, chamar o Meirinho. Ao vê-lo, o sujeito de óculos teve um movimento de terror e Meirinho que perdia agora, muito vermelho, respondeu com impaciência:
— Aqui cada um sai quando quer!
E agarrou as cartas, furioso.
Aquelas palavras bruscas escandalizaram Artur: lembrou-se com despeito das dez libras emprestadas — resolveu exigir-lhas. Detestava agora o Meirinho, D. Joana, a Sociedade, Lisboa, e vestia na saleta o seu paletot, quando viu com terror que lhe esquecera o claque, na sala, sobre a poltrona. Despiu de novo o paletot, desesperado, e voltou à sala. Que raiva! Uma senhora robusta, a quem chamavam familiarmente «a viscondessa», sentara-se na poltrona! Ainda pensou que ela tivesse visto o claque, o tivesse atirado para outra cadeira ao pé: não — gorda, enorme, com uma espessura tremenda de saias e de folhos, sentara-se, sem o sentir, em cima do claque chato! Ficou aniquilado. Como ousaria pedir àquela majestosa senhora «que se erguesse, que queria o seu chapéu»? Pensou que se levantaria em breve, libertando assim o seu claque e perfilou-se um momento junto à ombreira da porta; depois, foi ver todas as fotografias na sala onde o cavaleiro de bronze erguia a sua espada; foi examinar os livros numa estante envidraçada; não se atrevia a consultar o Meirinho, Padilhão valsava, Carvalhosa saíra. Decidiu então dizer à viscondessa um dito espirituoso, original, que a fizesse logo erguer, rindo, amável, encantada, mas acudia-lhe apenas a frase natural, seca: «a senhora está em cima do meu chapéu!» De repente lembrou-lhe que talvez fosse uma partida: queriam escarnecê-lo, torturá-lo; um sopro de orgulho, de revolta, sacudiu-lhe a vontade: não! Iria à sala, faria levantar aquele enorme corpanzil de matrona obesa, e se visse uma face de homem sorrir, espalmar-lhe-ia uma bofetada! Voltou à sala, resoluto, mas ficou logo inerte, acabrunhado, vendo a viscondessa imóvel, com o seu grande nariz bourbónico muito lustroso, cercada do rapaz de pince-nez, do sonâmbulo, do magrito. Teve desejos homicidas: sentia-se tão desgraçado que se lhe humedeceram os olhos. Sem motivo, de repente, Lembrou-se da sua mãe e enternecido voltou à sala amarela, atirou-se para o sofá com a cabeça entre as mãos.
Um frou-frou de saias roçou o tapete e uma voz disse:
— Está incomodado?
Era D. Joana, pelo braço do barão. Artur ergueu-se bruscamente, explicou que tinha uma enxaqueca...
Sim, com efeito, na sala dentro estava um calor... Mas não consentiam que se abrisse uma vidraça... O ar fazia-lhe bem. E acrescentou:
— Ah, se espera pelo Meirinho, olhe que ele não larga o whist senão alta noite.
E Artur, atarantado, pensando vagamente que D. Joana o expulsava:
— Ah! eu vou já, não me demoro...
Ela estendeu-lhe a mão:
— Espero tornar a ter o prazer... Às terças-feiras...
Artur, só na sala, pensava: e o chapéu? Agora que se despedira de D. Joana não podia voltar a imobilizar-se na ombreira da porta, esperando que a viscondessa se levantasse. E poderia explicar que o seu claque estava debaixo das gorduras da excelente senhora? Ririam, seria prodigiosamente grotesco.
Com uma esperança voltou à sala: lá estava a viscondessa, repimpada, as mãos gordas no regaço, estabelecida, palrando com a sua voz nasal. D. Joana Coutinho, essa, pareceu surpreendida de o ver e muito amável:
— Perdeu alguma coisa?
— Não — acudiu — era o Carvalhosa...
— Ah, foi-se! Aquele ingrato, está um momento e desaparece...
Artur inclinou-se e saiu. Estava farto, que diabo! Vestiu o paletot e desceu a escada sem chapéu; mas ficou aterrado: no pátio, havia dois trintanários de casacos brancos e um cocheiro de praça. Tornar a subir?... Não! Retesou a vontade, dirigiu-se para o portão, enquanto o criado,, atónito, abria devagar a grossa fechadura. Sentia por trás risinhos fungados, a chave perra parecia resistir. Artur tremia de raiva, de vexame; — enfim a porta maciça rolou, e uma frialdade húmida envolveu-lhe a cabeça: chuviscava.
Então amarrou o lenço com um nó debaixo do queixo e cosido com as casas, querendo enterrar-se na escuridão, apressou-se, correndo quase,. com a chuvinha miúda fustigando-lhe o rosto, a garganta túmida de lágrimas. Mas perdeu-se, vagueou pelo Rato, pelo Salitre; pessoas paravam, assombradas daquele indivíduo cujos passos pareciam de ébrio, com um lenço apertado na cabeça! Na Rua da Escola, encontrou um trem que recolhia: atirou-se para dentro, gritou:
— Para o Universal!
Que alívio ao pisar o tapete do quarto! Despiu a casaca com uma cólera impaciente, arrancou bruscamente a gravata como se quisesse arrojar de si, com a toilette que lhe representava a soirée odiosa, todos os seus desejos de sociedade, de encontros amorosos em salas aristocráticas...
Só quando ia apagar a luz é que se lembrou que em casa de D. Joana Coutinho, ao outro dia, encontrariam o chapéu! Pelas iniciais que ele,. tolo, mandara bordar no forro de cetim azul, reconhecê-lo-iam! Que risadas! Formar-se-ia a lenda do poeta de Oliveira que esquecera o claque, o peludo! Oh!... Mas que lhe importava! Estava bem resolvido a não voltar lá, nem a outra soirée! Isolar-se-ia na Poesia, na Arte! Frequentaria Nazareno, seria um revolucionário, conspiraria contra aquele mundo burguês, bancário, fictício, idiota! E escreveria uma sátira tremenda contra os ridículos jogadores de whist, e as grotescas viscondessas gordas! Canalhas! — murmurou, aconchegando-se aos lençóis.
E começava a pegar no sono, quando, como o frio de uma lâmina, lhe atravessou o cérebro a ideia da frase que dissera: Grande apepinador! Era a única que pronunciara! Deu um murro no colchão, rugiu uma obscenidade, e com um Oh! de raiva e de vergonha, enterrou a cabeça no travesseiro. Toda a noite sonhou com a soirée: valsava com a Srª Baronesa, mas no chão encerado escorregava, entre as gargalhadas agudas da velha de enfeites lúgubres; não se podia erguer e aquela gente impiedosa, estúpida, egoísta, continuava valsando alegremente sobre o seu corpo prostrado; sentia sobre a testa, onde viviam ideias que ela não tinha, pularem os sapatinhos de cetim da senhora de cauda escarlate, e no peito, onde palpitava um coração, que não batia no peito dele, enterrarem-se as tachas dos tacões do sonâmbulo!

Dormia, já tarde, ao outro dia, quando a porta se abriu bruscamente, depois a janela, e viu junto do leito, Meirinho, pálido, com os olhos fora das órbitas, e o seu claque na mão!
— Então — gritou ele — então o senhor saiu ontem sem chapéu?
Artur fingiu-se estremunhado, bocejou, espreguiçou-se, disse vagamente:
— O que é? O que é?
— O que é? — E o claque tremia nas mãos coléricas de Meirinho. — É isto! É o seu chapéu! Então o senhor saiu sem chapéu!
Artur afectou rir: — pensara que o tinha perdido, procurara-o, estava com dores de cabeça, havia uma tipóia em baixo...
Meirinho levou as mãos à cabeça:
— Ih, Jesus! Que vergonha, meu caro amigo! Eu, esta manhã, recebo um chapéu, com um bilhete de D. Joana, dizendo que tinham achado aquele claque e que, só depois de muitos tratos à memória, é que descobrira pelas iniciais que era o seu! Estava numa poltrona! A viscondessa, toda a noite, esteve sentada em cima!
Artur tentou rir: até tinha pilhéria!
— Pilhéria? — bradou Meirinho, batendo, assombrado, com as mãos uma na outra.
— Pilhéria? É uma vergonha! Que hão-de dizer! Eu não me atrevo a ir lá, eu nem me atrevo a ir lá outra vez! Uma coisa assim!
Levou as mãos à cabeça e saiu desesperado.
O claque ficara sobre a cama: então Artur, lívido, agarrou-o e torceu-o com tanto rancor que lhe quebrou a mola. Maldito, vai-te! E atirou-o furioso para o canto da roupa suja. Saltou com os pés nus para o chão e toda a manhã, esguedelhado, com os olhos vermelhos, embrulhado no robe-de-chambre, rimou uma sátira amarga contra a sociedade, contra o High-Life:

Oh! corações de pedra, oh! homens do milhão!

Capítulo VI

Nessa noite, entrando no Martinho, viu com prazer um lugar vago junto à mesa onde, como de costume, Jácome Nazareno tomava o seu café. Desde a véspera, o seu desejo de o conhecer redobrara. Repelido da soirée de D. Joana pelo mundo conservador, oficial, estabelecido, tendia instintivamente, no seu despeito, a refugiar-se no mundo revolucionário, revoltado, de que Nazareno lhe aparecia como o representante. Amava, sobretudo, a democracia, por certos dados humanitários, sentimentais, reparadores, e supunha, nos homens que a serviam, um calor de coração, uma fraternidade sensível, que a sua natureza efeminada apetecia — e que faltava à gente seca, fictícia, sem generosidade e sem entranhas que tanto o humilharia em Santa Isabel: além disso, devorava-o um desejo vago de se vingar da Sociedade — e queria concorrer para a sua destruição provável, aliando-se ao Nazareno e aos seus amigos, levando-lhes as suas poesias, o seu estilo, o seu dinheiro e o seu ódio.
Para facilitar o conhecimento, teve o cuidado, ao sentar-se, de cumprimentar discretamente o republicano, e como reparara que ele nunca bebia alcoólicos, não tomou a sua genebra habitual: pediu anisette. Fumando devagar o seu charuto, revolvia frases filosóficas que lhe diria, esperando uma casualidade que os reunisse, quando um sujeito de aspecto doente e que parecia saído de um hospital, se aproximou devagar de Nazareno: tinha os lábios naturalmente entreabertos, o nariz afilado, uma palidez oleosa, a barba desmazelada; parecia sair da cama e conservava ainda na pele, na camisa sórdida, na guedelha seca, o cheiro da febre e o relento dos suores; apoiava ao mármore da mesa duas mãos lívidas, moles, pegajosas, de unhas negras e com uma voz débil, de rouquidão asmática:
— Então quando fica pronto?
Nazareno, pousando o cigarro à beira do pires, disse:
— Daqui a quinze dias. Foi necessário pôr papel, que a parede estava ignóbil.
A sua voz que Artur ouvia pela primeira vez, tinha um timbre enérgico e resoluto. O doente varreu a mesa com a palma da mão, limpou os dentes com a língua e perguntou mais baixo:
— O Matias?
— Tem a nevralgia hoje.
— Lá falei com o homem de Alcântara.
— Então?
O doente estendeu o beiço, oscilou a cabeça:
— Sim, boas ideias, chega-se, mas... É preciso espicaçá-lo. Vou mandá-lo amanhã ao Matias!
— O Matias amanhã tem a nevralgia, tem sempre dois dias de nevralgia.
— Ah! E o Damião? Quando vem?
Nazareno tirou do bolso um maço de papéis e mostrou-lhe uma carta. O doente leu, sorriu, mostrando as gengivas brancas e disse:
— Coisas do Damião... — Derramou em redor o seu olhar mórbido, tossiu com fadiga e erguendo a gola do paletot:
— Vou-me chegando que está húmido... Apareça, Nazareno.
O republicano retomara o seu jornal, mas Artur tinha agora um pretexto, quase o direito de lhe falar: amigo de Damião, quereria saber se a sua ausência se prolongaria na província. Animou-se, e corando, com o chapéu na mão, a voz acanhada:
— Eu peço perdão a V. Exª. Não tenho o gosto de o conhecer, mas... ouvi, sem querer, V. Exª, falar no Damião. É o meu amigo íntimo... Desejava saber se se demora, se...
— O Damião ainda tarda um mês.
Dobrou o jornal, bebeu um gole de café e ajeitando as lunetas: — Então conhece o Damião?
Artur apossou-se de uma cadeira, estabeleceu-se à mesa. Exagerou Jogo as suas relações com o Damião: eram íntimos já desde Coimbra, tinham sido companheiros de casa, escreviam-se sempre... Ele até viera a Lisboa para viver com ele... Infelizmente tinha partido. — Grande rapaz, hem?
Nazareno teve um gesto de respeito simpático, fez:
— Ah!
Artur então exaltou Damião. Já em Coimbra era o centro das Inteligências. Era uma das fortes cabeças do País. E que espírito, hem?! E bom coração. Não havia melhor no Partido Democrático... — Repetiu duas vezes: o Partido Democrático, para se pôr com Nazareno em comunhão de ideias. Mas o republicano escutava-o, reservado, quebrando a cinza do cigarro no pires: examinava-o com insistência, pondo nos olhares, abrigados pelas lunetas defumadas, penetrações de bisturi.
— Conhece o Matias? — perguntou-lhe bruscamente: Infelizmente não, e desejava-o bem. E o Sr. Nazareno conhecia o Fonseca? Não? Grande rapaz! Vivia em Castelo Branco. Ah, havia então, em Coimbra, no tempo do Pensamento, uma grande rapaziada. E havia união... O que faltava em Lisboa era união e — um jornal... — E surpreendido, contente da facilidade com que as palavras lhe acudiam, desforrava-se da mudez que o dominara na soirée de D. Joana, mostrando-se ao Nazareno sob um aspecto cativante de moço entusiasta e generoso.
O republicano respondia apenas por monossílabos, uns sins rosnados, afirmações de cabeça. Artur ofereceu-lhe uma anisette, alguma coisa; Nazareno recusou tudo, mesmo um charuto. Havia em toda a sua pessoa um retraimento, uma congelação que desanimava Artur e lhe esbatia a verbosidade como a humidade extingue uma fogueira: teve de acender outro charuto para ocupar uma pausa. Mas Nazareno disse-lhe então:
— O senhor vive em Lisboa?
Infelizmente não. Contou com sinceridade o que o trouxera à Capital: a publicação de um livro de versos, a representação de um drama, o desejo de um meio inteligente, literário e o horror à província...
— E que tal se pensa na província? Boas ideias democráticas?
Artur riu. Qual! Estava-se tão atrasado como no tempo dos frades. Uma colecção de pequenos burgueses, imbecis, rotineiros, caquécticos; meia dúzia de ricaços que seduzem as raparigas e fazem eleições... Citou exemplos de Oliveira de Azeméis, não duvidando, para lisonjear o republicano e ter graça, fazer a caricatura da estupidez do Carneiro, dos vícios do Rabecaz, da devoção das tias... E o pobre povo...
— Reza e paga — disse sombriamente Nazareno.
Atirou o cigarro para o fundo da chávena, carregou na copa do chapéu com a mão espalmada e ergueu-se dizendo que, para conversarem, era melhor irem para fora. Havia ali gente que escutava e nem toda a gente devia ouvir. E já à porta acrescentou, aprumando a estatura:
— Que eu para os espiões tenho em casa uma bengala sofrível.
Caminharam calados até ao Rossio. A noite tinha um vago ar lúgubre: nuvens escuras cobriam e descobriam uma Lua fria de Inverno, de tons lívidos.
— Peço perdão — disse Nazareno; — a quem tenho a honra?...
— Artur Corvelo.
E para dar ao republicano uma impressão favorável, propôs que fossem conversar para o Hotel Universal: tinha lá um quarto confortável...
Porém Nazareno, com o tom hirto de um devoto que alude a uma orgia — respondeu que não frequentava esses covis de conservadores... Todo o luxo, com efeito, o irritava; sem inveja. mas sóbrio e simples, condenava-o como funesto à democracia.
Artur, receando que a elegância da sua instalação o fizesse duvidar da sinceridade do seu liberalismo, apressou-se habilmente a denegrir o luxo — explicando que o que lhe convinha era viver num quartito modesto, que, no Universal, a frequentação dos conservadores e brasileiros o irritava, que fora para lá mal informado, pondo nas suas explicações urna humildade e um fervor que, todavia, não acalmavam Nazareno.
— Não se encontram nesses sítios senão ladrões e devassos — disse ele.
Foi logo a opinião de Artur — e satisfazendo o seu ódio da véspera, ao mesmo tempo que agradava a Nazareno, citou o Meirinho como a personificação daquela «corja da sociedade»: pintou-o como um idiota, ocupado de cãezinhos de marquesas, intrujão, pedindo dinheiro aqui e além, vendendo por preços de ladrão, fatos feitos que eximia aos direitos, inventando detalhes — para mostrar a sua verve de artista e a sua indignação de justo.
— Todos os mesmos, todos os mesmos — rosnava Nazareno.
Uma mulher coberta de luto adiantou-se para eles, pedindo esmola, com um murmúrio plangente. Artur, para mostrar o seu humanitarismo, apressou-se a dar-lhe uma moeda de prata, dizendo: «pobre criatura, por este frio».
— O povo não precisa de caridade, precisa de justiça — disse dogmaticamente Nazareno.
Artur, um pouco surpreendido da forma literária do princípio, objectou todavia que enquanto não vinha a justiça...
— É mau — interrompeu o republicano — acostumar o povo a contar com a caridade. Ele sabe os seus direitos: que os realize!
Artur sentia confusamente acudirem-lhe muitas respostas, todas justas; mas, por timidez calou-se, murmurando: «talvez, talvez...». O republicano começava a desagradar-lhe. As suas naturezas — uma toda de impressões, a outra toda de raciocínio — discordavam, e havia entre eles como alguma coisa de frio, de hostil, que os separava. Mas o que mais descontentava Artur era não ver no republicano aquela bondade quente e evangélica, que era para ele o atributo melhor da democracia.
— Sobre que é o seu livro de versos? — perguntou-lhe o outro.
Para dar uma ideia das tendências do seu livro, falou então na Ode à Liberdade, na sátira A Sociedade. Era um livro democrático... A poesia moderna, como dizia o Damião, devia ser revolucionária. Mas Nazareno detestava a poesia: a sua forma luxuosa, totalmente idealista, servia apenas para amolecer as virilidades. Nunca lia poetas.
Artur, ofendido, exclamou:
— Mas Alfredo de Musset, Garrett?...
— Pulhas! — disse dogmaticamente o republicano. — Musset era um libertino, um bêbedo, um boémio, que nunca compreendeu o seu tempo e que o que soube celebrar foi a luxúria! E Garrett, um janota! Usava espartilhos e em pleno século XIX vem-nos falar de romances de cavalaria e de outras pieguices góticas... Um vendido!
Artur sentia-se indignado. E que tinha a dizer de Lamartine?
— Um erótico!
— Ora essa! Mas em 48...
— Comprometeu tudo. Fez frases. Faltou-lhe a ideia, a inspiração da justiça, a alma do povo! Vinha das salas, das camarilhas. O seu ideal era a regência da Duquesa de Orleães, de quem ele queria ser primeiro-ministro e amante, à Mazarini. Um vendido!
Oh, era de mais! Artur, atónito, procurava razões, frases, parecendo-lhe agora que o republicano era tão seco, tão fictício como os burgueses da soirée de D. Joana Coutinho.
— E o seu drama o que é? — disse ainda Nazareno, com um tom interrogante de pedagogo. Artur, que aquele interesse lisonjeou, descreveu-lhe logo o drama, insistindo no lado democrático — a glorificação do amante plebeu, a humilhação do marido fidalgo — ocultando-lhe o elemento lírico e romanesco do trabalho. O plano, assim contado, pareceu satisfazer Nazareno; porém, deu-lhe conselhos: — para que dar ao protagonista, ao filho do povo, a profissão estéril e imoral de poeta lírico? Devia-o fazer engenheiro, médico, empregado de uma companhia; devia seduzir a duquesa, não pelo brilho do seu lirismo, mas pela justeza das suas ideias. Contudo a verdadeira obra de teatro era a comédia satírica à Molière, a comédia aristofanesca, a exposição dos vícios, das infâmias, da imbecilidade desta canalha lisboeta: alguma coisa de fustigante, de vergastante! Dizia isto com um acento de ódio que lhe passava entre os dentes, e atirava vergastadas ao ar com o guarda-chuva, como se açoitasse num só dorso toda uma Sociedade!
Artur apressou-se a concordar. Essa era a sua intenção: e alargava-se em considerações sobre a Comédia Social, fazendo renascer a simpatia comum. Mesmo, para mostrar a sua veia de observador, para desabafar os seus despeitos, pôs-se a dizer que belo acto daria a soirée de D. Joana — «uma soirée idiota, onde fora arrastado e que era do melhor que havia em Lisboa» — porque não desgostava de mostrar que tinha relações aristocráticas, mesmo fazendo-lhes a caricatura. Contou a opinião dos dois homens graves sobre o Fim de D. Juan, a conversa do velho sobre a irreligião do povo, os adultérios que pressentira, a grotesca figura da viscondessa, os vícios de D. Joana...
— Pouh! — fez Nazareno com nojo. — Que sociedade, que asco! Não, realmente, o Matias tem razão, é humilhante lutar contra uma tal sociedade! A luta supõe forças que se encontram! mas assim, temos de um lado a força, do outro a pústula! Pouh! Portugal não deve ser reformado, como diz o Damião, deve ser queimado a nitrato de prata!...
Estavam no Terreiro do Paço: uma Lua lívida deixava cair de entre as nuvens uma mancha luminosa sobre a água sombria.
— Tudo isto precisa ser arrasado! — disse ainda Nazareno, mostrando em redor as Secretarias negras, de uma uniformidade enfática. Tinha parado e olhava, apertando com cólera o cabo do guarda-chuva, toda aquela reunião de edifícios oficiais, como a pesada e antiquada personificação de regimes funestos — o Banco e o seu ágio, a Alfândega e os seus direitos, os Ministérios e o seu bureaucratismo — e pensando no mundo estabelecido, farto, que vive daquelas instituições:
— E lembrar-me — exclamou — que um homem como o Matias está reduzido, para ganhar a vida, a rever dicionários, cartilhas e manuais enciclopédicos! Oh! Dá-me vontade de vir para a rua e fazer fogo sobre toda esta gente...
Depois da sua reserva, aquela expansão de cólera impressionava Artur e as injustiças sociais pareciam-lhe maiores, desde que podiam aquecer num desespero tão alto aquela figura seca de seminarista.
Mas Nazareno calmara-se. Pôs-se então a falar do Matias e a sua voz tornou-se grave, quase solene. Matias era um justo: era casto, era incorruptível, de uma alta elevação moral; vivia num quinto andar, pobre, sereno; de dia trabalhava na tipografia, à noite no seu livro; não tinha um pensamento que não fosse pela liberdade e pela revolução. — É um Robespierre! — resumiu Nazareno, que, com o seu espírito autoritário e dogmático, muito bilioso, tinha um culto pelo chefe do Clube dos Jacobinos.
Artur, electrizado, mostrou um grande desejo de o conhecer. Mas algumas gotas de chuva caíram, e Nazareno, abrindo o guarda-chuva, prometeu que lhe falaria. Seria mesmo possível conseguir que o admitissem como sócio do Clube Republicano.
Artur experimentava uma satisfação profunda. Era o seu velho ideal enfim realizado! A simpatia generosa de Jácome Nazareno comovia-o; roçava-se por ele, aconchegava-se-lhe, orgulhoso da sua amizade e do abrigo do seu guarda-chuva. O Matias, o Clube Republicano, a ideia vaga de um partido, apareciam-lhe como alguma coisa de forte, em que a sua vida, cheia de flutuações, encontraria enfim estabilidade, regra e uma ideia elevada, cujo serviço engrandeceria a sua personalidade.
— Eu não valho muito — dizia, humilhando-se, mais por ternura que por modéstia — mas enfim, para escrever, para lutar... Se fosse necessário fundos para um jornal... – Oferecia-se com uma dedicação real, desejando naquele momento ter para o serviço da República — génio, tesouros, as forças de um leão!
A chuva cessara e Nazareno, fechando o guarda-chuva:
— Há-de achar em que se empregar: todas as aptidões vão ser necessárias para preparar a grande barrela.
— Mas quando virá ela? — disse Artur com desalento, como se lhe tardassem os vagos triunfos, as vagas vinganças que entrevia na República...
Nazareno parou e disse, brandindo o guarda-chuva:
— A pêra está madura! — E explicou jovialmente que era uma pilhéria de 48, em França, nos banquetes reformistas, quando à figura bojuda de Luís Filipe fora dada a alcunha de pêra e as suas teimas de déspota burguês lhe tinham trazido o ódio público.
Artur, todavia, achava o partido republicano em Portugal bem desunido, bem vago, sobretudo bem limitado...
Nazareno citou logo as forças de que dispunham, ainda dispersas, mas que um sentimento crescente de justiça e de progresso tendia a unir, a organizar. Falou nos operários de Lisboa, do Porto; na pequena burguesia «que é de instinto republicano». E baixando a voz, grave pela importância da revelação:
— Em Coimbra forma-se um Clube, no Porto outro, em Viseu outro... — Calou-se um momento e continuou: — E depois que importa? As ideias fazem o seu caminho sem os homens; não são necessários muitos homens para fazer triunfar uma ideia. Os Apóstolos eram doze — e o mundo é cristão!
A chuva recomeçara; e ao fundo da Calçada do Alecrim separaram-se, quando soavam devagar as onze horas na torre da Igreja de S. Paulo.

Artur galgou a calçada do Alecrim, impressionado, exaltado. Decidia-se agora a abandonar todos os hábitos de sociedade, as esperanças vãs em amores fictícios, a literatura puramente lírica: queria trabalhar para o estabelecimento da República, compor comédias satíricas, à Casamento de Figaro, que abalassem o velho regime; e vinha-lhe um desejo de se dar a todos os que sofrem, como se as palavras de Nazareno lhe tivessem posto na alma uma tão grande energia de amor humanitário, que só se satisfizesse esposando a miséria universal! E ao mesmo tempo, recordações de leituras da História da Revolução Francesa lhe voltavam ao espírito, dando-lhe moldes para conceber atitudes, situações, episódios: via-se brandindo uma espada, à frente de operários que um antigo opróbrio enchia de furor; ou de noite, numa vaga sala baixa, onde vagas sombras se agitavam, decretando incêndios de palácios; ou ainda, severo, interrogando o Rei prisioneiro, como na volta de Varennes. E como os impulsos de piedade e de fraternidade lhe voltassem ao coração, olhava em redor, procurando algum pobre que socorresse, algum oprimido a libertar. Viu apenas a patrulha cujas grossas capas de oleado reluziam sob a chuva. Ao entrar no hotel, as janelas alumiadas do Restaurante Silva deram-lhe a ideia de cear; porém, pensando que àquela hora famílias operárias sofriam fome, impôs-se com orgulho àquela privação, em respeito aos necessitados e num sentimento de vaga igualdade fraternal. Quando entrou no quarto foi-se ver ao espelho, enternecido de se sentir tão bom — e vinham-lhe ao mesmo tempo baforadas de vaidade, um antegosto de desforra, pensando que num dia, próximo talvez, apareceria àquela Sociedade que o ignorava e o desdenhava, poderoso, num terror de apoteose popular. Deitou-se, fez maquinalmente o sinal da Cruz, como tinha por hábito, e adormeceu cansado.
Foi Melchior que o acordou ao outro dia, abrindo as janelas com ruído. Vinha muito jovial, e dando-lhe palmadas por sobre a roupa:
— Seu preguiçoso! Upa! Upa!
Artur abriu à luz olhos aparvalhados de sono: estava sonhando justamente que do portal da Casa da Câmara, em Oliveira de Azeméis, proclamava a República, ao agitar dos lenços nas janelas, entre um estalar de foguetes e os vivas furiosos da plebe libertada; e ainda vibrante dos entusiasmos daquela gala, não reconhecia a grossa figura de Melchior, de bigodes arrebitados, a face jovial e um raminho de violetas no jaquetão.
— Então por que não veio você ao piquenique, seu tipo?
Artur espreguiçou-se e disse, bocejando, que estava comprometido.
— Pois perdeu! — exclamou Melchior. — Grande patuscada! Tudo sossegadinho, sem desordens, sem troça, em boa amizade... Ceiazinha rica e belo fado! Enfim, uma noitezinha cheia! E a Concha ficou com um ferro! Está com vontade de o conhecer, homem! Está em brasas por o ver!
Artur lamentou não ter podido... Tinha-se comprometido a ir a casa de D. Joana Coutinho...
— Cáspite! — exclamou Melchior, saudando-o.
— E então?
Muito bem. Todos muito amáveis, tinha-se divertido... Estava boa gente.
— Cáspite! Cáspite! — dizia Melchior, torcendo o bigode. E com um tom ambíguo, descontente, declarou que, para ele, as soirées eram uma estopada. Nunca lá ia — não que não andassem atrás dele, mas... Aborrecia-se, que diabo! Não havia para o regalo do corpo e da alma como uma boa pandegazinha ao Dafundo. E então, talvez para fazer inveja a Artur, contou as alegrias da patuscada, deu detalhes, citou episódios, falando da Concha, da beleza da Concha, da pele da Concha!
— Mas quem é a Concha?
Melchior encolheu os ombros, com impaciência, como se Artur lhe tivesse perguntado quem era Pio IX.
— A Concha! Então você não sabe? Não se lembra em S. Carlos, daquele rapaz tísico, o Inglês? Pois bem, a Concha estava com ele; deixou-o, que o pobre diabo já se não levanta, às bacias de sangue pela boca! É a espanhola mais bonita que tem vindo a Lisboa. E rapariga fina... Coitada, está naquela vida... mas muito fina. É filha de um general, muito bem educada. Toca piano, oh menino! E depois que maneiras! A comer, é urna duquesa! E que pé, que pé! É de endoidecer.
Artur espreguiçou-se com uma vaga languidez.
— Bonita, hem?
— Caramba! — fez Melchior com um grande gesto.
Do quarto próximo vieram sons de piano e duas vozes, uma de soprano e outra de tenor, começaram a cantar o dueto do terceiro acto do Fausto: «Al pallido chiarore dei astri d'oro». Melchior escutou um momento: devia ser a segunda dama de S. Carlos, que estivera doente, a ensaiar com o Videlli.
— Vá, vista-se, homem! — exclamou. — Estou a cair com fome. Está um dia lindo!
Abriu a vidraça. Os rumores da rua entraram com a larga luz festiva.
— Arriba! Arriba!
Artur saltou vivamente para o chão. A linda manhã, o alegre rodar dos trens, aquele ensaio, ao lado, de uma ária elegante que punha no quarto uma intimidade de bastidores, a ideia da Concha «que o queria ver», davam-lhe vagos rebates de felicidade; sentia-se leve, desejoso de ir para a rua, ver mulheres com toilettes bonitas, o aço dos arreios dos trens ricos reluzir à porta das lojas. E ajanotava-se, enquanto Melchior se debruçava da varanda, torcendo o bigode, escarrando alto, a ver se pescava a segunda dama.
Ao almoço, Melchior voltou a falar da Concha, enquanto devorava a sua omeleta: se fosse rico, punha-lhe casa... É que era uma rapariga com quem até se podia conversar... É verdade, tinha pilhéria! E depois, coração... Sentia, que diabo! Artur considerava-o, notava-lhe a face grossa ocupada a mastigar, a pele engelhada em volta dos olhos, a calva crescente, o bigode espetado: — «se a Concha sentia alguma coisa, não era decerto por aquele tipo!» — E como Melchior insistia, «que ela desejava muito ver Artur», vinham-lhe vagas dilatações de vaidade, de desejo... Talvez ela o amasse!
— Ela conhece-me?
— Viu-o em S. Carlos. Reparou em você!
Artur recostou-se na cadeira: não duvidava que lhe tivesse feito impressão. Depois das suas humilhações, aquela ideia deleitava-o; às vezes, naquelas mulheres andaluzas, encontram-se almas profundamente amantes, ávidas de sacrifício... Gostaria, numa manhã assim luminosa, almoçar com ela, fresca e branca, com o seu penteador de rendas fofas, ou ainda, à noite, de Verão, com as janelas abertas, vê-la soltar as notas cálidas de uma malagueña que iriam morrer na tranquilidade suave do ar alumiado de Lua. E no fundo do seu espírito agitava-se, confusamente, aquele vago desejo de um amor romântico por uma Dama das Camélias, de um sentimento à Armando, com aquelas ideias de reabilitação que já em Coimbra tanto o perturbavam.
Disse, corando um pouco:
— Como poderei eu conhecê-la?
Melchior, muito cínico, riu:
— Entrar por ali dentro, amigo, entrar por ali dentro!
Mas Artur «achava isso ignóbil». Queria algum encontro delicado, com chic...
Verem-se numa ceia, por exemplo...
Nada mais fácil, disse Melchior. Podia-se arranjar outra patuscadazinha, sem espalhafato. Somente, naquela semana, ele não podia.
— Deixe você ver... Sábado, hem?
— Sábado — concordou Artur, espreguiçando-se com voluptuosidade.
Melchior bebera o seu café e «safava-se porque tinha de ir ao «Século». Artur subiu para o quarto, e ficou a fumar o seu charuto à janela. Ao lado, agora, a soprano cantava a ária do Rigoletto: «Caro nome de mio sposo»... Artur escutava: parecia-lhe ver o vulto branco, com a lâmpada na mão, subindo a escadinha da casa oculta nos arvoredos, parando a cada degrau, para soltar, com o olhar comovido, as notas cálidas que se perdiam na sombra suave da noite! Vinham-lhe ideias de noites de ópera, de elegâncias amorosas. Sentia uma moleza preguiçosa, vendo o fumo branco do charuto dissipar-se em aroma. A luz envolvia-o como uma carícia; todas as conversas sombrias da véspera, aquelas ideias violentas do Nazareno, tinham sido levadas com as nuvens lúgubres da noite: eram tão incompatíveis com o sol radioso como voos de morcego. O que sentia agora, não eram desejos de Justiça, de Igualdade, mas as molas flácidas de uma carruagem, um rosto aristocrático a amar... Tinha feito impressão à Concha, hem? E retorcia o buço, ajeitando a gravata. Era a impressão que já fizera à senhora da estação de Ovar! A senhora do vestido de xadrez!... Teve um desejo intenso de a ver: aquela manhã lúcida, festiva, doirada, reclamava uma ocupação delicada, elegante; se a pudesse avistar à janela, segui-la na rua? E, escovando o chapéu, ia acompanhando com movimentos lânguidos de cabeça as notas amorosas da ária do Rigoletto.
Correu a florir-se à Casa Havanesa, e foi à Rua de S. Bento. O guarda-portão lá estava, empinando o ventre majestoso, as mãos atrás das costas. A janela, a mesma, entreaberta, deixava ver por entre as bambinelas de fazenda sobrepostas a cortinas de cassa, um interior de sala, escuro e rico. Mas ninguém se debruçou à janela, ninguém saiu do portão. Artur acendeu um charuto, mais contrariado, mais amoroso agora, em frente da casa d'Ela, na presença daquela fachada muda, que era como alguma coisa da sua pessoa. Não se conteve, entrou num estanco próximo, comprou fósforos, charutos, e perguntou negligentemente à estanqueira quem vivia ali naquela casa.
— Ali, onde está o guarda-portão? — disse a criatura, uma magrita, muito grávida. — É a Srª Baronesa de Paradas.
Ao menos sabia-lhe agora o nome! E subindo a Calçada do Correio, arrependia-se de não ter comprado mais alguma coisa no estanco e interrogado a mulher sobre os hábitos, as horas de saída, as relações, a idade da Srª Baronesa. A criatura, com o seu enorme ventre, a boca muito fendida, a pele cheia de sardas, parecia acessível às tentações de meias libras. Por ela poderia fazer-lhe chegar urna carta, talvez...
Perguntou nessa noite ao Meirinho se conhecia a Baronesa de Paradas...
— Nunca vi.
— Uma senhora muito bonita, com um pequerrucho.
— Nunca vi.
Desde o caso do chapéu, tratava-o com secura; o Padilhão também. Artur suspeitava que em casa de D. Joana se tivesse falado, troçado. Nessa noite, teve a certeza, quando, ao passar no corredor, o Carvalhosa o deteve para lhe perguntar com o seu ar soberano:
— Então que história é essa do chapéu? Não se fala noutra coisa!
Artur, escarlate, quis rir:
— Tolices!
E o Carvalhosa, de charuto ao canto da boca, as mãos nos bolsos, um bambolear de escárnio:
— Homem, semear assim chapéus de molas pelas casas particulares...
Artur teve vontade de lhe espalmar uma bofetada na bochecha lívida. Não achando uma resposta, subiu para o quarto, furioso. Não se falava noutra coisa, hem? Por isso surpreendera olhadelas, risinhos!... Canalhas!
Começava agora a ter ódio ao hotel: desde que se sentia vagamente troçado, as fisionomias pareciam-lhe tão estúpidas como as conversas; o Bento Correia, que fingia ignorá-lo, enervava-o com a sua gula tranquila, a mastigação ruminada, com pingos de molho que lhe caíam sobre a barba; sentia uma vaga ironia, um desdém ambiente cercá-lo; chamavam-lhe o poeta. Um dia ouvira o guarda-livros dizer para o criado: «é para o poeta do 26». Meirinho tinha mudado de lugar, para se não sentar junto dele, decerto: quis, por vingança, reclamar-lhe as dez libras, mas não se atreveu; além disso conservava a ideia de que Meirinho lhe seria ainda necessário, mais tarde, para se relacionar com a Srª Baronesa de Paradas: por isso fazia-lhe sempre o mesmo sorriso muito amigo, a que Meirinho respondia apenas com um movimento seco de cabeça. Agora, durante o jantar, ficava isolado, mudo, sentindo-se vagamente «um pária». Levantava-se sempre da mesa desesperado, lançando-se de toda a alma em ideias de vingança e de revolução. Porém ultimamente nem o Nazareno aparecia no Martinho, e como lhe não sabia a morada, a sua vida arrastava-se de novo naquelas flutuações intoleráveis, sem fim, sem resultado. Depois, o dinheiro «ia-se derretendo»; o manuscrito dos Amores de Poeta lá estava, improdutivo, inútil, no fundo do baú, entre as camisolas. — A sua única alegria era a revisão das provas dos Esmaltes e Jóias, muito adiantada já.
Certa manhã — um sábado — em que trabalhava no seu quarto, recebeu da redacção do «Século» um bilhete de Melchior:

«Amigo. Hoje, sábado, é o dia da pandegazinha. Estive esta manhã com as sílfides. Aceitam. Eu levo a Carmen, você a Concha. A tipóia do José Teso está arranjada. Às 9 horas lá vou buscá-lo ao hotel. A divina Concha está ansiosa por ver el Señor Arturito. Salero!»

Ficou entusiasmado. Vinha bem a propósito aquela pândega, depois dos tédios dos últimos dias! Era a sua primeira orgia com raparigas chics e entrevia uma tipóia correndo sob o luar, cheia de sons de cantigas; depois, o champagne, espumando sob um lustre de gás e camisinhas de rendas deslizando de ombros brancos como o mármore. Estirou os braços numa sensação de concupiscência brutal. Queria embebedar-se, gritar, delirar, e diante daqueles gozos carnais, o Platonismo, a Sociedade, a Arte, a Revolução, pareciam-lhe coisas bem fictícias! Nem pôde, na sua excitação, continuar a rever as provas. Saiu ao acaso, pelo Chiado. Pensava na Concha e à ideia de a ter seminua nos braços, sentia uma viva contracção no estômago; imaginava-a alta, pálida, de olhos árabes, com os ardores de um sangue sevilhano e as melancolias de uma existência transviada. Desejava-a tanto, agora, que quase a amava; não duvidava da impressão que lhe fizera e olhava vagamente as vitrinas, pensando no presente que lhe daria, quando ela, desinteressada e amorosa, recusasse dinheiro e só lhe pedisse fidelidade. À tarde, quando voltou ao hotel, o guarda-portão mostrou-lhe um rapaz de buço, com um chapéu de coco, que o esperava encostado à ombreira:
— Um recado para V. Exª.
O rapaz aproximou-se e com voz cautelosa:
— V. Exª  é que é o Sr. Artur Corvelo?
— Sou.
— Não há engano?
— Não, homem, não.
— Tem a bondade de me dar uma palavra.
— Levou-o para a rua, quase até defronte do Casino e tirando do bolso um bilhete:
— Vem lá dos amigos...
Artur leu à luz de um candeeiro de gás: «Camarada. Hoje é a instalação do Clube na casa nova. Matias preside. Venha-se encontrar matematicamente às 8 horas menos um quartos à esquina do Teatro D. Maria, lado ocidental. Não lhe digo que seja exacto, pois que seria ofender os seus sentimentos de patriota. Queime este bilhete.»
— Faz favor de dar recibo — disse o rapaz.
Artur deu-lhe o seu cartão-de-visita e o rapaz, levando a mão ao coco, disse com uma voz surda, grave, que impressionou Artur:
— Saúde e fraternidade!
Artur entrou no hotel profundamente contrariado. Era tarde para avisar o Melchior, e todavia não podia faltar ao Nazareno, ao Matias; além disso, a ideia da sala, do estrado da presidência, aquela esperança de sessão secreta, de revoluções temerosas, atraíam-no pelo seu lado dramático. E, contudo, lamentava perder a ceia, a noite de amor! A sineta chamou-o para o jantar. Antes do assado, sob a influência do Colares, já pensava em deixar a sessão republicana e ir com a Concha; o cognac decidiu-o: sentia mesmo um requinte de prazer animal em «mandar as ideias ao diabo» e atirar-se ao bonito corpo branco que se oferecia todo cálido. Diria ao Nazareno que tivera uma cólica, que recebera um telegrama... As sessões do Clube seguir-se-iam todos os dias — e a Concha, despeitada se ele falhasse, podia perder o capricho, ou voltar para a Espanha. E para que, por um acaso, o Jácome não o viesse surpreender, saiu. Às nove, voltaria, encontraria o Melchior e batiam para o Dafundo. Com o charuto na boca, o chapéu ao lado, atravessava o corredor, cantarolando, quando o Meirinho, que conversava num grupo, ao avistá-lo, veio para ele com uma cara severa:
— Perdão, meu amigo — disse — sinto ter de lhe dizer uma coisa. Eu levei-o a casa da Srª D. Joana Coutinho, uma senhora da primeira sociedade, e o meu amigo, passados dez dias, nem sequer lhe deixa um bilhete...
As faces de Artur abrasaram-se de vergonha.
— Ora isto não se faz — continuou Meirinho, grave. — É pôr-me em má posição: dá a entender que eu levo lá gente que não sabe os hábitos da sociedade... Isto não se faz.
Artur, petrificado, não achou uma palavra: viu-o girar sobre os calcanhares e reunir-se ao grupo, cofiando a barba.
Lá estava o Bento Correia, mascando o charuto, o Carvalhosa, erguendo alto a guedelha cheia de caspa, o Padilhão, torcendo solenemente a pêra, o brasileiro Gomes, com a sua boca alvar, hílare... Artur teve-lhes um ódio sanguinolento que se estendia a tudo o que representava a Sociedade, a Política, a Finança! Esqueceu um momento o Melchior, o corpinho da Concha, o champagne e o luar. Sentiu a necessidade de se vingar, de humilhar, de aterrar aquele conciliábulo de idiotas enfartados de comida, ocupados de pieguices, vivendo no artifício... E furioso, tendo-lhes sede do sangue, partiu como uma bala, à procura do Nazareno!

Quando, às nove horas, Artur entrou com Nazareno no Clube, na Rua do Príncipe, pareceu-lhe que havia apenas, em lugar da larga reunião que esperava, catorze ou quinze pessoas. A sala era vasta, de um aspecto regelado, forrada com um papel pardo semeado de florzinhas azuis; do tecto caiado de fresco descia um candeeiro de gás de dois bicos, sem globos, dando uma luz crua de botequim; cadeiras de palhinha, como as dos asilos, perfilavam-se contra a parede; o soalho velho tinha remendos de tábuas novas; ao fundo, diante de uma janela que dava para o pátio de uma cervejaria vizinha, disfarçada por uma larga cortina verde, era o estrado da Presidência, com a sua mesa coberta de oleado, e um guarda-pé de baeta vermelha; ao lado, a uma mesinha de pé-de— galo onde ardia uma vela, um sujeito que tinha feridas na testa escrevinhava, muito míope, com o nariz sobre o papel. Conversava-se em grupos. Nazareno deu apertos de mão mudos e levou Artur a uma sala contígua, caiada de novo, alumiada por um bico de gás que saía da parede. Havia no chão rolos de papel, potes de tinta, e, junto à janela de portadas cuidadosamente fechadas, um banco de carpinteiro. Ao pé de uma pilha de tábuas arrimadas ao alto contra a parede, um sujeito, todo de preto, falava a dois indivíduos que o escutavam de charuto na boca. Era o ilustre Matias.
Artur foi-lhe apresentado por Nazareno como «o nosso poeta». Matias apertou-lhe a mão com uma gravidade seca, murmurou um estimo muitíssimo, e continuou com o gesto lento, medido, das suas mãos calçadas de luvas pretas:
— ...Por isso, no caso do Luís, faria o seguinte: apenas descobrisse o escândalo, expulsava-a de casa, sem cólera, e recomeçava tranquilamente a trabalhar...
Artur examinava-o: era alto, de feições aquilinas, cabelo rapado à escovinha; o seu bigode curto, castanho, tinha pêlos ásperos e saídos; e o seu olhar azul e claro era frio, apagado, muito duro.
Um dos sujeitos disse, cuspilhando películas de tabaco:
— Pois sim. Mas, enfim, sempre é sua mulher. Se ele a expulsa sem recursos, abre a porta ao público...
Matias encolheu os ombros, com uma indiferença que significava: — que tem isso?
— Ah — fez o outro agitando a cabeça — é que é muito desagradável saber uma pessoa que sua mulher está usando o seu nome, e, por trás de tabuinhas, a fazer pst, pst, aos sujeitos que passam...
Matias interrompeu dogmaticamente:
— Desde o momento em que, por sua culpa, o pacto conjugal se desfez, não tenho nada com as suas acções. A minha honra é minha, não é dela! Se a vejo por trás das tabuinhas, o meu dever é avisar a polícia para que a numere e a ponha, a ela, sob o controle da higiene e aos cidadãos, ao abrigo do contágio...
Mas na outra sala alguém entrara, porque se ouvia: Olá! Viva! Como vai isso! Ditosos olhos! Enfim o rumor simpático em torno de uma presença estimada. E quase imediatamente um indivíduo nédio entrou na saleta, de chapéu para a nuca, o ar hílare, ama grossa cadeia de relógio sobre um ventrezinho próspero. O Matias estendeu-lhe vivamente a mão, os outros vieram dar-lhe palmadinhas no ombro, com o olhar enternecido. E com as bochechas prazenteiras, o indivíduo nédio exclamou:
— Então cá estamos, cá estamos!
Era o Sr. Abílio Pimenta, lojista de panos, proprietário. Devendo ser, por profissão, por interesse, por fisionomia, um conservador, a sua presença era para os republicanos uma satisfação permanente, muito saboreada; com o seu ventre, o seu grilhão, a sua face nédia, o vago cheiro de armazém que saía dele, o amigo Abílio introduzia no Clube aquele tom de respeitabilidade, de estabilidade, de ordem, que a Propriedade confere às Ideias que apoia; a cooperação daquele proprietário era a evidência gloriosa da praticabilidade da República: ele representava a adesão da burguesia, e a sua pessoa trazia aos republicanos da plebe aquele orgulho que dava aos deputados do Terceiro Estado, em 89, a presença, nos seus bancos, dos fidalgos das casas de Noailles ou de Montmorency. A sua presença tirava ao Clube a feição do grupo inquietante de pobretões descontentes e as teorias mais exaltadas tomavam a seriedade de legislações prudentes, quando, para as escutar, se via aquele honrado lojista, de ar benigno e paterno, com dinheiro no banco, inclinar-se, fazendo com a mão gordalhufa uma concha em redor da orelha cabeluda. A sua assiduidade no Clube era proverbial e todavia as suas ideias pareciam nebulosas. Exprimia-se vagamente, dizendo com jovialidade:
— É dar para baixo, é dar para baixo!
Para «dar para baixo», aconselhava a fundação de um jornal e previamente a compra, por subscrição, de um prelo, tipo, etc. Ele mesmo se oferecia para dar o seu óbolo — e que aparecesse o dinheiro que o prelo, tipo, etc., não estavam longe... Ultimamente estivera incomodado, com ameaças de dores reumáticas, e, muito interessados por aquela vida preciosa, o Matias, o Nazareno, pediam detalhes da sua convalescença.
— À custa de muito álcool canforado...— explicou ele com bonomia. — Foi a minha senhora que me curou. Nada de médicos, dizia-me ela. Tens dores nas cruzes? Fricções de álcool. Pois senhores, fez-me arribar... Eu estendia-me na cama, e agora o verás, era a minha senhora a esfregar, a esfregar...
Riram com enternecimento: aquilo parecia muito patriarcal, de uma alta união doméstica. Um dos sujeitos que mascava o charuto fez sentir a diferença entre aquela honrada senhora, tratando o marido, e as de outras classes, ocupadas de toilettes chics e de modistas...
— Não vá sem resposta — fez o lojista. — Que a minha senhora gosta da sua tafularia... E olhe que aos domingos, ao Passeio, não vai outra! Podem levar outros arrebiques em cima do corpo, mas mais valores e melhores sedas, nenhuma, nenhuma!
Uma voz disse à porta da saleta:
— Ó Matias, são nove horas!
Matias deu um puxão à sobrecasaca; com um gesto rápido e maquinal ajeitou a gravata, e, seguido dos outros, entrou na sala, dizendo a Artur:
— Tive carta do nosso Damião. O livro dele sai por estes dias...
Subiu ao estrado e quando o rumor de cadeiras sossegou, disse, sentando-se e remexendo nalguns papéis sobre a mesa:
— Está aberta a sessão.
Um membro do Clube, magríssimo e estrábico, ergueu-se bruscamente. E com a cabeça alta, as mãos na cinta:
— Eu proponho que se altere esta fórmula: Está aberta a sessão, cheira muito a S. Bento. Em redor um murmúrio correu: ora adeus! Tolices! Para quê?
— Para quê? — exclamou o estrábico, que parecia de génio irritável. — Pela razão que se diz «cidadãos», em lugar de «meus senhores». Todas essas fórmulas são boas...
Matias interrompeu-o com um gesto breve da mão espalmada:
— Eu creio esta fórmula tão inocente como a de bons-dias. Usava-se na Convenção. — E olhando em redor: — O que me parece mais útil evitar é o hábito de fumar...
O estrábico que tinha o cigarro nos dedos, atirou-o, sentando-se e resmungando. Artur apagou logo o seu charuto sobre a sola. Dois ou três, mais económicos, foram pousar na borda do estrado os charutos meio fumados.
O secretário, que estivera tirando películas das feridas da testa, de pé, inclinado para a luz, com o nariz no papel, ia rosnando a leitura de uma acta: pelas cadeiras falava-se baixo, e Artur, sentado ao pé de Nazareno, examinava as fisionomias. Não tinham as expressões exaltadas e sinistras que ele imaginara. À excepção de um sujeito calvo e obeso, que quase ocupava duas cadeiras, tanto as faces como os corpos eram magros: sentia-se neles as existências mesquinhas nos quartos estreitos das casas de hóspedes, o tédio de um trabalho monótono de escritório ou de secretaria, o ar vago e fatigado que dá a vadiagem; havia dois padres, de olhos duros, a pele azulada da barba espessa, muito rapada, os beiços lúbricos; um velho militar conservava entre os joelhos um enorme bengalão de castão de ferro. Não havia um único operário e todos pareciam sentir uma infinita vaidade daquele aparato de sessão, gozando a ficção parlamentar. Um indivíduo, porém, parecia a Artur muito original: tinha a cabeça enorme, quase calva, apoiada às costas da cadeira, e, muito estendido, à larga no seu fato bonito de cheviot claro, com as mãos nos bolsos, parecia dormitar, numa indiferença irreverente; entre os sapatos de verniz e as calças, via-se um pedaço de meia, às riscas pretas e vermelhas; Artur achava-o elegante e parecia-lhe que tudo o que saísse da sua boca fina, móbil, de um arco bem-talhado, devia ser original e engraçado.
— Quem é? — perguntou a Nazareno.
— Um doido — disse o outro, encolhendo os ombros.
O secretário, no entanto, findara a leitura; e com a mão apoiada à mesa:
— Aprovado, não? — perguntou.
— Aprovado — disseram — aprovado!
Matias então ergueu-se. A sua face bem-talhada parecia mais pálida sobre o fundo verde-escuro da cortina; deu com ambas as mãos, ainda calçadas de luvas pretas, um puxão breve à gola da sobrecasaca e começou:
— Meus senhores — emendou logo: — Cidadãos. Hoje estamos aqui para nos instalarmos. Como vêem, há ainda na sala arranjos a fazer: espero que estejam prontos para a semana. As sessões regulares podem começar então. — Deu um olhar às filas de cadeiras: — Creio que há apresentações a fazer...
Jácome Nazareno ergueu-se logo e com solenidade:
— Proponho e apresento, sob minha garantia, o Sr. Artur Corvelo, autor de um drama de tendências democráticas e amigo desde Coimbra do nosso Damião. Creio que não haverá objecções.
Vozes soltaram: — Apoiado!
Foram minutos gloriosos para Artur.
O secretário, voltando para ele uma face muito risonha, chamava-o:
— Tem a bondade? É para assinar o seu nome.
E enquanto Artur, vermelho, comovido, assinava num largo registo encadernado — o rapaz de fato de cheviot claro, meio erguido sobre a cadeira, disse com uma voz bem timbrada, mordente:
— Proponho o meu amigo Vicente Falcão.
Um homem muito alto, muito pálido, de aspecto místico, com um longo casaco eclesiástico, adiantou-se para o meio da sala. Curvou-se e no silêncio um pouco admirado, disse cavamente:
— Desejando fazer parte do Clube Democrático, quero evitar equívocos. Uma só palavra os desfaz: eu sou socialista! — Olhou em redor, repetiu com força: — Eu sou socialista! So-cia-lista!
Recuou um passo, cruzou os braços sobre o peito, erguendo a face lívida, como para afrontar a morte.
Em redor, havia nas fisionomias uma vaga expressão assombrada, mistificada; cochichava-se, narizes franzidos interrogavam num gesto mudo: risinhos fungavam. Que é? Quem é? Que diz ele?
O rapaz vestido de cheviot exclamou:
— Apoiado! É bom preveni-los!
Matias deu-lhe de lado um olhar frio de ódio e com uma voz afectadamente cortês:— Este Clube não tem exclusivismos...
— Mas tem divergências! — interrompeu o rapaz vestido de claro. E erguendo-se: – Peço a palavra! — Não esperou que lha concedessem, prosseguiu: — Entre pessoas que aspiram apenas a substituir um rei constitucional por um presidente jacobino, que se indignam porque há viscondes, que fazem guerra à lista civil e outras pieguices — e entre nós, que queremos a evolução democrático-social na sua larga acção — há divergências muito graves. É conveniente evitar os equívocos. Estou com o Sr. Falcão: uma declaração a tempo define os terrenos...
O estrábico soltou um apoiado, semelhante a um rugido. Nazareno que se agitava, impaciente, ergueu-se bruscamente e com o punho estendido:
— É melhor desmancharmos o Clube à nascença e acabarmos...
— Ordem! Ordem! — disse-se logo.
— Pois que significa — gritava Nazareno, bracejando — trazerem-se estas divergências, apenas nos instalamos? Ainda as portas não estão pintadas e já nos dividimos em partidos...
— Não queremos ser confundidos com os jacobinos! — rugiu o estrábico.
— Nem nós com os comunistas! — atirou um sujeito de barbas e óculos.
Alguns diziam monotonamente: — Ordem! Ordem! repetindo a fórmula parlamentar. O velho militar grunhia: Fora os pretoleiros! Uma sussurração confusa corria nas filas de cadeiras, quebrada, aqui e além, por uma voz saliente que gritava: mais seriedade! mais decência! O místico conservava-se imóvel, espectral, os braços cruzados. E um indivíduo de cache-nez, sentado ao pé de Artur, perguntou-lhe ao ouvido, com o rosto franzido de ignorância impaciente:
— A que vem tudo isto? Que querem eles?
Ninguém parecia saber «o que eles queriam» — até que Matias, que decerto julgou o tumulto inconveniente à sua dignidade, repenicou, nervoso e pálido, uma campainha de quarto de convalescente.
— É lamentável — disse no silêncio criado — que se produzam antipatias tão caracterizadas, apenas reunidos para um fim de justiça. São estas cenas que justificam o que dizem os nossos inimigos: que no partido republicano não há senão desunião! Este Clube não tem exclusivismos, repito. Aceita toda a opinião democrática que se apresente, em oposição ao Constitucionalismo. Em presença da vergonha do sistema actual, o dever de todo o homem livre e inteligente é associar-se para a sua destruição.
Havia agora nas filas de cadeiras uma atenção intensa de rostos estendidos, aplicados a surpreender, apanhar a significação daquela divergência irritada. O amigo Abílio fazia com a mão uma concha acústica à orelha. Com o queixo na palma da mão, alguns arregalavam olhos em que reluzia a adoração pelo Matias. Só o socialista, o rapaz de fato claro, o estrábico e outro, que, com a pálpebra abaixada, catava os pêlos do bigode, afectavam distracções, com bamboleamentos de perna muito irónicos, os lábios torcidos em sorrisos de tédio. E Matias prosseguia:
— Se o Sr. Falcão — o místico dobrou-se em dois — por Socialismo entende...
O místico disse de um só fôlego:
— Entendo uma nova concepção da Propriedade, do Trabalho, do Casamento, da Educação, da Sanção Moral, etc... em oposição às soluções dadas pela Igreja e as instituições que as realizam...
Matias estendeu o braço:
— Então, mais ou menos, somos todos socialistas...
— Quod Deus avertat — interrompeu Gilberto, o rapaz de fato claro.
O sujeito de cache-nez parecia extremamente impaciente, intrigado:
— Mas onde querem eles chegar? — perguntou novamente a Artur.
A explicação seria longa, complicada e para abreviar, Artur disse-lhe baixo:
— Partidos. São dois partidos...
— Teorias! — disse o de cache-nez, que parecia ter pela ideologia um ódio de economista. — A questão é fundar um jornal... É pôr um guarda-vento naquela porta, de onde vem uma corrente de ar que me mata...
Matias falava agora da revolução social:
— Se o Sr. Falcão entende, como socialista, que ela deve ser feita pelo povo, educado por uma filosofia popular positiva... (procurava os adjectivos) proudhoniana, com exclusão de toda a direcção autoritária, de toda a iniciativa de governo, então podemos divergir. Se, na questão política, pretende impor a fórmula federativa em oposição à fórmula unitária, decerto divergimos também...
— Divergências sempre — atalhou Gilberto.
Matias continuou:
— Mas estamos unidos para o mesmo fim, e mais tarde, desembaraçado o País das instituições do passado, poderemos agitar essas altas questões...
— Frases! — rosnou Gilberto.
Aquela irreverência pareceu escandalizar a assistência: olhos acesos, irados, voltaram-se para ele; o velho militar acariciava, soturnamente, o castão da bengala e as mesmas vozes repetiam: decência! decência!
— O Jacobinismo — continuou Matias — já que esta palavra agrada ao Sr. Gilberto, o Jacobinismo não combate o Socialismo, prepara-o; — repetiu com um gesto vivo: — prepara-o! O Socialismo é um poder espiritual, substituído a outro poder espiritual...
O místico abaixou aprovativamente a cabeça. Havia em todas as fisionomias um vago ar espantado, de incompreensão, de fadiga.
— ... Ora essa substituição — continuava Matias — para ser feita sem luta, sem choque, precisa ser levada a efeito dentro de um regime amigo que a favoreça, a promova e garanta a paz social enquanto se faz a transformação espiritual.
— Pretextos para o Cesarismo — rosnou Gilberto.
O sujeito de cache-nez apertou as mãos na cabeça, murmurando com uma voz plangente:
— Ih, Jesus! Eu não os percebo, eu não os percebo!
Não pareciam «percebê-los», em geral. Os olhares que o desejo de compreender arregalava, iam de Gilberto a Matias, implorando clareza: em toda aquela fraseologia nebulosa, onde estava a República? Por que não diziam, claramente, como se havia de destruir a Casa de Bragança? Por que se não distribuíam já os empregos de que os conservadores iam ser expulsos? Com que regimentos se contava? E os que se tinham reunido ao Clube, na esperança de uma futura satisfação de necessidades ou de ambições, sentiam como que um vasto logro, encontrando, em lugar de preparativos de acção, argumentações doutrinárias. Um indivíduo sem barba e muito amarelo exprimiu a impaciência de todos, dizendo com uma voz fina:
— Vamos ao que importa: basta de filosofias!
Matias fitou-o com o seu olhar frio como uma punhalada:
— Sr. Malaquias, se lhe falta o respeito pelas ideias, deve ter ao menos o respeito pelas pessoas.
— Bravo! Apoiado!
O Malaquias ergueu os braços, enterrando a cabeça nos ombros; e com uma voz fina, muito arrastada, pegajosa, que arrepiava os nervos:
— Eu, não era para ofender, eu, era para dizer...
Artur, então, reparou nele: era amarelo, de uma amarelidão baça, oleosa, com uma boca muito larga e parecia sujo, viscoso; sentia-se que devia exalar um cheiro mau.
Matias, então, resumiu:
— O incidente vai longo e eu julgo exprimir a opinião do Clube, dizendo que nos honramos de ver entre nós o Sr. Falcão, e que, sejam quais forem as divergências de opinião, é um orgulho adquirirmos a cooperação de um homem de bem e de um democrata ilustre.
O místico curvou-se até ao chão e entre apoiados! foi assinar o seu nome no registo.
Mas o Malaquias erguera-se logo e com gestos lentos, moles, gelatinosos, começou a falar de um modo tortuoso, empastado: dizia que era republicano, que respeitava todo o mundo, que quantos mais membros melhor... — E demorava-se, passava as longas mãos lívidas e magras pela face sem barba, oscilava com a cabeça: — ele não queria pôr em dúvida as convicções dos cavalheiros admitidos, mas... Porque enfim era necessário cautela... Longe de ele insinuar coisa alguma... Todavia...
— Acabe, homem — gritaram-lhe, impacientes da voz, da hesitação mole, dos gestos frouxos.
— A questão é esta — disse por fim — estamos ou não estamos nós aqui a conspirar contra o Governo? Ora bem. Sim, digo eu, isto não é para ofender, mas enfim... Sim, digo eu... Quem nos diz a nós... Quem nos diz a nós — repetiu, espalmando os cinco dedos sobre o peito côncavo: — quem nos diz a nós... que não há pessoas que vêm aqui para escutar, para espiar?...
Jácome Nazareno deu um pulo:
— Isso é insinuar alguma coisa a respeito do meu amigo? — E indicava Artur que escutava, escarlate, imóvel.
O místico saltou, com duas passadas, para o meio da sala e com a voz trémula, agitando dois enormes braços magros:
— Cidadãos, é triste que depois de toda uma vida de estudo e dedicação à Democracia, no dia mesmo em que me venho reunir aos camaradas para um fim de justiça, me veja apontado como um espião — eu! — E batia com os dois punhos freneticamente no peito.
O sujo Malaquias protestava, levando as mãos à cabeça:
— Pelo amor de Deus, o que aí vai! Aí está o Sr. Falcão com as suas exagerações e o Sr. Nazareno com o seu génio. Eu não disse... eu não disse... Eu, o que queria dizer, é que era necessário não fazer as coisas a trouxe-mouxe. É necessário mais solenidade... Por que é que se não há-de exigir aos que são admitidos o juramento?
— Sobre um crânio! — soltou Gilberto.
Houve risadas. Muito bem! E Gilberto ergueu-se:
— Peço a palavra. Hão-de notar que é sempre do Sr. Malaquias que saem as ideias cómicas sobre a simbólica do Clube: foi ele que há tempos reclamou a senha; hoje quer o juramento, amanhã há-de exigir o subterrâneo; depois, em Lugar do gás, a tocha! A democracia do Sr. Malaquias pertence à Rua dos Condes. Quanto ao Sr. Falcão, são bem conhecidas as suas ideias, o seu carácter, os seus artigos na «Evolução», a sua vida...
— Apoiado! Apoiado!
Nazareno erguera-se:
— E com respeito ao Sr. Corvelo, creio que é inútil afirmar a sinceridade das suas crenças, o seu ódio intransigente à sociedade conservadora...
— Apoiado! Apoiado! Está acabado isso!
Malaquias curvou-se, disse ainda:
— Eu, com a minha pequena experiência, sempre tenho visto exigir-se o juramentozinho... Lá fora é o mesmo... Mas enfim, se os sábios não querem... Eu, era para o futuro, mas enfim... Eh! Eh! Eh!
Em redor puxavam-lhe pelas abas do paletot; ele sentou-se, resmungando, mas erguendo-se logo com a elasticidade de uma mola, recomeçou na sua voz irritante, que punha comichões no sangue:
— Eu peço perdão de voltar à carga, mas enfim... É para dirigir uma pergunta à mesa... Queria saber se a subscrição de mil-réis por cabeça, para as obras da sala, foi excedida ou se há um saldo? E se há um défice, quem responde?... Sim, nestas questõezinhas de dinheiro... Eu não quero ofender... — E enterrava a cabeça nos ombros, com um gesto torcido dos braços: — Mas enfim...
Matias disse com secura:
— As contas serão apresentadas, examinadas e discutidas. A pergunta é inoportuna e mal formulada.
Malaquias teve o seu riso casquinado:
— Eu era para saber... Gosto de saber... Eh! Eh! Eh!...
E ficou sentado, passando pelo queixo os longos dedos magríssimos.
Imediatamente, um homem de idade, muito feio, com uma barba de pêlos grisalhos e raros, ergueu-se, com um caderno de papel na mão. Escarrou e com uma voz lenta, dormente, um pouco cava:
— Eu pensei que neste dia de inauguração, seria conveniente ler algumas páginas, que pusessem diante do espírito de todos as fases que tem atravessado a Liberdade. Se me permitem... — E vendo Matias abaixar a cabeça em consentimento, o homem feio abriu o caderno, pigarreou, e começou a ler:

«Se remontarmos aos tempos quase mitológicos, encontramos o primeiro mártir da liberdade, pregado sobre um rochedo, e tendo o flanco devorado pelo bico de bronze de um incansável abutre...».

Havia em redor um vago pasmo: o que era? Examinava-se o caderno espesso, azul, cosido com guita. O quê! Ia ler aquilo tudo?

«...O insensato» — continuava ele, lento, pausado, crasso — «tendo querido arrebatar aos Imortais o fogo sagrado, viu seus membros acorrentados ao Cáucaso e a história saúda nele o primeiro que reivindicou os direitos do homem contra a tirania da Divindade...»

Compreendeu-se vagamente que era a longa história dos Mártires da Liberdade, desde Prometeu! Alguns queriam escutar, por camaradagem, ou na esperança de anedotas típicas ou de declamações que lisonjeassem as suas opiniões: mas os períodos moles, gordos, movendo-se surdamente, como um lento rolar de odres mal cheios, constituíam uma retórica fatigante; a voz era tão dormente, de um escorrer tão monótono, que amodorrava; algumas conversas estabeleceram-se baixo; um sujeito ergueu-se em bicos de pés, apanhou no estrado a metade do charuto que lá deixara, e, subtilmente, refugiou-se na saleta; outros seguiram-no — os mais tímidos afectando, com as mãos nas calças, uma necessidade urgente; e os que ficavam, para resistir ao torpor crescente, estabeleciam uma sussurração de vozes ciciadas. Então, Matias, que tinha os olhos fitos no tecto, batia com os dedos na borda da mesa — e no silêncio deferente que se cavava, ouvia-se a voz vagarosa, falando «dos grilhões de Espártaco, do punhal de Bruto ou do ferro de Lucrécia». Mas o rumor crescia gradualmente e, um a um, sujeitos em bicos de pés, encolhidos, desapareciam pela porta estreita da saleta. Vinha de lá uma fumaraça de tabaco; às vezes, uma face, de cigarro na boca, espreitava para a sala; ouviam-se risadinhas... Impassível, absorvido, solene, o homem feio ia expondo as misérias da plebe romana.
Artur, em respeito a Nazareno, conservava-se imóvel: uma inércia mole afrouxava-lhe os músculos num abandono de fadiga. Pensava no Melchior: àquela hora, se não fosse a República, ele também bateria para o Clube, sentindo, sob o assento da caleche, os pezinhos da Concha entre os seus; chegariam; vê-la-ia, na sala da ceia, tirar os agasalhos, aparecer à luz do gás na beleza triunfante do seu decote, e sentiria a sua cinta fina vergar-lhe entre os braços, enquanto o seu pescoço branco, cheio, dobrando-se para trás, chamava deliciosamente os beijos. Estirou as pernas, os braços, num espreguiçamento de languidez... A voz espessa ia apostrofando Tibério e a galera de velas de púrpura que o levava a Capreia...
Jácome então bocejou enormemente; olhou um momento o gás, o grosso manuscrito, e, com uma decisão brusca, ergueu-se e nas pontas dos pés, saiu. Artur ia segui-lo, mas o olhar frio de Matias imobilizou-o. Agora, bocas abriam-se em bocejos sinceros; faces Lamentosas, imploradoras, voltavam-se para a impassibilidade de Matias; um ou outro, tirando o relógio, tinha um gesto desesperado; o secretário dormitava, e, sem pudor, Gilberto lia um livro... Por uma transição que ninguém seguira, o homem feio divagava sobre os Persas...
Jácome voltou a sentar-se ao pé de Artur e com uma voz de rancor:
— Isto é uma coisa extraordinária! Há três quartos de hora que fala! E que quantidade há ainda de manuscrito!
— Quem é ele?
— Uma besta — disse o outro por entre os dentes, com um furor concentrado.
Esteve um momento a roer nervosamente as unhas: mas tornou a erguer-se, e batendo agora os tacões como numa demonstração hostil, entrou para a saleta... O homem feio, sereno, depois de ter celebrado o suicídio de Catão, começava a comentar a crucificação de Cristo.
Foi então que se reparou que o amigo Abílio adormecera profundamente. Na monotonia da leitura, aquilo tomou o interesse picante de um incidente grotesco: seguiam com risinhos fungados os cabeceamentos bruscos que lhe atiravam o corpo para os joelhos, e nos olhares jubilosos luzia a esperança de o ver rolar no chão. Mas Matias, zeloso da dignidade do Clube, fez sinal ao Secretário, que desceu do estrado em bicos de pés, e — como era de temperamento pacatamente faceto — em lugar de despertar disfarçadamente o lojista, fez-lhe cócegas na orelha com a rama da pena. Abílio pulou com um berro — e a gargalhada que se estivera formando rebentou irreprimivelmente. O amigo Abílio, com as feições inchadas, vermelho, desconfiado, esgazeava em redor os olhinhos estremunhados; o homem feio suspendeu um período sobre Savonarola, e Matias, severo, deu um toque de campainha cheio de repreensão. E a seriedade restabelecida, o homem feio prosseguiu, lamentando, com imagens floridas, a fogueira em que ardeu João Huss...
Artur aproveitara o ligeiro tumulto para ir, em bicos de pés, com as cruzes quebradas de fadiga, fumar para a saleta.
— Onde vai o homem? — perguntaram-lhe.
— Vai nos mártires da Reforma!
— Ainda três séculos! — murmurou o sujeito de barbas e óculos, erguendo aos Céus os braços e os olhos.
Falava-se a meia voz, fumando, de futuras sessões, de projectos, de esperanças políticas, de infâmias da Monarquia — e as vozes abafadas davam um tom de conspiração às acusações, às injúrias lançadas ao Governo: atribuía-se-lhe unanimemente a decadência vil da nação; num círculo, de onde se elevava uma fumaça de cigarros, cada um expunha «uma grande vergonha» — a ruína económica, o baixo preço dos salários, o compadrio dos empregos, o abandono das colónias; falava-se por generalidades vagas: era uma choldra! O País estava perdido! Nada, nada, nada! Tudo uma canalha! — e ombros encolhiam-se com tédio, faces chupavam-se, aspirando o fumo do tabaco. Mas, em geral, a irritação contra as pessoas excedia a hostilidade às instituições: atacava-se a vida imoral dos ministros, contavam-se ao ouvido anedotas da Corte, grunhia-se contra o abaixamento dos jornalistas conservadores; um indivíduo magro, cheio de espinhas carnais, parecia atribuir todos os sofrimentos da humanidade ao administrador do Bairro Central, que decerto odiava. Outros, então, contavam despeitos pessoais. E como justificação daquelas cóleras, voltavam constantemente as afirmações humanitárias: «a miséria dos operários», «a indignidade dos ricaços». Os mais incultos formulavam a sua indignação política com um termo de calão ou uma obscenidade de taberna; os mais ilustrados declamavam vagamente, falando com gravidade na «corrupção do baixo-império». Ninguém parecia ter uma noção exacta de reformas definidas: mas todos, vagamente, confiavam que da República escorreria a felicidade pública, penetrando todas as classes, até os mais obscuros casebres, com a fecunda universalidade da luz que cai de um astro. Às vezes, um deles ia escutar à porta, outros seguiam-no escondendo os cigarros atrás das costas... E ouvia-se a voz morosa do homem feio, impassível, declamando considerações sobre o processo dos Girondinos. Matias, de longe, reclamava-os com um olhar imperioso, alguns obedeciam resignadamente, indo imobilizar-se nas suas cadeiras, sob o lento escorrer da prosa infindável; outros recuavam rapidamente, refugiando-se no fundo da saleta, onde o bico de gás erguia a sua túlipa de luz crua.
O Nazareno parecia o mais impaciente. Segundo ele, era inútil haver sessões, se elas deviam ser tomadas por aquelas leituras retóricas. Então discutiram-se os trabalhos urgentes do Clube. Antes de tudo, era necessário fundar um jornal. Um sujeito de barbas loiras lembrou a necessidade de aliciar alguns militares. O Clube devia fazer um manifesto a todos os liberais, lembrava outro, e pôr-se em comunicação com os republi— canos espanhóis. Este projecto pareceu desagradar: alguns achavam-lhe um odioso sabor ibérico... Mas a salvação da Península era uma república federativa!... E além disso, para fazer a república, era necessário dinheiro e armas... De onde haviam de vir? Da Espanha!
— Nada de espanhóis, nada de espanhóis!
— Espanholas, sim — disse um gracejador.
O tumulto que se levantara foi interrompido pelo secretário que veio dizer:
— Oh, meninos, o Matias está furioso! Vocês fazem aqui uma algazarra que se ouve lá dentro... O homem está a acabar... Pelo amor de Deus, venham.
Artur que temia o descontentamento do Matias, foi retomar a sua cadeira... O homem feio espalhava flores de eloquência sobre os túmulos, lado a lado, dos quatro sargentos de La Rochelle.
Pouco a pouco os republicanos entravam — e, subitamente, o homem feio sentou-se. Houve um rumor de alívio, largamente respirado. Alguns tomavam o chapéu: eram onze e meia, que diabo!
Mas Matias fez retinir a campainha:
— Consultarei a assembleia sobre a proposta que no fim do seu notável trabalho o nosso ilustre concidadão — e indicou o homem feio — acaba de fazer.
Foi um espanto. Que proposta?... Ninguém percebera! Olhares interrogavam, ombros encolhiam-se.
Matias, então, explicou:
— O nosso amigo propõe que se pendurem nas paredes do Clube os retratos de todos os Mártires da Liberdade, desde os tempos mitológicos até...
— Pareceu um momento interrogar a memória: — perdão, Sr. Esqueira, até?...
O homem feio recitou de um fôlego:
— Joaquim Vicente da Costa Esqueira, morto nas enxovias de Almada, à machadada, pelas suas ideias jacobinas. Era meu tio.
Uma gargalhada correu pelas cadeiras. O velho militar que parecia admirar o homem feio, rugiu: mais decência! E Matias, severo:
— Acho a hilaridade inoportuna...
O homem feio julgou decerto do seu dever indignar-se, e erguendo-se com solenidade:
— É estranho que cause riso a homens liberais um parente meu que morreu pela liberdade!
Alguns risos abafados escaparam, aqui e além; e então, Gilberto, no meio da sala, com o chapéu na mão:
— A ideia é nobre, mas além de que não há lugar para conter nestas paredes todos os Mártires da Liberdade, é difícil obter o retrato da maior parte — a não ser desenhos de fantasia que, por falsos, tenderiam a produzir a indiferença em lugar de inspirar a veneração. Além disso, os Mártires são inumeráveis — e as paredes são só quatro...
— Apoiado! Apoiado!
O homem feio parecia descontente:
— Ao menos o imortal Rousseau... — começou.
— Nenhum! nenhum! — gritaram com impaciência.
Estavam quase todos de pé, havia uma vozearia. Então ouviu-se a voz do Sr. Abílio dizer:
— Eu, é só duas palavras...
Fez-se um silêncio deferente: havia sorrisos amigos àquela bem-vinda frase.
— Eu — continuou Abílio, de pé, com a face jovial — eu quero oferecer ao Clube (dizia Clúbio) um presentinho. Tenho lá em casa uma cabeça de gesso, que a minha senhora diz que é Minerva...
Um lento rumor simpático correu, àquela bonomia, quase fraternal.
— Eu não sei se é Minerva, mas a coisa parece ter valor. E a mim parece-me — desculpem se eu digo asneira — que poderia muito bem figurar como um busto da República. Se o querem, está às ordens com todo o gosto. Eu já disse à minha senhora, porque enfim, são coisas que pertencem à casa. Ela consentiu, coitada... E eu tenho muito gosto em oferecer...
— Bravo! Apoiado! Aceitamos! Muito bem!
Abílio reclamou silêncio:
— Então cá o mando, amanhã, pela criada!
Palmas estalaram. — E Matias erguendo-se:
— Está levantada a sessão.
Artur foi arrastado no movimento impaciente que se fez para a porta. E no pátio, enquanto acendia um charuto, achou-se ao lado do homem do cache-nez.
— Não foi má estopada...
Artur disse-lhe, por condescendência:
— A leitura foi longa.
O outro inclinou-se-lhe para o ouvido:
— É que se não faz nada! Tudo isto é uma história. É palrar, é palrar! Não se faz nada enquanto se não deita o Governo abaixo! Eu já disse ao Matias — eu quero ir recebedor para Belém. Eu cá sou franco...
E desapareceu, encolhido no paletot — porque começara a chuviscar.
Quando Artur chegou ao hotel, o porteiro disse-lhe que viera ali um sujeito procurá-lo às nove horas, voltara às nove e meia, depois às dez, depois às dez e meia.
Da última vez, estava tão furioso que dera punhadas na mesa, rogando pragas.
Pela descrição — gordote, já entrado, grandes bigodes — Artur reconheceu Melchior.


Capítulo VII

Ao outro dia Artur recebeu as últimas provas dos Esmaltes e Jóias e revia-as no seu quarto, quando a porta se abriu e Melchior apareceu com um ímpeto irado. O aspecto de Artur, trabalhando tranquilamente, de robe-de-chambre de veludo, exasperou-o mais ainda, e curvando-se até ao chão disse ironicamente, com uma voz repassada de ódio:
— Sim senhor! Fê-la boa!
Artur ia falar, mas Melchior, bruscamente, com um gesto vivo:
— É simplesmente uma canalhice! Venho aqui com a tipóia, com as raparigas, às nove: nada, tinha saído! Volto às nove e meia, com as raparigas na tipóia: nada! Volto às dez: nada! E aqui me vejo eu com as mulheres, com a tipóia, a bater as ruas, Chiado abaixo, Chiado acima, elas furiosas, o cocheiro desconfiado — enfim, uma indecência!
Artur ia explicar...
— Para mim — interrompeu Melchior — pândegas consigo, acabaram!
E então divagou prolixamente, numa abundância de despeito: — que em Lisboa não se usavam daquelas chalaças... Com quem imaginava ele que estava a tratar? O cocheiro era nada menos que o Teso, que só batia com a melhor rapaziada. E as raparigas?... Tê-las incomodado, obrigado a sair de casa... para quê? Assim perdia-se todo o crédito, era-se mal recebido. Ele queria levar a sua vida direitinha... No fim, ele é que fora responsável... Era homem de bem, gostava de se portar como homem de bem.
Enfim, o Sr. Artur tinha-o entalado!
Vendo aquela indignação verbosa, aquele olhar fuzilante, Artur acreditou que praticara urna vileza excepcional. Falou em pedir desculpas, ir ele mesmo explicar à Concha...
— E é que há despesas — interrompeu Melchior, grave pela responsabilidade tomada. — É que há despesas. O amigo imagina que o cocheiro andou a bater para cima e para baixo de graça? E eu tomeio-o por sua conta... E as raparigas?
Artur tirou logo do bolso a bolsinha de trama de prata.
Então Melchior, sossegado, responsabilizou-se por arranjar as «coisas decentemente com três librinhas».
— E onde diabo estava você? — perguntou, já risonho — outra vez no High-Life?
Artur, discreto, teve um sim ambíguo, gozando interiormente as cautelas do conspirador. Estivera numa casa, até tarde... Fora convidado de repente...
— Pois eu tive um ferro — disse Melchior, penteando o bigode ao espelho. — E a Concha estava... Oh, menino! Uma divindade! E ficou furiosa... Não, palavra, ela está com muita, curiosidade em o ver.
Artur lamentava intimamente aquela ocasião perdida. E para quê? Para ouvir durante hora e meia, escorrer monotonamente, com uma lentidão de água gordurosa, o elogio balofo e mole dos Mártires da Liberdade! Que tolice! Apesar do seu desejo, não ousava propor «outra pândega» a Melchior. Disse apenas, andando em redor da mesa com a cabeça baixa, embrulhando um cigarro:
— Tenho pena, tenho pena... Outra vez será, bem?
Mas Melchior não o escutava: fora, segundo o seu costume, para a janela, trautear, retorcer os bigodes, a ver «se pescava a segunda dama».
Artur, então, foi-lhe mostrar as últimas provas dos Esmaltes e Jóias e corando um pouco, perguntou-lhe se não seria possível anunciar a publicação próxima...
— Está claro que sim! E publica-se até uma poesia. Dá chic. Veremos logo isso. Você que faz à noite, nada? Bem, venho jantar com você e combinamos a notícia. — Hem, sou amigo ou não?
Artur agradeceu.
— E para a venda do volume?
— Entenda-se com o Gonçalves, o revisor. Eu lhe arranjo isso: não há-de haver dúvida. Põe-lhe o volume nos livreiros, à comissão. Você não tem trabalho nenhum, senão receber... É necessário dar alguma coisa ao Gonçalves, já se vê. Coitado, homem serviçal, cheio de família...
Deu uma escovadela ao chapéu e «ia-se, que tinha um rendez-vous». Foi ainda olhar à varanda — mas como «se não punha olho no diabo da cantora», saiu trauteando o fado.

Terminada a ocupação das provas, os dias tornaram-se muito vazios para Artur. Mas estava então numa situação de espírito tranquilo, muito segura. Em breve, pela publicação do seu livro, pela crítica do «Século» — Melchior prometera-lhe «um folhetim de arromba» — ia ser ilustre; a sua ligação com os republicanos, com o Clube, dava-lhe uma secreta vaidade de revolucionário perigoso; seria completamente feliz se pudesse ver, conhecer a Srª Baronesa de Paradas. Todas as manhãs, agora, por ociosidade, com uma vaga esperança, ia passear pela Rua de S. Bento, esperando sempre que se daria enfim o encontro desejado, recebendo de cada vez uma desconsolação maior daquela longa fachada impassivelmente unida e vazia. Que faria ela lá dentro? Supunha-a lendo, estendida num sofá, ou no jardim que devia haver nas traseiras da casa, bordando sob alguma velha árvore, vendo o pequerruchinho rolar-se pela relva. À noite ia a S. Carlos, sondando todos os camarotes com o binóculo; e os domingos no Passeio, à tarde no Pote das Almas ou pelo Chiado, não cessava de a esperar, de a invocar. Mas não a tornara a ver — e isto punha uma falha discordante na felicidade tão unida dos seus dias. Onde a encontraria? Como? A recordação odiosa da soirée da Coutinho dava-lhe, com o terror da sociedade, o desejo de a ver, de a amar, fora das convenções mundanas, na deliciosa segurança do mistério, de um modo literário e excitante, à Romeu e Julieta. Quereria encontrá-la num parque, numas pequenas ruínas, longe, nalgum recanto pitoresco de vale ou de estrada. Uma manhã, ficou todo alvoroçado, vendo no Século, nas notícias do High-Life, que a Srª Baronesa de Paradas fazia vinte e cinco anos. Mas então Melchior e o Saavedra conheciam-na?... Correu à redacção. Melchior encolheu os ombros: tinha copiado a notícia do Almanaque do ano precedente, eram apontamentos do informador. Talvez o Saavedra soubesse... Também não: ouvira dizer que era uma senhora brasileira...
— Mas para que quer você saber? — perguntou Melchior, com um sorriso de malícia, muito curioso. — Ternos conquista?
Artur negou frouxamente.
— Vá lá homem, conte lá — insistiu Melchior. — Olhinho, cartinha, hem?
Artur não resistiu à tentação de dizer, afectando reserva:
— Conhecemo-nos, mas não há nada!
— Seu felizardo! — disse o outro, olhando-o com inveja. — Olha o melro, bem?
E Artur cofiava o bigode, entumecido de vaidade, o olho enternecido.
Melchior então, por um instinto de despeito, afectou não dar importância à aventura que suspeitava: bocejou, estirou-se na cadeira, falou de S. Carlos, do circo, de outras coisas. E de repente:
— Então você agora é da panelinha do Nazareno?
Artur corou:
— Conhecemo-nos. É um amigo do Damião, que foi meu companheiro em Coimbra. Por quê?
— Vi-o ontem no Martinho... Você não me viu. Estava em grande cavaqueira com o Nazareno... — E depois de uma pausa: — Faz mal. Fraca sociedade.
Artur então protestou: fez o elogio do Nazareno, do Matias; atribuía-lhes todas as virtudes, grandes excelências de espírito.
Melchior muito estirado na cadeira, com o ventre saliente, todo envolvido na fumaraça do charuto, disse com desprezo:
— Uma corja! Uma corja!
Artur escandalizou-se. Eram, disse, os caracteres mais nobres de Lisboa. E irritado pelo tom de escárnio de Melchior, pela sua atitude repoltreada de escrevinhador pedante, afirmou que o Matias, o Nazareno, dentro de dois ou três anos, haviam de governar o País. O partido republicano estava certo de triunfar...
Melchior, que limpava as unhas com um canivete, teve um risinho seco:
— Ora histórias, amigo! Quatro municipais, de chanfalhos desembainhados, varrem todos os republicanos!
A contradição fez perder a Artur a prudência. Falou do Clube, da organização do partido socialista no Porto, em Viseu, em Coimbra: havia quinze mil operários prontos; inventava forças sociais ao serviço da democracia: o dinheiro não faltava e — lembrando-se da presença do «amigo Abílio» no Clube da Rua do Príncipe — jurou que toda a burguesia de Lisboa, proprietários, banqueiros, pertenciam ao partido republicano... Melchior fitou-o um momento com a expressão vitoriosa de quem obtém a confissão de um crime:
— Ah! o amigo também é do Clube?
Artur, vermelho, pensando que necessitava para o seu livro o apoio conservador do «Século», negou. Não pertencia, mas enfim a verdade era a verdade... O partido republicano era forte...
— Meia dúzia de maltrapilhos — rosnou Melchior, cuja verbosidade usual parecia esterilizada.
Calaram-se. E daí a momentos Artur saiu, descontente. Melchior nem levantou a cabeça do papel: disse-lhe apenas um adeus amigo extremamente seco.
A injustiça feita aos seus amigos fazia-lhos parecer mais dignos, mais superiores. E como as palavras de Melchior o tinham revoltado, jurou dedicar-se aos republicanos, como aos únicos homens de justiça e de verdade que até aí encontrara.
Não deixou mesmo, nessa noite, de contar ao Nazareno a sua questão com o «tolo do Melchior». Mas o Nazareno não conhecia no «Século» senão o Saavedra, que, disse, «era um corruptozinho que merecia na cara a badine que usava na mão».
Artur, então, lembrou a necessidade de mostrar ao País a força do partido: achava prejudicial que o Clube tivesse, havia quinze dias, suspendido as suas sessões.
O motivo era o Matias estar preparando o seu grande Programa de Organização Democrática, e parecer-lhe inútil reunirem-se antes de possuírem aquela base de trabalho, de acção, que era, segundo o Nazareno, «uma das grandes obras que se tinham escrito neste século».
— O Matias leu-me ontem a primeira parte. Depois de Proudhon, não se tornou a escrever nada tão forte e tão elevado. O amigo verá!
No entanto Artur estava inquieto por causa da «sua questão com o Melchior»: não conhecia que largo fundo de indiferença pelas ideias há nos espíritos inferiores e, julgando tê-lo escandalizado no seu fervor monárquico, receava perder a notícia, o prometido folhetim no «Século», e até os serviços do velho Gonçalves, pai de tantos filhos! Por isso, na manhã seguinte, ficou encantado encontrando Melchior, que vinha, risonho e florido, «almoçar com o caro Artur». Justamente, Artur recebera, ao acordar, uma carta da tipografia anunciando a terminação do volume e remetendo a conta da impressão. Melchior examinou-a, achou— a muito moderada, prometeu mandar o Gonçalves à tipografia e assegurou que depois do almocinho ia fazer uma notícia catita.
E com efeito, ao outro dia, Artur pôde ler, com o coração afogado em vaidade, os elogios do «Século»:

«É hoje posto à venda o livro de poesias do nosso ilustre amigo Artur Corvelo, os Esmaltes e Jóias. É um belo volume de 250 páginas, nitidamente impresso na excelente tipografia de Castro & Irmão. Vamos ler e falaremos de espaço desta interessante estreia do inspirado poeta. É natural que a crítica se ocupe largamente deste magnífico volume. Em seguida damos um pequeno extracto, que nos parece uma verdadeira jóia onde não falta o esmalte».

 E seguia-se a transcrição de uma pequena poesia, em que Artur, retomando uma antiga imagem do velho Gautier, comparava a sua alma cheia de desejos, a um pombal atulhado de pombas.
Recebeu pouco depois, da tipografia, os volumes destinados a ofertas — e de robe-de-chambre, com uma chávena de café ao lado, passou uma manhã deliciosa, escrevendo dedicatórias na primeira página, num estilo lapidar, poético, afectando na irregularidade da letra a desordem da inspiração. Remeteu um exemplar às tias, outros ao Carneiro, à Corcovada, ao Rabecaz, ao Vasco da botica, ao Nazareno, ao Matias, a D. Joana Coutinho, ao Padilhão, a Vítor Hugo, e outro ainda a Garibaldi, com estas palavras: «Ao sublime herói da espada, o humilde cismador da lira». Mandou pôr volumes nos quartos de Meirinho e de Carvalhosa e num último exemplar escreveu apenas: «15 de Maio. Estação de Ovar. Remember.» Por entre as folhas pôs duas violetas esmagadas e sobrescritou para o palacete da Srª Baronesa de Paradas, a S. Bento.
Depois, sentado à janela, com um exemplar na mão, ficou longo tempo a saborear o delicioso orgulho que ele lhe trazia; o cilindrado do papel dava uma doçura inesperada à harmonia das rimas e a cor de canário da capa, com o seu nome em elzeviriano, enternecia-o; lia aqui, além, versos, trechos, e ora tinha palpitações de vaidade por belezas que impressas lhe pareciam de um brilho particular, ora se assustava com incorrecções de forma subitamente apercebidas, que lhe tinham escapado nas provas e que decidia emendar na segunda edição.
Entrou nessa noite no Martinho, comovido. Decerto o volume, tornado popular pela notícia do «Século», fora já folheado. No rumor das conversas, parecia-lhe sentir o seu nome, trechos do livro citados; deviam decerto olhá-lo, examiná-lo; e calculava os seus movimentos, a maneira de se encostar na cadeira, de passar a mão pelo cabelo, para dar de si uma ideia mais favorável e como que a revelação pública do seu génio íntimo.
Nazareno, que tomava o seu café, ainda não lera o livro, mas vira a notícia do «Século».
— Palavra, fiquei surpreendido — acudiu Artur. — Depois da minha questão com o Melchior, imaginei que me fariam guerra. Mas não. No fundo, são bons rapazes — e é necessário estar-se bem com os jornais...
— Decerto— disse Nazareno que parecia reflectir. E depois de um momento: – Então o amigo é lá muito da gente do «Século», hem?
Artur afirmou que tinha alguma influência no «Século».
— Estimo — disse Nazareno — porque então vamos arranjar uma coisa...
Procurou na algibeira e tirou um rolo de tiras de papel. E baixando a voz:
— É necessário fazer publicar isto...
Artur teve um deslumbramento: pensou que por fraternidade revolucionária, Nazareno fizera um estudo sobre os Esmalte e Jóias; e a sua desconsolação foi grande quando o outro, com os cotovelos na mesa, o seu ar um pouco soturno, lhe disse — que era um artigo do Matias sobre o livro do Damião.
Publicara-se havia uma semana e intitulava-se a Renascença em Portugal. Nazareno afirmou que era um livro concebido num espírito muito livre, de grande estilo, de uma alta ciência, «a verdadeira iniciação em Portugal da crítica histórica e literária». Uma grande obra de democracia, enfim! Era útil para o partido, para os interesses da inteligência, fazer em torno do livro um ruído de artigos: como eles não tinham jornal, era necessário — de resto era até conveniente — que os jornais conservadores popularizassem o volume. Ele não conhecia jornalistas, mas ao ver a notícia do «Século», sabendo que o amigo Corvelo conhecia a redacção, lembrara-se... Hem?
— Sim — disse Artur — falo ao Saavedra. Até tenho muito gosto... Sou amigo do Damião.
— Dá dois folhetins — disse Nazareno.
Artur levou o manuscrito, mas estava contrariado. No momento em que ele necessitava do folhetim do «Século» para os Esmaltes, achava imprudente reclamá-lo para o livro do Damião. Nazareno parecia-lhe egoísta. Era abusar, que diabo! Tinha agora um vago medo de que o Saavedra consentisse na publicação, e que o livro do Damião tivesse um sucesso ruidoso, em que o seu volumezinho lírico desaparecesse, como um suspiro numa trovoada. Pensou em guardar o manuscrito até que saísse o folhetim do «Século» sobre os Esmaltes... Ou ainda, poderia dizer a Nazareno, com um gesto desolado, «que o patife do Saavedra, nem à quinta facada»... Mas então, o patife era ele, Artur. Que estúpida ideia, a de Nazareno! Detestava-o agora, e sentia-se inclinar vagamente para as opiniões do Melchior sobre «a cambada dos republicanos».
Mas ao outro dia, por um sentimento de lealdade — que a claridade límpida da manhã concorreu decerto a fortalecer — foi ao «Século». E sem calor, cumprindo estritamente e unicamente o' que prometera, estendeu o manuscrito a Melchior, dizendo:
— Estimava que você publicasse isto no seu jornal. É sobre o livro do Damião, um amigo meu.
Melchior remexeu as tiras de papel azul quase com medo. Vinha do Matias, dos republicanos, e parecia-lhe que sob aquela letrinha miúda se devia tramar alguma coisa de funesto para o «Século», para a Monarquia, para os prazeres tranquilos da Baixa. Deu um olhar desconfiado a Artur e disse devagar, coçando a cabeça:
— Enfim, eu falarei ao Saavedra, eu não quero compromissos... Você bem vê... É uma responsabilidade... Você tem empenho?
Artur hesitou: porém, a honestidade venceu e disse com firmeza:
— Tenho!
— Bem!
E Melchior fechou o manuscrito à chave, com precaução, como se fosse dinamite ou outra qualquer substância explosiva.
Artur passou esse dia e o seguinte fazendo o giro dos livreiros onde se vendiam os Esmaltes e Jóias, para gozar, vendo o volume nas vitrinas, as primeiras doçuras da publicidade. Não ficou satisfeito: ora o volume não estava bastante em evidência, ora o achava colocado ao pé de algum livro francês, cujo frontispício ilustrado absorvia a atenção; estes detalhes descontentavam-no. As vitrines dos livreiros pareciam-lhe além disso bem indiferentes ao público: homens, senhoras, passavam, na pressa da ocupação ou no vagar da vadiagem, parando diante das ourivesarias, das camisarias, das modistas — nunca diante dos livreiros. Não encontrava nas fisionomias nada que revelasse a impressão dada pelos seus versos: o livro parecia passar sobre a cidade como uma gota de água sobre guta-percha. À noite, no Martinho, em S. Carlos, roçava-se pelos grupos, na esperança ávida de ouvir o seu nome: chegavam-lhe fragmentos de palestras sobre política, fundos, jogo, mulheres, nunca sobre os Esmaltes e Jóias. Entrava desconsolado no hotel e punha-se a reler o volume: tudo lhe parecia então vulgar, imitado, mal rimado, chato, e vinham-lhe desesperos mudos e como que um pungente sentimento de solidão e de treva. Uma ideia consolava-o: àquela hora a linda baronesa tivera o livro, lera-o e palpitava de emoção, vendo que o simpático rapaz da estação de Ovar era um poeta! Esperava uma resposta, um bilhete-de-visita, uma flor seca dentro de um sobrescrito, um amo-te numa folha de papel perfumado. Nada veio.
Das pessoas a quem ofertara o livro não recebera nenhuma palavra animadora. Carvalhosa nem lho agradecera; Meirinho dera-lhe no corredor um obrigadinho seco.  O Padilhão dissera-lhe, do outro lado da mesa:
— Lá recebi, está um volumezinho bonito.
Só Nazareno lhe dera uma opinião crítica:
— Você tem a forma, agora é procurar a ideia. Compreende-se, num primeiro livro de poesia, o género lírico. Mas é necessário não repetir. Vítor Hugo fez as Orientais, uma composiçãozinha ridícula, mas tomou a sua desforra nos Châtiments. Agora é pôr de lado o amor e os lírios e falar-nos de coisas mais sérias. — E o artigo sobre o livro de Damião?
Artur afirmava — segundo lhe dissera repetidamente Melchior — que o Saavedra o ia ler... Naturalmente publicava-se. Talvez saia amanhã, acrescentava. Ele veria.
Mas o que realmente queria ver, todas as manhãs, o que ambicionava com palpitações do coração ao abrir o «Século», era o folhetim prometido sobre os Esmaltes. Não o encontrava. E vinha-lhe então uma grande irritação, por não ver o artigo do Matias sobre o livro de Damião.
E era aquele o pretexto que tomava para se indignar contra Melchior, ir à redacção, e, ao princípio com modos tímidos, depois, mais secamente, lembrar-lhe «a sua palavra».
— Oh, menino, o Saavedra lá tem o folhetim... Mas era necessário decidir, que diabo! — insistia ele, furioso contra Melchior, que, obtusamente, não compreendia que a promessa que ele verdadeiramente queria ver cumprida, não era sobre o livro do outro — bem lhe importava! — mas sobre o seu... Sobre o seu!
Melchior, porém, compreendera: muito lealmente, tentara, numa noite de luta, produzir um folhetim sobre os Esmaltes e Jóias; chegara a obter meia coluna em que falava da «nitidez da edição e da grande inspiração». Mas faltavam quatro colunas e meia e nem duas chávenas de café, nem charutos fumados à janela com a testa à aragem da noite, nem pitadas de rapé para aliviar o cérebro, nem passeios furiosos pelo quarto, nem a cabeça apertada entre as mãos, como um limão a que se exige o sumo — nada forçara a sua vasta fronte calva, que parecia conter um mundo, a produzir uma linha mais! E desistira, furioso contra uma «tão extraordinária falta de veia».
Artur agora subia quase todas as manhãs ao «Século», pretextando ir dar uma vista de olhos aos jornais: mas na sua presença, na sua voz, na maneira de se sentar, Melchior sentia errar uma vaga acusação — já o temia como a um credor.
— Amanhã, falo ao Saavedra — jurou-lhe um dia.
E na manhã seguinte, vendo-o entrar, ergueu-se logo, e dizendo-lhe baixo que ia decidir a questão, foi bater discretamente com os nós dos dedos à portinha verde do gabinete do Sr. Director.
— Entre!
Melchior entrou, fazendo a Artur um gesto em que lhe prometia ser enérgico.
Mas daí a momentos voltou e logo da porta abriu os braços, enterrando a cabeça nos ombros, exprimindo toda a sorte de impossibilidades.
— Então? — perguntou Artur.
— Diz que não! — fez o outro arregalando os olhos. — E levando-o para o vão da janela: — Não deu explicações, diz que não! É um livro comunista, cheio de horrores... O artigo do Matias também. Enfim, diz que não!
Artur não pareceu muito irritado. Enrolava um cigarro com a cabeça baixa e de repente, um pouco vermelho, com a voz ligeira de quem se recorda de uma minudência:
— É verdade, a propósito, e o folhetinzito sobre os Esmaltes?
Melchior corou, mas não querendo confessar a sua miséria intelectual:
— Que quer você, também diz que não!
— Ora essa!
— Falei-lhe — continuava o outro, com gestos desolados — é por causa da Ode à Liberdade, da Sátira à Sociedade: diz que não. O jornal está com o governo; se estivesse na oposição, então... Diz que não! — E baixando a voz: — Um asno!
Artur galgou a Calçada do Correio, falando alto de indignação. Na sua necessidade de desabafar, de rugir, correu ao quarto de Nazareno. Não o encontrou. Então foi sentar-se para o Passeio, debaixo de uma árvore, e ali ficou ruminando a sua cólera. Uma grande doçura parecia cair do alto azul, puríssimo; o rumor da cidade chegava por fragmentos abafados, como se ficasse preso, enleado nas ramagens meio despidas. Um jardineiro regava. E na rua onde a areia reluzia ao sol tépido, duas crianças muito loiras corriam, vigiadas por uma inglesa vestida de Verão, de lunetas azuis, que lia num banco, com um King Charles no regaço. Mas aquela paz de jardim burguês não o calmou. O mundo oficial, de que o «Século» era a expressão literária, parecia-lhe agora vil, de uma vileza pequena, piegas, com alguma coisa de senil e de estúpido: nunca se sentira tão decidido a servir as ideias de Nazareno! O seu livro, agora, repelido, ignorado da imprensa, parecia-lhe sublime. A recusa do Saavedra, atribuía-a à inveja, talvez à influência inimiga do Roma. E pensava em coisas vagas que faria, que escreveria, para provar a sua força, fazer sentir a importância do seu talento...
Mas pouco a pouco, no amolecimento que lhe dava aquele tépido meio-dia de Inverno, veio-lhe como que a indefinida consciência da sua inabilidade para a luta: necessitaria ter uma amizade forte ou um amor inspirador, apoiar-se a alguma coisa de duradoiro, de consolador... O quê? E as duas crianças, correndo, brancas e cor-de-rosa, frescas como flores, apetitosas como frutas, dando-lhe vagos desejos de paternidade, fizeram-no pensar na família, numa casa bonita, toda sonora de risos de crianças, onde o frou-frou de um vestido pusesse no ar ambiente uma ternura subtil. Lembrou-lhe a filha do Carneiro. Pouh! Usava uma cuja postiça e nunca poderia compreender as necessidades do seu espírito, nem as belezas dos seus versos. Depois, a província aterrava-o. Mas Lisboa impacientava-o já. E vinha-lhe como que uma desconsolação de tudo, uma sensação de mal-estar: bocejou enormemente, ergueu-se, foi arrastando os passos, enfastiado, até ao hotel. Já nem se sentia indignado contra o Saavedra, porque na sua natureza linfática, tudo se amolecia, fenecia depressa — indignação ou entusiasmo — como num ar sem oxigénio todas as plantas se estiolam.
À noite, no Meirinho, contou tranquilamente a Nazareno a resposta do Saavedra. O republicano fez-se pálido de raiva e a sua indignação, exprimindo-se com violência, chegou a despertar, a aquecer de novo a cólera de Artur. Tudo provinha deles não terem um jornal... Um jornal fá-los-ia respeitados, temidos, dar-lhes-ia uma voz, uma posição...
— E onde está o dinheiro? — exclamou Nazareno.
Artur, pensando no seu conto de réis, lá na província, na burra do Carneiro, calou-se, encolhendo os ombros.
Contou então ao Nazareno, como para o consolar e mostrar bem a sinceridade do seu despeito, que o Saavedra recusara também a inserção de um folhetim sobre os Esmaltes. Nazareno, porém, não parecia a Artur bastante indignado:
— Pois não lhe parece uma grande maroteira, Nazareno?
O outro fez um vago gesto de assentimento e depois de uma pausa:
— O Matias já folheou o seu volume. Acha-o muito erótico...
Artur mordeu os lábios e voltou para o hotel desesperado com aquela opinião. Que entendia o parvo do Matias de versos e de estilos! Aquela tendência de querer reduzir toda a Arte, mesmo a Poesia, a um auxiliar subalterno de ambições políticas, parecia-lhe de espíritos estreitos, egoístas. E deitou-se descontente do Saavedra, do Matias, de Lisboa, de si, da vida.
Acabava de almoçar na manhã seguinte, quando Melchior apareceu com uma face radiante. Atirou um número do «Século» para cima da mesa, exclamando:
— Ora receba lá esse presentinho!
Que surpresa! Era uma notícia, a primeira que dizia:

«O ilustre autor dos Esmaltes e Jóias, que tanta sensação têm causado, o nosso prezado amigo Artur Corvelo, muito conhecido na nossa sociedade aristocrática onde as suas maneiras, o seu espírito, o tornam alvo das maiores atenções, tem enfim terminado o seu grande drama Amores de Poeta, que brevemente será representado num dos nossos primeiros teatros. O drama, que por alguns trechos que ouvimos nos parece primorosamente escrito, é um estudo de costumes da alta sociedade e por assim dizer um protesto contra as teorias subversivas, que, aqueles que em Portugal pretendem introduzir as ideias republicanas, espalham para destruir a família, a religião. a elegância e tudo o que constitui o património da gente bem-educada. Os Amores de Poeta são dedicados a um Augusto Personagem. O público espera ansiosamente este debute teatral do inspirado vate.»

Artur, atónito, exclamou com os olhos muito abertos para Melchior:
— Ora essa... Dedicado a um Augusto Personagem?
— Hem! — exclamou o outro com triunfo. É bem jogada, hem? É um achado! É catita! Que lhe parece?
Compusera aquela notícia sobre o drama para o consolar da perda do folhetim sobre os versos e, orgulhoso do «achado" — a ideia da oferta do drama ao Rei, ou à Rainha — repetia com os olhos brilhantes:
— É catita! É de chupeta!
Artur, embaraçado, disse:
— Mas não é verdade, homem! Pode-se supor que é o Rei.
— Está claro que se supõe! Para isso é que eu escrevi! Faz um efeitarrão!
— Mas se o Rei sabe... É abusar.
O outro teve um grande movimento de ombros:
— Ora sebo! Nem ele sabe, nem se importa! E se for necessário, você dedica-lho! Faz um efeitarrão... Não há empresário que o não queira levar...
Artur, no meio da sua vaidade satisfeita, tinha uma vaga contrariedade. Que diriam os republicanos, vendo-o assim designado como «o menino-bonito» da alta sociedade, fazendo dedicatórias aos tiranos? Torceu o bigode, parecia assustado.
— Ainda você não está contente! — exclamou Melchior, despeitado daquele acolhimento cheio de embaraço a uma local que devia ser recebida com exclamações vitoriosas.
Artur disse:
— Não, estou. Estou penhorado, Melchior, mas...
— Mas quê, com mil-diabos! E esta?
— É que tenho amigos... O Nazareno, o Matias... Parece uma traição...
A face de Melchior tornou-se grave:
— Você vai por um mau caminho, Artur. — E sem o deixar falar, com uma verbosidade repentina, continuou: — Você se se mete com essa gente está perdido. Eu conheço Lisboa. São muito malvistos. Se você quer furar e que se fale de si, que se lhe represente o drama e tratar com gente fina, deve deixar essa cambada. Que é que eles lhe podem dar? Divertimentos? Onde?... Empregos? Que é deles?... Posição? Nicles! Levá-lo à sociedade? Olha quem, os pelintras! Então para quê? Você pode aspirar a muito: é o que diz o Saavedra. Mas é necessário estar com a gente decente. Veja você: por que não apanhou você o folhetim no «Século»? Por causa dessas histórias de Odes à Liberdade, e Marselhesas e toda essa choldra! Você tem dinheiro, não é verdade? Para que se há-de meter com maltrapilhos? O que eles querem é explorá-lo, homem!
Artur escutava-o, abalado.
— E além disso — ia dizendo Melchior...
Um criado entrou com uma carta para Artur. Era um simples cartão-de-visita:

D. JOANA CÂNDIDA DE MENESES COUTINHO
a agradecer o delicioso volume de versos.

Um rubor de orgulho espalhou-se-lhe no rosto. Estendeu o cartão a Melchior, que exclamou com o ímpeto alegre de quem, combatendo, se apossa de uma arma nova:
— Aí tem você! Vê? Se ela soubesse que você pertence à canalha do Matias, recambiava-lhe o livro, tão certo como eu estar aqui.
— Foi muito amável — disse Artur, relendo as palavras escritas no cartão. E revia a sala de D. Joana Coutinho, as toilettes de seda, os homens de casaca: ali apreciava-se a poesia amorosa, elegante — e pensava em Nazareno, habitando num quinto andar, com uma sobrecasaca coçada, relações pulhas, os dedos queimados do cigarro e hostil ao lirismo. E aquele simples agradecimento de D. Joana aparecia-lhe como uma porta que se abria sobre a Sociedade e de onde saiam aquelas emanações de luxo, de amores patrícios, de graças femininas que intimamente o cativavam sempre. O Melchior, que diabo, tinha talvez. razão. Disse-lho.
— Está claro que tenho! — E retorcendo o bigode aproximou-se da varanda.
Mas teve logo uma exclamação e com um grande gesto para Artur:
— Pst! Venha cá, homem, venha depressa!
Artur correu: viu apenas uma tipóia que descia o Chiado a trote largo, com duas cabeças cobertas de mantilhas à espanhola.
— Era a Concha — fez Melchior, dando uma punhada no peitoril da varanda. — Que linda que ia! E a Paca... Oh, menino! — E exaltado: — Quer você uma coisa? Vamos ao Clube com elas. Hem? E brilhavam-lhe os olhos.
Artur teve um ímpeto de mocidade, de ardor; disse vivamente:
— Valeu!
— Caramba! — fez o outro. E decerto para se preparar à excitação nocturna, reclamou uma gotinha de cognac.
O mesmo criado entrou com outra carta para Artur.
— E o dia das cartas — disse ele, com uma vaidadezinha.
E de repente, teve a ideia, pela letra que não conhecia, que era da baronesa: a alegria das suas feições foi tão clara que Melchior perguntou, com os olhinhos vivos:
— Cartinha de amor?
Era de Nazareno. Dizia que ao outro dia, às 9 horas da noite, Matias lia o seu grande trabalho. «Sem falta, caro concidadão!»
Artur meteu a carta no bolso afectando discrição.
— Rendez-vouzinho, hem? — fez Melchior, já invejoso.
Artur julgou não mentir, dizendo:
— Rendez-vouzinho, para amanhã!
— Seu felizão! — fez o outro. — E para ocultar o despeito, emborcou o cálice de cognac com o seu chic especial, atirando-o de um golpe para as goelas. Estalou com a língua e pousando o copo: — Hoje andaluza, amanhã baronesa! Veja se a república lhe dá dessas pechinchas!
E Artur sorria, torcendo com fatuidade o bigode.

Partiram às nove horas, numa caleche descoberta: levavam a Concha e a Carmen. Melchior que parecia entusiasmado, mandara o Teso bater pelo Chiado e direito no assento, com o chapéu ao lado, o charuto flamejante, atirava adeuses com a ponta dos dedos para os grupos escuros da Havanesa e do Baltreschi. Artur, um pouco embaraçado, encolhido, admirava a Concha: a mantilha preta dava uma palidez mais mimosa, mais tocante, ao seu rosto de feições finas, de um tom melancólico; os seus olhos árabes, húmidos, bem rasgados, tinham na sombra uma negrura mais profunda; recostava-se com um abandono lânguido mas senhoril, retraindo castamente os pezinhos para não encontrar as botas de Artur. Logo no Aterro, Melchior começou com as suas pilhérias: fazia declarações inflamadas à Carmen — uma grossa andaluza, de grandes carnes e olhos banhados num fluido negro como tinta — beijocava-lhe as mãos papudas, chamava-lhe num espanhol grotesco: mi palomba, flor de benediccion!... remexia-lhe no vestido, atraía-a pelos braços, fazendo-a rir, de um riso cálido de cócegas e de pândega. Para lhe imitar a animação, Artur quis tomar desajeitadamente as mãos da Concha, mas ela, com dignidade, censurando decerto as expansões públicas de concupiscência, retirou-as brandamente. Aquela frieza chocou Artur: desesperava-se por não poder falar espanhol e cativá-la com a eloquência da fraseologia poética. Então recostou-se, calado, a olhar a noite: uma doçura infinita errava no ar que tinha uma vaga cor de anil deslavado; brancuras de luar banhavam pedaços de fachadas; e a tipóia corria a trote, com o Teso muito direito na almofada, de cabeça baixa, o pingalim alto, as pontas da faixa a esvoaçar, batendo no seu estilo catita.
— Então isto não é melhor que todas as soirées do High-Life? — disse Melchior. – E em passando as portas, salta a bela malagueña!
E aconselhava Artur a que se atirasse à Concha e «que se pusesse à altura das circunstâncias», que isto de pândega sem animação era dinheiro deitado à rua!
— Eh, Teso, é bater! é bater!
Tinham passado Pedrouços, adormecido e escuro, e a Carmen, muito solicitada, entoou a sua malagueña: Melchior, mascando o charuto com entusiasmo, seguia o compasso, saracoteando a cintura e fazia o acompanhamento, batendo as mãos em cadência. A voz da rapariga era acre e mordente e as notas arrastadas, os á-á-áhs muito modulados, perdiam-se pela noite, misturados ao trotar batido das ferraduras, ao rodar da tipóia no areado do macadame. No alto silêncio azulado brilhava uma Lua imóvel, muito serena, e um ar vivo passava, salgado das emanações do rio. Artur sentiu um fluxo de ternura triste, de enleio poético afogar-lhe o peito e recostando a cabeça, suspirou.
Então, muito terna, a Concha debruçou-se para ele, e, chamando-lhe hijo mio, quis saber o que o fazia sofrer. Ele carregou a voz de ternura, para dizer: nada! Ela apertou-lhe a mão docemente — e Artur não duvidou do seu amor.
Mas Melchior tinha entoado o fado: fazia uma voz especial, estrangulada, do nariz, rouquenha, afadistada:

Eu fui um dia ao Dafundo,
Ai! Em companhia do Amore!...

Mas interrompeu-se: o fado sem guitarra não ia. No Clube é que haviam de cantar, se lá estivesse o Zé das Três. Artur é que havia de ver! Era de chorar!
E declarou que tinha fome. Também, iam fazer uma ceia real! Abraçou os joelhos da Carmen, que dava gritinhos, e, para animar o Teso, aconselhou Artur a que lhe desse um charuto. Chamava-lhe o Tesinho.
— Tenho feito muitas pândegas com ele. Não é verdade, ó Tesinho? Hem? No tempo do Sr. Visconde. Hem? — Viva o salero! Lhegamos, niñas!
Estavam com efeito diante do hotel do Clube. Melchior saltou vivamente — mas ficou à portinhola, escutando, petrificado: do hotel saíam gritos de mulheres, uma luz corria no primeiro andar.
— Temos chinfrim — disse o Teso, atirando a manta às ancas dos cavalos.
As raparigas tinham descido, já assustadas; contudo entraram. No corredor, um homem cruzou-os, correndo, com uma toalha e uma bacia na mão; uma mulher, de saia muito engomada, passou aos gemidos, aos ais! E Artur, com a Concha muito trémula agarrando-se-lhe ao braço, Melchior, pálido, um pouco encolhido atrás da Carmen, dirigiram-se à sala da esquerda, alumiada, de onde saíam os choros dilacerantes de uma mulher rouca.
Junto da mesa, um homem, com o busto todo nu, o rosto lívido, os cabelos empastados num suor frio, erguia ao ar o braço direito, todo coberto de uma pasta de sangue escuro que gotejava devagar: o chão estava encharcado de uma humidade negra. Sobre a toalha da mesa, repuxada a um canto, negra de vinho entornado, estavam pratos quebrados, estilhaços de copos, e uma rapariga que duas mulheres acalmavam, seguravam, chorava convulsivamente, arrepelando-se, com os olhos esgazeados, a face manchada de vermelho. Um indivíduo gordo e calvo, de ar importante, procurava vedar o sangue, mas a toalha enrolada ensopava-se depressa: as carnes estavam dilaceradas por facadas transversais e apenas lavado com muita água, o sangue recomeçava a correr, caindo em gotas pesadas. O rapaz imóvel, mudo, corajoso, perdia a cor; os olhos embaciavam-se-lhe. Todos os rostos estavam amarelos de terror: perguntava-se baixo pelo médico; uma criada, toda esguedelhada, esfregava o chão; e o dono do hotel, em mangas de camisa, as calças muito erguidas pelos suspensórios, ia pedindo que «se retirassem, que não fizessem barulho», afirmando «que não era nada, que fora por acaso», seguido da mulher, que, de peitos à mostra, em camisa de dormir, procurava acalmar uma criança estremunhada que se torcia, aos berros.
Melchior, muito branco, quis partir imediatamente; nem deixou o Teso dar uma sopa ao gado: empurrou à pressa as espanholas para dentro da caleche, subiu, e fechou rapidamente a portinhola, como para se refugiar na tipóia, trémulo, cheio do terror das desordens, dos fadistas, da polícia e do sangue.
— Isto só a nós! — disse ele a Artur. — Declarou que tinha tonturas:
— Vá, Teso, é largar. E largar, que diabo!
A volta para Lisboa foi lúgubre: as raparigas falavam baixo, tomadas de um vago terror; tinham reconhecido o rapaz — era o Álvaro, o querido da Adelaide, da Rua do Norte. Fora questão de ciúmes, decerto; e gabavam-lhe a coragem, a brancura da pele, vagamente enamoradas dele. Melchior, mudo como uma estátua, sem veia, torcendo nervosamente o bigode, ia sondando os recantos escuros do caminho, no susto de assaltos possíveis, apressando o Teso, ávido de se encontrar em Lisboa, no sossego das ruas populosas, sob a protecção da patrulha. Só começou a tranquilizar-se quando a tipóia rolou pela Rua do Ouro. Era uma pândega estragada! E deblaterava agora contra tudo o que até aí fora celebrando: os fadistas, a solidão do Clube e as relações de prostitutas.
Foram cear ao Silva. E aí, bem seguro dentro das quatro paredes do gabinete, à luz quente do gás, recobrada a loquacidade, contou outras desordens a que assistira, a maneira como salvara o célebre Viola de uma facada do Rei de Copas, e os abas que tinha esbofeteado. Estimava agora ter visto aquele chinfrim e foi à sala procurar pessoas conhecidas a quem repetia prolixamente «o caso», assegurando que se não fosse ele, o pobre diabo escoava-se em sangue.
No entanto, no gabinete, esperando as ostras, Artur revirava olhos ternos para a Concha, construindo laboriosamente frases espanholas: e para lhe dar uma alta ideia do seu valor, recitava-lhe ardentemente dois versos de Espronceda que sabia de cor:

Porque vuelve a la memoria mia
Triste recuerdo del placer perdido?

Ao outro dia, quando às 10 horas da manhã entrou no hotel para mudar de roupa, vinha enamorado da Concha.

Na intimidade da alcova, ela contara-lhe a sua vida. Não era filha de um general — segundo a versão de Melchior — mas seu pai, cunhado de um capitão, negociava honestamente em vinhos, numa localidade que ela não quis revelar. Seduzida — inocente que era então! — pelo filho de um marquês, fora esconder a sua glória e a sua vergonha num terceiro andar da melancólica Rua de S. Juan de Dios, em Madrid. O seu amante, cujo título era confuso, ora conde, ora simplesmente visconde, era um carlista fanático, que se alistara nos bandos de Saballo e morrera junto a Estela, num encontro de cavalaria. Ela — pobrecita! — só, miserável, depois de ter empenhado uma por uma todas as suas ricas jóias — rubis, pérolas, diamantes, que o carlista lhe dera com uma profusão de Grande de Espanha, vira-se forçada — ah, bem forçada — a aceitar o amor de um director de caminhos-de-ferro, um primeiro andar em Fuencarral e um coche. Este coche parecia ser a glória eminente do seu passado: fazia-o rolar constantemente através da sua história — ora vitória aberta aos tépidos aromas dos arbustos do Retiro, ora cupé acetinado, correndo silenciosamente sobre a neve da Fuente — puxado por um cavalo branco que se chamava Miramolinos... Mas os ciúmes ferozes do director de caminhos— de-ferro, a sua bengala tão dura aos pobres ombros tenros, obrigaram-na um dia a vir refugiar-se em Lisboa, com o «vestidinho que trazia no corpo», numa casa amigável e hospitaleira da Rua de S. Roque... Mui desgraciada!
Depois, falara mais particularmente dos seus sentimentos. Dizia-se simples como uma criança, amorável como uma pomba. Para ela, luxos, teatros, toilettes, pouh! eram misérias! O seu ideal era ter uma casita sua e um homem novo que a estimasse e a tratasse como uma senhora. Ela mesma coseria os seus vestidos e era fácil de alimentar como um passarinho! Alguns gravanços, muita ternura — e era feliz!
Ia revelando estes pormenores do seu passado e do seu carácter, ao mesmo tempo que se despia e mostrava as belezas da sua nudez. As suas desgraças davam um encanto tocante às suas formas; havia como uma harmonia entre as fragilidades sentimentais de sua alma e a delicadeza fina das suas linhas. Artur escutava-a, fascinado pela sua pele e enternecido pela sua biografia, cheio de ardores libidinosos e de piedades cristãs! E enquanto ela punha devagar pó-de-arroz ao espelho, com o peitinho ao léu onde corriam veias azuis de uma doçura aristocrática, Artur, em redor, de olho aceso e imaginação cativada, impacientava-se no desejo de a possuir e comovia-se à ideia de a regenerar!
Depois, alta noite, ela fez novas revelações sobre o director de caminhos-de-ferro. Era um monstro que lhe puxava pelos cabelos, a amarrava por um tornozelo ao pé de um buffet e a deixava assim, como uma cabra presa a uma estaca, com um copo de água e caramelos... Até uma vizinha, D. Angélica Lorenzo, chorava todas as lágrimas dos seus olhos... Artur torcia-se, tomado de um ódio infernal pelo director de los Ferrocarriles.
— Mas por que era ele assim, esse bruto?
Ela suspirou e revelou-lhe ao ouvido, que «era por ser fria com ele»... Mas então — com homens de quem não gostava, não podia ser senão fria. E dava-lhe assim a entender que a exaltação voluptuosa que mostrara era uma certeza do seu amor por ele.
Àquela revelação, Artur, apertando-a doidamente nos braços, jurou-lhe que a amava e que a faria feliz: prometeu-lhe que voltaria essa noite mesmo — e que lhe traria uma sombrinha cor de peito de rola, que ela vira no Valente e lhe tirava o sono.
Todo o dia, passou-o saboreando, ruminando as felicidades da noite. Sempre, desde Coimbra, desde as suas leituras de Musset, as Andaluzas — les Andalouses aux seins brunis — se tinham conservado para ele como um ideal de voluptuosidade; e a posse de uma, enfim, e tão tocante, tão infeliz, tão ingénua, tão aristocrática, dava-lhe como que o orgulho de uma iniciação. Comprou-lhe a sombrinha e dois pares de luvas — desejaria dar-lhe diamantes, como um devoto que orna um ídolo. E ia pelas ruas com um vago sorriso beato, o corpo lasso, a alma suavemente enternecida, pensando nela, parecendo-lhe que a cidade tinha uma elegância mais amorosa, que o céu era mais azul, e respirando com languidez alguma coisa de romântico e de triste que lhe parecia errar subtilmente no ar.
Pensou mesmo com tédio no Clube Democrático, onde tinha de ir nessa noite; julgava bem secante o aparato maçador de uma sessão republicana — agora que só respirava bem no ar abafado do quartito da Concha. E como quis ir vê-la, beijá-la depois do jantar, eram quase dez horas quando chegou ao Clube.

No meio de um silêncio grave, Matias acabava de ler o seu grande escrito — O Programa de Organização Democrática. Como todas as cadeiras estavam ocupadas, Artur, um pouco acanhado, ficou de pé, encostado à parede.
A sala estava quente das respirações e da intensa atenção apaixonada. Matias parecia pálido de fadiga: a sua voz seca, lenta, tinha agora, lendo a peroração, um vigor exaltante e em todas as fisionomias, nas atitudes, havia a animação satisfeita de quem respira um ar regenerador.
A primeira parte da leitura fora um libelo amargo contra o Regime Constitucional, deduzido por factos e cifras, e que regozijara todos os descontentamentos como a expressão bem clara de ódios indefinidos; depois, a parte prática do programa, mostrando os meios de estabelecer a República, apaziguara enfim os ambiciosos, que, até aí, no Clube, só tinham escutado uma vaga fraseologia balançando-se ao acaso; finalmente, a peroração, as grandes frases, com apelos à Justiça e invocações à Liberdade, electrizava os mais obtusos, como uma bela rajada de instrumentação. Todos pareciam compreender, querer, sentir: Artur desconhecia aqueles rostos que vira vazios e aparvalhados e que encontrava agora expressivos e determinados; e ele mesmo se sentiu vibrar, em harmonia com a eloquência revolucionária daquela prosa elevada — quando Matias terminou com uma larga apóstrofe à República Universal!
Os bravos! romperam; um brouhaha animado elevou-se; e então, no rumor, Artur viu o Malaquias, o homem sujo e amarelo, que falava voltado para o secretário, agitando um jornal.
— Peço a palavra, peço a palavra! — exclamava.
Erguera-se e ia falando baixo a uns e outros com grandes gestos dos seus braços magros. Alguns olhares voltavam-se vivamente para Artur e três sujeitos cochichavam com Nazareno, que parecia mais pálido e muito excitado.
— Peço a palavra! — bradou o Malaquias, brandindo o jornal.
A campainha retiniu e subitamente cavou-se um silêncio disciplinado.
Malaquias então olhou em redor com triunfo: a sua larga boca fendida alargava-se mais num sorriso perverso e acariciava o queixo com os dedos magros, como que ruminando um gozo íntimo.
Depois de bambolear a cabeça, começou a dizer na sua voz mastigada e aguda, que, antes de discutir o profundo trabalho que todos acabavam de ouvir com admiração — o Matias fez uma grande cortesia — era do seu dever, do dever de todos — e curvava-se respeitosamente para os lados — proceder a um acto de justiça. Quando ele, na última sessão, exigira garantias para os novos membros admitidos, por exemplo o juramento, bem sabia o que dizia...
— Bem sabia o que dizia! Eu não sou nenhum tolo! — e agitava os braços, esganiçando a voz. — Mas os mestres... — e com a boca arreganhada, baixava a cabeça humilhando-se ironicamente: — Mas os mestres... E aí têm o resultado! Eu não quero fazer verrinas, mas se me dão licença, sempre lhes passo a ler o que se diz num jornal, a respeito de um certo membro ultimamente admitido e os cidadãos verão o que convém fazer!
Artur sentira uma pancada no coração: no jornal que Malaquias brandia reconhecera, aterrado, o «Século»! Olhares indignados fitavam-no, e o silêncio era tão grande que se ouvia vagamente, por momentos, na cervejaria próxima, as agudezas de uma rabeca com acompanhamento de harpa, tocando o can-can da Bela Helena.
O Malaquias, então, desdobrou o jornal devagar, com solenidade, pigarreou e disse:— Ora escutem os senhores este mimo: «O ilustre autor dos Esmaltes e Jóias, que tanta sensação tem causado, o nosso amigo Artur Corvelo...».
Santo Deus! Era a notícia do Melchior...
Quis interromper, explicar, mas a língua pesava-lhe como um pedaço de chumbo; olhava ansiosamente para uns, para outros, procurando uma protecção: mas só via faces duras, vagamente enfatuadas de serem chamadas a sentenciar. O Malaquias ia lendo lentamente, sublinhando com malignidade, pondo intenções profundas, mesmo nas vírgulas. A frase em que os Amores de Poeta eram designados como um protesto contra as ideias republicanas foi seguida de exclamações indignadas! Uma voz soltou:
— Oh! que maroteira
Artur pensava em fugir, abalar pela escada abaixo, quando o Malaquias, voltando-se para ele com olhos arregalados de triunfo, o braço acusador, leu com ênfase: «os Amores de Poeta, são dedicados a um Augusto Personagem!»
Então um rumor de cólera correu pelas cadeiras. Havia interjeições de desprezo, risadas de piedade; alguns, mais escandalizados, voltavam-se para Artur, ameaçadores. E Matias, imóvel, tomava um aspecto rígido, à Fouquier-Tinville, de juiz de onde sai a morte.
Malaquias elevou a voz aguda:
— Eu, agora, só pergunto se o Sr. Corvelo pode continuar a fazer parte do Clube!
— Não! Não! — berraram.
— Eu só quero saber se um homem que frequenta os salões, e dedica aos tiranos...
— Não! Não! Fora!
Malaquias voltara-se para Nazareno:
— E o Sr. Jácome, que foi...
Mas Jácome estava já de pé, terrível, pálido da raiva. E com uma vivacidade estridente:
— Meus senhores, eu só esta noite li esse jornal! Meus senhores, eu fui enganado na minha boa-fé! — E batia desesperadamente no peito. — Acolhi como um amigo, quem era apenas um espião...
Artur, lívido, com um suor frio nos cabelos, trémulo como uma vara verde, estendia os braços, e numa voz estrangulada:
— Eu peço para me explicar. Vossas Excelências...
— Nada de Excelências! — berraram-lhe.
— Os senhores podem estar certos que eu não sabia da notícia... Não é verdade...
O Jácome gritou, mostrando-lhe o punho:
— Mente! — E voltando-se para Matias: — Esse homem declarou-me há dias que era íntimo dos redactores do «Século»... Eu dei-lhe um artigo sobre o livro do Damião, para ele obter a publicação... Era uma pura questão literária... nada de política... Esse senhor veio-me dizer que o artigo não saía porque o director do jornal o achava cheio de ideias revolucionárias, quando é evidente, agora, que foi ele quem impediu a publicação...
— Juro! — bradou Artur.
— Mente! — gritou Nazareno, batendo violentamente com o pé. — O juramento conta pouco para os traidores. Veio aqui espiar... E eu que o apresentei, confessando o meu erro, peço a expulsão desse homem!
Soaram apoiados! frenéticos, de uma cólera comunicada. O Matias fez retinir a campainha e no silêncio profundo, ouviu-se de novo, em baixo, as vagas arcadas da rabeca.
— Convido o Sr. Artur Corvelo — disse Matias com solenidade — a sair imediatamente da sala!
— Fora! Fora!
Artur, desorientado, deixara cair o chapéu: um pontapé arremessou-lho contra a parede; agachou-se para o apanhar; um assobio silvou e o homem ascético, erguendo-se, gritou-lhe uniu ímpeto à Mirabeau:
— E diga lá ao Augusto Personagem que o mandou, que nós aqui estamos, sem medo, a preparar o dia da Justiça!
— Bravo! Bravo!
Vozes trocistas ganiam injúrias:
— Recados ao Augusto Personagem!
— Lamba-lhe as botas!
A campainha do Matias retiniu, zelosa da gravidade democrática. E Artur, aturdido, como ébrio, com as faces a estalar, achou-se na escada escura, aos tropeções pelos degraus; e através dos zumbidos nos ouvidos, as agudezas da rabeca perseguiam-no com motivos estridentes da Filha de Madame Angot.
Nessa noite, a Concha, acordando, não o encontrou ao seu lado: saltou da cama em camisa e à luz mórbida da lamparina, viu-o no sofá de cima, abatido, com a face enterrada nas mãos.
— Que tinha? Que era?
Tanto carinho abalou-o, enterneceu-o e numa explosão de sensibilidade:
— Amas-me, querida?
Se o amava!...
Abraçou-se a ela, sepultou o rosto no seu peitinho, entre as rendas da camisa, como num derradeiro refúgio e jurou-lhe que daí por diante, viveriam sempre juntos!
Tomara aquela resolução sobretudo por desespero: sentia-se como um homem que em torno de si só vê portas baterem-lhe violentamente na cara. A Sociedade desdenhava-o, a Democracia expulsava-o, o Público desprezava o seu livro, a Literatura repelia-o, o Amor ideal fugia-lhe. Só aquela doce rapariga o acolhera com dedicação e sinceridade! Pois bem, recompensaria tanto afecto: dar-lhe-ia a casita sossegada que ela ambicionava, um amor poético e moço, toilettes, a consideração de esposa. Que lhe importava a Srª Baronesa da Rua de S. Bento? Nem uma palavra respondera ao livro enviado com um amor tão discreto! E quase a detestava por fazer parte daquele mundo egoísta, seco, artificial, que na sala de D. Joana Coutinho lhe dera olhares de lado, que não comprava o seu livro, que o não reconhecia como um «grande homem»... E os republicanos? — Idiotas! Cretinos! Odiava-os agora. E depois de tanta injustiça, de tanta hostilidade, o amor da Concha, na sua sinceridade fácil, parecia-lhe delicioso, digno de dominar a sua vida. Instalar-se-ia confortavelmente com ela: mandaria ao diabo as vaidades da Sociedade e as ambições de Justiça! Estava desiludido! A lição fora formidável; daí por diante, só acreditaria nas felicidades da carne — comer bem, rolar nas boas molas de uma tipóia, possuir as belezas de uma andaluza! E o mais — à tábua!
Melchior, consultado ao outro dia na redacção do «Século», aprovou ruidosamente estas resoluções.
Até que enfim o Artur tinha juízo! Essas coisas de sociedade, de literatura, eram histórias! Gastar o dinheiro com uma bela rapariga, isso entende-se. Ao menos goza o seu dinheiro!
Artur não lhe revelara o desastre do Clube. Mas dissera-lhe, ao conversarem sobre o plano de concubinagem com a Concha:
— Oiça lá outra coisa: estou com vontade de escrever um folhetim a dar uma desanda nas republicanos!
Melchior ficou atónito:
— Por quê?
Artur hesitou:
— E que, agora que os conheço melhor, está-me a parecer que são uma súcia de patifes...
Melchior fitou-o:
— Pilharam-lhe dinheiro! — exclamou radiante.
Artur, por vingança, tendo de dar a Melchior uma explicação daquele ódio tão súbito, disse vagamente:
— Fizeram-me uma porcaria...
— Calotezinho? Que lhe dizia eu! Uma canalha! E soma grossa?
Por um resto de honestidade, Artur disse, corando:
— Não falemos mais nisso.
Mas Melchior falou e certo agora do apoio de Artur, deblaterou contra «aquela corja».
— Mas por que os detesta você tanto, Melchior?
Melchior fez-se grave, afectou preocupações políticas, resmungou: questões de princípios! — mas de um modo tão ambíguo que Artur suspeitou de ódios pessoais naquela indignação filosófica, e lembrando-se agora vagamente de ter ouvido a história de uma «coça» que outrora o Nazareno dera no robusto Melchior em pleno Martinho.
Insistiu então em publicar uma desanda no Clube Democrático.
Mas Melchior coçou a cabeça, deu alguns passos pela saleta, com as mãos enterradas nas algibeiras:
— Você bem vê, homem, o jornal é muito sério. Não queremos discussões com essa gente. Fingimos que não sabemos que existem. Que diabo! E depois são doidos. São capazes de vir tomar satisfações, e eu sou obrigado a quebrar-lhes a cara. Que lha quebro! Se lha quebro! Quebro-lha tão certo como estarmos aqui! Mas enfim, você compreende, sempre é desagradável!
Artur irritava-se de se ver privado daquela desforra. Pensava que o Melchior, que provocara o insulto do Clube com a sua estúpida notícia, devia agora facilitar-lhe a vingança. Teria mesmo rompido com ele, se lhe não fosse necessário para a representação do drama e para futuras locais; além disso, a Concha morria-se por ele: Melchior adulava-a, fazia-a rir, ensinava-a a tocar guitarra; ela chamava-lhe, rindo: mi abuelo, e Artur contava, quando vivesse com a Concha, tê-lo por confidente, cortesão, amigo, dependente e bobo.
Foi por conselho de Melchior que se decidiu a ir viver com a rapariga para o Hotel Espanhol. Era a instalação mais pronta e evitava os embaraços de criadas, cozinheira, etc. E depois, é divertido, tinha dito Melchior. Sem contar que é mais chic!
A Concha ficara enlevada com este plano e daí a dois dias Artur despediu-se do Universal.
Quando, feita a mala, olhou em redor, pela última vez, aquele quarto de reps azul que lhe dera tantas satisfações de vaidade, onde se criara tantas ilusões, sentiu uma comoção. Teve saudades do criado, um velho muito trigueiro que o servia. Quis tornar a ver a sala de jantar que lhe agradava tanto, quando, depois do almoço, soprava à varanda cheia do bom sol de Inverno, o fumo do seu charuto caro, ouvindo ao lado os tlim-tlins da loiça e em baixo o Chiado, no seu rumor de vida rica.
No corredor, encontrou Carvalhosa:
— Então o amigo deixa-nos?
Artur, lisonjeado, apressou-se a dizer:
— Oh, por poucos dias!
— Não morreremos de dor! — rosnou o outro com um aceno negligente de cabeça.
Artur sentiu uma cólera congestioná-lo. Canalha! pensou — e desceu com pressa, ávido do Espanhol e das suas delícias.
— E para onde quer que mande as cartas, se houver? — perguntou-lhe o porteiro, contente da espórtula.
Artur, com uma vaga esperança que a baronesa ainda respondesse — pediu que lhas guardassem. E para se dar importância, mesmo diante do porteiro, acrescentou com mistério:
— Mas muito secretamente! Que ninguém veja!
O seu baú, o seu saco de noite, já estavam na tipóia. E ao fechar a portinhola, mandou bater para o Rossio — porque, por vaidade, não quis fazer conhecer diante do porteiro que mudava para o Espanhol. O trem rolou, e Artur, com um olhar para as varandas do hotel, murmurou sentimentalmente:
— É outra página da minha vida que se volta... Avante!

Foi nessa noite com Melchior buscar a Concha. As companheiras estavam na sala, em redor dela, como uma família em torno da noiva numa manhã nupcial.
A governanta, que se declarou comovida, levou Artur para um quarto e ali, durante vinte minutos, foi-lhe mostrando as dívidas da Concha: contas do cabeleireiro, da lavandaria, do sapateiro... Artur, aturdido, assustado, impaciente, pagava — sentindo fora os gritinhos cálidos das pequenas que Melchior beliscava.
Enfim, voltou à sala, e os adeuses começaram. A Lola, íntima amiga da Concha, rompeu num choro exagerado, desproporcional, que irritou a governanta, descontente que ela «estivesse a fazer-se feia, com tanta lágrima». Depois, a Concha quis ir à cozinha, despedir-se do cozinheiro «que era de su pueblo» e de outra rapariga que estava em cima, no segundo andar, doente de um furúnculo. Voltou com os olhos vermelhos, Melchior troçava-a, contorcendo-se em prantos cómicos. Elas chamavam-lhe perdido, bandido! Todas vieram ao patamar: os beijos, os abraços, os segredinhos, o chalrar das vozes já impacientavam Artur — e a Concha, arrancando-se àquelas expansões de despedida, desceu finalmente.
Mas as vozes agudas seguiam-na pela escada. Ela respondia: era um chilrear de passarada.
— Adios, hija!
— Adios, Lolita!
— De usted expreciones a Pancho!
— Que se le vea a usted, Arturito!
— Carmita, hila, que no se haga usted olvi dada!
— Adios! adios!
Melchior rompeu adiante, o chapéu para a nuca, radioso, faceto, cantando o coro nupcial da Lúcia. E Artur, atrás, descia com a Concha pelo braço, um triunfo de noivo pela alma, o olho brilhante, o peito alto — na posse, enfim, da sua andaluza!


Capítulo VIII

No primeiro dia, quando desceu à sala de jantar do Espanhol a buscar charutos – Artur encontrou os mesmos hóspedes que o habitavam, meses antes, à sua chegada a Lisboa. Lá estava a espanhola bonita e gordinha, com o seu robe-de-chambre escarlate e o homem calvo, de cachaço grosso e rostinho vermelho, vendo-a comer, extático, com olhinhos beatos e chorosos. Os dois republicanos espanhóis sentavam-se no mesmo lugar, cabisbaixos, as capas ao ombro, mais pálidos, mais tenebrosos. Havia, de novo, um homenzarrão barbudo que parecia um contratador de gado, e um sujeito de óculos azuis e nariz agudo, que devia ser tabelião na província. E em volta da mesa, com a travessa do cozido, o Manuel — o Manuel que tanto desesperara Artur, outrora, lastimando-lhe as botas rotas — arrastava as chinelas, esguio, amarelo, com a sua cabeleira seca, cor de rato e esguedelhada. A mesma gaze cor-de-rosa protegia o caixilho doirado do espelho, e Prim, inalteravelmente, levantava ao ar a sua bandeira, desfraldada.
O Manuel pareceu satisfeito de ver Artur:
— Então, usted, hem! Ora usted!... — dizia-lhe, enquanto Artur escolhia os charutos. — Então por onde andou usted?
— A viajar — disse Artur.
— Ora usted! E a comidinha às sete, hem? Usted será bem servido!
Para evitar a mesa redonda, tinham tomado, ao pé do quarto de dormir, outro quarto, que, tirada a cama, fora improvisado em sala de jantar. A cómoda servia de aparador; e para dar alegria e conforto, tinham-lhes dependurado um canário defronte da janela.
As primeiras semanas foram deliciosas. O Inverno ia muito doce e luminoso e sucediam-se os dias de sol, num grande azul, de onde caía um calorzinho suave e uma alegria macia. As varandas, que deitavam para a Rua da Prata, alegravam o quarto.
Era a primeira vez que Artur vivia com uma mulher em intimidade conjugal; as mais pequenas coisas: a goma das saias, os atacadores do colete, os bordados das camisinhas, interessavam-no como revelações; admirava cada vez mais «a sua Conchazinha», achando um gozo raro em cada um dos seus movimentos. Nos actos mais insignificantes — quando lavava os braços nus, quando esticava as meias nas pernas ou enfiava uma fita cor-de-rosa nos passadores da camisa — encontrava o sabor inesperado de uma voluptuosidade nova. Rondava em volta dela com uma curiosidade devota, ora interessado pelos cabelinhos da nuca, ora pela forma das unhas, ora por certo requebrar da cintura; não amava os seus olhos com o mesmo amor com que amava os seus peitos ou as suas orelhas pequeninas, porque cada parte do seu corpo, como se fossem personalidades diferentes com influências especiais, lhe inspirava um entusiasmo particular. Melchior definira-o como um baboso e punha nesta expressão um fundo de inveja e de vago despeito.
Como a Concha era muito preguiçosa, levantavam-se tarde. Ordinariamente almoçavam na cama: uma criada que falava um espanhol misturado de português e que depressa se tornara a íntima da Concha, trazia o almoço «aos pombinhos», às onze horas. E era para Artur uma delícia todas as manhãs renovada, ver a Concha com os peitinhos ao léu, um casabeque de flanela escarlate pelos ombros, mover sobre o tabuleiro os braços brancos e partir os ovos quentes delicadamente com o gume da faca, arrebitando o dedo mínimo: depois, no choco da roupa quente, corpo contra corpo, saboreavam um cigarrinho.
Artur cada dia lhe achava as maneiras mais senhoris. Mesmo nos ardores amorosos, tinha uma reserva de dama. Ao deitar-se, nunca lhe dava um beijo sem primeiro fazer o sinal da Cruz: assim se vê um livro de orações sobre a cómoda de um lupanar. Artur atribuía estas delicadezas às suas convivências ilustres e não se fartava de lhe ouvir a história dos seus amores com o conde ou visconde carlista: interrogava-a mesmo sobre a maneira como ele a amava, a abraçava, se lavava, gostando de penetrar nos detalhes íntimos de uma vida aristocrática e de beijar a boca onde se tinham pousado os lábios de um Grande de Espanha; contudo sentia uma satisfação íntima em o saber enterrado nalgum desfiladeiro das montanhas de Navarra.
Pelas duas horas vinha o Pancho, o cabeleireiro, penteá-la: era um gordalhufo, amarelo como um limão, de bigodes negros como tinta; usava a mesma camisa de chita, de colarinho muito decotado, quatro, cinco semanas a fio; e manejando, com as suas mãos papudas e moles de pomada, os longos cabelos negros da Concha, conversavam — tratando-se por tu por serem do mesmo pueblo. Eram sempre histórias de outras raparigas espanholas a quem Pancho construía os altos penteados — o que fazia a Trina, o que dissera a Angelita, quem era o querido da Lola... Como falavam no rápido acento andaluz, em calão, Artur não os compreendia e aquele tu familiar do cabeleireiro irritava-o surdamente.
Mas a Concha não podia dispensar o Pancho, porque não se sabia pentear. Não sabia, de resto, fazer nada, nem pregar um botão, nem dar uma passagem: quando tentava pegar numa agulha, tinha logo dores de cabeça. Cada dia Artur se surpreendia mais com aquele temperamento: ora tinha rajadas de animação, e então agitava-se pelo quarto, batendo os móveis com as longas saias muito engomadas, abrindo e fechando as janelas, arrumando e desarrumando a roupa nas gavetas, cantarolando, batendo as palmas sem razão, toda petulante de vida animal; ora, embalando-se numa cadeira de baloiço, com o corpo mole, os braços descaídos, abandonada numa madracice vaga, os olhos meio cerrados, fumava infindáveis cigarros; ou então, sentada em cima da cama, encruzada como uma turca, o pezinho numa das mãos, a face murcha, parecia um bicho entorpecido, nos fins do Inverno.
Mas animava-a sempre a presença de Melchior. Ele vinha geralmente de tarde, entrando com rompante jovial, trazendo um espalhafato pândego àquele quarto amodorrado. Tornara-se imediatamente o «amigo íntimo». A Concha beijava-o diante de Artur, que sorria, tranquilo, confiado: na sua ignorância das mulheres, não sentia ciúmes, porque a Concha lhe dissera um dia «que o Melchior era muy feo». Ele, de resto, afectava com ela um modo paternal, fazendo-se velho, dando-se ares de avô; dava-lhe lições de guitarra, fazia-lhe recados, ajudava-a mesmo, às vezes, a laçar as botinas, com as mãos trémulas que se demoravam com gulodice nos tornozelos finos da rapariga. Artur, sossegado, deixava-os sós, saía; e se um vago ciúme o remordia na rua, tranquilizava-se ao entrar, abrindo a porta do quarto com um imprevisto intencional, encontrando-os muito longe um do outro, numa atitude indiferente, ela, baloiçando-se com um bocejo pálido, ele, muito vermelho, ferindo os bordões da guitarra.
Ultimamente, Melchior tomara o hábito de vir jantar com eles; ia então abaixo combinar com o Manuel petiscos espanhóis: arroz à Valenciana, bacalhau à Biscainha... À mesa, Artur, a quem era difícil falar espanhol, refugiava-se num silêncio extático, olhando a Concha com um ar beato. A conversação de Melchior parecia-se com a do Pancho: eram os mesmos can-cans sobre a Lola, a Trina, a Angelita, os queridos. A Concha parecia considerar Melchior como da «sua gente», conhecedor das pequenas, ao facto dos segredinhos e das concubinagens; tinham simpatias comuns, de uma baixeza igual; Melchior era um amigo dos lupanares: conhecia-lhes o estilo, os hábitos, as preocupações. A Concha, por vezes, respondia bruscamente a Artur quando ele se queria introduzir naquelas conversas, «que ele daquilo não entendia nada». Afirmara-lhe mesmo que só o Melchior é que «sabia tratar com espanholas».
Por isso, quando ele não estava, parecia aborrecer-se. A maior parte do tempo passava-o à janela, muito vestida, cheia de anéis; conhecia já todos os vizinhos de vista, as lojas, a cor dos cabelos dos caixeiros. Artur ia de cadeira para cadeira, com um livro que mal lia, o charuto nos dentes, satisfeito de a ver, gozando a presença do seu corpo bonito. Ela, às vezes, por bondades que lhe vinham, e com a seriedade forçada de quem cumpre um dever, procurava falar-lhe das coisas que julgava o interessariam; e como o sabia escritor, conversava sobre política. Mas as suas opiniões desolavam Artur: admirava muito um poeta de que ninguém ouvira falar, um certo Lopez que ela conhecera e lhe fizera versos; depois, dizia-se Isabelista, chamava pillo a Castelar, ladrões aos republicanos. Artur queria argumentar, educá-la, mas faltavam-lhe as frases espanholas, tinha medo de a «secar» e limitava-se a sorrir com uma condescendência de grande homem. E todavia, admirava-a, achava-lhe talento, espírito: as suas expressões vivas, dando-lhe a surpresa do acento e da língua, pareciam-lhe sempre pitorescas e afligia-se que ela apenas soubesse soletrar, e só pudesse, em letras garrafais, assinar o seu nome.
Para a divertir, à noite, ia aos teatros, ao Price, e Melchior acompanhava-os; nas noites mais tépidas passeavam até Belém de caleche descoberta: eram horas deliciosas para Artur, muito estendido no assento da tipóia, o braço pela cinta da Concha, o coração afogado de concupiscência; defronte, o charuto de Melchior fumegava e os seus olhos, sob a aba do chapéu carregado para a frente, devoravam a Concha, muito branca na sua mantilha negra. E com camarotes, tipóias, jantarinhos, o dinheiro ia-se! O conto de réis que Artur trouxera, estava quase «devorado».
Foi por isso que pensou em recolher o produto da venda dos Esmaltes. O revisor do «Século», encarregado de fazer o giro dos livreiros, voltou com 800 réis — preço de dois exemplares vendidos.
Artur ficou aterrado, sucumbido. E julgando que devia haver engano, negligência, talvez maroteira do revisor, foi ele mesmo na manhã seguinte percorrer as livrarias.
Porém, não se atrevia a interrogar, julgando-se conhecido e prevendo a resposta. Enfim, na Rua do Ouro, depois de folhear alguns livros, de examinar títulos, tomou um exemplar dos Esmaltes: abriu-o aqui, além, afectou interesse, perguntou o preço, pagou e recebendo o troco de uma libra, disse com um ar distraído:
— Tem-se vendido muito disto?
— E o primeiro — disse o homem retomando a pena para continuar a sua correspondência.
E Artur saiu, embatucado, enrolando nas mãos nervosas o seu próprio volume.
Acusou o público e a cidade de estupidez. Que admirava que uma burguesia embrutecida e de crânio mole fosse indiferente à Poesia e às ideias nobres? Ser poeta num mundo tão torpe era uma «chapada tolice». Quando um tal desdém espera as expansões preciosas das almas delicadas, elas devem refugiar-se numa mudez orgulhosa e triste. E o que ele faria, que diabo! Se pegasse na pena, seria para escrever algum dramalhão com bons direitos de autor, ou algum Rocambole bem pago e vendido às cadernetas! E o mais, regalar a Carne! E refugiou-se com desespero na posse da sua Concha.
Já não lhe importava o dinheiro! Quando se lhe acabasse o pouco que tinha – Deus daria! Toca a extrair da hora presente todo o gozo, como o sumo fresco de uma laranja! E por uma petulância nervosa, comprou para a Concha um vestido de seda, dois chapéus, e decidiu satisfazer-lhe os desejos incessantes de luvas, rendas, fitas e frascos de perfumes.
A Concha, de resto, tinha uma mobilidade extrema de caprichos e de apetites: penava por uma sombrinha que via numa vitrina e depois de a usar com exaltação um ou dois dias, aborrecia-se, jurava que «lhe não ia bem».
Artur encontrava muitas vezes na saleta uma velha de capote e lenço, grande buço, falas doces, muito cumprimentadora — que, apenas ele entrava, erguia-se, metia um cabazinho debaixo do capote, agachava-se numa mesura, ia buscar a um canto um enorme guarda-sol de seda tingida e saía subtilmente, ciciando:
— Criadinha de V. Exª.
A Concha acompanhava-a até ao corredor, fechando a porta sobre si, e ali ficavam a cochichar horas esquecidas; voltava, vermelha, dizendo que era uma mulher muito decente, que comprava vestidos e arranjava coisas muito baratas em segunda mão.
— Mis cosas, mis cosas!
Estava, com efeito, trocando constantemente objectos, pondo um par de brincos no prego para obter uma renda inútil, vendendo a renda para ter mais um par de meias de seda, toda tontinha de fantasias. E ultimamente para ir às lojas, segundo dizia, saía só de manhã e de tipóia.
Um dia que aquelas passeatas o irritaram mais, Artur fez-lhe uma observação despeitada. A Concha voltou-se com a grande atitude de uma esposa ofendida, passou-lhe nos olhos negros como que o clarão de um tiro e de cabeça erguida, perguntou-lhe se a tomava por uma escrava! Era o resultado de viver com um português! E dos seus lábios descaídos escorria um desprezo imenso. Nunca o seu conde lhe fizera uma tal ofensa! Mas esse era um fidalgo, um homem que sabia amar e respeitar uma mulher. E deixando-se cair numa cadeira, começou a choramingar. Qué desgraciada era!
Artur, aniquilado pelo seu grande ar, enternecido pelas lágrimas, prostrou-se de joelhos diante dela, jurou-lhe que ninguém a amava como ele... Que dispusesse da sua vida! Era capaz de casar com ela...
Mas a Concha respondeu-lhe friamente que não imaginasse fazer-lhe uma grande honra. Já outras vezes Artur, nalgum momento de delírio mais expansivo, lhe falara em casamento, mas de um modo gracejador, ligeiro, e aquela palavra tornava-a sempre muito séria. E um dia mesmo, ela confessara-lhe que vários homens ricos, de grandes nomes, tinham querido casar com ela: em Madrid, antes dela vir para Portugal, um marquês oferecera-lhe a sua mão e um palácio.
— Que marquês?
— Mi marqués!
Aquele marquês que aparecia assim subitamente no seu passado — de que Artur julgava conhecer os episódios mais miúdos — irritou-o extraordinariamente. Exigiu a história dessas relações e a Concha acabou por lhe jurar que era um velho repugnante: por isso o recusara. Mas dias depois, deixou escapar, falando ainda do marquês — que se tornara um assunto sempre presente — que era um rapaz mui guapo. E acrescentou que a perseguia para que ela voltasse para Madrid.
Artur concebeu então um ciúme grotesco pelo personagem: se a via macambúzia, supunha-a cheia de saudades do marquês; se a ouvia segredar com a criada, imaginava que eram recados do marquês: chegou mesmo a suspeitar que ele estivesse em Lisboa, disfarçado, para lha roubar e sentia que alguma coisa de funesto se tramava contra o seu amor.Um dia, mexendo numa gaveta dela, encontrou um lenço muito fino, com um monograma sob uma coroa. Enfureceu-se: uma coroa! De quem?
— Mi marqués! — disse ela friamente.
Artur, pálido, fez o lenço em tiras e ficou logo a tremer, receando uma rajada de cólera, um rompimento. Mas ela, tranquilamente, com uma serenidade de ser frágil martirizado, apanhou as tiras uma a uma, fazendo beicinho choroso, como uma criança que levanta os pedaços de uma boneca partida, uniu-as, beijou-as, contemplou-as murmurando:
— Mi marqués, mi marqués!
Daí a pouco Artur encontrou as tiras preciosas, esquecidas, arrastando-se entre a roupa suja.
Aquilo serenou-o como uma prova de indiferença pelo marquês. De resto, se às vezes, de dia, os modos dela, as suas distracções, os seus amuos, os seus suspiros sem razão lhe davam um vago ciúme — o fogo com que ela à noite o apertava nos braços nus, era como a evidência deliciosa do seu amor. E ia-se prendendo tanto a ela pela trama subtil do hábito, que já nem saía à rua. Não trocaria aquele quarto, com saias amarfanhadas por cima das cadeiras e trouxas de roupa enxovalhada debaixo da cama, pelas galerias do Vaticano; as paisagens do Paraíso não lhe dariam mais satisfação e enternecimento do que a contemplação das fachadas sujas dos prédios vizinhos. Havia ali, naquele espaço abafado, um cheiro de mulher, de pó-de-arroz, de dormido, que o deleitava, e, estirado na cama, com o cigarro na boca, ouvindo o Melchior tocar o fado e vendo a sua andaluza arrastar a saia, tinha horas regaladas de madracice, de torpor lascivo; o gemer da viola, o gingar da Concha, mergulhavam-no num sentimentalismo baixo e pandilha; estendia então os braços para ela, reclamava-a e os olhos cerravam-se-lhe numa voluptuosidade morna, sentindo-lhe por baixo do roupão a flexibilidade cálida da cinta sem espartilho. Não lia um livro, nem um jornal. Todo o movimento de espírito lhe era odioso, como se a alma fatigada, amodorrada na baixeza muito quente, no choco daquela vida de galo, se recusasse a toda a ascensão para alguma coisa de mais elevado. Quase lhe custava lavar-se, arranjar-se: o corpo comprazia-se-lhe na porcaria. E levantava-se da cama de chinelas, com um derreamento canalha do corpo, para ir para a mesa de jantar, onde ficava até às dez horas, bebendo com Melchior copinhos de genebra. Depois, vinham os fados, as malagueñas, e ele de novo estirado sobre a cama, de pernas abertas, num embrutecimento de bestialidade satisfeita, só erguia a voz para dizer num tom idiota, julgando-se «catita», vagas palavras espanholas que aprendera: — Vivan las niñas! Chiquita, no digas eso!...
Aqueles dias de preguiça, porém, cessaram quando a Concha declarou que queria ir jantar à mesa redonda. Dizia que a aborrecia comerem ali, naquela saleta um pouco escura, sós; que ficava um cheiro de comida desagradável; que a sala em baixo pelo menos era alegre; que se via gente. Artur, contrariado, vendo naquele desejo uni começo de saciedade, apoiado pelo Melchior — que achava que não havia nada como «a pandegazinha ali à cachucha» — resistiu. Mas a Concha, ao outro dia, a cada prato que lhe apresentava o criado, tinha um gesto triste de recusa,. com um suspiro. Artur afligiu-se: que diabo, era uma criancice!
Ela declarou simplesmente que enquanto jantassem ali, naquele cacifo, jurara a Nossa Senhora da Atocha não tocar com os seus ricos beiços nem uma bucha de pão.
Artur, furioso, exclamou:
— Bem, Manuel! Amanhã jantamos em baixo!
Ela saltou-lhe ao pescoço, recompensando-o com um beijo chilreado.
O seu fim era humilhar a outra espanhola, a Mercedes. Há muito que se preocupava com aquela «colega», segundo a expressão faceta de Melchior. Sabia pela criada o que vestia, que roupa branca tinha, que forma de perna, o que lhe dava o amante, os namoros, tudo! E quando se certificou que possuía mais vestidos, melhores anéis, outro chic, decidiu «enterrá-la». Não lhe queria mal: desejava só fazê-la chorar de raiva!
No dia em que foram jantar à mesa redonda, levou horas a escarolar-se, a experimentar vestidos, a perfumar-se; obrigou Artur a pôr muita pomada no cabelo, uma camélia no fraque, para parecer guapo, e tomando o seu grande ar de duquesa, desceu, com um ruge-ruge de sedas, pelo braço de Melchior. A pobre Mercedes, desprevenida, tinha o seu roupão escarlate, o cabelo mal penteado e, ao pé, o seu calvo, de colarinho enxovalhado, cocando-a com os olhinhos afogados de concupiscência. As duas mulheres atravessaram-se com dois olhares traspassantes como punhaladas; toda a cor do roupão de Mercedes lhe subiu às faces e a Concha, sentando-se com modos de princesa que se vê obrigada a comer numa taberna, encostou o cotovelo à mesa, a mão à face, com todas as pedras dos anéis dardejando sobre a outra. Durante todo o jantar fê-la desgraçada. Tinha maneiras enjoadas de tocar nos pratos, segredinhos para Artur, com olhares de tédio para a fealdade do calvo; falava a Melchior com império, como uma rainha a um cortesão, e a cada momento dava pancadinhas na manga do vestido, para fazer sentir a riqueza da seda. A outra não comia, petrificada: tinha mesmo repelido com uma fúria reprimida um gesto terno do calvo; e quando, a uma ordem da Concha, Artur pediu uma garrafa de champagne, ergueu-se, pálida de raiva, e saiu arrastando a saia, seguida do calvo, curvado, que apertava contra o peito as abas do seu chapéu branco com um ar lamentável.
Ao outro dia, a Mercedes apareceu à mesa com um vestido de seda azul, de decote quadrado, toda cheia de jóias, e duas camélias no cabelo.
Nessa tarde, pela primeira vez, sentou-se à mesa um rapaz espanhol, muito bonito, de uma palidez deliciosa, olhares afogados numa languidez fluida, um buçozinho que parecia desenhado a tinta-da-china, janota, com o cabelo muito frisado e dois caracóis à capoul sobre a testa. Parecia conhecido da Mercedes e do calvo: trocavam através da mesa algumas palavras. Mercedes olhava-o muito, e a Concha, ao fim do jantar, vendo o rapaz, muito delicado, partir avelãs para ela, mordeu os beiços furiosa.
O seu desejo de a humilhar tornou-se então uma preocupação ardente; exigiu a Artur outro vestido; queria ir todas as noites ao teatro, para que a outra soubesse, «se ralasse». Às horas em que a via à janela do primeiro andar, mandava buscar uma tipóia descoberta, descia as escadas com grande espalhafato, ia-se recostar na caleche, rindo alto, fingindo-se muito animada, gritando pelo Melchior, pelo Artur, e que lhe esquecera a sombrinha, e que lhe fossem buscar o lenço de renda... Pessoas na rua paravam, pasmadas daquela vivacidade, admirando-a. A Mercedes, em cima, se não tinha tempo de se retirar da varanda, afectava olhar o céu ou o prédio fronteiro, ou, de costas voltadas para a rua, falava, ria para dentro do quarto. A Concha desesperava-se daquela indiferença, chamava-lhe os nomes mais hediondos, e apenas chegava ao Aterro, mandava voltar para trás, para o hotel, para a «apanhar ainda à janela», dar-lhe o espectáculo do seu chic, da sua grande cauda, das suas meias de seda cor-de-rosa, ao saltar do estribo da tipóia. — E no entanto, Artur pagava ao cocheiro, pensando:
— Mais dez tostões deitados à rua!
Porque recomeçava a preocupar-se com o dinheiro. Desejava escrever ao Carneiro, pedindo-lhe o outro conto de réis que lá tinha em depósito, mas hesitava; sentia que o gastaria depressa, naquela vida pródiga. E depois! Deixar a Concha? Era matar a pobre criatura que o amava, que por um sentimento de regeneração, para se tornar digna dele, ia-se cada dia fazendo «mais senhora», a ponto de ir ouvir missa todos os domingos, querer aprender piano e soletrar depois do almoço, laboriosamente, o Diário de Noticias. Podia lá deixá-la! Seria vil! E era possível também voltar a Oliveira de Azeméis, recair naquele embrutecimento morno, com partidas de bilhar na Corcovada e passeios por entre os pinheirais da estrada, aos domingos de tarde, no pó do macadame?
Uma dessas manhãs, quando estavam na saleta — o Pancho penteava a Concha – Melchior apareceu e atirou-se para uma cadeira com um ar tão abatido, que Artur, sempre bondoso, lhe perguntou com muito interesse:
— Que aconteceu?
O outro fitou-o com ansiedade e apertando as mãos dramaticamente:
— Oh, Artur, você é que me pode salvar! Preciso sem falta, amanhã, de dez libras.
Senão, estou perdido. Oh! Artur...
Artur interrompeu-o, desolado. Tinha de seu catorze libras — era tudo o que restava de um conto de réis — devia a conta do hotel, não podia...
O outro deu uma punhada furiosa no ar:
— E a minha sorte! — rosnou com rancor.
— Você compreende, homem...
— Basta, homem! Raio de vida!
E foi harpejar a guitarra com furor, vendo pentear a Concha.
Artur — que devia ir buscar um camarote para o Price, porque a Concha queria lá ir, para «enterrar» a Mercedes com um chapéu novo — saiu, muito contrariado. Aquela precisão do Melchior colocava-lhe a realidade diante dos olhos, brutalmente: estava a tinir! Daí a dias, não teria sequer para uma tipóia! E depois, custava-lhe negar dinheiro ao Melchior; era o íntimo, o confidente; era tão bom para a Concha, tão serviçal, tão alegre... Quando entrou, estava resolvido a pedir quinhentos mil-réis ao Carneiro; em todo o caso, para economizar, que diabo!... não largaria as dez libras ao Melchior. Antes de tudo, ele!
Pousava o chapéu sobre uma cadeira, quando a Concha, direita, nobre, cruzando os braços, lhe perguntou com severidade o que significava aquilo de não querer tirar o pobre Melchior de apuros! Era necessário ser ingrato! Que amizade! Ah, bem via agora que os portugueses eram uns para os outros como tigres! Ah, se fosse o conde ou o marquês! Outra gente!
Artur, envergonhado, balbuciou que realmente negara dinheiro ao Melchior — mas porque imaginava que era para jogar — e queria tirar-lhe o vício! Falou então de Melchior com exaltação: era o seu melhor amigo! Por ele daria a vida! Teve frases líricas, disse coisas sobre o Orestes e Pílades. E a Concha, que nunca o compreendia quando ele falava depressa ou com estilo, voltou-lhe as costas, dizendo que, então, devia portar-se como um caballero.
Artur, nessa mesma noite, deu as dez libras a Melchior, dizendo vagamente «que recebera uns dinheiros». E então abriu-se com ele: contou-lhe que as tias, apesar de ricas, começavam a espantar-se daquelas despesas; a sua fortuna particular, dele — porque a tivera, em bom metal — ia-se esgotando; era necessário pensar em arranjar dinheiro... A única maneira, era fazer representar o drama...
Melchior estendeu a mão aberta, como para o impedir de continuar:
— Eu me encarrego disso. Nem mais uma palavra. Isso é comigo. Onde está o manuscrito?
— Você compreende, Melchior; depois, se o drama rende, é o que quiser...
— Nem mais palavra. Venha o manuscrito!
E nessa certeza, Artur escreveu uma carta ao Carneiro, dizendo que «para negócios» desejava quinhentos mil-réis.
Daí a dois dias, estava ainda na cama quando Melchior rompeu pelo quarto com um aspecto triunfante. Tinha falado nessa manhã ao empresário! Pilhara-o de boa maré e prometera uma resposta dentro de quinze dias. Naturalmente a coisa ia! Hem? Não havia outro como o Melchiorzinho! E no seu entusiasmo, fazia cócegas nos pés da Concha, por cima da roupa. Ela dava gritinhos, encolhia-se contra Artur, que, radiante, lhe prometera um vestido novo para a primeira representação. Melchior lembrou logo que se devia dar uma ceia aos actores. A Concha bateu as palmas, já exaltada à ideia de se sentar, presidindo a uma festa, entre o Cunha galã, e a Maria Joana ingénua. Era ainda uma maneira de fazer ferro à outra!
Porque a luta continuava, mais áspera. O que desesperava a Concha era que a Mercedes possuía as relações, a amizade do espanhol bonito; ele agora jantava ao pé dela: e eram risadinhas, segredinhos, amabilidades, ao lado do calvo, extático, que parecia gozar aquela animação da sua espanhola. A Concha mostrava-se indignada daquela intimidade; achava a Mercedes obscena: coquetear com aquele peralvilho nas barbas de um homem tão bom, tão baboso! Senão era mesmo de uma perdida! E tomava ao jantar atitudes de puritana severa, ofendida pelos espalhafatos de uma meretriz. Mas os seus olhos, por vezes, tinham clarões para o espanhol. A Mercedes, muito fina, reparava — e logo exagerava a sua familiaridade com ele, falando-lhe muito de perto, pousando-lhe os dedos sobre o braço, com o olhar rendido. A Concha mexia-se na cadeira, toda nervosa — e o espanhol, com gravatas resplandecentes, puxava os punhos da camisa de chita, torcia o buçozinho, recostado com languidez, sorrindo à Mercedes, dando à Concha olhares langorosos.
Cada dia a Concha subia para o quarto mais exaltada. Tinha agora muitos segredinhos com a criada; e Artur, mais de uma vez, indo ter com ela à janela, vira na varanda de baixo o rapazola, encostado numa atitude «catita» que lhe fazia sobressair sob o jaquetão os belos quadris de mulher, soprando o fumo do charuto e revirando para cima os seus grandes olhos gaditanos. Aquilo irritava-o. Sabia que era um emigrado de Cádis comprometido na revolta de Salvochea. Achava-o bonito e a sua presença inquietava-o. Mas tranquilizou-se ouvindo, uma noite, a Concha dizer com grande desdém a Melchior, que parecia ter pelo emigrado um rancor feroz:
— Mira! Se es un niño! Se es un pollo! Más feo!... — E declarara mesmo com cara enjoada, que detestava homens com rostos de mulheres. Pouh! Até o achava ridículo!
De resto Artur andava de novo tomado por ambições literárias. Uma noite de aplausos, e entrava na publicidade, na glória, nos folhetins! Era a desforra resplandecente das suas humilhações obscuras. Relembrava certas cenas do drama, mais queridas, e não duvidava do triunfo. Que vida então! Os aplausos da multidão, misturar-se-iam à doçura dos beijos da Concha; porque ela amá-lo-ia mais, vendo-o célebre, namorado por outras, considerado como glória nacional! E as felicidades seguir-se-iam todos os dias, a todas as horas; à noite, as palmas de uma plateia electrizada; a ceia com o bom Melchior, com outros amigos; depois, os delírios da Concha apaixonada; e de manhã, na caixa do teatro, as librinhas a saltar!
No entanto a resposta do Carneiro não vinha! Artur começou a ter repentes agudos de susto. Se o homem tivesse fugido, ou falido? Se se recusasse a dar-lhe contas? Se fosse necessário um processo? Santo Deus! Às horas em que o carteiro passava, tinha palpitações ansiosas — e como não vinha carta, mal podia almoçar, com a garganta contraída, o olhar vago, pensando que talvez fosse o seu último almoço com a Concha. Mandara mesmo um telegrama ao Carneiro — e uma manhã, mais inquieto, como um homem que prepara de antemão a explicação de uma desgraça provável, confessou à Concha que estava à espera de uns dinheiros que não vinham! Era o diabo! Receava até que houvesse dificuldades com o correspondente...
Ela acolheu a notícia, com absoluta indiferença. As suas maneiras tornaram-se singulares: andava muito nervosa: a janela parecia ser o centro da sua existência; chegava-se um momento à varanda, voltava, esfregando as mãos, com a cabeça baixa, contrariada; outras vezes, parecia debruçar-se, tão radiosa, tão interessada, que Artur, ao vê-la, chegava-se com curiosidade; mas não descobria nada: apenas, na varanda do quarto do espanhol, uma cadeira vazia com um jornal dobrado em cima. Os segredinhos com a criada redobravam a Concha parecia adorá-la, não a podia dispensar, reclamando— a constantemente, enchendo-a de presentes, de fitas velhas, de botinas, de camisas já muito usadas; e quando Artur estranhava esta intimidade, ela respondia que uma mulher precisava de ter uma amiga para desabafar: não tinha outra à mão; queria porventura que ela, uma senhora, fizesse amizade com a meretriz do primeiro andar? Não — então caluda!— E de que falam vocês?
— De ti!
Mas apesar daquele amor que Artur julgava cada dia mais forte — era por vezes brusca com ele; repelia-lhe enfastiada os abraços: uma mulher, dios mio, não podia estar sempre lambuzada pelas beijocas de um marmanjo! Às vezes, à noite, ao deitarem-se, sob o pretexto de alguma enxaqueca, não consentia que Artur lhe tocasse, nem com a ponta da unha — deixando a paixão do autor dos Esmaltes e Jóias desapontada, como um cão a quem se retira uma febra. Outras vezes, vinham-lhe ardores súbitos, a horas singulares, sem razão. Artur explicava estas mudanças etnograficamente, pela sensibilidade muito refinada das raças andaluzas — e cada dia a achava mais adorável. Seria completamente feliz se o Carneiro respondesse!
Por fim, o respeitável Carneiro respondeu, numa larga folha de papel pautado, em que explicava a demora da remessa por uma jornada que fizera «à Invicta Cidade, onde o tinham chamado exigências dos seus negócios, bem como levar ao Teatro de São João, a ver uma peça lírica, sua jovem Adelaide, que...».
Artur, enfastiado, atirou a carta para o lado e releu com satisfação a letra de câmbio sobre um negociante da Baixa. Não resistiu mesmo a comunicar a sua alegria à Concha, e agitando a letra disse com um ar negligente, ricaço:
— Dinheirinho fresco.
— Ah! — fez ela secamente.
Aquelas indiferenças escandalizavam Artur. Não as compreendia: quando ele, por ternura, para lhe dar todos os privilégios de uma esposa, a queria fazer partilhar intimamente dos seus interesses, dos seus sentimentos, enobrecendo assim aquela ligação — ela retraía-se, repelia toda a comunhão muito íntima, evitando entrar nos seus planos e nos seus segredos, dando-lhe o seu corpo, mas reservando-se a alma e a vontade. Parecia querer conservar-se unicamente concubina. Artur sentia alguma coisa de subtil errar entre eles, separá-los; as suas naturezas, como as suas epidermes, tocavam-se sem se penetrarem e Artur, tendo uma mulher com quem comia, dormia e coabitava, sentia contudo, por vezes, uma dolorosa falta de simpatia, uma inactividade triste das suas faculdades afectivas. E para não se parecer a si mesmo inteiramente destituído de afeições alheias, a sua alma refugiava-se na lembrança da tia Sabina, como um ser que procura um elemento próprio.
Pensava mesmo em lhe escrever, quando, um dia, recebeu dela uma longa carta. Que boa surpresa! A letra era quase ininteligível, mas por todas as folhas do papel errava um bom calor de amizade e os ganchos dos seus FF e dos seus TT eram como curvas de abraços. Dizia:

«Meu querido menino.
Espero que esta te encontre bom, o que todos os dias peço a Nossa Senhora de toda a alma e acabo de saber pelo Vasco que mandaste ir um ror de moedas, que até me parece pecado. Ora pois se tu soubesses o que nós aqui nos assustamos, por te saber tão longe e talvez doente nessa terra tão grande e sem os teus jantarinhos a horas, e aflige-nos ver que gastas tanto, o que custou a ganhar a teu padrinho, nessa Babilónia sem religião. Eu não tenho passado bem, o que é a velhice; é esta vida que não quer ir mais para diante e assim quem sabe se te tornarei a ver, e todos os dias peço a Nossa Senhora que te guarde, porque o mereces. Dizem-me que até os papéis falam em ti, o que me tem assustado, ainda que o Vasco diz que os papéis falam só de gente que é importante e do Estado. O Albuquerquezinho vai indo, graças a Deus, bem e já fez este mês doze paciências sobre quinze, o que é um bom mês. Adeus, meu filho, que Deus esteja contigo no teu coração . A tia recomenda-se e tem estado com o seu defluxo. A Ruça anda-te a fazer ceroulas, de uma peçazinha de linho, que eu fiz de economias, e o bichano engasgou-se o que me deu cuidado, e o Inverno tem estado mau para os velhos. Se puderes voltar, vem, pois me diz o coração que Nossa Senhora me chama e vou encontrar a paz da alma e os outros que já lá estão. O Albuquerquezinho recomenda-se e é sempre o mesmo santo homem. Não deves abusar aí das comidas, que me dizem ser tão más. Adeus meu filho, possas tu em todas as tuas coisas ser tão feliz, como eu não fui, e agora vejo que a morte vem perto e com
um abraço arrochado
da tua tia que te quer
Sabina.»

Artur ficou com a carta na mão, a alma longe: estava lá, na casinha de Oliveira de Azeméis, tão sossegada, tão doce; uma boa réstia de sol onde o bichano dormia estirava-se pela sala de jantar, o velho relógio batia o seu tiquetaque, a tia Sabina fazia a sua meia; ao meio-dia na torre, todos os galos cantavam, e no silêncio da vila adormecida, uma nora ia chiando...
A Concha fê-lo levantar dos pés da cama onde ficara sentado, cismando: andava à procura de uma liga, com os cabelos desfeitos, a cara pesada de sono; saias enxovalhadas arrastavam pelas cadeiras; um ar relentado amolentava; no toucador, entre escovas peladas, havia postiços de cabelo. A Concha acordara mal-humorada, e diante da sua fisionomia desagradável, Artur pensava vagamente, que para além daquele quarto onde ele vivia numa concubinagem mole, havia ares lavados, campos frescos e existências dignas em interiores asseados: desejou alguma coisa de mais elevado, de mais puro...
Melchior apareceu à porta e como a Concha se vestia, Artur foi com ele para a saleta, levando ainda na mão a carta da tia Sabina.
— Cartinha de casa? — perguntou o jornalista.
— Da minha tia...
— Com cheta! — e os olhos de Melchior reluziram.
Artur respondeu, corando:
— Mandou algum dinheiro.
— E cardá-la! E é quantia grossa?
— Sofrível.
— E cardá-la! E cardá-la! — repetiu Melchior com entusiasmo.
— Fica por minha conta! — disse Artur afectando um cinismo catita.

Daí a dias, Artur desceu à sala de jantar, a buscar charutos — uns certos Intimidades de Carvajal, famosos no hotel. Manuel mostrou-lhe a última caixa vazia:
— Já vê usted...
Artur parecia contrariado: então o espanhol bonito, que a uma mesa lia o seu jornal tomando café, ergueu-se muito afavelmente, e ofereceu a sua charuteira:
— Son eguales. Fume usted.
Artur agradeceu, embaraçado. Mas o espanhol insistia com expansão e Artur, depois de aceitar um charuto, embrulhava-se numa frase espanhola, quando o emigrado, sorrindo, lhe disse que podia falar português: ele compreendia-o, até o hablava; de resto os dois idiomas eram tão parecidos... eram como um só povo, porque espanoles y portugueses son hermanos!...
Artur, contente de se poder exprimir em português — a necessidade de falar espanhol torturava-o — e querendo ser amável, perguntou-lhe se estava há muito em Lisboa.Havia quatro meses. E com loquacidade familiar disse que era um republicano federal, que se batera nas barricadas de Cádis e estava condenado à morte.
Um destino tão patético impressionou Artur. O rapazola pareceu-lhe grande como Danton; e por uma necessidade súbita e instintiva de lhe canalizar as simpatias, declarou-se também republicano, falou vagamente no Clube Democrático, disse-se entusiasta de Castelar. Tinha aceitado um café e ambos à mesa, soprando o fumo dos charutos, penetravam-se de uma simpatia comum.
O emigrado tinha uma voz vibrante e cálida. A vivacidade andaluza dava aos seus gestos, à expressão da sua fisionomia móbil, uma sedução singular. Parecia conhecer Artur de há muitos anos: fez-lhe logo confidências políticas, deblaterou contra os Borbons, profetizou a república universal e chamou a Vítor Hugo um Deus, tratando Artur por hijo mio. Artur surpreendia-se de encontrar ideias literárias e sociais, que julgava admiráveis por condizerem com as suas, num rapazola que tinha o ar, os modos, de um chulo de raparigas. E falou então com entusiasmo da Espanha, do país de Cervantes, grande raça... O espanhol electrizou-se, jurou-lhe que nunca encontrara um português que estimasse tanto; e para celebrar um pacto de amizade ao antigo modo andaluz, mandou buscar ao quarto uma garrafa de manzanilla especial... «um licor divino». Beberam, apertaram-se as mãos. Artur achou o vinho delicioso e o espanhol cantou com verve a ária de Robinson:

Pero el Xerez...
Dá fuerza al hombre, fuego a la mujer...

Convidou Artur a ir a Cádis: queria-lhe mostrar os sítios onde se batera e onde os federais tinham feito proezas. Havia de ver o seu amigo Salvochea, um herói! De resto, esperava a amnistia e lamentava deixar Portugal: era um país que admirava pela sua liberdade de imprensa e pela beleza das portuguesas!
E a propósito, como lembrando-se de repente, perguntou-lhe quem era aquela rapariga com quem estava.
— É a minha pequena — disse Artur, corando um pouco.
O outro bocejou, repoltreou-se na cadeira, disse negligentemente que a sua querida tinha ficado em Sevilha... De resto, presentemente, a política devia prevalecer sobre o sentimento: quando o povo sofre não se pode pensar em prazeres! A sua querida, agora, era a Pátria!
Obrigou-o a aceitar outro charuto e dizendo que ia escrever a sua correspondência, saiu assobiando a Reps!
Artur galgou a escada para ir contar à Concha o conhecimento que fizera, feliz em mostrar a simpatia que inspirara a um espanhol tão bonito e tão ilustre. A Concha fez-se escarlate, deu duas voltas pelo quarto com a cabeça baixa, contemplando o bico das botinas, foi arrumar as escovas sobre o toucador, um pouco trémula, e por fim disse com uma voz ambígua — que achava cara de mau ao seu patrício, «su paisano». Mas de repente, acometida de uma jovialidade brusca, arrebatou Artur pela cinta e fê-lo rodar numa valsa.
Daí a pouco, o criado entrava com uma caixa de charutos Intimidades; era um presente do espanhol, que mandava o seu cartão-de-visita:

D. MANUEL MANRIQUE ROJAS Y CUEVAS

Artur ficou muito lisonjeado e a Concha declarou, com a autoridade de uma mulher experiente da sociedade, que era necessário convidá-lo a jantar. Artur admirou um tacto tão fino e à tardinha, quando a Concha, muito vestida, toda perfumada, se ia sentar à mesa enfastiada de esperar, Artur, que desde as quatro horas saíra, apareceu trazendo pelo braço D. Manuel Manrique; ela fez-se muito vermelha, o seio arfou-lhe e baixando as pálpebras, curvou-se num cumprimento digno.
O jantar foi muito alegre. D. Manuel interessou profundamente Artur. Fê-lo rir, contando episódios picarescos da sua fuga para Portugal, com quatro duros na algibeira; entusiasmou-o pelas viagens, descrevendo-lhe a Havana, os cafezais, as florestas tropicais, as danças dos negros e os profundos céus abrasados; exaltou-o pelos romantismos da guerra civil, explicando a defesa heróica das barricadas na Caile da Aduana, em Cádis, e espantou-o pela grandeza dos seus planos políticos, fazendo-lhe antever uma grande federação das repúblicas latinas, em oposição aos despotismos saxónicos e eslavos. E ia declamar contra o papado e contra a Igreja, num furor de impiedade democrática, quando a Concha, muito devota, fez um gesto escandalizado. D. Manuel imediatamente se retractou, e mesmo disse:
— Pero nada se hace sin la voluntad de Dios!
Aquilo pareceu a Artur de muito bom gosto, de uma alta cortesia, e, electrizado, deu-lhe sem reserva a sua amizade. Falaram então de Lisboa, de Madrid, de teatros, e bebiam fraternalmente — quando Melchior abriu de rompante a porta. Ao ver o espanhol confortavelmente instalado no seu lugar habitual, teve uma expressão tão desapontada, que a Concha deu uma risada:
— Es Melchior, el pobre! — Mas logo apresentou-o com gravidade ao emigrado.
Melchior arrastou devagar uma cadeira, recebeu com um ar soturno um cálice de curaçau e ficou embezerrado, mudo, torcendo o bigode com os dedos trémulos, deitando olhares ferozes a Artur, à Concha e ao espanhol.
Enfim, não se contendo, ergueu-se, chamou Artur para o quarto de cama e cruzando desesperadamente os braços, numa voz estrangulada, disse:
— Então que significa o bêbedo do espanhol metido aqui de casa e pucarinho?
Artur explicou o encontro, a oferta de charutos, elogiou o espanhol: era um rapaz de grande talento, tinha ido à Havana...
— Ao diabo que o carregue!
— Fale baixo, homem! — fez Artur inquieto, indo fechar a porta do quarto.
— Qual baixo! Ê um bêbedo! Olha que brincadeira! Estávamos aqui todos três como Deus com os anjos... Está tudo estragado agora! Eu por mim, não torno aqui a pôr os pés...
A cólera eriçava-lhe os pêlos do bigode. Artur tentava calmá-lo: o D. Manuel parecia-lhe uma pessoa fina...
— Você verá! Espere-lhe pela volta!
— Mas por quê, que diabo?
Melchior hesitou, parecia querer soltar uma revelação, mas depois de encolher desesperadamente os ombros:
— A culpa é do Governo! Canalhas de espanhóis! Eu, é gente que odeio!... — E lançou-se em violentas declamações patrióticas: a União Ibérica era a infâmia das infâmias! Mas que se livrasse um espanhol de se lhe atravessar no caminho! Bebia-lhe o sangue! Positivamente, bebia-lhe o sangue!...
Uma risada muito alta, muito cálida, da Concha, dentro, na saleta, interrompeu-o, imobilizou-o: olhou Artur dos pés à cabeça com ódio, com desprezo — e atirando o chapéu para a nuca, rompeu pelo corredor, blasfemando.
Quando Artur voltou à saleta, a contar que Melchior abalara, achou a Concha muito animada, com uma cor radiosa nas faces: nunca a vira tão bonita; tinha descoberto que D. Manuel era ainda seu parente e diziam-se já com familiaridade: Conchita, Manolo!
O emigrado tornou-se íntimo deles. A Concha não quisera voltar à mesa redonda — para não comer ao pé da «indecente do primeiro andar» — e quando Manolo não vinha jantar com eles, aparecia à sobremesa para tomar o café e fumar um puro. Artur cada dia o estimava mais: a sua alegria petulante seduzia-o; os seus serviços à república inspiravam-lhe respeito; gostava das discussões políticas, com o copinho de curaçau defronte, talhando e retalhando a Europa, segundo planos vagos de uma democracia universal; e tinha momentos deliciosos, ouvindo-o contar anedotas da revolução de 68, cantar cançonetas políticas ou fazer gemer na guitarra as seguidilhas de Andaluzia. Tinha toda a sorte de habilidades: fazia caricaturas com um fósforo apagado sobre um prato, sabia necromancia, jogava a espada — e dava mesmo lições a Artur, no seu próprio quarto, onde lhe fazia admirar retratos de republicanos ilustres que conhecera e de actrizes que tinham sido sus queridas. Com a Concha, era de uma familiaridade fraternal mas discreta, com tons de respeito; divertia-a muito, tirando-lhe as cartas, lendo-lhe a buena-dicha, com profecias complicadas, em que os destinos dela e de Artur apareciam sempre unidos, escorrendo de felicidades, como taças muito cheias.
Melchior, durante os primeiros dias, não voltara. Mas uma tarde, Artur entrando no quarto às quatro horas, achou-o instalado ao pé da Concha, retorcendo com satisfação o bigode: tinha feito as pazes com a pequena. Mostrou-se nessa noite mais conciliador com o espanhol, a ponto de se declarar, ele também, republicano e mesmo aceitou com prazer um convite que o emigrado lhe fez para um jantar que dava «a Conchita y al amigo Arturo». Foi uma festa muito alegre. À sobremesa, na excitação do champagne, juraram estimar-se sempre e formaram uma sociedade de pândega: Artur, Concha & Cª!
Artur perdera inteiramente o vago ciúme que ao princípio lhe inspirava D. Manolo; decerto, a Concha era muito afável com ele, quase carinhosa, mas só via naquele sentimento uma amizade de compatriotas que se encontram numa terra estranha e a afeição de parentes remotos. Além disso, a Concha, a sós com ele, nas conversas íntimas do leito, tinha-lhe confessado por vezes que gostava do Manolo, mas que desconfiava dele: achava-lhe «cara de mau»; perguntara-lhe mesmo se sabia quem era a querida dele. Já várias vezes, diante de Artur, ela perguntara a Manolo «quien eran sus amores»; o Manolo torcia o buço num silêncio discreto e instado terminava por dizer com ênfase — que a sua querida era a Pátria! De resto a Concha afirmava que o Manolo, apesar de bonito, não era um tipo para mulheres: muito efeminado, muito maricas!
Por seu lado Manolo, na intimidade, a sós com Artur, confessara-lhe, como forçado pela verdade e lamentando a franqueza, que a Concha lhe não parecia bonita; não era feia, sim, mas havia dele ver as mulheres de Cádis! Havia dele ver a sua pequena, a que estava em Sevilha! Isso sim! A Concha...
E Artur vivia tranquilo. Deixava-os sós por vezes e quase se escandalizava do gesto indiferente, secado que tinha a Concha, quando às vezes, de manhã, Manolo lhe mandava um ramo de camélias.
— Mas é muito amável da parte dele, filha! É muito delicado! Deves gostar!
— No me gusta, no me gusta — dizia ela, voltando as costas com o ramo na mão e cobrindo as flores com um olhar doce como um beijo.
O que de novo preocupava seriamente Artur era o dinheiro. Desde a intimidade com o Mando, as despesas cresciam. O republicano tinha todos os dias uma ideia cara: irem a Queluz, tomarem uma quarta ordem em S. Carlos, uma ceia na Ponte de Algés, e com as contas do hotel, as tipóias, as luvas, os charutos, tinha dias de duas, três libras!
Mas não podia modificar a sua existência. Era cheia de tantas doçuras! A Concha, que perdera agora todos os seus «nervos», andava muito igual, muito amorosa. O emigrado e Melchior constituíam a Artur uma pequena corte: gostava de os ver à sua mesa, bebendo-lhe o seu cognac, cortejando-lhe a sua amante. Deleitava-se em lhes dar o espectáculo dos seus amores: beijocava a Concha diante deles — o que produzia em Melchior a imediata necessidade de se levantar, de puxar as calças com maus modos, e no espanhol, a de cofiar o buço, com as suas belas pestanas descidas: até que a Concha, um dia, lhe declarou que era faltar-lhe ao respeito, abraçá-la e fazer pieguices diante de gente.
De resto, Manolo punha cuidados delicados em lisonjear Artur: recebera, comovido, a oferta dos Esmaltes e Jóias, e dera-se ao trabalho de decorar algumas estrofes da Ode à Liberdade. Prometera-lhe traduzir todo o volume para um jornal republicano de Múrcia e dizia-lhe, à mesa, com arrebatamento:
— Don Arturo, es usted el primer poeta del siglo! Es usted Hugo! Es usted un Dante!E assim, com um amigo que o compreendia tão bem, uma amante que lhe queria tanto, o autor dos Esmaltes e Jóias tinha dias em que andava inchado de gozo. Se não fosse o dinheiro! O maldito dinheiro!
A resposta do empresário no entanto tardava e Artur instava com Melchior para que voltasse a falar-lhe, o apertasse. Que diabo, a coisa urgia! E havia agora na sua impaciência, não só a necessidade de recursos, mas o desejo de deslumbrar o espanhol com o espectáculo de uma plateia arrebatada. Melchior, complacente, fora ao empresário — que se declarara, «ocupadíssimo, menino, ocupadíssimo» e pedia mais quinze dias! Mas a coisa havia de ir, a coisa havia de ir!
Porém Melchior andava de novo desconfiado com o espanhol: irritava-o sobretudo o saber que a Concha retomara o hábito de sair de manhã, duas, três vezes por semana. Ora ia ver a Paça que estava muito doente, ora à modista, ora apenas dar un passeito. Censurou Artur por consentir naquelas passeatas.
— A rapariga não há-de estar aqui como num convento — dizia Artur.
E acrescentava, girando com fatuidade sobre os calcanhares: — Estou tão certo dela como de mim mesmo!
Melchior deixava-lhe cair sobre as costas um olhar rancoroso, cheio de um desprezo imenso.
Não podia, por vezes, disfarçar ataques súbitos de ódio pelo emigrado. De repente, sem razão, embezerrava. A Concha percebia, vinha gracejar com ele, perguntar-lhe o que tinha su abuelito, se estava zangado com su netita, retorcia-lhe o bigode, sentava-se-lhe mesmo nos joelhos, rindo, pulando, enquanto Manolo, muito sério, harpejava os bordões da guitarra ou jogava com Artur o écarté a dois tostões.
Melchior, ordinariamente, acalmava-se, mas, só com Artur, desabafava: não podia tragar o Manolo! Não podia! Um dia quebrava a cara ao Manolo...
— Mas por quê, Melchior?
Melchior calava-se e daí a pouco rosnava:
— O Governo é que tem a culpa; consentir nesta súcia de foragidos!
Artur espantava-se de um patriotismo tão fanático, tão intolerante. Era necessário também não ser caturra, que diabo! Os Espanhóis eram uma raça nobre...
— Uma corja! — rugia Melchior.
E dando grandes passadas pelo quarto, sondava com mãos nervosas as algibeiras, como para procurar uma arma:
— Um dia rasgo as entranhas a um castelhano!
E uma ocasião, não se contendo, disse a Artur numa explosão:
— Pois você não vê como ela faz olho ao Manolo?
Artur riu. Ora, histórias! Mas aquela palavra, com a lentidão de um veneno absorvido, começou a espalhar-lhe no sangue um ciúme crescente. Observou-os aos dois. Porém, via-os tão naturais, tão francos, tão camaradas, tão inocentes!... Pensou que «disfarçavam» e suspeitou das saídas da Concha. Um dia que a ouvira dizer que ia a casa da Paca, seguiu-a de longe, cosido com as fachadas. Que alívio quando a viu entrar, com efeito, no portal da Paca! Jurou a si mesmo, num relance de reconhecimento, amá-la mais para a compensar da injusta suspeita com que a ofendera. Mas depois reflectiu que no prédio da Paca havia mais andares, ou ainda que a Concha poderia ter saído por uma porta traseira. Vaidoso, irritou-se de ter sido simplório e quase desejou que ela fosse culpada. Assim, certa manhã que a sabia lá, seguiu-a e foi tocar à campainha. Perguntou pela señorita Concha: esperou dez minutos e viu-a aparecer de chapéu, as faces em brasa, os olhos brilhantes.
Que era? Por que tinha vindo?
Ele riu: passara por ali, lembrara-se de a vir buscar. Mas em casa, de repente, perguntou-lhe quase com severidade, por que lhe aparecera ela tão vermelha? Em lugar de se escandalizar com aquela pergunta repassada de desconfiança, contou-lhe que assistira a uma cena! Ah! A Paca que se julgava perdida, a chorar. O querido a chorar!
O pequeno a chorar! Um horror!
Mas Artur não estava tranquilo. Tinha a sensação vaga de que ela «se lhe ia escapando». Sentia-a menos sua. E aquela incerteza exaltava o seu amor. Tinha um desejo pungente de lhe saber os pensamentos. Desconfiava de tudo, do Manuel, da criada sobretudo — e sentia uma contrariedade amarga quando via entrar o Manolo. Os serões eram menos alegres; havia silêncios embaraçados, e o emigrado, para os preencher, tinha de esgotar o seu repertório de malagueñas, que a Concha escutava sorumbática, com os braços cruzados, erguendo às vezes para ele ou para Artur o seu olhar muito brilhante.
Uma manhã, ouvindo-lhe dizer que ia à Paca, Artur declarou que estava incomodado, que não saía, que desejava que ela lhe fizesse companhia. Ela atirou logo para uma cadeira o vestido que ia pôr e veio interrogá-lo muito ternamente: o que lhe doía? queria deitar-se?
— Estou esquisito, passa logo — respondeu Artur, muito satisfeito da prontidão com que ela desistira do «passeio» e vendo na sua solicitude a persistência do seu amor.
Estava-se então próximo do Entrudo. Nessa semana, por duas ou três vezes já, Artur impedira-a habilmente de sair; ela não parecera contrariada, somente tinha tristezas, «monices», dizia-se nervosa, queixava-se de enxaquecas. Na sexta-feira — antes do Domingo Gordo — Artur, voltando às duas horas da redacção do «Século», encontrou-a de chapéu, pondo o véu ao espelho. Ia à Paca.
— Ora, deixa lá a Paca!
— Mas preciso também de ir à modista...
— Ora, deixa-te de modistas!
Esperava uma «cena» e ficou admirado, vendo-a tirar sem uma palavra o chapéu, o véu, o vestido, agarrar num lenço que andava a embainhar havia mês e meio, e ir sentar-se, com um suspiro, à janela. Artur, despeitado daquela resignação muda, agarrou num livro, estendeu-se em cima da cama. E o silêncio que se cavou entre eles pareceu-lhe triste e escuro como uma separação.
Manolo devia vir jantar nessa noite, mas às três horas o Manuel veio dizer que o Sr. Manrique pedia desculpa, mas que, tendo-lhe chegado um parente de Badajoz, só poderia aparecer à sobremesa.
A Concha não se moveu, cosendo devagar, lugubremente, e no silêncio do quarto só se ouvia, subtilmente, voltarem-se as folhas do livro.
O jantar foi triste. A Concha, com duas rosetas vermelhas no rosto, não comia; Artur, a quem aquele silêncio infeliz, aquele fastio desconsolado, exaltavam o ciúme, petrificava-se com desespero na sua mudez, o cérebro cheio de frases, de recriminações, de palavras comovidas, que a sua língua, de um peso de chumbo, se recusava a pronunciar. A sobremesa passou, e Manolo não veio.
Em lugar dele foi Melchior quem apareceu ao café, e, com um rosto satisfeito, disse logo abruptamente que ao entrar na sala de jantar, vira o Manolo com a Mercedes, unha e carne com ela, muito chegadinhos — e o pobre calvo a babar-se ao lado, o asno!
A Concha fez-se pálida, depois escarlate. E subitamente, tornou-se muito amável com o Melchior: fê-lo sentar ao pé dela, «muito juntinhos», queimou-lhe ela mesmo o café, desmanchou-lhe o cabelo, ocupando-se dele, palrando alto, sem um olhar, uma palavra para Artur.
— Vocês estão amuados? — perguntou Melchior com o rosto túmido de prazer.
Artur teve um sorriso amargo:
— Tem estado com os nervos, a menina.
Mas a Concha ergueu-se bruscamente, entrou no quarto fechando a porta sobre si e sentiram-na no corredor gritar pela criada.
— Que diabo tem ela? — perguntou Melchior, sorvendo placidamente o seu café.
Artur teve uma tentação de desabafar, contar as suas suspeitas; mas, vaidoso, não querendo dar a Melchior o «gostinho» de ver justificadas as suas desconfianças — encolheu os ombros, disse:
— Eu sei lá! Mulheres!
Melchior deu-lhe de lado um olhar apiedado e desdenhoso e pareceu sorver com delícia a última gota da xícara.
Mas a Concha voltara, com os olhos muito brilhantes, um pouco vermelha, toda coberta de pó-de-arroz. Trazia uma excitação artificial, histérica: declarou que se achava disposta a tudo! Quis tocar o fado — mas atirou com tédio a guitarra; deu um pulo para os joelhos de Melchior, ergueu-se, valsou só pela saleta e foi necessário que lhe arrancassem a garrafa de cognac, porque a queria beber de um trago. Continuava a não falar a Artur, nem o olhava; perguntou mesmo a Melchior se queria ir só com ela dar um passeio a Belém — mas só com ela, los dos, como dos novios!
E Melchior ria, todo banhado de gozo.
— Vá — disse com bonomia — vá, faça as pazes com o seu marido!
Ela encolheu os ombros com um desprezo soberano e estendeu os braços a Melchior para uma valsa. E trauteando, volteavam pela sala, pulando, tropeçando nas cadeiras, abalando o soalho com risadas sonoras, num grande arranque de troça; desapareceram mesmo um momento no quarto às escuras — e Artur, furioso, ouvia a Concha rir, com risinhos cálidos de cócegas. Não se erguera da mesa, fumando, num desespero lúgubre, com lágrimas na garganta.
Quando ela voltou à sala, compondo o cabelo, seguida de Melchior que torcia o bigode, o Manuel levantava a mesa.
— Va decir al Snr. Manrique, abalo, que le esperamos — disse ela. — Listo!
O Manuel voltou daí a momentos: — Diz que não pode vir. Estava no quarto da Mercedes, em grande pândega...
Toda a animação da Concha murchou, como depois de uma rajada uma bandeira caindo ao comprido do mastro. Deu duas voltas pela saleta e foi para o quarto, às escuras. Foram encontrá-la, daí a pouco, enroscada em cima da cama, dobrada sobre si mesma, numa imobilidade hostil. Respondeu bruscamente que tinha dores de cabeça, febre. Para a distrair, Melchior quis tocar um fado: ela gritou-lhe que se calasse! E como Artur, julgando-a doente, a interrogava com um carinho que implorava reconciliação, ela enfureceu-se: nem podia uma pobre de Cristo estar doente sem ser martirizada! Irra! E como Artur insistia, e o Melchior se agitava em redor do leito, pulou para o chão, e com uma força nervosa extraordinária, empurrou-os para a saleta, furiosa, às punhadas, batendo-lhes com a porta nas costas.
— E deixá-la! É deixá-la! — disse Artur — está doida!
Fizera-se pálido, receando um escândalo.
— Mas que diabo tem ela? — perguntou Melchior, que de mãos nos bolsos, passeava cabisbaixo, com o rosto carregado.
Ouviram então a Concha berrar de novo no corredor pela criada e apenas a moça subiu, fechar-se no quarto com ela, dando à chave uma volta colérica.
— Que pouca-vergonha! — fez Melchior. — Aqui há marocas. — Estava de pé diante de Artur, fuzilavam-lhe os olhos.
Artur não respondera. Erguera-se e passeava melancolicamente, acendendo cigarros que logo arremessava, indo encostar-se à vidraça, a olhar a noite escura, sentindo vagamente, no fundo de toda aquela cólera, o Mando. Decerto, impedindo-a de sair, contrariara um rendez-vous: o Manolo despeitado, para lhe fazer ferro, decidira-se a passar a soirée com a Mercedes, de patuscada, e, ciumenta, a Concha delirava! E o que era! Mas então recordava todas aquelas semanas de amor, o fogo dos seus beijos, os seus juramentos balbuciados na voluptuosidade e mesmo a indiferença que ela mostrara outras vezes, quando, habilmente, ele lhe transtornara outros rendez-vous. E podia duvidar do seu amor? A sua vaidade acumulava-lhe provas, como um pedreiro diligente que acarreta pedras para um muro — e a certeza do amor dela ia-se erguendo, indestrutível, sólida, maciça. Preferia atribuir aquela «cena» aos nervos, ao tempo, aos humores. De vez em quando, ia escutar à porta do quarto: sentia as vozes das duas mulheres cochichar; por fim decidiu-se a bater devagarinho...
A Concha gritou que não abria.
— Oh, que desavergonhada! — fez Melchior.
E então, censurou verbosamente a debilidade de Artur. Se fosse com ele! Oh, se fosse com ele! Tinha-lhe quebrado já uma bengala nas costas! E expôs a teoria «que as espanholas só à pancada». De resto gostavam de levar! Até se apaixonavam! Citou exemplos, anedotas. Um amigo dele, desde que dera uma coça na Lola, trazia-a como um cordeiro e babada por ele. — Raparigas desta vida, é à bordoada! Eu é que sei lidar com elas — acrescentou, furioso.
— Chame-a você, fale-lhe você! — disse Artur, muito desconsolado.
Melchior reflectiu, torceu o bigode, aprumou a estatura e com um olhar a Artur, que significava: você verá! — foi colar a boca à fechadura e pondo muita sedução na voz:
— Abre lá, ó Conchinha!
A espanhola atirou-lhe de dentro uma injúria medonha!
Melchior recuou, lívido:
— Se fosse coisa minha, bebia-lhe o sangue!
E então, furioso, excitou Artur: era uma cobardia deixar-se tratar assim por uma bêbeda! Ele pagava-a, não era verdade? Pois então, era não lhe aturar caprichos! Olha que espiga! — Você é um maricas, você não tem sangue nas veias! Arrombe a porta!
Artur, envergonhado da sua fraqueza, ergueu-se e disse com decisão:
— Eu, o que tenho medo é do escândalo, senão...
— Qual escândalo! Você está no seu quarto. Quem paga é você! Ela se se faz fina, que vá para o olho da rua!
E Artur, já irritado, excitado pelo Melchior, bateu à porta com força, ordenou:
— Abre a porta, Concha!
— No quiero! No quiero! No quiero! — berrou de dentro a Concha.
— Arrombe! — exclamou Melchior com os olhos injectados.
Artur, furioso, atirou um pontapé à porta que fez tremer a fechadura. E de súbito a porta abriu-se, a Concha apareceu, em camisa, e, bruscamente, atirou-lhe uma bofetada que o fez cambalear.
Melchior precipitara-se, mas a porta fora rapidamente fechada. Dentro, a Concha gritava; frascos partiam-se contra o chão, cadeiras arremessadas batiam contra as paredes e a voz aflita da criada dizia, quase chorosa:
— Então, hija! Então, hija! Por Dios!...
Artur, com a cara marcada, os olhos vermelhos como brasas, ficara no meio da sala, petrificado. E Melchior, com medo da polícia, de escândalos, daqui-d'el-reis à janela, calmara subitamente, muito pálido. Disse mesmo, agarrando o chapéu:
— Meu rico, eu safo-me, que não estou para me meter em alhadas!
Mas, a instâncias de Artur, ficou. E ambos sentados à mesa, com a garrafa de cognac no meio, fizeram até alta noite grogues frios, fumando, cabisbaixos.
— Raio de mulheres! — dizia Melchior de vez em quando.
— Um desgosto assim! — murmurava Artur.
E recaíam num silêncio triste.
No entanto, a criada — que três ou quatro vezes, pela porta do corredor, fora abaixo e voltara, parecendo levar e trazer recados — veio, quase de madrugada dizer-lhes, pé ante pé, que a pobrecita tinha adormecido.
Como era tarde, Melchior ficou no hotel, e Artur, trémulo, comovido, entrou no quarto. A Concha, encolhida na roupa, ressonava devagarinho. Artur despiu-se sem ruído, escorregou entre os lençóis, pondo-lhe um beijo cauteloso no braço nu.
Acordou daí a pouco — já o dia entrava pelas frinchas da janela — ouvindo um rumor no quarto: a Concha, a pé, abria a porta da saleta.
— Que é? — disse ele, estremunhado.
— Vou buscar água, que estou a arder.
Artur, prostrado das emoções, dos cansaços da noite, acomodou-se na roupa e adormeceu profundamente.
Quando acordou — deviam ser dez horas — estava só na cama. Pulou para o chão, abriu a janela ao sol magnífico de um dia adorável. A porta da saleta estava aberta. Viu logo o chambre dela caído no soalho, as chinelas, uma caixa de chapéus aberta! Que era? Onde fora?
Ao puxão da campainha, a criada veio correndo e imediatamente começou, com grandes gestos, a dizer que não sabia nada, que não tinha visto a senhora, que não se queria meter em questões!
Artur, aterrado, passou um jaquetão, correu ao quarto do Melchior. Ao ouvir, estremunhado, «que a Concha saíra», sentou-se de um pulo na cama:
— Chame o Manuel!
O criado veio, fumando o seu cigarro, com a cabeça baixa, o olhinho malicioso, coçando os cabelos por trás da orelha.
— Onde está a senhora? — gritou Melchior.
O Manuel olhou para um, depois para o outro, e com as mãos na cinta, a barriga para diante, o cigarro na boca, o olho meio fechado ao fumo:
— Então ustedes não sabem?
— O quê, homem?
O Manuel tirou o cigarro e torceu-se devagar numa risada interior, muda.
— Acaba, carrasco! — berrou Melchior, com uma punhada no enxergão.
— Pirou-se! — fez o outro, com uma voz muito aguda de gozo.
— Com o Mando? — exclamou Melchior, sufocado, de joelhos na cama, os olhos esgazeados.
— Pois já usted vê — disse o criado, como achando perfeitamente lógico.
Melchior voltou-se para Artur que se fizera muito branco e com uma expressão de desprezo, de furor, atirando-lhe as palavras como escarros:
— Sua besta! Sua besta!
— Mas então — balbuciou Artur — mas então...
O Manuel chegou-se para a cama e com sua voz arrastada:
— Pois o Manolo e a Conchita estavam juntos há muito. Desde que ele começou a vir aos jantarinhos cá de riba! Viam-se em casa da Paca! Depois usted põe-se a fazer dificuldades. Eh! Já usted vê! O Manolo pelo beiço, a pequena com a paixão... Já usted vê!
Artur, vergado pelas pernas, deixara-se cair numa cadeira, à cabeceira da cama. Adorava-a agora, aquela mulher!
A voz arrastada do criado disse ainda:
— O Manolo já mandou buscar os baús! Pois era de ver! Usted põe-se a fazer dificuldades... Já usted vê!
Artur, tomado de um fluxo de saudade, escondeu a cabeça entre os braços, sobre o travesseiro do leito...
— Palerma! — rosnou-lhe Melchior, apopléctico de raiva.
— Coma-lhe e beba-lhe! — disse filosoficamente o Manuel. — Atire-lhe usted bons bifes para dentro! Já usted vê! Mulheres! Coma-lhe e beba-lhe usted!


Capítulo IX

Para se consolarem, nessa noite, foram jantar ao Hotel Central: estavam taciturnos. Artur mal comia e pareceu-lhe mesmo um espectáculo grosseiro e indigno da sua melancolia, o deleite muito expansivo com que Melchior devorou, repetiu o Jambon d'York aux épinards. E todavia Melchior estivera lúgubre toda a tarde na redacção, soltando de vez em quando suspiros estrondosos que divertiam o Esteves, e não pudera produzir uma só local, apesar de esforços de parturiente: de facto, o Jambon d'York era a sua primeira consolação nesse dia. E limpando os beiços, murmurou ao ouvido de Artur:
— Parece-me que merecemos uma garrafinha de Borgonha.
Artur consentiu com um gesto indiferente. Parecia-lhe que uma névoa imponderável, parda e funerária cobria as coisas e as fisionomias, e numa grande lassidão do cérebro, via constantemente diante de si formas fragmentadas da Concha ou objectos pertencente à Concha ou sítios e situações, que atravessara com ela. Era um trabalho de reminiscência saudosa, em que procurava reviver as alegrias que perdera; tinha nos membros molezas de noites mal dormidas e na alma uma sensação de vexame; vinham-lhe de repente, como faíscas, ódios sanguinários ao Manolo.
Os seus vagos suspiros reprimidos tinham já feito voltar a cabeça a um alemão, de pince-nez e barbas doutorais, que, ao seu lado, descascava uma banana com método.
Como a noite estava de luar, saíram depois do café: seguiram, sem destino, ao longo do Aterro.
— E amanhã é Domingo Gordo!... — rosnou Melchior com um furor sombrio.
— Domingo Gordo... — murmurou Artur com tristeza. Outros Entrudos antigos, em Coimbra, passaram-lhe na memória, tão alegres, com as tardes da Sofia, cheias de batinas de onde saem de repente os esguichos de uma grande seringa de latão! E os guinchos divertidos, as lutas de ovos, as quadrilhas à noite no Teatro D. Luís, e os grogues, as felicidades!... Esperava tanto divertir-se, aquele Entrudo, com a Concha!
— Uma partida assim! — murmurou.
Imediatamente Melchior enfureceu-se. E de quem era a culpa? Para que tinha metido o espanhol de portas adentro?
— Quem podia adivinhar!
— Quem podia adivinhar? — exclamou Melchior com tanta ira que Artur recuou, temendo uma violência: — Bastava ter olhos! Para que estava o desavergonhado do andaluz sempre metido no quarto? Mas você, com a sua boa-fé de Oliveira de Azeméis!... E necessário conhecer Lisboa! E necessário ter olho! — E repuxando com um dedo a pele da face, esgazeava a órbita, junto à cara de Artur, de um modo medonho. Rompeu então em impropérios contra a Concha. Era uma bêbeda! Tinha os vícios mais nojentos. Cada palavra que dizia era uma mentira vil. Pregava daqueles calotes a toda a gente. Era baixa de natureza. Fazia-se passar pela filha de um negociante... Não estava mau, o negociante! O pai era um trapeiro de Madrid, e ela fora, desde os doze anos, das que andam pela Puerta del Sol a chamar os soldados para o vão das portas! E tinha dado uma doença asquerosa ao conde de Vila Rica, pobre velho!
Artur revoltou-se. Era mentira!
Melchior escandalizou-se: fez revelações, citou nomes, datas, sítios; e como um homem que vê sobrenadar sujidades nas águas de um enxurro, Artur viu passar na verbosidade do localista todas as infâmias da Concha. Parecia-lhe incrível!
— Porque me não disse você?
— Eu não sou acusa-cristos...
E então injuriou o Manolo: se o tivesse ali, fazia-o em pedacinhos! E como o Borgonha lhe exaltara a loquacidade, atirando o chapéu para a nuca, estendeu o seu ódio pelo espanhol a toda a Espanha; cobriu de vitupérios essa nação ilustre — que era um covil de pulhas! Bastava só olhar-lhes para as finanças, os caloteiros! E a administração? Uma ladroeira! E o exército? Uma cobardia indecente! E ainda se falava em União Ibérica! Que viessem para ele!
Calou-se um momento e brandindo a bengala para o céu:
— Ah! se eu torno a acreditar em mulheres!
Artur ficou petrificado. Que lhe tinha ela prometido ou jurado, então? E viu de repente na cólera do Melchior, não o interesse do amigo, mas o despeito do amante. O quê, também ele! Aquela suspeita foi-lhe dolorosa. E andando em silêncio, olhava pelo canto do olho o perfil espesso, a figura grossa, o andar pesado. Ela dera-se a um grotesco daqueles? Era de mais! Ao menos a paixão pelo Manolo tinha sua justificação: era bonito, era valente, era romanesco, era divertido! Mas este, o Melchior, pelintra, caloteiro, cobarde, debochado, imbecil, bêbedo? Pouh! Todos os defeitos de Melchior lhe apareciam agora, disformes, monstruosos. Envergonhou-se da sua amizade, como corara do seu amor! Que amante!... E que amigo! Veio-lhe como um desejo infinito de outro meio, mais limpo, mais elevado, mais digno. E à esquina da Calçada do Alecrim, despediu-se do jornalista secamente.
Ia decidido a esquecer a Concha. Pisando com um pé nervoso a Rua do Arsenal, construía já o plano de uma nova existência: arrancaria do seu cérebro, como se tira da pele uma pústula, a lembrança daquela prostituta de instintos vis, infectada de vírus — que lhe preferira o Melchior, a porca! Recomeçaria a trabalhar: afinal, o seu destino era fazer obras de arte e não viver agachado nas saias enxovalhadas de uma muchacha de bordel! Depois dos Amores de Poeta, escreveria outro drama, comédias em verso!
Forçaria a celebridade como quem viola uma mulher! E seria um grande homem, enquanto ela, abandonada pelo emigrado, roída de doenças, erraria esfomeada pelo lodo do beco do Monete! E ele, teria outros amores, dignos do seu alto coração e da sua posição nas Letras! Renovaria as relações com a baronesa, que desleixara — idiota! — por aquela meretriz barata. Oh! — Quando entrou no quarto, todo o seu futuro lhe aparecia tão reluzente de felicidades, que já considerava providencial que «o estafermo se tivesse pirado!» — Ainda bem! Respiro! Ouff!
Mas o aspecto do robe-de-chambre dela, a sua camisinha de dormir dobrada aos pés da cama, todo aquele cheiro de mulher de que o ar estava impregnado, deram-lhe uma comoção tão brusca que os seus nervos se distenderam: uma saudade infinita amoleceu-lhe a alma e atirando-se de bruços sobre a cama, rompeu a chorar! Ah, mas não havia de ficar assim, sem uma vingança! Pensou em lhe escrever uma carta cheia de todas as infâmias que Melchior lhe revelara, ameaçando-a de lhe escarrar na cara, se ela ousasse, encontrando-o, erguer os olhos para ele. Mas para onde dirigiria a carta? Estaria ainda em Lisboa? Imaginou afligi-la de ciúmes, tomando outra espanhola — a Angelita, que ela odiava — e enchendo-a de vestidos e jóias... Mas o dinheiro? Em cinco semanas tinha gasto quinhentos mil-réis! E com quem! Com aquela criatura vil. — E este desperdício aumentou o seu ódio. Acabrunhou-a de injúrias; rasgou em pedaços a sua fotografia; decidiu não lhe enviar os baús — ou remetê-los, tendo inutilizado à tesourada os vestidos e esmagado a martelo as jóias que ela lhe extorquira — porque lhas extorquira, a ladra!
Quis adormecer, mas não podia. A ideia de que ela, àquela hora, delirava doida nos braços do Manolo, de que nos intervalos da lubricidade, com os corpos lassos, muito unidos, caçoavam dele, riam, chamavam-lhe «o asno do português», dava-lhe um ódio, cortado de um pungente ciúme carnal, que o fazia torcer-se sobre o enxergão, atirando punhadas ao travesseiro. Como Melchior, sentiu ódio à Espanha. Oh, se houvesse uma guerra! Com que júbilo de vingança iria pelo País, lançando proclamações, armando aldeias, arremessando contra a fronteira massas esmagadoras de patriotas! E decidiu-se a escrever folhetins sobre a Espanha, «pondo-a mais rasa que a lama!»Foi sob estas impressões que toda a noite sonhou com invasões e batalhas: via-se à frente de Portugal armado em massa, passando o Caia, invadindo a Espanha, à Átila, e vindo, com a fúria irreprimível de um elemento, abater-se sobre Madrid aterrada; aí, sentia-se semideus, era Aquiles: estava nu, tinha um elmo pelágico e arrastava três vezes em torno das muralhas, que lhe pareciam as de Tróia, entre um pranto de viúvas subindo para a mudez do céu, o corpo branco e exangue do Manolo. Depois, era em Lisboa, na celebração da vitória: aí, era o Cid: tinha uma armadura refulgente de emblemas; estava num palanque coberto de panos leves de seda, ao lado do Rei, de D. Luís de Bragança, que trazia sobre a cabeça, enterrada até aos olhos, uma enorme coroa de imperador da península. Amarrada a um pelourinho, nua, torcia-se a Concha, a quem verdugos experientes, com músculos de atletas, iam arrancando a pele a chibatadas; defronte, a perder de vista, estendia-se uma negrura de formas humanas: eram as raças de Espanha, cativas, com os pulsos arroxeados e cangas nos pescoços, que sargentos de caçadores, torcendo o buço e meneando a chibata, iam levando para os descampados onde deviam, plebe vil, estrumar os campos de trigo e enxofrar as vinhas.
Quando acordou ao ruído da porta que se abria, a voz do Manuel chamou-o à realidade:
— É a Conchita que quer os baús. Está lá em baixo o galego...
— Não vai nada! Não sai nada! — exclamou Artur com uma violência que ainda participava do seu sonho de invasão.
Aconchegou-se nos lençóis, quis readormecer. Não pôde: faltava-lhe aquele corpo lindo tão conhecido, que ele enlaçava logo ao acordar, ainda lânguido de sono. Saltou da cama e começava a vestir-se, quando o Manuel, entreabrindo a porta subtilmente, adiantou o rosto banhado de satisfação:
O Manolo manda dizer que se os baús não vão, manda cá um polícia ou vem ele com um chicote...
Artur voltou-se como uma fera, mas o Manuel acudiu:
— Usted fica mal! Usted dê as roupinhas! Olhe que usted tem transtorno!
A sua voz era tão antipática, que para o não ver, por lassidão, por nojo, para acabar por uma vez com a Concha, com o Manolo, e vagamente assustado de um escândalo, gritou furioso:
— Leve tudo! Leve com os diabos! Deixe-me!
— Usted está com o ferrito! — disse muito jovialmente o Manuel.
O homem era-lhe tão odioso, que resolveu sair do hotel. E como se sentia vexado diante da Mercedes, da criada, dos dois espanhóis tenebrosos, foi nessa manhã almoçar à Áurea. Só quando viu nas ruas as lojas fechadas, se lembrou de que era Domingo Gordo. Como o passaria?
Demorou o almoço, leu todos os jornais, a Ilustração Francesa, e às duas horas, tomava o seu café, quando, na mesa ao pé, se veio sentar o calvo, o Videirinha, a quem o criado, decerto habituado, serviu logo um cognac com sifão. O Videirinha cumprimentou Artur com afabilidade e decerto «para entabular cavaco», disse com bonomia:
— Domingozinho Gordo!
— E verdade, Domingo Gordo... — respondeu Artur.
Videirinha imediatamente se veio sentar ao pé dele e com uma voz de pêsames, baixo:— Lá soube o desgosto! Sinto muito! A minha Mercedinha também sentiu muito.
Artur, furioso com a compaixão do Videirinha, respondeu impaciente:
— Que tolice! Desgosto? Ora essa! Alívio! Eu. estava farto dela!
Videirinha, não acreditando, bebeu discretamente um gole de cognac. E fazendo estalar a língua, erguendo muito as sobrancelhas:
— São grandes golpes! São grandes golpes! A Mercedinha até tem estado doente...
Artur, que recordava o entusiasmo da Mercedes por Manolo, teve uma piedade desdenhosa «pela imbecilidade do calvo» e disse com um sorriso:
— Parece boa rapariga.
Videirinha esteve um momento calado, o olhar afogado num êxtase imbecil, e com uma voz muito doce:
— Não há melhor, não há melhor!
— E é bonita — disse Artur, que o gozava, achando-o «um tipo».
O Videirinha teve um vago encolher de ombros muito lânguido, como se exprimisse um: — nem falemos nisso!
Olhou um momento Artur — e puxando de uma carteira de marroquim, tirou, pôs sobre a mesa, uni pequeno nastro enxovalhado de cinco ou seis polegadas, que parecia uma medida. Esticou-o com os dedos sobre a mesa, delicadamente, olhou-o com uma concupiscência beata e disse ternamente:
— O pezinho! A medida do pezinho!
— Muito pequenino— disse polidamente Artur.
— Não há melhor! — Contemplou-o novamente: — Quando não estou com ela, ponho diante de mim a medida do pezinho e estou horas a olhá-lo, a regalar-me por dentro. — Suspirou: — Não há melhor!
Guardou com devoção o nastro e inclinando-se para Artur:
— Eu ponho em si esta confiança porque sei que é cá da confraria — amante das belas espanholas!
Esteve um momento a olhar vagamente para o ar, com paixão, e recostando-se, de pálpebras cerradas: — Tem-me dado muita consolação!
— E confiou então a Artur que lhe andava a ensinar francês:
— Agora vou dar-lhe a liçãozinha, anda no verbo rendre. Tem uma memória! Depois, ela lê o jornal, gosta muito de ler o jornal e eu coço-lhe a cabecinha! Depois, se há alguma coisa a coser, na máquina de costura... Eu coso muito bem à máquina, até ela me diz: oh! pupu... Chama-me pupu, tem gracinha, não? Diz-me ela: oh pupu... Que ia eu a dizer? Esta cabeça! Ah! Diz-me ela: oh! pupu, até dá gosto ver-te costurar... Coitadinha, faz-me muita justiça... Depois fazemos uma sonecazinha... – Revirou os olhos e com uma voz grave, tocando no joelho de Artur: — Meu caro senhor, digo-lhe isto porque sei que aprecia as belas espanholas — são grandes gozos!
E como eram três horas, para a não fazer esperar, pagou o cognac, pôs com cuidado o seu chapéu branco, ergueu-se, repuxou as calças para a barriguinha saliente e vindo debruçar-se sobre a mesa, quase ao ouvido de Artur:
— Vamos hoje ao Casino, mascarados. A minha Mercedinha vai muito bem, vai de pajem. Eu também vou bem... vou de húngaro. Chut! Guarde o segredo, hem?
E abalou com o seu passinho miúdo.
Artur espreguiçou-se, folheou ainda a Ilustração e pensando: — pobre idiota! — saiu, foi andando até à Rua Nova do Carmo. A rua estava cheia de gente que se movia devagar, numa madracice de pasmaceira; pelas janelas, algumas com as vidraças tiradas, senhoras apareciam, fugiam,, figuras debruçavam-se com um ar excitado. Cartuchos de farinha estalavam com uma poeirada branca, revoadas de feijões estralejavam sobre os chapéus; sujeitos enfarinhados tinham gestos furiosos; outros seguiam com um desdém secado; aqui, além, máscaras maltrapilhas passavam com pressa, como indo tratar de um negócio, ou exibindo-se com esgares lunáticos, fazendo destoar subitamente guinchos idiotas; patrulhas rondavam com um ar enfastiado e uma atmosfera baixa, parda, pesava lugubremente, penetrando os corpos, dando às expressões um tédio mole.
Artur, receando uma cartolada no chapéu, um esguicho na cara — insultos muito irritantes para quem traz a alma magoada — retrocedeu rapidamente até ao hotel. Mas, ao passar no corredor sombrio, um vulto destacou-se do vão de uma porta e esmagou-lhe placidamente um ovo de cheiro no pescoço; deu um grito à frialdade do líquido e voltando-se, furioso, viu a face do Videirinha banhada de júbilo:
— Foi a Mercedinha que mandou! Foi ela que mandou! Diz que é para o distrair.
Tem gracinha, não? Tem-me enfarinhado todo, a Mercedinha...
— E divertir-se, é divertir-se — disse Artur subindo a correr para o quarto.
Sentou-se com um livro à janela e, ora lendo, ora olhando a rua, viu cair o crepúsculo — menos triste que o seu coração. Na sombra do quarto a coberta branca do leito alvejava vagamente: ele via-a ali, como tantas vezes a vira, dormindo, as longas pestanas descidas sobre a face pálida, um dentinho luzindo entre os lábios docemente entreabertos e os dois globos brancos dos seios aparecendo entre as rendas da camisinha. E aquela visão era tão nítida, que, com um longo soluço de saudade, ergueu-se, arremessou-se sobre o leito, abraçando ao acaso a coberta.
Foi jantar nessa noite a um restaurante da Baixa. E cheio de ódio contra o ruído dos trens rolando para os teatros, contra os grupos festivos exaltados de vinho, contra os pares de máscaras de luvas brancas — veio encerrar-se de novo no quarto. Desejaria um claustro de convento, um rochedo em que batesse o luar, junto ao mar gemente, um sítio distante, que fosse, pela tristeza, como a decoração condigna da sua alma triste.
Então fez versos; e com a imaginação afinada pela saudade, produziu com facilidade, escrevendo até tarde, enquanto gritos de bêbedos se repercutiam pelas ruas e perpetuamente rolavam as tipóias, de teatro para teatro.
Terminou, alta noite, uma última estrofe — em que dizia que a sua vida, penetrada até às profundidades pelo amor da Concha, não teria outros amores, senão como tendas que se erguem para uma noite e se desmancham ao alvorecer. Àquela hora, no Teatro D. Maria, a Concha e o Manolo, de dominó, apaixonadamente enlaçados, giravam com furor numa valsa, aos compassos estridentes da Filha de Madame Angot!

Ficou ao outro dia na cama até muito tarde e à noite, depois do jantar, decidiu, para «matar o tempo», ir a S. Carlos. Tinha uma vaga esperança de encontrar lá a baronesa.
Chegava à esquina do Rossio, quando viu a figura magrinha do Damião, de paletot alvadio, guarda-chuva no braço, que vinha conversando com Nazareno. Que felicidade! Era na sua mágoa como uma consolação, uma força, uma direcção que lhe chegava... Correu para ele com os braços estendidos:
— Oh, Damião!
Damião recuou, fitou-o, disse simplesmente:
— Eu não falo a canalhas!
Deu um passo para o lado, travou do braço de Nazareno e seguiu.
Artur ficara como cataléptico: queria correr, os pés pegavam-se-lhe; queria falar, a língua prendia-se-lhe; sentia ferver-lhe o cérebro e um calor, onde havia um zumbido, escaldar-lhe as orelhas; as luzes do Rossio faiscavam-lhe em ziguezagues ante os olhos, e as pessoas, com um rumor abafado, pareciam-lhe mover-se no ar. Dois dominós apressados empurraram-no: despertou. Os beiços começaram a tremer-lhe, lágrimas humedeceram-lhe os olhos. A palavra de Damião — canalha! — atravessou-lhe o cérebro, o rosto, os ouvidos, com o estampido, o impulso de uma bofetada. Sentiu um desespero, um desejo sanguinolento de vingança: vinham-lhe agora à língua as palavras vibrantes que deveria ter atirado ao Damião; sentia agora no braço a força da bofetada que lhe devia ter dado na face... Mas aquele ímpeto ardeu um instante e extinguiu-se como um rastilho de pólvora; e abatido, prostrado, foi seguindo ao comprido das casas para o Terreiro do Paço, inconscientemente, com passos moles que oscilavam.
Sentia um espanto, uma revolta aterrada contra o Destino. Por que merecia tudo o que lhe sucedia? Que tinha feito? Era bom, era amante, era inteligente, era honrado — e a cada passo que dava na vida surgia-lhe uma indiferença, um escárnio, uma humilhação, uma traição, uma desfeita! Teve a consciência da sua fraqueza moral, da sua debilidade efeminada! Revoltou-se contra si mesmo... Tinham-lhe chamado canalha, e ficara aparvalhado, numa tremura! Teve ódio à estrutura anémica do seu corpo, à languidez romanesca da sua alma: sentiu-se um fraco, um maricas, um trémulo, um piegas... De que servia na vida? Mais valia morrer, desaparecer como uma bola de sabão que quebra num cuspo de espuma! Para que viver? Não tinha dinheiro, nem posição, nem uma amizade, nem um amor! Que lhe restava? Ir enterrar-se em Oliveira de Azeméis? Per— tencer ao Vasco, pisar num almofariz semente de linhaça, perpetuamente? Não! Então... E a morte aparecia-lhe com a doçura de um repouso e a atracção de um refúgio. Deus fizera-lhe a vida amarga para o desgostar dela, obrigá-lo a sair, dar lugar a outro mais forte, como numa hospedaria onde se desgosta o hóspede pobre, para dar lugar ao hóspede rico. Ele que compreendia tão bem o amor, não encontrava uma mulher que lhe desse um olhar compassivo; ele que sentia em si ideias, imagens, estilo, não tinha um diabo que dissesse uma palavra do seu livro, lhe desse uma migalha daquela celebridade de que tinha fome! Aproximava-se cheio de simpatia, de calor, ávido de ser útil — recebia um empurrão! Fora direito à Sociedade, com tanta admiração por ela — e recebera por acolhimento alguns olhares secados, ombros soberbamente voltados; lançara-se para a República, vibrante de entusiasmo — e fora repelido com vaias e assobios! A Concha, que ele adorava, safava-se-lhe! O Damião que admirava, insultava— o! De que lhe servia viver, caminhando assim, envolvido na sua má sorte como numa atmosfera iniludível?
Um ar frio e húmido envolveu-o: estava junto à muralha do Terreiro do Paço. O rio agitado, na maré crescente, batia tristemente na escuridão, contra as escadas do Cais; entre os botes amarrados, a água tinha tenebrosidades frias; vultos de navios faziam na noite escura redobramentos de sombras, e aqui, além, num mastro, tremulava um fanal mortiço. — Era só subir ao parapeito, saltar, estava livre... Seria a agonia de um momento, uma sufocação estrebuchada, goles de água engolidos — e a paz!... Então pareceu-lhe que estava morto já, que o encontravam inchado, verde, todo coberto de lodo: reconhecê-lo-iam e o mistério dramático da sua morte encheria os jornais, dar-lhe— ia uma trágica celebridade!... Os Esmaltes e Jóias seriam lidos: procurar-se-ia neles o segredo da sua resolução, como num documento de amargura; folhetins compará-lo-iam a Chatterton, a Gérard de Nerval... A Concha choraria, a baronesa amaria a sua memória!... E aquela glória em volta do seu cadáver tentava-o estranhamente: porque não? Porque não?... Certos reflexos mais negros da água chamavam-no com intenções de pupilas humanas; reteve-o o horror do frio, a ideia da roupa molhada colada ao corpo e uma vaga inércia, a preguiça de tomar uma resolução tão violenta... E ao mesmo tempo, sentia-se enternecido, com uma saudade romanesca da sua própria existência extinta. E olhava a água, de pé, com a cabeça toda em febre...
Uma voz fina, muito lisboeta, disse ao lado:
— O senhor viu por acaso tirarem-me o chapéu?
Voltou-se como que estremunhado. Era um sujeitinho barrigudo, nédio, de repas grisalhas, que repetiu:
— O senhor viu tirarem-me o chapéu?
— Eu? Não! — disse Artur impaciente.
— Homem, esta! Tinha-me encostado ali... Jantei em casa do Gonçalves, do Gonçalves da Rua dos Retroseiros, há-de conhecer, o Gonçalves, o da Câmara... Jantei com ele, vim depois dar o meu passeio higiénico: sento-me ali um bocado... vem-me uma quebreira, talvez da pinguita do Porto — o Gonçalves tem bom Porto, tem bons vinhos. O sogro é negociante de vinhos... De repente sinto um friozinho na calva: tinham-me tirado o chapéu! O senhor não viu?
— Não vi — disse Artur, afastando-se, furioso com aquele importuno.
Mas o sujeito pôs-se a andar ao lado dele e com gestos curtinhos, a voz muito cantada:
— Homem, esta! Eu não é pelo chapéu, diabos levem o chapéu! É pelo ferro! E que há-de dizer minha senhora? Oh, menino, de onde vens tu sem chapéu? Ora, ora! Se as lojas estivessem abertas! Que eu não é pelos três mil-réis! É porque não estão abertas! Senão ia ao Roxo, está claro que ia ao Roxo. O Roxo conhece-me bem. Mas que ferro! Um chapéu novo! Então não viram! Ir para casa sem chapéu! Sempre vai uma ladroeira pela Baixa! Se fosse o lenço! Bem me importava com o lenço! Mas o chapéu! É o ferro! É o ferro! O senhor não viu?
— Oh, senhor, já lhe disse que não! — E Artur apressava-se, indignado daquela interrupção burlesca à sua trágica meditação.
Mas o sujeito ia-lhe ao lado, querendo acertar o passo pelo dele, loquaz, excitado; acompanhava-o pelo Terreiro do Paço, repetia a história da soneca, falava no jantar do Gonçalves, contou casos de outros roubos, até que à porta do Espanhol, já enervado, desesperado, Artur interrompeu-o:
— Bem, eu moro aqui, adeus!
Mas o outro reteve-o pelo botão do paletot e Artur, imobilizado, teve de o ouvir.
— O senhor compreende, eu sou muito conhecido na Baixa, não posso sair por aí fora sem chapéu. Que há-de dizer minha senhora? Que ela é uma santa: sou casado há vinte e cinco anos e nunca me deu senão gostos. É dos Pereiras, dos Pereiras de Santo Amaro. É das melhores, uma santa! Mas enfim ir para casa sem chapéu! Começa logo a Joaquina — e então a Joaquina! É a criada; boa criada, trabalhadeira... Começa logo: Olha o senhor que vem sem chapéu! Pudera, se mo tiraram. Que eu é pelo ferro!
Artur tinha lágrimas nos olhos. O homem não lhe deixava o botão do paletot: ele recuava para a ombreira da porta, retraía-se; o sujeito seguia-o. Então não se conteve:
— Oh, senhor! Que tenho eu com isso?
— Eu é que tenho, que eu é que fiquei sem o chapéu!
Artur enfureceu-se, bateu com o pé, berrou:
— Mas eu não lhe tirei o chapéu!
O sujeito recuou, assustado, e vendo sem dúvida pouca segurança naquele pátio escuro, saiu vivamente para a rua. Debaixo do candeeiro, acamando as madeixas grisalhas, murmurou desconsoladamente:
— Ora um ferro assim. Aqui vou eu sem chapéu!
Artur entrou no quarto e num desabafo de ira, arremessou o chapéu contra a parede, atirou uma cadeira ao chão com um pontapé e estendeu-se sobre a cama, vestido, prostrado, embrutecido, com a garganta tomada de lágrimas, desejando uma doença que o matasse, um cataclismo, um terramoto... E por fim adormeceu, pensando, mais consolado, que seria ridículo ter-se suicidado, porque se poderia atribuir a sua morte ao desgosto de haver sido abandonado por uma espanhola de bordel!
Acordou ao ruído de argoladas no portão. Sobre a mesa, a vela extinguiu-se no castiçal. Devia ser tarde: o Manuel, ou fora ao Casino ou dormia bêbedo. Outra argolada atroou o pátio. Era talvez a Concha, arrependida, ou o Damião com uma explicação!...
Saltou da cama, correu à varanda:
— Quem é?
— Io — disse uma voz espanhola de mulher. Ainda estremunhado, pareceu-lhe a voz da Concha! E, trémulo, agarrou no castiçal, desceu correndo. Não sabia se a expulsaria ou se a arrebataria para o quarto, devorando-a de beijos... Ao abrir o ferrolho, as palpitações do coração sufocavam-no. A porta rolou — e achou-se defronte de um Aquiles de capacete e luvas brancas, a túnica enxovalhada, o manto escarlate flutuante e um gládio ao lado, que lhe gritou com voz de máscara, ganindo:
— Eh, seu Arturzinho! Eh, pandegazinha!
Artur recuara — e o Aquiles, tirando uma máscara de bigodes retorcidos, mostrou a face luzidia e jovial do Videirinha. Atrás, um pajem, com o gorro equilibrado sobre um penteado complicado, perna roliça, quadris enormes, gralhava:
— Muchas gracias! Y Manuel? Se ha dormido el tio ese / Es usted muy amable, Arturito! Buenas noches! Gracias!
O castiçal tremia na mão de Artur, pálido de desconsolação. E o Videirinha, deixando passar adiante o pajem de quadris roliços:
— Vimos do Trindade — disse ao ouvido de Artur. — A Mercedes fez furor com as perninhas. Olhe-lhe agora as perninhas!
E os olhinhos do Videirinha dilatavam-se numa luxúria parva para o pajem, que sobre as escadas, derreado, içando-se pelo corrimão, mostrava a cinta fina, as enormes redondezas posteriores, uma coxa bojuda e os altos tacões das botinas de cetim verde!

O Manuel acordou-o na manhã seguinte, com uma carta de Oliveira de Azeméis. Abriu-a com um vago susto, pensando que podia ser a notícia do Carneiro ter fugido com os seus últimos quinhentos mil-réis! Era do Vasco da botica e dizia:

«Meu prezado amigo:
Sua tia Sabina está mal, mesmo muito mal. Diz o Dr. Azevedo que está por dias e a pobre senhora teima em ver o meu amigo. Conta os dias e as horas e só pede a Deus que a não leve, sem que volte «o seu menino». Pode o meu prezado amigo imaginar quanto isto nos aflige e contamos que venha quanto antes, para os fins competentes.
Creia, meu prezado amigo, na estima do
Vasco da Conceição Pedroso.»

A tia Sabina a morrer! Santo Deus! Era o único coração que o amava, que se ia também!
Saltou da cama, gritou pela conta do hotel. Pagou-a — restavam-lhe três libras, era o bastante para a jornada e fazia à pressa, muito comovido, a sua mala, quando Melchior apareceu.
— Vou-me embora! A minha tia está muito mal!
Melchior ficou desapontado.
— Ora! E eu que o vinha buscar para irmos ao baile do D. Maria!
Artur mostrou-lhe a carta do Vasco:
— Veja você! Vou esta noite...
Mas que diabo, não corria pressa — dizia Melchior. Não era um perigo urgente, podia muito bem partir na manhã seguinte. Era ridículo ir na terça-feira de Entrudo. Quanto mais ele, que nunca vira o Entrudo em Lisboa!... Passava a noite no baile e metia-se no comboio da manhã. E vendo que Artur continuava a arrumar a roupa, apressadamente:
— Sabe você porque queria que fôssemos ao D. Maria? Porque temos lá a Concha esta noite! Vi agora o desavergonhado do Manolo a falar com o bilheteiro. Estava a arranjar camarote, o pulha! Eu queria que lá fôssemos, para passear-lhes diante da cara, a rir, a falar de mulheres, a mostrar uma indiferença... Que ela estoira de raiva!
Artur torcia o buço, olhando o baú; vinha-lhe um desejo furioso de rever a Concha, de a insultar pelo desprezo, valsar com outras espanholas, mostrar que nem amuava, nem se afligia, nem chorava, mas que folgava como um boi solto! Disse com uma voz ambígua:
— Ele, com efeito, tanto faz eu estar à noite ou de manhã...
— Está claro! — exclamou Melchior.
Artur viu de repente, longe, em Oliveira, a face da tia Sabina, com uma palidez de agonia, voltando-se ansiosamente para a porta por onde ele devia aparecer...
— Fazemos um jantarzinho chic, carregamo-nos, e viva a folia! Por um resto de senso moral, Artur tentou resistir:
— O diabo é o dinheiro!
— Que dinheiro? Para jantar, teatro, uns grogues, ponha uma libra. O que tem Você? Três libras? Restam-lhe pois duas. É de sobra para a jornada...
Mas Artur necessitava uma razão mais forte, de ordem moral; foi Melchior quem lha forneceu, dizendo:
— E até pode fazer mal à pobre senhora, você aparecer assim de repente...
Era verdade, era isso! Podia-lhe fazer mal. Mandaria primeiro um telegrama a dizer que ia... Boa ideia a do Melchior!
E de tarde — depois de terem visto, no alto do Chiado, o enfarinhamento pândego das pessoas da «primeira sociedade», foram jantar ao Central, concordando que a ida de Artur, nessa noite, «podia matar a pobre velha».

Não encontraram a Concha no D. Maria, mas Artur, que bebera abundantemente «para se pôr à altura», segundo a frase de Melchior, tinha agora o desejo irritado de a ver. Foram ao Trindade, depois a S. Carlos. Sondavam os camarotes com o binóculo: viram a Paca, a Lola, a Carmen, penteados que denunciavam andaluzas, mas não a viram a ela!
— Que o diabo a carregue! — disse Melchior com ira. — Está no choco com o canalha do federalista. Vamos ver as cancanistas ao Casino — e a Concha que vá à...
E atravessando para o Casino, praguejava alto de indignação.
A fachada do Casino flamejava. Um grupo de gente pobre estacionava à porta, com olhares de urna inveja triste para as janelas alumiadas e sonoras, para as máscaras apressadas. Os dominós de paninho mostravam à extremidade das mangas mãos grossas de operários e por baixo, pedaços de calças pelintras sobre botas cambadas; sons de instrumentos de metal sobressaíam em cima, vagamente, no brouhaha contínuo e no rumor do soalho batido.
No bengaleiro encontraram Carvalhosa, com o jovial deputado Abreu, de fala algarvia, que depositavam as badines.
— Vem-se à Saturnal — disse pretensiosamente o Carvalhosa.
— Às cancanistas! — exclamou Melchior, já excitado pelo ruído do baile.
— Perneemos! Perneemos! — ganiu aflautadamente e de um modo espremido o ilustre Abreu, da maioria, que parecia avinhado.
Subiram. O salão estava cheio, abafado, de um calor morno que parecia feito de exalações de suor. A luz crua dos lustres de gás feria as cores claras e duras das paredes, da decoração, e ressaltava, fazendo flutuar uma radiação quase espessa. No estrado, o regente agitava furiosamente a batuta, impelindo as vagas estridentes de uma instrumentação grosseira — e uma multidão de paletots, de chapéus altos, de dorsos curvados numa curiosidade sôfrega, concentrava-se em volta do can-can. Artur, excitado, penetrou por entre a massa de gente e esganiçando o pescoço, em bicos de pés, conseguiu ver as francesas: eram quatro e destacavam-se pelos cabelos loiros cor de manteiga; uma delas, baixinha, roliça, vestida de marinheiro, com o chapéu de oleado para a nuca, o pescoço papudo à mostra, os quadris enormes apertados a estalar numa calça branca, saracoteava-se com movimentos que lhe faziam saltar os seios flácidos na camisola azul; outra, leve, esguia, endemoninhada, vestida à húngara, pulava com grandes gestos de magricela, batendo furiosamente o soalho com os altos tacões das botas orladas de peles; uma terceira que estava mascarada de vivandeira, parecia pesada, velha, meneando-se por dever, gravemente; mas a mais admirada era uma bacante, uma grande loira de formas soberbas, que punha nos olhos em redor um vago brilho de concupiscência burguesa. Trabalhavam em fila, numa quadrilha, com quatro mariolas — um pierrot que parecia desengonçado; um chicard que fazia flutuar as abas enormes da casaca grotesca, apanhando-as com gestos torpes, lançando-as para o enorme nariz de papelão com dois tufos de estopa loira sob as ventas; um homenzinho roliço, com um capacete de bombeiro de onde subia um longo penacho escarlate; e o último, um amador português, que trazia um dominó de paninho, e já sem fôlego, debatendo-se como doido, com o capuz caído, mostrava uma guedelha suja, toda empastada de transpiração. Em redor gozava-se. Havia nos rostos uma dilatação lúbrica, hílare, e bravos estalavam às pernadas mais arremessadas. As cabeças apertavam-se na admiração babosa do chic estrangeiro e até velhotes, de lábio pendente, arregalavam olhares que lambiam as formas das pernas, dos peitos, a cor dos cabelos. Trocistas avinhados excitavam as bailarinas com gritos: eh! eh! viva! larga! A bacante, sobretudo, entusiasmava o público: como o tirso a embaraçava, tinha-o posto nos braços de um sujeito gordo, de lunetas de oiro, que o conservava, imóvel, com respeito e orgulho. Os braços livres, a criatura delirou: adiantava-se com as mãos na cinta, o peito para diante, os seios em relevo, com um gingar frenético dos quadris, e baloiçando-se, atirava as pernas até ao penacho do bombeiro, que sacudia os braços como um boneco epiléptico, dando ehs! agudos! Só a igualava o chicard: adiantava-se de esguelha, atirando para fora os quadris, num arqueado canalha, agitando os cotovelos furiosamente, com movimentos torpes do ventre: recebia no queixo o sapato do marinheiro, redondo como uma pata, e como ferido, atirava as mãos para o chão, dava uma cabriola, repulava sobre os pés — e então, entre uma sussurração de deleite em redor, os quatro pares enlaçando-se, redemoinhavam num galope desesperado.
Mas o bombo bateu os compassos finais — e o can-can terminou entre uma vozearia, um estalar de palmas. A sala ficou logo cheia até aos cantos de uma multidão que se mexia devagar, como uma massa mal decomposta. As francesas, arquejantes, eram seguidas de grupos sôfregos, apaixonados e em redor da bacante, para a tocar, apalpar, a ver de perto, havia empurrões, pragas. Um sujeito, não se contendo, agarrou-lhe as tranças: a criatura, furiosa, deu-lhe uma bofetada — houve alarido, e um polícia sonolento, descolando-se da ombreira da porta, adiantou-se, rolando os bugalhos dos olhos prateados e imbecis.
Artur errava por entre a gente. Havia uma poeirada suspensa no ar num cheiro acre de suor e de paninho tingido; dominós entreabertos deixavam ver calças ignóbeis. Toda a prostituição barata mostrava as formas de uma gordura balofa ou de uma magreza esfomeada: havia vivandeiras, noites com véus de crepes, pajens, criaturas cobertas de vestuários confusos de uma pelintrice triste; os braços tinham os cotovelos coçados, calejados da posição habitual, debruçada nas varandas; falava-se com uma excitação ansiosa, estonteada, bestial; bêbedos provocavam questões, e dos pares unidos sentiam-se subir as paixões mórbidas e brutais do bordel.
Quase sufocado, Artur veio atirar-se para o sofá, no patamar. A multidão passava constantemente, com um arrastar pesado de solas; gente abafada abanava-se, vozes de máscaras ganiam, e nas salas de jogo, por vezes, o pião chinês em movimento punha no ar o seu grande zumbido surdo.
— Isto está brilhante! — veio-lhe dizer Melchior com os olhos excitados. — Vamos   nós mascarar-nos, menino!
Estava todo orgulhoso por ter passeado a bacante pelo braço: prometera-lhe uma local. Falou da ceia, «uma grande orgia» e pedindo meia libra a Artur para fazer face aos grogues, desapareceu.
O Carvalhosa que passava com as mãos enterradas nos bolsos, parou diante de Artur:— Então, poeta do ideal, aqui neste covil da luxúria?
Artur sorriu, lisonjeado.
— Perneemos! Perneemos! — gania o Abreu, da maioria, que seguia atrás, devagar, aprumando-se com esforço, satisfeito de si, e que parecia não poder extrair outras palavras do cérebro embrutecido.
Artur sentiu então um desejo de movimento, de alegria, de troça. Desceu ao café a aquecer-se com um grogue.
As mesas do botequim estavam cheias, numa algazarra: dominós desmascarados absorviam cabazes, grogues; as vozes agudas dos criados retiniam; bengalas furiosas, batendo no mármore das mesas, reclamando álcool; e os pares, amancebados por uma noite, beijocavam-se sem pudor. Artur não pôde obter o seu grogue — mas o cheiro de fêmea, os tons dos ombros nus, o vapor quente dos grogues com rodelas de limão — excitaram-no, deram-lhe uma vibração de lubricidade. E ia procurar o Melchior para se mascararem, quando o viu aparecer com a bacante pelo braço, rubro de vaidade, o peito alteado.
Então, como o Melchior conhecia o criado, o Bento, obtiveram, ao canto de uma mesa, três cognacs, e o localista apresentou Artur à bacante, como «um grande poeta». Estavam cercados de uma fumaraça de cigarros suspensa no ar morno; sentada num mocho, com as pernas magníficas estendidas, a pele de tigre caída sobre a linha dos rins, numa atitude orgulhosa, a bacante escutava vagamente os discursos de Melchior, que num francês medonho lhe fazia declarações. Os seus olhos eram de um pardo-escuro, grandes, duros, e os lábios tão vermelhos que pareciam sanguinolentos; havia nos seus membros fortes, nervosos, alguma coisa de ondulante, de vibrante, que lembrava os movimentos de um tigre. Bebendo o seu grogue, erguia muito o copo, deitando a cabeça para trás, pondo em relevo a linha da garganta muito branca, de uma brancura de loira, e as formas rijas e soberbas do seio. Artur admirava-a, cheio de desejo. Ela fitou-o, passou-lhe negligentemente os dedos pela face e àquele contacto, sentiu da nuca aos calcanhares uma vibração de concupiscência: o seu vestuário pagão excitava-o, dando-lhe vagas ideias de mitologias clássicas que o faziam pensar em Baco, levado num carro atrelado de tigres, e nos mistérios dos bosques sagrados, onde bacantes, por um céu de tempestade, se apossam de um poeta de membros de efebo, e o deixam exausto sob carícias devoradoras, ao som irritante de tamborins. Não se atrevia a falar-lhe — e fumava, comendo-a com os olhos acesos. Em redor, a algazarra aturdia: havia copos quebrados; uma altercação pôs a uma mesa um delírio de berros e dois indivíduos engalfinhados rolaram no chão: uma mulher gania; dois municipais intervieram com uma brutalidade pretensiosa.
Mas Melchior insistia com a bacante para dançarem uma polca. Falava-lhe com os olhos arregalados, roçando-se por ela, todo tonto do cheiro das suas formas fortes. Ela enfastiou-se e repelindo o cognac.
— Assez, mon bonhomme, assez!
Levantou-se, agarrou o braço de Artur e com uma pirueta, arrastou-o:
— Il m'embête ce gros là!
E deixaram Melchior, furioso, vasculhando as algibeiras à procura de troco para o Bento, rosnando obscenidades.
A bacante levara Artur para o salão de entrada, onde espelhos alternavam com arbustos numa decoração pelintra. Quis saber o nome dele, e numa risada:
— Arthur! J'ai trouvé un Arthur! C'est mon Arthur!...
E passeava ao comprido do salão, junto dos espelhos para onde lançava a cada momento o olhar, com movimentos lentos, ondulados, que lembravam sempre a Artur o andar de um tigre. E tinha uma sensação estranha que o entontecia, lhe fazia perder o sentimento real da vida, do lugar em que estava — vendo passar, no fundo azulado dos espelhos, o seu paletot escuro junto àquele corpo de bacante clássica.
Mas ela declarou-se arrepiada, encolhia-se no seu maillot e pediu a Artur outro grogue, chamando-lhe mon chéri. Cheio de vaidade, ele não duvidou que lhe inspirara um capricho e voltaram ao botequim. A bacante bebeu o grogue de um trago, sem uma careta: no seu olhar flutuava um embaciado de embriaguez e o seu queixo grosso dava à sua expressão uma intenção bestial. Quando Artur pagou o grogue, ela tomou todo o troco e atirou-o negligentemente ao criado, que se curvou em dois, dizendo:
— Obrigado à Madama.
Mas a bacante queria falar à outra francesa, ao marinheiro, que a uma mesa próxima, entre homens, cantarolava: «Quand les canards s'en vont à l'eau», com uma voz nasal e canalha que extasiava caixeiros inflamados; e Artur, aproveitando esse instante, correu a alugar um dominó. Voltou entusiasmado, embrulhado no largo vestido de paninho que lhe comunicava pelo seu cheiro de Carnaval, uma petulância de máscara.
Vendo Carvalhosa, agarrou-se a ele, fê-lo rolar, gritando-lhe ao ouvido, com uivos:
— Eh! ilustre orador!
O deputado repeliu-o com tédio:
— Eh, bruto!
Artur, um pouco bêbedo, ia injuriá-lo, enumerar as tolices dos seus discursos, vingar-se de todas as amarguras que ele lhe causara, quando viu passar a bacante com um sujeito de jaquetão que empunhava uma bengala de castão homicida.
Seguiu-a pela escada, desesperado, com um ciúme violento. O do jaquetão passava-lhe o braço pela cinta, pousando-lhe a mão grossa e escura sobre os rins, falando-lhe no pescoço. Artur sentia um desejo agudo de o insultar, arrebatar-lhe a bacante, mas receava o bengalão, facadas de fadistas, os municipais. E, muito contrariado, torcia o forro das algibeiras, sem uma decisão, rondando em volta dela — quando um polícia, aproximando-se do sujeito de jaquetão, lhe fez uma observação sobre a bengala. O homem desculpou-se e desceu rapidamente ao bengaleiro. Então a bacante, abrindo molemente os braços, gritou com uma voz avinhada:
— J'ai perdu mon Arthur!...
Ele precipitou-se — e como a orquestra rompera numa polca, lançaram-se na sala, enlaçados. Era a primeira vez que Artur dançava. A bacante, indiferente ao compasso, pulava ao acaso, com grandes pernadas, arrastando-o, levantando-o quase do chão, colando-o contra si, soprando alto, com o olhar doido. Artur agarrava-se a ela, todo excitado de desejo: a sala parecia-lhe oscilar vagamente, e as cabeças dos pares — guedelhas, capuzes de dominó, capacetes, chapéus de camponesas — agitando-se em volta dele num ritmo pulado, estonteavam-no.
— Basta! Basta! — dizia.
Ela não o escutava, muito lançada: a pele de tigre despegou-se-lhe dos ombros — atirou-a a um sujeito, que, boquiaberto, a admirava; e livre, com o seu grande corpo todo em relevo, ia em reviravoltas furiosas, pateando o soalho sonoro. Artur julgava tê-la toda nua nos braços — e com a bestialidade do desejo misturando-se ao estonteamento das voltas, sentia-se desmaiar, e parecia-lhe, um pouco enjoado do grogue, que era sobre o seu estômago que o tambor ressoava.
Pararam, arquejantes. A bacante queria beber, e desceram as escadas de rajada, acotovelando gente grave.
Encontraram Melchior abancado com uma vivandeira magrinha, que parecia prudente e metódica, e os dois amigos, depois de terem consultado a um canto sobre os fundos de que dispunham, decidiram cear num gabinete.
Abancaram a uma mesa. Sobre a toalha, já toda manchada de vinho, uma espinha de linguado arrastava. A bacante, a arquejar, a grande massa dos cabelos descomposta, atirara-se para o sofá de estofo esgarçado e torcendo os braços reclamava Artur. Ele atirou-se de joelhos, disse-lhe frases líricas, queria levá-la já e oferecia-lhe no Espanhol o lugar, a posição da Concha. Ela ria do seu francês, mas jurava que o adorava.
— Je t'adore! — e ficava com a boca aberta, prolongando as sílabas num idiotismo avinhado.
Examinou-o então pela primeira vez, quis saber se era sólido: apalpou-lhe os braços, a barriga das pernas; depois expôs as suas belezas, contou que fora modelo, e agarrando Artur pelo pescoço, rolou-se com ele pelo divã. A vivandeira, com os beiços franzidos, parecia escandalizada. Além disso, Melchior esquecia-a, roçando-se pela bacante, com os olhos acesos, furtando-lhe beijos no pescoço. A vivandeira por fim enfadou-se:
— O que os senhores quiserem, menos indecências!
E como o Bento entrava com os bifes de cebolada, abancaram. A ceia foi longa. A bacante, que misturava cognac no champagne, tinha uma loquacidade doida: cantou cançonetas obscenas, declarou-se republicana, deblaterou contra a religião. De resto, dizia, em Paris tinha carruagens e os seus amantes eram príncipes. Mas o que ela queria agora, declarou, era a orgia, o vício, o crime! E ria, beijava Artur, esguedelhava Melchior, dizia finezas à vivandeira, que a olhava sem compreender, fascinada da verve, chocada da troça.
Mas sem razão a bacante enfureceu-se: os seus olhos tinham uma violência escura, amaldiçoou a sua mãe e gabou-se de ter, em Marselha, esfaqueado um amante... Agarrou mesmo uma faca e ameaçou Artur.
Melchior, pálido, começava a assustar-se:
— Tolices não valem, tolices não valem!
E a vivandeira, apanhando rapidamente o kepi, o barrilinho e as luvas, dizia:
— Eu em alhadas não me quero achar; sou uma rapariga sossegada. Os senhores podem tirar informações...
Mas a bacante, subitamente calma, começou a comer com uma gula afectada, rindo sem motivo, metendo os dedos no molho, limpando-os ao cabelo de Artur. E Melchior, tranquilo, recomeçou a gozar.
— Hem, meu amigo, bela pândega... E queria você ir para Oliveira de Azeméis!
Artur sentiu uma pancada no coração: viu de repente a casa, lá longe, o quarto da tia Sabina e a face agonizante sobre o travesseiro de folhos engomados; uma campainha tocava na rua, vozes entoavam o Bendito: era o padre Joaquim com os Sacramentos, seguido de vizinhos de opa escarlate... E no quarto, cheio do terror da morte e dos aparatos da agonia, corriam as lágrimas de Ricardina e soavam lugubremente as orações da Joana... Para expulsar esta alucinação, bebeu de um trago um copo de cognac. E quando saíram do gabinete, cambaleava, e jurava à bacante, com a voz entaramelada, que havia de casar com ela.
Ao chegarem ao salão de baile, a quadrilha final começava e o can-can electrizante de Orphée aux Enfers fez-lhe reviver a excitação. O baile tomava o aspecto de uma troça bêbeda: pessoas desmascaradas tinham expressões de fadiga imbecil, outras agitavam-se, bruscas, de mau humor, violentas; só alguns, roucos de gritar, iam ainda balbuciando pilhérias. Artur, diante da bacante, debatia-se furiosamente: o álcool dava-lhe a raiva dos movimentos convulsivos: punha uma cólera no bater dos pés, um frenesi no agitar dos braços; o capuz do dominó caíra-lhe, o botão do colarinho saltara, e com a face lívida, manchada, suada, torcia-se numa demência, soltando ganidos. Mas ao som estridente da orquestra, o galope começou: era uma confusão amarfanhada de corpos engalfinhados, arremessando-se desengonçadamente, com pulos grotescos, patadas desesperadas no soalho... Uma poeirada sufocava, e o regente, com o colete repuxado, a camisa aparecendo-lhe na cinta, agitava a batuta, impelindo os agudos. A espaços, nos ritmos mais pausados, toda aquela grossa multidão se balançava, tomando fôlego, como uma vasta aspiração arquejante... Mas logo os compassos electrizantes estalavam: o regente desengonçava-se, as faces inchadas sopravam nos clarinetes, e os estridores das flautas e os uivos das rabecas partiam, impelindo o galope, como chicotadas sonoras atiradas aos rins da canalha. Todos se arremessavam. Caudas de vestidos descosiam-se, tranças postiças caíam sobre as costas penduradas por um gancho, vozes agudas gritavam numa exaltação impetuosa; e turcos, Aquiles, dominós, pastorinhas, fadistas, prostitutas e bêbedos, cambaleantes — iam num tropel de troça esbandalhada, com um desengonçamento demente, num turbilhão circular — enquanto o ponteiro negro já marcava, gravemente, a primeira hora triste de Quarta-feira de Cinzas.
A última sensação clara de Artur foi a sua entrada numa tipóia, com uma mulher: doido de álcool, abraçado a ela, num frenesi, procurava mordê-la; ela repelia-o, socava— o; ele arremessava-se e lutavam, esguedelhando-se, enquanto a tipóia rolava a trote largo, na rua já clara, onde as leiteiras iam tocando as suas vacas.
Quando acordou, ao meio-dia, achava-se deitado num cubículo escuro, de cheiro infecto. O seu olhar estremunhado, vagamente inconsciente, fixava-se numa cortina escarlate, que a luz de uma saleta, fora, traspassava. Estava em mangas de camisa, com as botas calçadas. Ao seu lado, uma mulher estirada ressonava alto. Ficou um momento entorpecido, sem memória, ouvindo, fora, alguém mexer em louça, um arrastar de chinelas. Então o baile, o can-can, a bacante, reviu tudo nitidamente, como na véspera, à luz crua do gás... Sentia um mau gosto na boca, uma dor lancinante na nuca e tinha a certeza, sem a ver, que a criatura a seu lado não era a bacante e devia ser medonha, suja, com um hálito pestífero. Como viera ali parar, àquele catre de que sentia o enxergão de palha mole? E quase tinha medo de saber, de ver: achava-se bem naquela escuridão, com todo o corpo derreado, uma sonolência vaga errando-lhe no cérebro, nas pálpebras. E então, imóvel, com os olhos cerrados, como se nas trevas bestiais em que o seu espírito estava ainda afogado uma aurora espiritual se levantasse devagar, começou a recordar, a ver diante de si toda uma paisagem do Mondego, por uma tarde de Verão: nos salgueiros espessos, onde a sombra está enleada e adormecida, os pássaros chilram alegremente; nas colinas de uma doçura suave de linhas, casas branquejam e sob o céu de um azul-claro, transparente, o rio corre, com um vagar saudoso, numa toalha límpida em que pedaços de areia reluzem; alguma coisa de doce, discreto, terno, erra no ar subtil, e, devagar, um bote onde negrejam batinas vem encostar debaixo dos chorões, junto à entrada melancólica da Quinta das Lágrimas... Via-se ali, passeando com amigos, na doçura pacífica da tarde clara, falando de poetas, recitando versos, ou então, calado, perdido nalgum cismar romântico e nobre. Depois, via um pedaço da estrada de Oliveira de Azeméis a Ovar, onde, no fundo de terras baixas, um regato corre, entre altas ervas, todo escurecido pela sombra que derramam as árvores debruçadas; uma frescura eleva-se da água, da erva verde... E sentava-se ali, com um livro, cheio do enternecimento que lhe davam aquelas florescências frescas e as águas humildes... Patas de insectos roçavam a superfície do ribeiro quase parado; os musgos cobriam as pedras do seu aveludado tenro e florzinhas azuis, roxas, tímidas, pequeninas, exalavam um vago aroma agreste; madressilvas, agitadas num movimento do ar, faziam errar o seu perfume adocicado; um silêncio doce, em que só se ouvia o gotejar do fio de água, dava um abrigo terno às almas delicadas — e a sua dilatava-se, enchendo-se da serenidade das coisas, cobrindo-se de transparências, e exalando como um aroma próprio, uma simpatia ascendente.
De repente, a mulher a seu lado saltou para o chão e com passadas moles que faziam ranger o soalho, foi beber água ao jarro: espreguiçou-se, equilibrando-se ainda mal nos pés e correu a cortina escarlate: uma luz larga entrou, bateu nos olhos de Artur — e ficaram pasmados um para o outro, sem se conhecerem, tristes.
Artur, sem uma palavra, saltara também para o chão e enfiava o paletot que ficara aos pés da cama, enquanto a mulher apertava atabalhoadamente uma saia, com tonturas ainda, que a faziam, por momentos, encostar a mão à parede, soprando com força.
Artur tinha agora uma curiosidade, em que havia uma repugnância, de saber se tinha beijado aqueles beiços, ainda roxos do vinho da véspera. e tocado aquele corpo mole, caído, gasto, que exalava um cheiro acre; mas não se atreveu a perguntar. Não disseram uma palavra: a mulher vestia-se à pressa — e Artur, remexendo nos bolsos, atirou para a mesa, a pagar a hospitalidade, os seus últimos dez tostões. Era tudo o que possuía. Depois procurou o chapéu, mas não aparecia; e a mulher, então, com uma voz rouca, como se lhe faltasse a campainha da laringe, disse:
— O senhor deixou-o talvez no baile, no alugador de fatos...
E como ela mesmo se mascarara de homem, pôde dar a Artur o chapéu que usara — um chapéu desabado, imundo, sem fita, e todo pisado de solas de botas.

Quando entrou no Espanhol, ouviu um murmúrio de vozes no patamar, ao pé da janela do saguão. Era o Manuel que parecia de maus humores, falando a duas mulheres vestidas de preto. Mas vendo Artur:
— Olhe — disse logo à mais idosa — fale com este senhor. Este é um amigo. Este lhe dirá. A mulher ergueu para Artur um rosto pálido, macerado, que fora bonito, e onde se sentia a passagem constante de lágrimas e o cansaço das vigílias.
— É a mulher do Videirinha — disse o Manuel, encolhendo os ombros.
A criatura pôs de leve a mão no braço de Artur, como para o reter, para o implorar — e com uma voz triste:
— Se V. Exª o conhece, podia-lhe ir dizer... Há três dias que me não aparece. Vive aqui com uma mulher... Eu não tenho em casa um bocado de pão, nada que empenhar! Mato-me a trabalhar... — Soluços sufocaram-na um momento, e vendo Artur olhar para a outra, a mais nova, com uma face doce e triste: — E a minha filha... — disse. — Ele não me dá um real do que ganha no emprego! Eu não quero importunar... Queria só que ele me desse alguma coisa, pouco que fosse, eu poupava-o... Só para ter um bocado de pão em casa...
Artur rebuscava maquinalmente nas algibeiras. Ela tocou-lhe outra vez no braço, com dignidade:
— Nós não pedimos esmola... Queria que V. Exª lhe falasse, lhe dissesse que estamos aqui. Dez tostões que fossem... — As lágrimas corriam-lhe ao comprido do nariz amarelo e afilado.
O Manuel então interveio:
— Já lhe disse a usted: o Videirinha está a dormir! Não gosta que o vão incomodar.
Já usted vê!
— Mas sou sua mulher, é a sua filha — disse ela toda trémula de indignação, de vergonha.
— Já usted vê! Se o Videirinha não gosta...
A rapariga, então, puxou pelo xaile da mãe e com a voz comprimida, toda desfalecida do vexame:
— Deixe lá, minha mãe, vamos...
A ideia daquela criatura bonita e honesta com fome, deu a Artur um fluxo de indignação:
— Espere um instante — disse.
Galgou as escadas, foi bater com força à porta da Mercedes.
— Que é? — perguntou a voz do Videirinha. E imediatamente, dando volta à chave, apareceu estremunhado, a face inchada, gordinho, em camisa, mostrando o peito cabeludo e grisalho, medonho.
— É a sua mulher, a sua filha — disse Artur que odiou nesse momento aquela figura roliça e imbecil.
Videirinha fez um grande gesto:
— Fale baixo, amiguinho! A Mercedinha está a dormir! Veio muito cansadinha!
Que querem elas, que querem elas? Nem pode uma pessoa gozar a vidinha em sossego!
— Querem um pedaço de pão — disse Artur, que sentia desejos de o esbofetear.
O Videirinha coçou a calva. Parecia furioso: deu uma punhada colérica na coxa e em bicos de pés entrou no quarto. A janela cerrada tinha as frestas desenhadas pela luz de fora; na penumbra, vagas brancuras de saias destacavam-se, e saía de dentro um cheiro a abafado, a pó-de-arroz e a deboche.
Videirinha, sempre em bicos de pés, voltou então, meteu quatro tostões na mão de Artur e agarrando-lhe a manga, ao ouvido:
— Veja se as empurra para fora, amiguinho! Que se a Mercedinha sabe! E ela então que embirra com cenas! Está a dormir como um anjinho... Viemos do D. Maria às três horas. Fomos cear ao Mata... E com a pinguinha do champagne, ela ficou!... Ah, que noite, amiguinho, que noite!
E puxava-lhe pela manga, ávido de contar... Artur desprendeu-se, enojado.
Quando a mulher, em baixo, recebeu os quatro tostões, teve-os um momento na mão aberta, com um sorriso amargo. Às faces pálidas da filha subiu uma cor de vergonha.
— Eu sinto... — balbuciou Artur.
— Deus lho pague –. disse ela simplesmente.
— Chega para um bocado de pão.
Manuel passava reflectidamente a mão pelo queixo:
— Já usted vê! O Videirinha tem bom fundo... É baboso pela pequena, é o que é.
Sem uma palavra as duas mulheres cumprimentaram Artur, e muito juntas, como para se esconderem uma na outra, encolhidas nos seus pobres vestidos negros, desceram sem ruído.
Artur subiu ao quarto, empurrou as portadas abertas da janela, como se a presença de outras fachadas, da rua, da cidade, lhe causassem asco. Despiu com nojo o fato amarfanhado do baile e da cama da outra — e daí a pouco, prostrado, dormia.
Quando acordou, o quarto estava escuro, como se, fora, já tivesse caído o crepúsculo: havia um grande silêncio no hotel. Então, vindo do lado do Rossio, ouviu um rufar de tambores, compassado, monótono, em que se sentia o crepe que os cobria. Escutou, meio erguido: o som, distante, parecia adiantar-se muito devagar; instrumentos de metal, como que velados pela distância, ressoavam em compassos lentos de marcha fúnebre. Aquilo vinha com uma lentidão aparatosa de funeral. E então, de repente, pensou na tia Sabina, lá longe: talvez àquela hora um enterro pobre saísse da casa, com a cruz alçada adiante, e o caixão curto da velha pequenina levado pelos irmãos da Misericórdia!... E ele sem um real para partir!
Os sons fúnebres aproximavam-se. Saltou da cama, cobriu-se à pressa e correu à janela: uma tarde parda, enevoada, triste, pesava sobre a cidade. Gente vestida de escuro debruçava-se pelas varandas; e ao longe, no Rossio, negrejava uma multidão. No espaço livre da rua, lajeado de pedrinhas miúdas, duas fileiras de tochas, de chamas tristes na tarde nublada, caminhavam em préstito; tons roxos de opas sucediam-se, e ao fundo, com um balanço leve, a impulsos ligeiros, uma cruz negra, com um enorme Cristo branco crucificado, adiantava-se, alta no ar: distinguiam-se os longos cabelos lúgubres caindo sob a coroa de espinhos, a toalha alva enrolada à cinta... E sem cessar, com tonalidades sombrias de tambores, a marcha fúnebre, abafadamente, ressoava. Era a Procissão de Cinzas.
Então a troça pandilha do Casino flamejou um momento na sua memória: teve como que a sensação funerária de uma grande penitência espalhada na cidade ainda quente do deboche do Entrudo, nas fachadas ainda mascaradas de ovos, nas faces ainda amarelas das noitadas, no ar, onde devia flutuar ainda a poeirada fina dos cartuchos de pós. Na sua sacada, em baixo, a Mercedinha, com uma manta vermelha pela cabeça, ajoelhava compungidamente. Então sentiu o desejo de se entristecer também, de se misturar ao arrependimento da cidade, de receber de perto as emanações expiatórias dos andores e das tochas. Enfiou à pressa um paletot, calçou os botins, e quase correndo, foi postar-se à esquina, penetrando na massa de gente. O pálio roxo passava entre lâmpadas erguidas alto; de— baixo, um grupo, onde reluziam oiros de capas e branquejavam sobrepelizes, adiantava-se com pompa entre um fumo leve de incenso; os compassos funerários da marcha espalhavam-se na tarde triste, sobre as cabeças curvadas da população ajoelhada. E Artur, dobrado, penetrado de um vago terror, sentindo passar alguma coisa de Deus, pediu do fundo da sua alma, seguindo com os olhos o Cristo crucificado, que a tia Sabina não morresse!
Nessa noite foi ao «Século» procurar Melchior. Tinha uma pressa inquieta, aflita, de deixar Lisboa. A cidade causava-lhe horror, e aspirava a Oliveira de Azeméis, como um homem prostrado de cansaço e enlameado da jornada aspira ao recolhimento do seu quarto e ao conforto das suas chinelas. Se Melchior não lhe pudesse dar as dez libras que lhe devia, ao menos que o ajudasse a arranjar dinheiro num agiota!
Melchior porém não estava: escrevera ao Esteves que não podia vir naquela noite.
— Há-de estar ainda a cosê-la — disse o Esteves, interrompendo o seu eterno assobio.
Artur foi a casa dele: a patroa, uma bela pessoa de quarenta anos, «não vira o Melchiorzinho desde o Sábado Gordo».
— Ainda cá não pôs os pés, nem para mudar a camisinha do corpo!
Então Artur, de um café, escreveu uma carta a Meirinho, em que lhe pedia, com circunlóquios afectuosos, o pagamento das dez libras que lhe emprestara. E ele mesmo foi levá-la ao porteiro do Universal, que pareceu admirado de o ver:
— Então por onde se tem andado?
— Estive fora — disse Artur.
— Pois está mais magrinho! Está mais magrinho!
Ao outro dia voltou ao «Século».
— Ainda se não dignou aparecer — disse-lhe logo o Esteves.
Artur sentou-se a esperar por ele, lendo os jornais, ao pé da janela. Lembrava-se vagamente de uma outra manhã, havia meses, em que naquela mesma cadeira esperara também, enquanto Melchior fazia rascunhos de locais! Ele estava então em toda a vibração da esperança: chegava de Oliveira de Azeméis, ia ser célebre pelos seus poemas, ia encontrar-se com a linda senhora do vestido de xadrez, a vida era-lhe fácil, larga, doce — tinha no seu baú, em bons cartuchos, um conto de réis, e, de longe, a amizade da tia Sabina seguia-o... Pobre tia Sabina que, agora, agonizava sem que ele tivesse sete mil-réis para correr a dar-lhe o último beijo! Como tudo mudara! Até o tempo — que nessa outra manhã era luminoso e vivo, e agora aparecia nublado, pardo, lúgubre como o seu coração!
A porta abriu-se e o Saavedra entrou: remexeu negligentemente os jornais, compondo com as mãos calçadas de luvas verdes os vidros da luneta. Teve um adeusinho com os dedos para Artur e passou para o seu gabinete. Ah! Não mudara, aquele! Tinha sempre a mesma face balofa, satisfeita, o mesmo peitilho de camisa lustroso e importante — e seguia na vida imperturbável, contente, escrevendo todas as noites as mesmas banalidades, as mesmas mentiras, naturalmente feliz, como o pintassilgo que chalrava na janela fronteira.
— O Melchior tarda — disse Artur.
E saiu, resolvido a procurar o Meirinho.
Mas não ousava entrar-lhe pelo quarto a pedir-lhe as dez libras. Foi primeiro ao Espanhol ver se tinha respondido à sua carta humilde. Não respondera. Voltou ao Chiado, muito infeliz. Foi duas vezes quase até à porta do Universal, mas um acanhamento enleava-o: adiava — e enfim, reflectindo, para se animar, que a tia Sabina contava os minutos, já à beira da morte — decidiu-se a entrar, muito nervoso. Perguntava por ele ao porteiro quando o viu descer a escada, com o peito alto, a barba correcta, um ar de benevolência, as abas do paletot forrado de seda deitadas para trás, vergando a badine, as mãos muito apertadas em luvas claras. Apenas viu Artur, parou, numa hesitação curta, mas logo, adiantando-se para ele, sem transição, com a fisionomia grave:— Sinto que o cavalheiro se tivesse incomodado por uma bagatela. Nunca imaginei que eu lhe inspirasse tão pouca confiança...
Artur acudiu:
— Pelo amor de Deus! Não é isso. E que estou sem vintém. Quero-me ir embora, a minha tia está muito mal...
Meirinho teve um sorriso incrédulo, amargo:
— Percebo perfeitamente. Receou perder a sua conta... — Fitou o chão, e com uma voz quase solene: — Tenho quarenta e cinco anos, tenho vivido no estrangeiro, tenho visto tudo, sou conhecido — e nunca sofri uma afronta...
— Pelo amor de Deus, Meirinho! Acredite. Eu, era só...
Meirinho curvou-se:
— Bem, se não foi com intenção ofensiva, se foi irreflectidamente, dessas coisas que se fazem à toa, sem antever as consequências — perfeitamente. Não falemos mais nisso. Somos amigos, jantámos muito tempo juntos, fomos ambos à Sociedade — quero conservar de si boas recordações. Não falemos mais nisso... Então, divertiu-se no Carnaval?
— Sim — disse Artur muito vexado — sim, diverti-me.
Meirinho passou a mão pela barba e com as pálpebras meio cerradas:
— Tivemos uma deliciosa soirée costumée em casa da Srª Marquesa de Folhes. Deliciosa!... Eu fui de Henrique IV. Fizeram-me o favor de apreciar, de elogiar. Fazem— me o favor de me estimar...
E ia andando para a porta. Artur, enleado, vermelho, não ousava agora falar em dinheiro.
— Apareça — disse-lhe Meirinho, acendendo o charuto ao fósforo que lhe oferecia o guarda-portão: — Apareça! O Padilhão tem uma imitação nova, soberba! O Gato de Telhado, uma obra-prima!
E desceu a rua, a cabeça alta, o peito erguido, vergastando o ar com a badine.
Artur já não podia partir essa noite se não encontrasse o Melchior! Outro dia perdido!
Por um hábito antigo, deteve-se um momento à porta do Baltresqui: defronte, estacionava um cupé, com um cocheiro grave, correcto, de casacão branco; imóvel junto à portinhola, um trintanário, muito vermelho, acariciava as luvas escuras. Uma senhora comia ao balcão, limpando com o lenço migalhas de folhado: era baixa e grossa e parecia grávida. Quando voltou para o cupé, o caixeiro seguia-a com um embrulho de papel pardo. Uma pobre, então, adiantou-se com a magra mão entendida, uma criança embrulhada no xaile preto: e enquanto a senhora grossa lhe dava dez-réis com um gesto de nojo, Artur pôde ver-lhe as feições: era tão trigueira que parecia mulata, e na sua carinha pequena, de traços amarfanhados, torcidos, os olhinhos pareciam apenas dois buraquinhos negros. Içou-se para o cupé com dificuldade — e a parelha trotou, subindo o Chiado. O caixeiro, que ficara à porta cumprimentando, disse então alto, para dentro, para o balcão:
— A charlotte russe, às cinco horas, para a Srª Baronesa... A S. Bento.
Artur teve um sobressalto:
— Perdão — disse, pondo a mão no braço do caixeiro: — Quem é esta senhora?
— E a Srª Baronesa de Paradas, que mora em S. Bento.
Ficou petrificado. Oh! E fora àquele bicho que enviara o seu livro de versos! Fora para a janela daquele monstro que ele mandara toda a sua alma, na adoração dos seus olhos! Eram as paredes da sua horrível casa que lhe tinham feito bater tão docemente o coração! Caiu-lhe na alma todo o vexame da sua existência: achou-se grotesco — e por falta de sete mil-réis não podia fugir, livrar-se daquela estúpida cidade, onde tudo o torturava agora!
Então, num desespero, voltou ao «Século». Pisava o lajedo da rua com raiva; tinha vontade de empurrar, maltratar as pessoas que passavam ao pé dele com ares pacíficos e satisfeitos!
Odiava agora Lisboa, de um ódio múltiplo, pueril, absurdo. Chegou esfalfado ao «Século». O Melchior ainda não aparecera.
— Eu, a minha ideia — disse tranquilamente Esteves — é que o homem está no Limoeiro!
Veio-lhe então uma fadiga enervada, uma indiferença hostil. Veria sem pestanejar perecer a humanidade. Voltou ao hotel, e jantou só, lugubremente, diante dos dois espanhóis tenebrosos.
À noite, saiu sem destino. Não tinha dinheiro... nem para tomar um café!
Vendo o Teatro de D. Maria iluminado, foi errar um momento no peristilo: leu os cartazes, bebeu um copo de água no botequim e saía com as mãos nos bolsos, cabisbaixo, quando passou diante dele, rápida, uma senhora pequenina, com uma capa branca de teatro, uma grande cauda de seda escura. Reconheceu-a logo: era Ela! Era ela, a senhora do vestido de xadrez! Atrás, com a gola do paletot erguida, vinha o marido, o do bigode loiro, com o leque, o binóculo, um ramo de flores. Exaltado, viu-a subir para as frisas — e então, com a sensação dolorosa de uma facada, veio-lhe a ideia de que nem tinha dinheiro para um bilhete! Rangeu os dentes de raiva! Mas talvez o Melchior já estivesse no «Século». Galgou a rua, arquejando. Não estava... Nem o Esteves, nem o Saavedra, nem ninguém a quem pudesse arrancar cinco tostões! Desceu, como uma pedra que rola, até ao Espanhol, para pedir ao Videirinha. O Manuel, assobiando, levantava a mesa.
— O Videirinha saiu agora mesmo. Já usted vê!
Pensou que a dona do hotel poderia bem emprestar duas placas a quem gastava ali centos de mil-réis! Perguntou por ela.
— A senhora? A senhora está para o Campo Grande com a cunhada.
Então, desesperado, Artur perdeu o pudor, e chegando-se ao Manuel, pondo-lhe a mão no ombro:
— Oh, Manuel, tu tens aí quinze tostões?
O Manuel abriu os braços, desolado:
— Nem um chavo. Tinha dois mil-reizitos, mas dei-os agora mesmo ao Videirinha, para ir à batota. Já usted vê! Se não estava às ordens! Já usted vê!
Maldição! Veio-lhe uma ideia: ir ao Férin, ao livreiro, onde o conheciam, ver se tinham vendido alguns exemplares dos Esmaltes e Jóias. Quando chegou, iam fechar a porta, e com a face abrasada de vergonha, interrogou baixo, à parte, o caixeiro.
A sua voz ansiosa revelava tanta necessidade que o caixeiro deu-se a um grande trabalho, procurando nos livros, desejando encontrar alguns assentamentos; e foi com pesar que o bom rapaz lhe disse:
— Não, não se tem vendido nenhum... Também, têm sido dias de festa...
Voltou ao «Século», pela quarta vez, já envergonhado. Na redacção deserta o gás ardia silenciosamente. Então, suado, sem respiração, com os pés doridos, voltou ao D. Maria. Talvez estivesse alguém conhecido nos camarotes, ou encontrasse o Meirinho, o Padilhão, o Carvalhosa... Pediria dinheiro fosse a quem fosse, mesmo ao Roma! — porque agora, não a podendo ver, afigurava-se-lhe — o quê? tinha a certeza! — que se ela o fitasse um momento o havia de reconhecer, e todo o seu destino mudaria! O amor dela tornar-se-ia a sua força, o seu fim, a sua direcção: voltaria a Lisboa com os seus quinhentos mil-réis, refugiar-se-ia numa trapeira, gastando-os avaramente, tostão a tostão — e trabalhando, fazendo uma grande obra, furaria! E a sua consolação única, naquela existência pobre e laboriosa, seria alguma carta recebida, um olhar de longe, no Chiado, ou uma entrevista rápida, um beijo fugitivo — como outrora Rafael e Elvira! Oh, devia vê-la, com todos os diabos!
O segundo acto começara quando ele foi, humildemente, pedir ao porteiro das cadeiras se lhe dava licença de entrar um momento «para ver um camarote». O homem, grave, no seu boné de galão, abriu o batente verde — e Artur viu-a logo, numa frisa defronte, com o seu perfil pálido e doce que o vestido escuro tornava mais tocante. Todo o seu antigo amor se precipitou na sua alma, agitando todas as sensibilidades passadas, como uma rajada que entra numa sala, agita os papéis, as bambinelas, as franjas do pano da mesa, e dá a tudo uma vibração viva. Ela trazia um medalhão sobre o peito! Uma madeixa fofa, leve, caía-lhe sobre a testa de um polido de marfim! E os seus olhos grandes, doces, negros, fitavam-se sobre o palco. Eram aqueles olhos que ele queria que se voltassem para ele: fixava-os, atraía-os, magnetizava-os, mas eles não se moviam, pregados numa horrível criatura de vestido de seda amarela, que torcia os braços no palco, com esgares de boca. Então sondou a plateia com um olhar que adquirira uma sensibilidade extrema, procurando ansiosamente uma face amiga, conhe— cida. Ninguém. Nos rostos vagamente pasmados, só descobriu o velhote, que em casa de D. Joana Coutinho lamentava a irreligião das massas.
— Viu? — disse o porteiro, baixo.
— Um momento — suplicou Artur.
E fitou-a ainda, com toda a alma nos olhos! Oh, por piedade, que se voltasse um momento! Era a paixão, o sacrifício, o amor, a fé — tudo o que há de doce e elevado — que ali estavam a um canto, por trás do braço do rabecão, a implorar uma coisa bem simples: — que voltasse devagar os olhos para ele. Mas não os voltou. O monstro do vestido amarelo dava brados medonhos. E ela admirava-o, o seu corpete arfava, enquanto o marido, ao lado, catava um a um os pêlos do bigode.
— Então, viu? — disse o porteiro impaciente.
— Obrigado, vi.
Saiu alquebrado, envelhecido. Foi devagar para o hotel, subiu ao seu quarto. E só então, de repente, se lembrou que podia ter levado algum fato a uma casa de penhores! Mas era tarde, sentia-se prostrado, enervado, com um tédio de tudo, um desejo de dormir muito tempo, infindavelmente, numa imobilidade de morte! Atirou-se para cima da cama — e, vencido, começou a chorar baixo, com a cabeça enterrada no travesseiro!
Ao outro dia, enfim, encontrou Melchior na redacção do «Século», que, com o ar compenetrado de uma felicidade secreta, torcia com satisfação os enormes bigodes.
— Onde esteve você, homem? — gritou-lhe Artur.
— No choco — disse Melchior. E não quis dar explicações.
Quando Artur lhe contou as suas aflições e que queria partir por força nessa noite,
Melchior moveu os beiços e coçando a cabeça:
— Homem, eu não tenho agora as dez libras...
— Não falemos nisso, Melchior. O que eu quero, é alguém que me vá pôr no prego uns fatos, as pistolas do Meirinho...
— Pronto, pronto! — exclamou Melchior agarrando o chapéu. — Se é isso, pronto.
Vamos ao Chiado procurar o Rei-Bamba!
Mas não o encontraram: um rapazola coxo disse-lhes que devia estar no Baldanza; foram lá, mas o Gregório, sempre exagerado, jurou pela honra da sua mãe que o Rei fora ao Largo de Camões fazer um recado. No Largo de Camões um cocheiro afirmou tê-lo visto subir — e por sinal, bem torto! — para a Rua de S. Roque. Apanharam-no ao pé de S. Pedro de Alcântara, inteiramente bêbedo, mas grave, misterioso, de falas sepulcrais, escutando com um ar profundo. Prometeu ir ao Espanhol daí a meia hora, buscar a trouxinha. Foi muito pontual — e vinha mais bêbedo. Levou o robe-de-chambre de veludo, a casaca, o binóculo, as pistolas — tudo metido num saco de roupa suja.
Melchior e Artur foram esperá-lo para a porta da Áurea. Quando voltou, passados três quartos de hora, já não podia falar, mas equilibrava-se com dignidade e depositou misteriosamente na mão meio aberta de Artur, um cartucho com onze mil-réis. Recebeu a espórtula e saiu devagar, acabrunhado.
Então, quando sentiu o dinheiro na algibeira, Artur teve subitamente uma vaga saudade enternecida de Lisboa, da vida que deixava. A cidade, coberta de um bom sol, com os seus cartazes nas esquinas, as lojas dos livreiros abertas, as carruagens rolando, parecia-lhe ser o único lugar possível para uma existência inteligente: se não conseguira chamar a atenção da senhora do vestido de xadrez na véspera, poderia ser mais feliz outras vezes! Nunca o Melchior lhe parecera tão afectuoso; e achava, de repente, nas fisionomias que passavam, um vago tom inesperado de simpatia. Comovido, disse:
— Ao menos, pela última vez, jantemos juntos,, Melchior.
O localista só então pareceu compenetrar-se de que Artur partia realmente.
Enterneceu-se. Que ferro! Quando eles começavam a entender-se, a travar amizade, a estimar-se! Foi ele mesmo ajudá-lo a fazer a mala, a embrulhar as botas em jornais. Em baixo, no quarto da Mercedes que tinha a janela aberta, alguém tocava guitarra.
Melchior deu um olhar às paredes, aos móveis e pensando decerto na Concha:
— Ah, quartinho, quartinho!
Artur que acamava com cuidado a sua sobre-casaca azul, suspirou: reunindo agora os objectos dispersos pelo quarto, recebia de cada um a recordação brusca de uma felicidade: um programa do Price lembrou-lhe a primeira noite em que lá fora, para se encontrar com a Concha que viera na companhia da Paca — ainda então não viviam juntos, e amavam-se! Um colarinho da Concha,, trouxe-lhe quase as lágrimas aos olhos: guardou-o devotamente a um canto do baú. E depois,. eram cartas do impressor, o bilhete-de-visita de D. Joana Coutinho, velhos pares de luvas gris-perle!...
O jantar no Cruz foi triste. Que diferença do primeiro jantar no Universal! E vinham-lhe outras recordações daquele Inverno: a pândega ao Clube, as noites de S. Carlos, nas torrinhas, com a Concha... Artur sentia a garganta presa.. E Melchior, lúgubre, só repetiu o paio com ervilhas, porque, disse — «era um prato que lhe fazia bem à alma».
— Mas você volta, Artur?
— Se o drama for, venho aos ensaios!
Como, se o drama for? Isso ficava por conta dele! E Melchior batia compenetradamente no peito. E que não largava mais o empresário! Em quinze dias lá tinha uma resposta em Oliveira de Azeméis!
— E de resto, se sua tia morre e lhe deixa a cheta, temo-lo cá outra vez...
Artur não hesitou em dizer, que, nesse caso, estabelecia-se em Lisboa. E pensava na pobreza da tia Sabina, triste, doce criatura, que o que tinha era coração!
— Lisboa, amigo — disse Melchior resumindo — é o consolozinho da alma! — E escorropichou o copo de termo.
Vieram ao Largo de Camões tomar uma tipóia para os levar a Santa Apolónia. O cocheiro era ainda o Teso.
— Para o Clube, meu amo? — exclamou logo.
— Não; para o Espanhol — disse Artur, satisfeito de ver que o Teso o reconhecera; e aquilo aumentou a sua saudade de Lisboa.
O Chiado, muito claro, estava na sua hora viva, e Artur, direito no assento, ia devorando com os olhos os lugares que amava: a Casa Havanesa, a janela do seu quarto, lá em cima no Universal — que ferro ir-se! — e o Baltresqui, com os lunchs às duas horas, e o Godefroy, onde comprava frasquinhos de feno para a Concha! Ah! O cartaz de S. Carlos fez-lhe morder os beiços de comoção: revia o lustre, o largo palco, os coros; outras carruagens passavam, com librés, indo para lá! — E ele partia!...
— É verdade — disse de repente Melchior — que fez você com a francesa?
— Não sei, homem. Achei-me ao outro dia com um diabo de uma criatura que nunca tinha visto. E você?
Então Melchior estendeu os pés no assento da frente e encolheu-se com gozo, sem responder.
— Diga lá, que fez você?
Melchior, imóvel, soprava o fumo do charuto, numa ruminação túmida de gozo.
— Diga lá, que diabo!
— Regalei a caminha! — soltou por fim.
Mas tinham chegado ao Espanhol. Artur subiu ao quarto — e enquanto o Manuel descia o baú, ficou um momento imóvel, olhando as paredes, o leito onde dormira tantas semanas com a Concha, a varanda onde ela tanta vez se encostara, o espelho diante do qual o Pancho remexia as suas tranças negras.
— Acabou-se! — disse por fim, descendo.
Quis despedir-se do Videirinha, mas Manuel disse-lhe «que ele fora à batotinha».
Artur então pensou em lhe deixar um bilhete-de-visita; mas lembrando-se das duas mulheres de negro no patamar da escada, meteu rapidamente o bilhete no bolso.
— Quer usted que eu lhe diga alguma coisa? perguntou o Manuel.
Artur respondeu:
— Dá-lhe dois pontapés no abdómen!
Manuel vergou-se, mastigando uma risadinha. Estava todavia sentido pela partida de Artur — e quando ele ia a entrar para a carruagem, não se conteve, tomou-lhe a mão e sacudindo-lha:
— Já usted vê! Quando usted voltar, tem cá a bela amizade!
Artur ainda deu um olhar à janela do seu quarto, em cima, e o Teso bateu.
Quando chegaram a Santa Apolónia teve apenas tempo de comprar o bilhete para a bagagem e correr para a plataforma. Faltavam dois minutos no relógio transparente.
Então Artur, depois de acomodar a maleta, estendeu os braços a Melchior:
— Adeus, meu velho!
Melchior apertou-o, comovido, beijou-o na face. A tanta simpatia, os olhos de Artur arrasaram-se de lágrimas. Sacudiam-se desesperadamente as mãos, com palavras trémulas!
— Para a vida e para a morte!
— Obrigado, obrigado!
Um homem de boné agaloado passou:
— O comboio vai partir, meus senhores!
Artur, com os olhos cheios de lágrimas, precipitou-se para a carruagem.
— E vá-me ao empresário, Melchior!
— Amanhã! Logo pela manhã!
Mas o comboio não partia: gente chegava correndo; carretas de bagagem rolavam; soldados equipados, de mochila, embrutecidos, procuravam uma terceira classe; um eclesiástico parecia doido, vagueando ansiosamente com uma chapeleira de cartão azul na mão; e sem descontinuar, adiante, na sombra, a máquina resfolgava.
Melchior, com a mão apoiada à portinhola, mascava o charuto. Não falavam — numa vaga impaciência de se separarem enfim. Artur pensava confusamente na sua partida de Oliveira de Azeméis, nos adeuses de Rabecaz e parecia-lhe já vê-lo na Corcovada, debruçado sobre o bilhar, de perna no ar, dando carambolas catitas.
A máquina silvou.
Apertaram-se ainda as mãos, nervosamente:
— Adeus!
— Adeus!
— Não esqueça o empresário!
— Amanhã!
— E escreva!
— E você!
O comboio rolou devagar. E então Artur, debruçando-se ansiosamente fora da portinhola:
— Oh, diabo! Oh, Melchior! Você trouxe o embrulho?
— O embrulho? — Ah, o embrulho! — Remexeu nas algibeiras e correndo ao comprido do comboio cuja velocidade aumentava, estendeu um embrulho a Artur, que o arrebatou sofregamente. Eram dois pares de luvas pretas e um plastron negro que comprara nessa tarde, e que levava para Oliveira, para usar coisas chics, coisas de Lisboa, no luto da tia Sabina.


Capítulo X

Daí a três dias, à noitinha, Artur saía de casa para ir pela primeira vez à Corcovada.
A tia Sabina fora enterrada na véspera da sua chegada. Os três dias de nojo tinham passado, e como nessa noite os soluços da tia Ricardina, prostrada às escuras no oratório, e os ais da Joana, pelos cantos, lhe fizeram parecer a casa mais lúgubre — decidira, para se distrair, ir um bocado até ao bilhar.
O primeiro que o viu quando ele empurrou a porta envidraçada, foi o João Valente, que se ergueu com os braços no ar, berrando:
— Viva o janota!
O Rabecaz correu do bilhar e arremessando o taco, ergueu-o ao alto, num abraço frenético. Pessoas que não conhecia levantaram-se, vieram apertar-lhe a mão — e Artur, radiante, reconheceu que a vila inteira o considerava um grande homem!
A mesa a que ele se sentou ficou logo cercada de um grupo ávido de o escutar, de o ver, de lhe examinar o fato; havia em volta dele três filas de mochos, e velhos pacíficos, de xaile-manta pelos ombros, punham de longe a mão sobre a orelha, para lhe escutar as opiniões. Teve de descrever a sua chegada à redacção do «Século», o Universal, S. Carlos, as Câmaras, as soirées da Sociedade. Um, queria saber o que se dizia do ministério; outro parecia devorado de curiosidade sobre os bailes de máscaras; um terceiro, baixando a voz, pedia — já que estavam ali entre homens — alguns detalhes sobre pequenas. Artur prodigalizava informações, opiniões, anedotas. Alguns, que tinham visitado a Capital, escutavam-no com um vago sorriso de entendedores, aprovando com a cabeça, rosnando:
— Tal qual! E isso mesmo! Era o mesmo no meu tempo... Bem se vê que o amigo conhece Lisboa...
Foi para Artur uma hora cheia, triunfante, muito gozada. Soltava a cada momento os nomes dos homens ilustres que entrevira, dizendo: «o meu amigo Roma...», «uma vez, estava eu com o Carvalhosa...», «então, o Conde de Vila Rica...».
Nas fisionomias em redor espalhava-se uma admiração respeitosa. Obrigaram mesmo dois jogadores obstinados a interromperem a partida, porque o som das carambolas, a voz do marcador, faziam interrupções irreverentes. Artur, por fim, já um pouco rouco de falar, encostara-se para trás na cadeira — e então o Rabecaz, muito solí— cito, declarou com autoridade:
— Está bom, deixem-no agora, deixem-no agora. Não o macem mais.
E ergueu-se, arrastou-o, apossando-se dele — e declarando alto «que tinha coisas particulares a dizer-lhe», quis levá-lo para o cubículo das ceias. Mas todos protestavam: um sujeito mesmo arrebatou Artur para um canto e pediu-lhe um empenho para um ministro; outro agarrou-o pela manga, e decerto deslumbrado pelas narrações, quis saber o que era necessário desembolsar para gozar um mês na Capital. Então, o Rabecaz zangou-se. Que diabo, que deixassem o rapaz, tinha coisas importantes a dizer-lhe!... E ia-o enfim levando para o cubículo, quando o Sr. Cardoso, um dos janotas mais considerados de Oliveira, o levou para uma mesa afastada, e ali, delicadamente, lhe pediu se era possível ele mandar-lhe vir uma boquilha «como essa» — e mostrava com veneração a boquilha por onde Artur fumava uni charuto de tostão, que em nome dos amigos lhe oferecera o João Valente.
Enfim o Rabecaz conseguiu libertá-lo, e fechando a porta do cubículo:
— Irra, maçadores!
E ali, a sós, conversaram intimamente até às duas horas da madrugada.
Artur gozou então alguns dias de celebridade. A sua fama tinha começado com a publicação das notícias nos jornais. A Corcovada fora obrigada a assinar o «Século», porque os frequentadores, considerando-o como a crónica oficial de Artur, queriam seguir nele as suas glórias. O Vasco dependurara o seu retrato na botica. O Carneiro dizia agora alto por toda a parte — «que a Assembleia se honraria muito em o ter no seu seio». A Assembleia vira-se mesmo obrigada a comprar seis exemplares dos Esmaltes e Jóias, porque apenas um volume era posto na sala de leitura, logo desaparecia, roubado por um dos sócios. Atribuía-se isto a que todas as senhoras queriam ter o volume e esses roubos consecutivos tinham mesmo dado lugar, na Assembleia, a controvérsias escandalosas.
Na missa, na Praça, era muito observado. Reparou-se mesmo nas olhadelas que não cessava de lhe dardejar, em todos os lugares públicos, a gorda esposa do Dr. Azevedo. E o administrador do concelho, no dia em que o encontrou, foi o primeiro a tirar-lhe o chapéu.
Porém, a sua hora triunfante era na Corcovada. Tinha um lugar reservado, a que se chamava a mesa do Artur. Era ele o juiz, o árbitro, quem decidia de todas as questões: de eleições, de literatura, de toilette, de interesses locais, de política estrangeira, de casamentos. Mas o que acima de tudo o deleitava, era perorar, narrar os lados íntimos da vida de Lisboa — soirées aristocráticas, ceias artísticas; punha nas descrições mais imaginação poética do que a que lhe fora necessária para compor os Esmaltes e Jóias e mesmo os Amores de Poeta. Gostava de deslumbrar aqueles burgueses, fazendo-lhe ver a vida literária mais requintada, para parecer ele mesmo mais interessante. Afirmava que os literatos em Lisboa eram tudo: davam a lei, iam ao Paço,, governavam tilburys e esposavam condessas. E de resto não era difícil aos que o escutavam acreditá-lo, vendo os ministérios povoados de antigos poetas líricos.
Uma noite, um velho que nunca saíra de Oliveira de Azeméis, tendo sido sempre de constituição delicada e hábitos caseiros, perguntou-lhe se era certo o que se contava: que os literatos tinham ceias em que havia danças de mulheres nuas, ao som de charangas.
Em redor protestavam: ora, seu Albino! Que ideia!
Mas Artur interpôs-se com autoridade:
— Não, não direi mulheres nuas — mas lá que são magníficas orgias, isso sim! Há orgias deliciosas!
O Rabecaz exclamou, batendo-lhe no ombro:
— Nós é que sabemos!
E Artur sorriu com complacência.
O Rabecaz tomava naquelas conversas uma parte eminente: o seu maior prazer era fazer perguntas sobre personagens, gente de Lisboa, que só ele e Artur deviam conhecer o que, perante os outros, os isolava numa importância elegante e superior.
— O Melchior ainda mora aos Cardais, a Jesus? Com quem vive a Lolita? Quem vai agora ao Paula? O João Gordo ainda se embebeda? E o velhote — como se chama ele? ah, o conde de Pisães — ainda está sempre em casa da pequena?
Artur respondia, mesmo quando ignorava.
E o Rabecaz recostava-se, como que afogado em saudade:
— Ah, Lisboa! Lisboa!
— Grande terra! — murmurava-se em redor, respeitosamente.
E Artur retorcia o bigodito, com satisfação. Mas contrastando com aquela alegria da Corcovada, que melancolia em casa! A hora do jantar sobretudo era lúgubre: a tia Ricardina, apenas via o lugar vazio da Sabininha, começava a choramingar; e então voltava a história da sua doença, dos remédios que tomara, da cautela do Dr. Azevedo, e o que ela dissera, falando sempre do seu Arturzinho — até ao último dia em que já moribunda, ainda repetia: — «que ingrato! que ingrato!»
E na saudade da Ricardina havia uma vaga irritação — como escandalizada de que a Sabininha morresse, deixando-a só, sem ninguém para conversar e lhe fazer companhia no quarto. O próprio Albuquerquezinho parecia outro: abandonara as esquadras internacionais, e, desinteressado mesmo das suas paciências, errava pela casa soturnamente, muito enervado, olhando Artur de revés e rosnando entre os dentes: «Mau pirata! mau pirata!» E não podendo suportar o arrastar fúnebre daqueles serões, Artur, mal acabava o jantar, escapava-se, ia ao quarto dar uma penteadela no cabelo e em bicos de pés descia a escada, enfiando para a Corcovada.
Se tivesse querido — e foi esta, mais tarde, a opinião do Rabecaz — Artur poderia ter aproveitado aquela popularidade para conquistar uma posição na vila. Somente contentou-se em perorar no botequim, prodigalizar anedotas, e, dentro em pouco, viu a curiosidade que inspirava diminuir e os pequenos interesses da localidade retomarem nas conversas, nas preocupações, a sua importância essencial. Na Corcovada, já estavam acostumados ao «grande homem». Já não era o centro dos grupos. O bilhar retomara a sua feição pacata, caturra; as facécias do João Valente, um momento pouco atendidas, recomeçavam a ser saboreadas com gozo. E mesmo a Corcovada, muito fina, não renovou a assinatura do «Século». Agora a única satisfação de Artur era, como outrora, cear com o Rabecaz. Tinha-lhe contado, com os detalhes mais íntimos, os seus amores com a Concha. O Rabecaz interessava-se violentamente por aquele romance: tinha pedido uma descrição do corpo da Concha e ouvia-a com um ar de profunda reflexão, de conhecedor, a testa franzida, o olhar fixo:
— Bom tornozelo, hem?
— Lindo!
— Sim? Hem? — E escarrava grosso: — E a barriguinha da perna?
— Adorável!
O Rabecaz tinha um aceno de assentimento:
— Sim, todas as espanholas a têm. A pele fina, não?
— Um cetim!
— Sim! — Dava outro escarro grosso, e satisfeito ia percorrendo assim todo o corpo da Concha.
As narinas dilatavam-se-lhe de sensualidade, àquelas revelações. Gozava a Concha nas descrições de Artur, e não se podendo separar dele, acompanhava-o até casa, roçando-se-lhe pelo corpo, como se lhe sentisse ainda, nos cabelos, no fato, um cheiro de espanhola.
Mas lentamente — como um verniz muito usado perde o brilho — aquelas conversas embaciavam-se, perdiam a frescura nova. Artur começou a enfastiar-se da Corcovada, onde já não tinha nada que contar, ninguém para deslumbrar; a casa lúgubre, lutuosa, desolava-o, e as saudades de Lisboa voltavam, muito amargas. Agora, tudo o que por lá passara lhe parecia bom, até as aflições de dinheiro que sofrera. As amarguras, quando perdera a Concha, ao menos tinham uma alta feição sentimental, romântica. Lá, vivia, ainda que contrariado; aqui, bom Deus, bocejava! A cidade, a distância, parecia-lhe mais nobre, mais bela; atribuía agora as contrariedades que sofrera aos seus próprios defeitos: se não fosse tão tímido, de abatimento tão fácil, poderia ter chegado a ser íntimo de D. Joana Coutinho e retomar o seu lugar no Clube Democrático. Devia ter perseverado, insistido, conservado a vontade erecta — e teria furado! E vinham-lhe agora desejos de agarrar nos seus quinhentos mil-réis e voltar para Lisboa: viver com economia nalguma casa de hóspedes, retirado, num quinto andar. Mas esperava, para se decidir, a resposta do empresário e do Melchior — a quem escrevia longas cartas, cheias de estilo, pintando-lhe romanticamente a sua tristeza e fazendo a caricatura literária dos frequentadores da Corcovada.
E entretanto, para ocupar o seu espírito vazio, procurou tornar a interessar-se, a amar a senhora do vestido de xadrez: mas apesar dos esforços que fazia para evocar o antigo sentimento, depressa sentiu que todo o seu amor por ela se tinha desvanecido: passava dias sem sequer se lembrar dela; depois, de repente, forçava-se a amá-la, a tê-la sempre presente no coração; e com efeito, conseguia obrigar a memória a ocupar-se dela durante uma manhã inteira; depois, distraía-se de novo, e a sua imagem, como um perfume que se destapa, evaporava-se insensivelmente.
Então quis fazer versos. Mas, como em Lisboa o barulho da rua, ao princípio, espantara a Inspiração — era agora o adormecimento silencioso da vila que parecia afastá-la. Recaiu assim num tédio passivo, morno, cheio de horas vazias; dava longos passeios ao acaso; desmantelava as maxilas em bocejos intermináveis.
Por esse tempo, o Vasco, que expulsara o último praticante, que sua esposa achava «lindo! lindo!», veio procurar Artur. Começou por lhe dizer que era talvez ousado oferecer um simples lugar de praticante a um homem tão conhecido nas letras... mas ele não vinha ali como chefe do estabelecimento, vinha como amigo: não era um praticante que procurava, era um colaborador... Enfim, oferecia-lhe oito mil-réis por mês e mais tarde poderiam entender-se para a cessão total da farmácia.
Artur não reconhecia o Vasco — o Vasco de génio áspero. Via-o benévolo, amável, e se a sua fisionomia conservava o antigo ar hostil, as suas palavras transbordavam de afeição. Confessou a Artur que era ele o único que lhe não dera sustos pela honra do seu nome. E terminou, dizendo:
— Isto não é urgente. Pode dar a sua resposta por toda esta semana.
— Eu pensarei — disse Artur polidamente, para lhe não dar uma recusa muito seca.
Mas sentia-se vagamente lisonjeado daquela afabilidade do seu antigo patrão, que outrora o assustava, só de fungar com o nariz no ar. Fungava ainda, mas discretamente. Artur repetiu:
— Eu pensarei.
— Pois pense — disse o Vasco com um ar profundo.
Daí a dias, enfim, recebeu a desejada carta do Melchior. Abriu sofregamente o sobrescrito e leu estas linhas:

«Caro amigo Artur:
Há muito que lhe queria escrever, mas você, que conhece Lisboa, sabe que umas coisas trazem outras, e com afazeres, prazeres, etc., não tem a gente um bocadinho disponível...»

Que diferença com a sua vida agora! Ele tinha todo o dia vazio, inútil, ocioso... Também a ele, quando vivia em Lisboa, as horas lhe passavam como os vagões sucessivos de um comboio expresso.

«...Saberá antes de tudo, que estive com a Concha. Encontrei-a e à cavalgadura do Manolo, no Price; estavam mesmo ao pé de mim e não pude deixar de lhes falar. A Concha muito bonita e muito chic...»

O peito de Artur levantou-se num vago suspiro.

«...O Manolo teve a ousadia de me convidar para ir com eles ao Mata, mas como a Concha insistiu, fui obrigado a aceitar. Devo dizer — porque a verdade é a verdade — que o Manolo foi muito amável. No fundo é um bom rapaz, e valente; convidou-me para ir jantar com eles no Pelicano, onde eles vivem como marido e mulher...»

Artur indignou-se contra o Melchior: parecia-lhe um traidor, desertando para aqueles que o tinham injuriado. Que pulha!

«...Estive ontem na Áurea com o Videirinha. Tomámos ambos um chocolate e falámos muito de você...»

— Coitados, que bons rapazes — pensou Artur com uma saudade enternecida.

«...Outra novidade é que os seus amigos republicanos vão fundar um jornal — «0 Futuro». O Damião e o Matias são os redactores. Eu dei a noticia no «Século», dizendo mesmo — que desejava grandes felicidades ao novo colega — porque enfim é bom ser delicado...»

Aquela prosperidade do partido que o repelira, fez sentir mais agudamente a Artur a infelicidade da sua separação.

«...Deixei para o fim as notícias más. Depois de ter ido três ou quatro vezes a casa do empresário, sem o encontrar, pude falar-lhe esta manhã no teatro. Disse muitas coisas e terminou por declarar que não podia levar os Amores de Poeta. Diz que é irrepresentável e que é muito bom para ser lido, mas não faz efeito em cena. Eu ainda quis argumentar, mas o homem provou-me que, para o levar à cena, era necessário refazê-lo desde a primeira linha até à última — isto é, que era melhor deitar o manuscrito ao lume e lazer outro. Tive de baixar a cabeça...
E você quando vem? Lisboa brilhante: belo tempo, companhia francesa que chegou, o delírio. Se a velhota deixou cheta, é fazer as malas, e cair-nos aqui, para recomeçar a bela folia.
Amigo do C.
Melchior.»

Artur ficou com a carta na mão, sentado à janela do quarto. O dia estava adorável e um bom sol quente dava um brilho vigoroso à folhagem das árvores, que tinham o verde da Primavera; a torre da igreja, muito aguçada, branquejava sobre o azul, e de um pombal próximo pombas tomavam o voo, espalhando-se pelos quintais. Maquinalmente, Artur seguia-as, interessando-se um momento pelos lugares onde elas pousavam os pezinhos cor-de-rosa: um muro branco com trepadeiras, uma latada onde um pé de vinha reverdejava, a pedra de um tanque onde a água tinha espelhados e sombras... Havia um vago rumor dormente, feito do lento remexer da folhagem, da água correndo de uma torneira, de um pipiar vago de pássaros; um aroma de alfazema subia por instantes nos movimentos do ar e tudo era sereno, doce, calmo, feito para pacificar uma existência agitada.
E então, serenado por aquela paz da natureza, sem cólera já contra esta última desilusão que o esmagava, considerou o seu destino: voltar para Lisboa sem recursos permanentes, sem amizades úteis, apenas com os seus pobres quinhentos mil-réis que se evaporariam num Verão, era impossível. Não havia que sofismar — era impossível. Que lhe restava então? Sujeitar-se, ficar ali, na vila. Ao menos tinha um leito, um jantar seguro; se aceitasse a proposta do Vasco, teria oito mil-réis por mês, e os fundos depositados no Carneiro seriam uma reserva. A tia Ricardina estava velha, afectada, à beira da morte; herdaria dela alguns contos de réis, cinco ou seis que fossem: poderia então, com um apoio mais sólido, recomeçar a vida, voltar a Lisboa. Até lá, teria os seus livros, aquela tranquilidade de vila bonita; e seria um tempo de repouso em que o seu espírito se amadureceria, e se calmariam as dores de tantas desilusões. Considerou-se então, sentimentalmente, um convalescente da vida. Saíra daquele inferno em Lisboa, como um vencido de uma batalha, com feridas por toda a parte — no seu amor traído, na sua ambição iludida. Precisava descanso, a santa influência de um lugar recolhido. Oliveira servia-lhe, ali ficava!
Releu a carta de Melchior: «Lisboa está brilhante». E viu então, nas letras daquela frase simples, tudo o que amara lá longe — as largas ruas, a gente apressada, o rodar dos trens, o peristilo alumiado dos teatros, os cafés flamejantes, os amores patrícios e as ligações ardentes, cheias da poesia da sensualidade! Para ele, estava tudo acabado! Tomou a carta do jornalista, rasgou-a em pedacinhos, e arremessou-os para o quintal: os papelinhos brancos esvoaçaram, torneando no ar, foram cair sobre as folhas, sobre a gaiola de vime dos coelhos, sobre os ramos espinhosos do limoeiro — e Artur seguia-os melancolicamente, como se fossem fragmentos do seu passado extinto rolando para os abismos... Acabou-se!
Escovou cuidadosamente o chapéu e dirigiu-se à farmácia do Vasco. O boticário, como outrora, ruminava o Almanaque de Lembranças. Ergueu-se com satisfação e para honrar a entrada de Artur, tirou ligeiramente o boné: Artur não ficaria mais surpreendido se visse um Rei cumprimentá-lo, tirando a coroa. Para falarem mais à vontade, foram para dentro, para o laboratório. E quando daí a um quarto de hora, Artur, pálido, saiu, fechando sobre si a porta envidraçada da farmácia, suspirou, disse consigo:
— Consummatum est!

Nessa tarde, com a serenidade melancólica de quem tomou uma resolução dolorosa, foi passear ao acaso para fora da vila. Ia resumindo a sua existência, procurando explicá-la: de onde vinha o facto de só ter recebido no mundo desilusões? Da falta de simpatia, pensou. Quem o tinha estimado, amado, desde que seu pai morrera e que ele entrara na vida? Ninguém! Em Coimbra, não deixara amigos: para os seus companheiros, com quem comia e que admirava, era o Arturzinho, o caloiro. Tinha passado na geração académica desconhecido, ruminando as suas exaltações, encolhido na sua batina, sem ruído. Um dia, o caloiro fora para a terra: acabou-se! Depois, em Oliveira — quem encontrara? O Teodósio era um bruto, para quem a amizade consistia em o acompanhar de madrugada, entre os restolhos de Stº Estêvão, à caça das perdizes! O Rabecaz — que sabia ele de afeições, de ligações de espírito, aquele embrutecido — retirado por pobreza dos bordéis e das batotas — vivendo entre o copo de aguardente e uma carambola catita? E em Lisboa? Meirinho caloteara-o; Melchior explorara-lhe jantares e tipóias; Nazareno insultara-o; Damião chamara-lhe canalha; Manolo roubara-lhe a rapariga — e desejar a estima do Videirinha, era como procurar um perfume num cano de esgoto! Nunca recebera o amparo da amizade, nem sentira o calor fortificante da simpatia ambiente, sem a qual o homem vai pela vida como por uma floresta escura, tropeçando contra troncos que o magoam, caindo sobre silvados que o ferem, sem encontrar a estrada real onde está a luz, a paz. Ninguém! Ninguém!
E contudo, não, enganava-se, alguém o amara: uma pobre velha, simples, de coração amante, que na vida só tivera lágrimas e que estava agora sob uma lousa, naquele cemitério de que ele via, ao fundo do atalho por onde ia caminhando, os ciprestes agudos. Apressou então o passo: queria ver a sepultura da tia Sabina.
A grade do cemitério estava aberta. Ao lado da entrada, sob um chorão, havia um carrito de saibro, uma pá, e em redor, na terra pisada, passarinhos saltitavam. Por todo o terreiro, ciprestes negros aguçavam a sua imobilidade triste; chorões dobravam as longas ramagens corredias e pálidas, e pela erva verde misturada de florescências, branquejavam lápides e viam-se cruzes negras inclinadas no terreno mole. Aqui e além passava um piar rápido de pardal e no céu côncavo a tarde tépida de Primavera empalidecia.
Artur foi andando por uma ruazinha ladeada de alfazemas crescidas. Pareceu-lhe ouvir uma voz cantarolar; escutou:

Nascem goivos a-a-ah!
E rosas nas sepulturas.
Morte eterna, morte eterna,
Vida que tão pouco duras!

Era a cantiga singular que já ouvira muitas vezes ao coveiro, e que transcrevera na cena do cemitério dos Amores de Poeta, tão apreciada no jantar do Universal. Adiantou-se. Ao pé de uma moita de rosinhas bravas, o tio Jacinto, em mangas de camisa, o dorso curvado, mostrando os remendos pardos das calças, cavava devagar, abrindo uma cova: a terra negra acumulava-se a um lado e a enxada arrancava mãos cheias de ervas, que ali ficavam, com as raízes ainda presas ao torrão, caídas, mortas também.
O tio Jacinto ia cantarolando baixo:

Nascem goivos a-a-ah!
E rosas nas sepulturas...

A toada entristecia Artur, mas a sua mesma melancolia lhe dava um vago prazer romântico, e instintivamente comparava-se a Hamlet, errando no cemitério de Elzenem, argumentando com o coveiro e erguendo do pó, nas suas mãos de príncipe triste, a caveira de Yorick...

Nascem goivos a-a-ah!
E rosas nas sepulturas...

— Boas tardes, tio Jacinto.
O homem voltou-se:
— Olha, é o Sr. Arturzinho. Então, cá pela vila outra vez?
— Vim há dias. Para quem é essa cova?
E a sua voz, fazendo esta pergunta no ar triste e calado do cemitério, aproximava— o mais na sua melancolia do poético Hamlet.
O tio Jacinto coçou a cabeça, embaraçado:
— Olhe, a dizer a verdade, Sr. Arturzinho, nem lhe posso dizer... Foi o Caipira, o Joaquim Sacristão, que veio aí dizer... É para uma rapariga que vivia lá para ao pé da estrada do Covo... Morreu héctica...
— Ah!
O tio Jacinto recomeçou a cavar:

Nascem goivos a-a-ah!
E rosas nas sepulturas...

E interrompendo-se:
— O senhor não quer ir ver a sepultura da tiazinha?
— Onde é?
O tio Jacinto pousou a enxada, sacudiu as mãos, e pôs-se a caminhar rente ao muro — onde roseiras cresciam contra a cal muito branca. Mas parou, indignado: um pé de roseira estava quebrado e no muro caiado havia raspões, como de solas que se tivessem firmado ao escalar...
— Pois quer o Sr. Arturzinho ver que tornaram a saltar de noite?
— Quem?
O tio Jacinto contemplava, triste, o pé de roseira quebrado, rosnando:
— Corja! Quem!? Vão lá saber quem! Há-de ser a mesma cambada que me vinha roubar as batatas! Se eu pilho um!
— Então você plantava batatas no cemitério, homem?
— Então, porque não, Sr. Arturzinho? Mas lá o Sr. Alves, o da Câmara, começou a implicar. Disse que até era pecado. Pecado é tirar a um pobre o bocadinho do seu negócio. Ricas batatas; também lhe digo, não há terra de semeadura como isto. — E com um gesto largo indicava o cemitério: — É tudo o que V. Sª lhe plante. Está abarrotadinho de estrume!... Por aqui, Sr. Arturzinho. A tiazinha está para este lado.
Era uma pedra lisa, cercada de uma grade de pau. Ao lado havia um cipreste e as ervas cresciam altas. Artur ficou de pé, encostado à grade, e quase se desesperava de não sentir nem emoção, nem saudade; esforçava-se por se comover, pensando que ali debaixo, na sua mortalha azul, estava a doce velhinha; mas o seu coração conservava-se sereno, como se debaixo daquela pedra estivesse outra pedra e não o corpo da criatura meiga que o amara. Julgou-se seco, endurecido e forçava a sensibilidade, procurando recordar as lágrimas dela ao separarem-se, o cuidado pela sua roupa, a afeição do seu olhar. Mas o seu coração ficava inalterável, todo ocupado na função orgânica, sem obedecer à imaginação que o excitava à saudade. Por fim, disse:
— Deviam-se pôr aqui uns pés de roseira, para fazer isto mais bonito. E ela que gostava tanto de flores, pobre tia Sabina!
Mas o coveiro não escutava: erguendo-se sobre os sapatos, olhava através dos ciprestes para a cova onde deixara a enxada. E batendo fortemente com as mãos grossas, como para afugentar pássaros importunos:
— Eh, lá! Eh, lá! Eh, lá, sua corja!
Artur voltou-se: uma rapariguita magrinha, loira como uma espiga de milho, divertia-se a fazer rolar torrões para a cova, e uma outra, que saltara para dentro, cavava com as mãos, procurava bichos, e de repente, desapareceu no buraco negro, deitada decerto, fazendo de morta — e as suas risadinhas finas e claras vinham misturadas ao chalrar dos pássaros.
— Eh, sua corja! — gritou outra vez o tio Jacinto. — Eu já lá vou, espera! Não tenhas pressa de te estirar na cova, que o teu dia virá — e mais cedo do que tu quererás, desavergonhada! Deixa a enxada, rapariga! Ah, velhaca! — E ele mesmo se afastou, ameaçando-as, rosnando:
–Raça de mulherzinhas!
Artur então foi andando por entre as outras sepulturas. Viera com a intenção de ter um momento grave de contemplação, de saudade, sobre a lousa da tia Sabina — mas o seu espírito resistia à tristeza, distraía-se: sorriu ao ver o jazigo do Carneiro, um monumento muito estimado, muito admirado, em que o Anjo da Melancolia chorava sobre uma coluna truncada. Leu aqui, além, epitáfios laudatórios, e mesmo, negligentemente, embrulhou um cigarro. Quis pensar na Morte, na Eternidade, penetrar-se de uma melancolia mística, misturar-se, ele, para quem a existência que ia recomeçar era uma meia-morte, àqueles mortos a desfazerem-se sob as raízes das florzinhas agrestes. Mas o seu espírito resistia a perder-se na penumbra lúgubre da ideia de aniquilação e de fim. Era sem dúvida a influência daquele cemitério, que no dizer do tio Jacinto, era uma terra de semeadura... Uma fecundação palpitava no solo bem adubado; ervas vivazes faziam ao rés-do-chão uma espessura fofa; toda a sorte de florzinhas, azuis, roxas, amarelas, miúdas e prolixas, apertavam-se nas fendas das lajes mal juntas; no muro, onde a cal, sob a humidade, se despegava, torcia-se uma hera de um verde forte e clavelinas pendiam em florescência. Havia um cheiro forte de ervagens, e nas árvores os pássaros chilreavam tão desesperadamente, que Artur bateu as mãos para os fazer calar.
O tio Jacinto, cavando apressadamente, recomeçara a sua cantiga e a sua voz, na limpidez pura da tarde, chegava a Artur, pitoresca, com o som surdo das enxadadas:

Nascem goivos a-a-ah!
E rosas nas sepulturas...

Então, ele mesmo trauteou baixo a melodia: lembrava-se agora da noite em que a cantarolara, quando lera o drama no Universal: e revia a toa lha resplandecente, cheia de brancuras de louça brilhando à luz do gás, e o Carvalhosa, grave, bamboleando a perna, com a garganta muito abafada; e sorria, lembrando-se do Padilhão, furioso, porque via na declamação do protagonista injúrias aos fidalgos das suas relações; então recordou a soirée de D. Joana Coutinho: o Padilhão zurrando; o ruge-ruge das saias, das sedas, das rodas da D. Joana, com as maçãs do rosto salientes, o seu nariz grande e os olhos reluzindo sob as arcadas proeminentes; via a grossa viscondessa sentada sobre o seu claque, o estafermo! — e lembrou-se da senhora de vestido cor de palha, que lhe falara de Rochefort e a quem ele só soubera responder: «grande apepinador!». Àquela recordação, as faces ainda se lhe abrasaram de escarlate, e bateu com o pé no chão do cemitério com um ah! de raiva e de vergonha. Fora daí, dessa noite, que começara a série dos seus desgostos: via-se na sessão do clube, lívido, diante do Matias, muito abotoado na sua sobrecasaca, que o expulsava do Partido Republicano, com um grande gesto à Fouquier-Tinville, enquanto lhe chegavam por baforadas, da cervejaria próxima, vagos acordes de harpa e de rabeca. Conhecera então a Concha, naquele dia em que vira no Clube o rapaz pálido, nu da cinta para cima, muito branco de pele, erguendo o braço de onde escorria um sangue negro! Depois, era o Espanhol, as ceias, os bons almocinhos, quando a Concha, com o casabeque de flanela pelos ombros, partia os ovos quentes arrebitando o dedo mínimo. Tinha-se aproximado insensivelmente da sepultura da tia Sabina, e olhando a pedra branca, o seu pensamento estava lá longe, no quarto do Espanhol, revendo, à noite, a Concha arranjando o cabelo diante do toucador, antes de se deitar; na mesinha-de-cabeceira, a luz erguia a sua chama direita; ela corria a meter-se entre os lençóis, com um arrepio de frio...
Uma aragem correu nas folhas do cipreste, junto à sepultura — e então veio-lhe um horror daquelas visões lascivas, evocadas sobre a campa da tia Sabina. Pareceu-lhe uma profanação, uma ofensa à morta: quis acalmá-la, fazer-se perdoar, e por uma superstição, julgando que nada seria mais grato à alma da doce velha, ajoelhou junto às grades. Mas não podia orar: só lhe acudiam fragmentos de antigas rezas do catecismo, inexpressivos como toadilhas... Não sabia como havia de falar a Deus...
O coveiro então chegou-se, dizendo:
— Vamos fechar as grades, Sr. Arturzinho...
Mas vendo-o ajoelhado, calou-se; e silenciosamente começou a colher a erva em redor da sepultura: trazia já um braçado, e agachado, ia escolhendo a de um verde mais claro, a mais chegada à lápide, a mais tenra.
Artur ergueu-se e instintivamente fez o sinal da Cruz.
— Amén — disse o coveiro.
Atirou a enxada ao ombro e Artur foi-o seguindo.
— Aqui não é como em Lisboa — disse então o tio Jacinto. — Lá é que são mausoléus, lá é que faz gosto...
— Ah, sim — murmurou Artur distraído.
— Isso é que me convinha — disse ainda o tio Jacinto — eu ter lá o meu arranjinho, para cuidar dos jazigos, arear as ruas, trazer as flores em dia. Ah, lá em Lisboa, sim! Mas aqui!
Também o tio Jacinto tinha ambições da Capital!
Ao pé da grade, debaixo do chorão, as duas pequenas esperavam: a mais novita metera-se no carro de saibro, com as pernitas pendentes, e a outra, magrinha e loira, ia puxando, aos gritos da pequena que a excitava, como a um Jumento ronceiro. Então o tio Jacinto enfureceu-se: em as deixando sós, era logo malefício!... Eram as sobrinhitas. A mais pequena chama-se Maria e a outra Rita...
— Vá, sua desalmada, erga a saia, leve direito o seu braçado de erva. E atirou para a saia que a pequena estendia, a erva que colhera ao pé da sepultura da tia Sabina.
— É da tenra — disse ele — é da que já cresceu depois que a senhora se enterrou...
Artur instintivamente olhou o molho de erva, que a pequena, com muito cuidado, apertava na dobra da saia, contra o ventrezinho. Já havia naquela erva, pensou — porque desde os tempos de Coimbra conservara ideias panteístas — alguma coisa da doce velhinha.
— E para que é a erva, tio Jacinto?
— A erva, Sr. Arturzinho? Ah, que é muito tenra. Escolhia-a de propósito... Saiba V. Sª que é para os coelhos — respondeu o tio Jacinto, fechando à chave a grade do cemitério.