Alves & Cª

Eça de Queirós

póstumo

Capítulo I

Nessa manhã, Godofredo da Conceição Alves, encalmado, soprando de ter vindo do Terreiro do Paço quase a correr, abria o batente de baetão verde, do seu escritório num entressolo da Rua dos Douradores, quando o relógio de parede por cima da carteira do guarda-livros batia duas horas, naquele tom, cavo, a que os tectos baixos do entressolo davam uma sonoridade dolente, e cava. Godofredo parou, verificou o seu próprio relógio preso por uma corrente de cabelo sobre o colete branco, e não conteve um gesto de irritação vendo a sua manhã assim perdida, pelas repartições do Ministério da Marinha: e era sempre assim quando o seu negócio de comissões para o Ultramar o levava lá: apesar de ter um primo de sua mulher Director Geral, de escorregar de vez em quando uma placa na mão dos contínuos, de ter descontado a dois segundos oficiais letras de favor, eram sempre as mesmas dormentes esperas pelo ministro, um folhear eterno de papelada, hesitações, demoras, todo um trabalho irregular, rangente e desconjuntado de velha máquina meio desaparafusada.

—Sempre o mesmo encaranguejamento, exclamou ele, pousando o chapéu sobre a carteira do guarda-livros. Dá vontade de os espicaçar como aos bois: Eh Ruço para diante! Eh Malhado! O guarda-livros, um moço de ar amarelado e doente, sorriu. Espalhou areia sobre a larga folha que acabava de escrever, e disse, sacudindo-a:

—O Sr. Machado deixou um bilhete lá dentro... Diz que ia ao Lumiar.

Então Godofredo, que limpava a testa com o lenço de seda, sorriu também, de leve, passando logo pelo bigode o lenço, escondendo o sorriso... Depois examinou a correspondência, que o guarda-livros continuava a polvilhar de areia.

Um momento uma carroça, fora, atroou a rua estreita, com um ruído de ferragens sacudidas: depois tudo caiu num silêncio. Um caixeiro agachado diante dum caixote enorme, escrevia um nome sobre a tampa. A pena de pato rangia, por cima o relógio batia um tic-tac forte. E naquele grande calor do dia, no abafamento dos tectos baixos, subia dos caixotes, de dois fardos, do pó da papelada, um cheiro vago de ranço, e de mercearia.

—O Sr. Machado estava ontem em D. Maria, disse então o guarda-livros, sem cessar de escrever.

Alves largou logo a carta que lia, interessado, com o olhar mais vivo.

—Que ia ontem?

—O Trapeiro de Paris...

—Que tal? 

O guarda-livros ergueu os olhos da carta para responder: 

—Eu gostei muito do Teodorico...

Alves ainda ficou esperando algum outro detalhe, uma apreciação. Mas o guarda-livros retomara a pena, e ele recontinuou a sua leitura. Depois o trabalho do caixeiro agachado interessou-o um instante. Seguia o pincel, gozava as curvas das letras.

—Ponha-lhe um til. Fabião tem um til...

E como o caixeiro se embaraçou um momento, ele próprio se abaixou, tomou o pincel, deu o seu til a Fabião. Fez ainda uma recomendação ao guarda-livros sobre uma remessa de baetão vermelho para Luanda, e empurrando outro batente verde, descendo dois degraus—porque naquele entressolo os pavimentos eram de níveis diferentes, penetrou enfim no seu gabinete, pôde desabotoar o colete , estender-se enfim numa poltrona de reps verde.

Fora, um dia de Julho abrasava, faiscava na pedra dos passeios: mas ali, naquele gabinete, onde nunca dava o sol, assombreado pelos altos prédios fronteiros, havia uma frescura; as persianas verdes estavam corridas fazendo uma penumbra; e o verniz das duas carteiras, a dele e a do seu sócio, a esteira que cobria o chão, o reps verde da cadeira bem escovado, uma moldura de ouro encaixilhando uma vista de Luanda, a alvura dum grande mapa, tinham um ar de arranjo, de ordem, que punha como um repouso, uma frescura maior. Havia, mesmo, um ramo de flores, que sua mulher, a boa Lulu, lhe tinha mandado havia dias,— compadecida de o saber toda uma daquelas manhãs de calma, no abafamento dum escritório, sem uma cor de flor para alegrar os olhos. Ele tinha posto o ramo sobre a carteira do Machado. Mas, sem água, as flores murchavam.

O batente verde abriu-se, o guarda-livros mostrou a face amarelada e doente:

—O Sr. Machado deixou alguma recomendação a respeito do vinho de Colares para Cabo Verde?

Então Alves lembrou-se da carta do sócio, que estava sobre a sua escrivaninha. Abriu-a; as duas primeiras linhas explicavam a ida ao Lumiar; depois, com efeito, começava, «a respeito do Colares...». Alves deu a carta ao guarda-livros.

O batente fechou-se de novo, e Alves agora tinha outra vez o sorriso de há pouco, mas que não disfarçava. Desde o começo do mês, era a quarta ou quinta vez que o Machado desaparecia assim do escritório, ora para ir ao Lumiar ver a mãe, ora à Outra Banda a visitar um amigo tísico, ora mesmo, sem razões, ou com esta palavra vaga: «um negociozito”. E Alves sorria ainda, percebia bem o «negociozito». Machado tinha vinte e seis anos; e era bonito moço, com o seu bigodito louro, o cabelo anelado, e o ar elegante. As mulheres gostavam dele.

Desde que eram sócios, Alves conhecera-lhe três ligações: uma linda espanhola, que apaixonada por ele, deixara um brasileiro rico, um antigo presidente de província, que lhe pusera casa; depois uma actriz de D. Maria, que não tinha nada senão uns bonitos olhos; e agora aquele «negociozito». Mas estes amores decerto eram mais delicados, tomando um lugar maior no coração, na vida de Machado. Alves sentia-o bem, por certo ar inquieto e preocupado do sócio, o quer que fosse de contrafeito, de triste por vezes... Também o Machado nunca lhe dissera nada, não mostrara jamais a mais leve tendência para uma efusão, uma confidência. Eram íntimos, Machado ia passar muitas noites a casa dele, tratava a Lulu quase como uma irmã, jantava lá todos os domingos—mas, ou porque tivesse entrado na firma comercial havia apenas três anos, ou porque era dez anos mais novo, ou porque Alves fora amigo de seu pai e um dos testamenteiros, ou porque era casado—Machado conservava para com ele uma certa reserva, um vago respeito, nunca entre eles se estabelecera uma verdadeira camaradagem de homens. Também Alves não lhe dizia nada. O «negociozito» não pertencia aos interesses da firma. Ele não tinha nada com isso. Apesar daquelas ausências repetidas Machado continuava a ser muito trabalhador, amarrado à carteira dez e doze horas em dias de paquete, activo, fino, vivendo todo para a prosperidade da firma: e Alves não podia deixar de confessar que se na firma ele representava a boa conduta, a honestidade doméstica, a vida regular, a seriedade de costumes— Machado representava a finura comercial, a energia, a decisão, as largas ideias, o faro do negócio... Ele, Godofredo, fora sempre de natureza indolente, como seu pai, que por gosto, se movia duma sala para outra, numa cadeira de rodas...

De resto, apesar dos seus princípios severos de rapaz educado a sério nos jesuítas, cheio de boas crenças, e que nunca antes de casado tivera uma ligação, ou um amor irregular, ele sentia por estas «tolices» do Machado uma vaga e simpática indulgência. Em primeiro lugar por amizade: conhecera o Machado pequeno, e bonito como um querubim; e nunca deixara de o impressionar vagamente a boa família do Machado, o seu tio Conde de Vilar, as suas relações na sociedade, o caso que dele fazia D. Maria Forbes, que o convidava para as suas quintas-feiras—apesar de negociante—, e além disso, as bonitas maneiras, e certos requintes de elegância: uma coisa que o espantava era que, como o Machado, ele nunca pudera ter aquele bom ar. E depois havia ainda uma outra razão, uma razão de temperamento, para que ele não deixasse de simpatizar, vagamente e a seu pesar, com as coisas do coração do Machado. E que, no fundo, aquele homem de trinta e sete anos, já um pouco calvo, apesar do seu bigode preto, era um pouco romanesco. Herdara aquilo da sua mãe, uma senhora magra, que tocava harpa, passava a vida a ler versos. Fora ela que lhe dera aquele nome ridículo de Godofredo. Mais tarde todo esse sentimentalismo que durante longos anos se dera às coisas literárias, aos luares, aos amores de romance, se voltara para Deus: tinha tido os começos duma monomania religiosa: a leitora de Lamartine tornara-se uma devota maníaca do Senhor dos Passos; fora ela que então o fizera educar nos jesuítas—e os seus últimos dias foram um longo terror do inferno. E ele herdara alguma coisa dela: em rapaz tivera toda a sorte de entusiasmos que se não fixavam, e que flutuavam indo dos versos de Garrett ao Coração de Jesus; depois calmara, em seguida a uma febre tifóide, e quando veio a ocasião de tomar a casa de comissões de seu tio era um homem prático, usando a vida só pelo seu lado material e sério: mas ficara-lhe na alma um vago romantismo que não queria morrer: gostava de teatro, de dramalhões, de incidentes violentos. Lia muito romance. As grandes acções, as grandes paixões, exaltavam-no. Sentia-se por vezes capaz dum heroísmo, duma tragédia. Mas isto era vago, e movendo-se surdamente, e raramente, naquele fundo do coração onde ele os tinha prisioneiros. Sobretudo as paixões românticas interessavam-no: decerto não pensara nunca em lhes provar o mel ou o fel: ele era um homem casto que amava a sua Lulu: mas gostava de as ver no teatro, nos livros. E agora aquele romance que ele sentia ali ao seu lado, no seu escritório, interessava-o: era como se os fardos, a papelada, ficassem melhor com aquele vago perfume de romance que exalava de si o Machado... De novo o batente verde abriu-se, a face amarelada do guarda-livros apareceu. Vinha restituir a carta do Sr. Machado; e antes de se retirar, disse, pela meia abertura da porta:

—Hoje é a reunião geral da Transtagana.

Alves então teve como uma surpresa:

—Então... Então hoje são nove?

—Hoje são nove.

De resto sabia bem que eram nove. Mas é que a ideia da reunião anual da Transtagana, trazia-lhe bruscamente a lembrança de que aquele era o aniversário do seu casamento. Durante os dois primeiros anos aquele fora um dia de festa íntima, com um bonito jantar a que ia a família, à noite uma pequena quadrilha, ao som de simples piano: depois, no terceiro aniversário, viera nos primeiros dias do luto de sua sogra, a casa estava ainda triste, Lulu ainda chorava;— e agora, este dia passava, estava quase passado, sem que nem um nem outro se tivessem lembrado. Lulu não se lembrara decerto. Quando ele tinha saído era manhã, ela estava-se a pentear, não lhe dissera nada. E era uma pena que aquele belo dia passasse sem beberem uma garrafa de Porto, sem terem um crème à sobremesa. E além disso deveriam ter convidado seu sogro e sua cunhada— ainda que ultimamente, as relações com seu sogro tinham arrefecido, havia um afastamento, por causa duma criada nova, que era toda poderosa em casa do viúvo. Mas enfim, num dia daqueles, como num dia de anos, esqueciam-se essas coisas, o sentimento de família dominava. E então decidiu logo correr à Rua de S. Bento, lembrar a Lulu aquela grande data, mandarem um recado ao sogro—que morava a Sta. Isabel. Eram quase três horas, a correspondência estava assinada, não havia nesse dia outros afazeres—, naquela espécie de repouso que se seguia à azáfama dos dias de paquete para a África. E tomando o chapéu regozijava-se daquele meio feriado que assim se dava, alegrava-o a ideia de ir surpreender no meio do dia com um bom abraço a sua querida Lulu—que durante toda a semana, estava só até às quatro e meia, que era quando se fechava o escritório. E uma só coisa o contrariava: é que o Machado estivesse no Lumiar, não pudesse vir jantar com eles.

—Volta? perguntou o guarda-livros, vendo-o de chapéu na cabeça.

Godofredo pensou um momento em convidar o guarda-livros: mas depois temeu que o Machado se ofendesse, sabendo o seu talher tão facilmente preenchido.

—Não volto... Se o Sr. Machado por acaso aparecesse... Não é natural, mas enfim se aparecesse, que lá o esperamos às seis, como estava combinado.

Ao descer as escadas sentia-se contente, como se tivesse casado na véspera. Era um desejo ardente de entrar em casa, por aquele calor, vestir o seu casaco de linho, pôr os pés nas chinelas, e ficar ali, esperando o jantar, gozando o seu interior, os movimentos, a presença da sua bonita Lulu. E naquela onda de felicidade que o invadia, veio-lhe a boa ideia de levar um presente à Lulu. Pensou num leque. Mas depois decidiu-se logo por uma pulseira que vira havia dias, numa vidraça de ourives. Era uma serpente mordendo o rabo, com dois olhos de rubis. E este presente tinha uma significação: a serpente simbolizava a eterna continuidade, a volta regular dos dias felizes, alguma coisa que vai sempre girando num círculo de ouro. Somente receava que a jóia fosse cara. Mas não: eram apenas cinco libras,— e enquanto ele a examinava, o ourives disse-lhe que tinha vendido havia dias uma igual à Sta. Marquesa de Lima. Imediatamente pagou-a—e ainda não tinha dado dois passos na rua, parou, à sombra, abriu a caixa, deu-lhe outro olhar, tão contente estava com a sua compra. E então vinha-lhe um enternecimento—como vem sempre aos que dão um presente. E como se uma pequena porta aberta, no egoísmo e na avareza natural do homem,—fizesse romper através dela toda a onda expansiva das generosidades latentes. Naquele momento desejou ser rico para lhe dar um colar de brilhantes. Mas ela merecia-o. Eram casados há quatro anos, e nunca entre eles houvera uma nuvem. Desde que a vira naquela tarde em Pedrouços, adorara-a: mas, podia-o agora confessar, ao princípio tivera-lhe medo. Julgara-a imperiosa, orgulhosa, exigente, seca. Tudo por causa daquela bela estatura dela, dos seus belos olhos negros, do porte erecto, do cabelo ondeado e crespo...

Mas não, dentro daquele corpo de rainha bárbara, havia o coraçãozinho duma criança. Era boa, era esmoler, era alegre, e tinha um génio que corria igual e suave, como a superfície transparente dum rio de Verão. Só um momento, havia coisa de quatro meses, ela mostrara certas desigualdades, um pouco de melancolia, uma pontinha de nervos: até ele supusera que... Mas não, não era isso, infelizmente. Eram nervos: e passaram,—viera uma reacção—e nunca como nos últimos tempos ela fora mais terna, mais alegre, inundando-o de felicidade...

E tudo isto lhe bailava alegremente em volta do coração, enquanto subia, na calma ardente sob o seu guarda-sol, a Rua Nova do Carmo. Ao alto, no restaurante do Mata, parou a encomendar uma empada de peixe para as seis horas. E comprou ainda um fiambre, olhava em redor para ver o que poderia levar mais, com a alegria e a sofreguidão de pássaro que provê o seu ninho.

Depois subiu o Chiado. Um momento parou a olhar, com respeito, um grande homem, um poeta, um historiador, um grande carácter, que nesse momento, com um velho casaco de lustrina, e um chapéu de palha, conversava à porta do Bertrand, com o seu enorme lenço de ramagens preparado para se assoar. Godofredo admirava-lhe os romances, o estilo. Depois comprou charutos: ele não fumava; mas era para dar ao sogro depois do jantar. E desceu enfim a Calçada do Correio, que faiscava, sob o sol, poeirenta e seca. E apesar do calor caminhava depressa—de vez em quando apalpando a caixa da pulseira, que metera no bolso da sobrecasaca.

Estava à Rua de S. Bento, alguns passos antes de sua casa, quando, dentro da confeitaria, viu a sua criada, a Margarida, esperando ao balcão. E então compreendeu logo que Lulu não se esquecera do dia, da data feliz. A Margarida viera comprar doces, a sobremesa. Ele em dois passos, entrou no seu portal. Era uma casa de dois andares, pintada de azul, apertada entre dois grandes prédios: ele ocupava o primeiro andar: e apesar de não gostar dos vizinhos de cima, uma gente barulhenta, e ordinária, de não querer fazer-lhes participar dos luxos que ele dava à sua entrada, a pedido da Lulu tinha ultimamente feito tapetar a escada. E não se arrependia: era agora sempre um prazer, o encontrar sob os pés, ao entrar em casa, aquele tapete desenrolando-se pelos degraus, dando uma sensação de conforto sólido. Aquilo dava-lhe como um acréscimo de consideração para si mesmo. Em cima, a Margarida, que voltaria num instante, deixara a cancela aberta: e um grande silêncio reinava dentro da casa: tudo parecia adormecido, sob a grande calma do dia. Uma luz forte caía da clarabóia; o cordão da campainha, com a sua grande bola escarlate, pendia imóvel.

Então veio-lhe certa ideia absurda de noivo folgazão: entrar pé ante pé, ir ao quarto surpreender a Lulu, que ordinariamente àquela hora se vestia, para o jantar. E sorria-se já do gritinho que ela ia dar, em saia branca talvez, com os seus belos braços nus. A primeira sala era a de jantar: e para ali comunicavam, por duas portas de reposteiros, o boudoir dela, e a sala de visitas. Entrou. No chão esteirado os seus sapatos de Verão, de sola fina, não faziam rumor. E tudo parecia desabitado, caído num silêncio, tão grande, que se sentia dentro da cozinha vir um som de frigir, e na varanda os movimentos do canário dentro da sua gaiola. O reposteiro do quarto dela estava corrido, e ele, sorrindo baixo, ia levantá-lo, assustá-la— quando da porta fronteira, que era a da sala de visitas, veio através do reposteiro meio corrido, um ligeiro rumor, vago, indistinto, como dum vago suspiro, um som de garganta. Ele voltou-se, percebeu que ela estava lá, espreitou. E o que viu, Santo Deus, deixou-o petrificado, sem respiração, todo o sangue na cabeça, e uma dor viva no coração, que quase o deitou por terra... No canapé de damasco amarelo, diante duma mesinha, com uma garrafa de vinho, Lulu, de robe-de-chambre branco, encostava-se, abandonada, sobre o ombro dum homem, que lhe passava o braço pela cintura, e sorria, contemplando-lhe o perfil, com um olhar afogado em languidez. Tinha o colete desabotoado. E o homem era o Machado.




Capítulo II

Ao estremecer do reposteiro, Ludovina vira-o, deu um grito, saltou instintivamente para longe do sofá. E Godofredo ouviu aquele grito: mas não se podia mexer, sem saber como, achara-se caído sobre uma cadeira ao pé da porta, e tremia, tremia, como numa sezão, e todo frio. E através do rumor de febre que lhe enchia a cabeça, o deixava sem ideias, ele sentia toda a atrapalhação que ia dentro na sala. Passos fortes pisavam o tapete, houve algumas palavras, palavras trocadas num sopro, e com angústia: depois o ferrolho da porta que dava para a escada correu; e depois um silêncio. Então, subitamente, a ideia que eles tinham fugido ambos restituiu-lhe bruscamente a força, um furor apoderou-se dele, dum salto arremessou-se para dentro da sala. Mas tropeçou numa pele de raposa que ornava o limiar,—foi-se estatelar ridiculamente, sobre o tapete; quando se ergueu, furioso, com os punhos cerrados, o reposteiro da porta da escada balouçava-se, à aragem, e não havia ninguém na sala. Correu ao patamar: a escada desenrolava-se, sob a luz da clarabóia, solitária, com o seu grande ar de decência. Então, alucinado, precipitou-se para a janela. Pela rua fora, a passadas de côvado, afastava-se o Machado, com o seu guarda-sol na mão. Onde estava ela então? Quando se voltou, no meio da sala, estava a Margarida, espantada, com o seu cartucho de bolos na mão.

—Onde está ela? gritou o Godofredo.

Ao princípio a criatura não compreendeu: mas subitamente, deixou cair o cartucho, levou o avental à cara, rompeu a chorar. Ele repeliu-a, quase a atirou para o chão; correu à cozinha. Com a porta fechada, cantando alto para o saguão, e escamando o seu peixe, a cozinheira não ouvira nada, não sabia nada. Então Godofredo arremessou-se contra a porta do quarto de Ludovina. Estava fechada.

—Abre, ou arrombo!

Não houve resposta: ele colou a orelha à madeira; vinha de dentro como um vago soluçar, um confuso sopro de angústia e de terror.

—Abre, ou arrombo, gritou ele, com uma punhada à porta, como se fosse já sobre o corpo dela—que batesse, todo com ideias de sangue e de morte.

Então uma voz aflita disse de dentro, num grito de súplica:

—Mas não me faças mal.

—Juro-te que te não faço mal... Abre, abre!

A chave rangeu. Ele precipitou-se enquanto Ludovina, no seu grande penteador branco, se refugiava por trás da cama, apertando as mãos, com os olhos arregalados de pavor, e cheios de lágrimas.

E então diante daquela mulher que chorava, ele ficou com a garganta estrangulada, sem obter uma palavra, dardejando-lhe um olhar de louco, e quase chorando também.

Então ela deu dois passos lentos para ele, com os braços abertos, tremendo-lhe a voz, tremendo ela toda, gritou por entre as lágrimas:

— Oh Godofredo, pela tua saúde, perdoa, eu não tinha feito mal nenhum, e era só a primeira vez...

E ele com a garganta estrangulada articulava apenas com os dentes cerrados:

—A primeira vez, a primeira vez...

A sua cólera subia, fez explosão, num berro:

— E que fosse a primeira, que tem fosse a primeira? E então com quem, infame! E com quem! O que eu devia era matar-te. Vai, vai-te embora, sai daqui, deixa-me, criatura... Vai-te, vai-te.

Ela saiu, num choro desesperado. Então voltando-se, ele viu à porta do corredor a cozinheira, que olhava, curiosa, com o olho aceso,—e mais na sombra do corredor, inquieta, e encolhida, mas espreitando também, a Margarida.

—Que faz vossemecê aqui, gritou ele. Já para a cozinha! Se há aqui um pio vai tudo para a rua. E atirou com a porta, ficou passeando furiosamente no quarto, onde o grande leito, com as duas travesseirinhas unidas, ostentava a sua brancura. E através do sangue que lhe fervia na cabeça, as suas ideias fixavam-se, decidia-se a bater-se com o Machado, num duelo de morte; e a ela, mandá-la para casa do pai. Pensou também num convento. Mas pareceu-lhe mais digno, ir simplesmente restituí-la ao pai. E apenas mediu, pesou, fixou estas duas resoluções, a sua grande cólera calmou-se.

Agora era uma tristeza dura, negra, onde se misturava a necessidade imperativa, fria, aguda, de se vingar... Agora a casa parecia de novo adormecida ao sol, conservando apenas como um surdo calor da cólera que ali passara.

Ele então procurou compor o rosto, mesmo diante do espelho arranjou a gravata; e empurrou a porta que dava para a sala de jantar. Ela estava lá, sentada numa cadeira, encostada à parede, com o lenço na mão, chorando baixo, e assoando-se por entre as lágrimas. Os seus belos cabelos que ainda estavam metidos numa rede vermelha, e o chambre que se desapertara, deixava ver um bocadinho de renda de camisa, uma vaga brancura de seio. Ele desviou os olhos, nem a quis ver chorar. Foi voltado para a janela, seco e duro, que disse:

—Arranje as suas coisas, para ir para casa de seu pai.

Com os olhos voltados para a vidraça, sentiu que por trás o choro brando tinha parado: mas ela não respondeu. Ele esperou ainda, uma súplica, um grito de amizade, uma palavra de arrependimento. Ouviu-a apenas assoar-se. Então tornou-se cruel:

—Em minha casa, continuou, sempre voltado para a janela, com uma voz espectral da sua boca de mármore, e que o devia queimar, não quero prostitutas. Pode levar tudo... Tudo o que é seu leve. Mas rua!

Voltou as costas, foi fechar-se no seu gabinete, uma espécie de alcova pequena, onde tinha apenas uma escrivaninha, e uma estante. Sentou-se, preparou o papel, lançou ao alto a data, com a mão trémula que tornava mexido o seu belo cursivo comercial. Depois hesitou se diria meu caro Papá ou só Exm° Senhor: e decidiu-se por esta fórmula porque agora todo o parentesco acabava, não tinha mais família. E diante do papel branco e vazio, ficou pensando, revolvendo esta ideia—não tinha mais família. Um enternecimento invadiu-o, uma grande compaixão de si mesmo. Porque lhe sucedia isto a ele, tão trabalhador, tão bom, e que a amava tanto? Uma lágrima veio-lhe aos olhos. Mas não se queria comover, queria escrever friamente, rigidamente, a sua carta. Mas ao tirar o lenço, para secar os olhos, encontrou uma caixa, a caixa da pulseira. Abriu-a, esteve-a olhando um momento: no seu ninho de seda, a cobra de ouro, com olhos de rubis, enroscava-se trincando o rabo. E ali estava o belo símbolo da continuidade eterna, dos dias felizes que voltam, um a um, para todo sempre. Então veio-lhe um desejo furioso de a acabrunhar, de lhe atirar em rosto todas as suas bondades para com ela, os seus sacrifícios, as toilettes que lhe dera, todas as vontades a que obedecera, e os camarotes em S. Carlos, e as dedicações do seu amor. E não se conteve, voltou à sala de jantar, com os lábios cheios de exprobações. Ela ainda lá estava, de pé agora, e como ele há pouco, olhando estupidamente o prédio fronteiro, limpando os olhos. O seu belo perfil banhava-se na luz, a sua grande saia continuava, numa linha mole, a graça forte do seu corpo. E subitamente Godofredo sentiu que as palavras se lhe secavam na boca. Não achava uma transição para começar as suas invectivas: e à outra janela, torcia furiosamente o bigode, com o coração num tormento, os lábios estéreis. Por fim uma ideia absurda surgiu do seu vago fundo romântico. Atirou a pulseira para cima da mesa; gritou:

—Mete isso também na mala, tinha-ta comprado hoje, é mais uma prenda!

Ela instintivamente deu um olhar à caixa da pulseira. Depois recomeçou a chorar.

Aquelas lágrimas mudas, importunavam-no, enervavam-no.

—Para que estás tu a chorar? De quem é a culpa?... Minha não é, que nunca aqui te faltou nada...

E então foi uma explosão. Passeando pela sala, numa voz baixa, rápida, lançou-lhe à face toda a sua ternura, toda a sua dedicação. Ela deixara-se cair sobre uma cadeira, chorando sempre. Parecia dever chorar eternamente. Ele gritou-lhe:

—Mas deixa-te de choros, fala! Dize, explica... Não tens nada a desculpar-te? Foste tu que quiseste, foste tu que o provocaste?

Ela sentada ainda, levantou vivamente o rosto. Um clarão luziu-lhe nos olhos, através das lágrimas. E sofregamente, como quem se agarra para não cair, acusou o Machado. Fora ele, ele só tivera a culpa. Aquilo começara havia quatro meses, quando ele tinha deixado a do D. Maria. E então começara com ela: e falava-lhe, e tentava-lhe, e escrevia-lhe, e aparecia lá quando Godofredo estava no escritório, e um dia, enfim, quase à força...

—Juro-te que foi assim... Eu não queria, pedi-lhe por tudo... Depois tive medo que a Margarida ouvisse o barulho...

E Godofredo ouvia estas coisas, lívido.

—Deixa ver as cartas dele, disse por fim, com uma voz que mal se ouvia.

—Não as tenho...

Ele deu um passo para o quarto, dizendo:

—Eu as acharei.

Ela erguera-se, com um grito, envolvendo-o nos braços:

—Juro-te que as não tenho. Assim Deus me salve... Entreguei-lhas todas há dias... Ele afastou-a, foi ao toucador. Justamente o molho de chaves estava sobre o mármore, entre os frascos. E então começou uma busca desesperada por entre os lenços, as rendas, as caixas de leques, todas essas coisas íntimas de mulher.

Ela por vezes, tomava-lhe o braço, jurava-lhe que não tinha cartas. Ele tranquilamente afastava-a, continuava, devastando as gavetas. Um leque de marfim quebrara-se ao cair: um rosário de contas com a sua cruz jazia no chão.

E já lhe parecia que ela falava verdade, quando viu o maço de cartas, apertado com uma fita de seda, e expondo-se estupidamente à sua vista, desde o princípio, entre duas escovas. Arrebatou-o,— desapertou-o: não eram cartas dele, eram cartas dela. A primeira que abriu, começava, meu anjo. Então tranquilamente meteu-as no bolso. Voltou-se para ela, que ficara, prostrada à borda do leito, disse:

—Arranje-se, para sair hoje mesmo.

Voltou ao gabinete. E aí uma por uma leu as cartas. Não havia nada mais imbecil: era a perpétua repetição de frases empoladas, e feitas: “meu anjo adorado, porque não fez Deus que nos encontrássemos há mais tempo?”... «Meu amor, pensas tu naquela que daria a vida por ti?» E mesmo isto: “Ai, quem me dera ter um filho teu...”

E a cada frase lhe caía no coração, como uma pancada surda, que o devastava. Então, vivamente, e quase rasgando o papel com a pena, escreveu a carta ao sogro, quatro palavras simples, “que encontrara sua mulher com um homem, e desejava que ele a viesse buscar, e a recolhesse. Senão ele pô-la-ia de todo o modo fora de casa, como uma meretriz, indiferente ao destino que ela tomasse.» E num post-scriptum acrescentava que ia sair das cinco às sete—e lhe pedia que aproveitasse essa ausência dele para vir buscar sua filha.

Depois, meteu a carta no bolso, abotoou a sobrecasaca, passou a manga pela seda do chapéu e saiu. Na escada encontrou um rapaz, de avental branco com um cesto na mão.

—É aqui que mora o Sr. Alves?

Era o empadão, o fiambre, o queijo da Serra, todas as coisas boas que ele comprara. Uma onda de tristeza afogou-lhe o coração. Teve de se segurar à rampa, para não desfalecer; o rapaz olhava-o espantado.

—É de casa do Mata?

—Sim senhor, respondeu o rapaz, ainda espantado daquele senhor que lhe parecia doente.

Godofredo murmurou:

—Sobe, bate em cima. E ficou a escutar, ouviu o rapaz tocar, a porta abrir-se,—depois a voz da Margarida dizer para dentro:

—E um rapaz que traz uma empada, minha senhora.

Ele desceu as escadas, quatro a quatro,—mas em baixo, como dominado pela decência grave da escada, procurou calmar-se, abotoou a sobrecasaca, passou as mãos pela face, preparando-se para passar diante dos seus vizinhos, naquele ar que o fazia estimado e respeitado.




Capítulo III


À porta da mercearia defronte, felizmente estava um galego que às vezes lhe fazia recados—muitas vezes para a casa do sogro. Entregou-lhe a carta,— recomendando-lhe que a entregasse em mão própria, que não esperasse a resposta. E como conhecia a probidade daquele galego, encanecido no serviço do bairro, acrescentou:

—Tem cuidado, em mão própria, vai dinheiro, uma nota.

O velho guardou a carta nas profundidades do seio, por baixo da camisa.

E então de longe, Godofredo pôs-se a seguir aquela carta.

Viu o homem entrar no prédio do sogro, um prédio de quatro andares, enxovalhado, com uma loja de trastes velhos por baixo. Neto morava lá no alto, onde havia um vaso na varanda. E durante uma eternidade, esteve de longe vigiando a porta; o galego não descia. Então veio-lhe um terror que o sogro não estivesse em casa. Se só recolhesse à noite, se jantasse fora, não daria sinal de si senão, tarde, à noite! E ele que havia de fazer? Errar, pelas ruas,—à espera que sua mulher saísse? E isto dava-lhe uma sensação terrível de abandono, de desordem, como se para sempre tivesse acabado a regularidade das coisas. De repente, viu o galego. Tinha entregado a carta ao senhor Neto. E descera logo, não esperara mais nada. Então, Godofredo, aliviado, continuou caminhando ao acaso, e pouco a pouco os seus passos, instintivamente, fizeram o caminho de todas as manhãs, o caminho do seu escritório. Desceu o Chiado. Na Rua do Ouro parou um momento a olhar uma pistola, na vitrine do Lebreton. E a ideia da morte atravessou-o. Mas não queria pensar nisso, agora, nem no seu duelo. Logo às sete horas, quando recolhesse, achasse a casa vazia, então pensaria no duelo, em ajustar contas com o outro. E foi andando ao acaso. Um momento pensou em ir ao Passeio Público: mas receou encontrar o Machado. E foi pelo Terreiro do Paço, pelo Aterro, quase até Alcântara. Ia como um sonâmbulo, sem reparar na gente que acotovelava, nem na beleza da tarde de Verão, que morria, num esplendor de ouro vivo. E não pensava em coisa alguma: era uma ondulação de ideias, em que passavam toda a sorte de coisas, as recordações do seu namoro com Ludovina, dias de passeio que tinha feito com ela, depois a maneira como ela estava recostada no braço do outro, e com o vinho do Porto defronte: e a cada momento voltavam-lhe fragmentos das cartas dela. «Meu anjo, porque não hei-de eu ter um filho teu?» Era a mesma coisa que ela lhe dissera com os lábios unidos aos dele, de noite, no calor do leito... E regozijava-se agora de não ter um filho daquela infame.

Ia escurecendo, ele pensava em voltar: uma grande fadiga tomava-o, de todas aquelas emoções, aquela grande caminhada, no ar mole daquele dia de Julho. Entrou um momento num café, bebeu um grande copo de água: e ficou sentado, com a cabeça apoiada à parede, abandonando-se, no prazer daquele curto repouso. O café estava numa meia penumbra. Um crepúsculo quente envolvia a cidade: todas as janelas abertas, respiravam, depois da grande calma do dia: uma ou outra luz ia-se acendendo, e via-se passar gente encalmada, com o chapéu na mão. E ele sentia um prazer, naquela penumbra, e naquele repouso: parecia que a sua dor se dissipava, se dissolvia, naquela inacção do corpo, entre as sombras do anoitecer. E vinha-lhe um desejo de ficar ali para sempre, sem jamais se acenderem as luzes, sem que ele jamais tivesse de mover um passo na vida. E a ideia da morte invadiu-o, dum modo sereno e insinuante, como o sopro duma carícia. Desejou verdadeiramente morrer. Naquele abatimento em que o seu corpo caíra, todas as amarguras que ainda tinha a passar, as coisas cruéis que tinha a penar, a volta à casa solitária, o encontro com o Machado, os passos a dar para procurar testemunhas— lhe pareciam outros tantos esforços, intoleráveis como penedos, que as suas pobres mãos jamais poderiam erguer:—e seria delicioso, encostar a cabeça ao muro, e ficar ali, naquele banco, morto, liberto, fora de toda a dor, tendo saído da vida, com a silenciosa tranquilidade da luz que finda. Um momento pensou no suicídio. E não o aterrava, nem o fazia estremecer a ideia de se matar. Somente, o procurar uma arma, o dar um passo, para se atirar ao rio, eram ainda esforços, que lhe repugnavam, naquele desfalecimento de toda a vontade. Quereria morrer ali, sem se mover. Se uma palavra bastasse, uma ordem dada baixo ao seu coração para que parasse e arrefecesse, diria essa palavra, tranquilamente... E talvez ela chorasse, e lhe sentisse a falta. Mas o outro?

E a esta ideia, do outro, a resolução voltara-lhe, uma energia, vaga, ainda bastante para que se erguesse, continuasse o seu caminho... Sim, o outro ficaria bem contente, se ele desaparecesse essa noite. Sentiria um completo alívio. Um ou dois dias mostrar-se-ia pesaroso, talvez se sentisse realmente perturbado. Mas depois continuaria a vida: a firma seria Machado e C.a; ele continuaria a ter amantes, a ir ao teatro, a pôr cera-moustache no bigode. Isto não era justo. Fora o outro que causara a ruína, duma bela felicidade, era ele que devia morrer. Era o Machado que devia desaparecer; era ele que se devia matar. Isso seria mais justo. E as coisas seriam o contrário: a firma continuaria a ser Alves e C.a, e ele poderia mais tarde reconciliar-se com sua mulher, e a vida seguiria, resignada e calma. Era assim que devia ser. Deus, olhando para um, olhando para o outro, medindo os méritos e as culpas de cada um, devia fazer desaparecer o Machado, inspirar-lhe a ele a ideia do suicídio.

E então, destas duas absurdas imaginações que se balançavam no espírito perturbado—o seu suicídio, o suicídio do outro—uma ideia surgiu, como faísca viva de entre duas nuvens pesadas, uma ideia nítida em todos os seus detalhes, que lhe pareceu justa, realizável, a mais conveniente, a única digna...

Mas nesse momento, alguma coisa de familiar, nas casas junto das quais caminhava, fez-lhe sentir que estava junto da sua porta. Parou, todo tomado pela ideia de Ludovina, olhou a casa. Com o seu bico de gás defronte, ela punha entre os dois altos prédios, a decência da sua fachada asseada, e pintada de azul, com persianas verdes. No seu andar não havia luz alguma: o portão estava cerrado. Estaria ela ainda lá? Teria o pai vindo buscá-la? E uma angústia terrível fazia-lhe bater o coração. Um momento desejou que ela lá estivesse, pensou em perdoar, tanto aquela casa vazia o aterrava. Mas depois sentiu, que diante dela daí por diante, seria frio, constrangido; não, melhor que nunca mais se vissem. Então uma curiosidade levou-o a casa do sogro, ao fim da rua. Aí era um alto prédio, desleixado, sujo. No terceiro andar do sogro, as janelas abertas respiravam a frescura da noite, e também não havia luz. Nenhuma daquelas fachadas lhe respondia, o tirava de inquietação.

Então voltou a casa, empurrou o portão. A escada tapetada dormia, na luz quente do bico de gás: e o som abafado dos seus passos, parecia-lhe repercutir-se num lugar deserto e côncavo. Do segundo andar vinha, como vago e religioso, um som de piano, uma coisa do Fausto. A gente de cima era feliz, tocava piano.

A cozinheira veio abrir—e o quer que fosse no seu modo, revelou logo ao Godofredo que Ludovina partira.

Na sala de jantar, sobre o oleado da mesa, ardia uma vela. Ele tomou-a, entrou no quarto de dormir—viu logo duas malas fechadas, e um baú. Mas havia ainda objectos dela: junto da cama estavam as suas chinelinhas, sobre a chaise-longue o chambre branco que ela trazia essa manhã. E outras coisas tinham sido já guardadas—os frascos de cristal do toucador que eram dela, e uma Nossa Senhora de madeira, em que ela tinha devoção. Ele pousou a vela sobre o toucador—e o seu rosto apareceu-lhe pálido, envelhecido, olhando para ele, com um ar de ruína e de abandono...

Tomou a vela, foi à sala de visitas. Aí ficara um ar de catástrofe. A pele de raposa estava enrolada para um lado,—sobre a mesa junto do sofá, ainda estava a garrafa de vinho do Porto, e à borda uma ponta apagada do charuto do outro. E diante daquela ponta do charuto, uma raiva surda invadiu-o, pareceu-lhe sentir-se esbofeteado por uma mão de ferro, teve o estremecimento dum insulto maior, e jurou ser de bronze, nunca mais perdoar, mandar-lhe ele mesmo as malas embora,—e ver o outro morto aos seus pés, ou morrer ele também. Então imediatamente resolveu resistir àquele estado de perturbação, e de inquietação. Quis que no seu espírito reinasse a ordem: que tudo na casa retomasse o seu ar regular e calmo. Ela partira, as suas malas partiriam, nessa noite. Daí por diante era um viúvo: mas o andamento da casa continuaria, com ordem e serenamente.

Gritou logo por Margarida.

—Então hoje não se janta nesta casa. São estas horas, e a mesa não está posta?

A criatura olhou para ele, como espantada de que ele quisesse jantar, ou de que se tornasse a jantar naquela casa. Ia decerto dizer alguma coisa: mas ele olhou-a dum modo tão firme, que ela saiu de esguelha—e daí a um momento, punha a mesa, apressando-se, mostrando zelo, como se quisesse fazer-se perdoar a sua vaga cumplicidade. E pôs na mesa tudo o que continha o cesto—o empadão, o fiambre, a torta de fruta.

Godofredo no entanto fora para o seu gabinete. Agora aquela ideia que o atravessara bruscamente ao recolher do passeio, a solução que lhe parecia ser a única possível, voltava, estabelecendo-se-lhe no espírito, tornando-se agora o centro de toda a sua actividade interior. E era isto, tirarem à sorte, ele e o outro, qual deles se devia matar!

E isto não lhe parecia excessivo, nem trágico, nem despropositado: pelo contrário era a coisa racional, digna, e de mais, a única possível. E parecia-lhe que estava raciocinando muito friamente. Um duelo à espada, dois negociantes em mangas de camisa, atirando-se cutiladas gochas, vãs, até que um se feria no braço, parecia-lhe ridículo: e não era menos trocarem duas balas de pistola, falharem-se, e cada um entre os seus padrinhos, voltar a meter-se na carruagem de aluguer. Não. Para uma ofensa daquelas, só a morte: uma só pistola carregada, tirada ao acaso entre dois, disparada à distancia dum lenço. Mas isto não era realizável. Onde encontrariam eles testemunhas que consentissem, quisessem partilhar a responsabilidade desta tragédia? Debalde se lhes explicaria a ofensa: o adultério é uma coisa grave, para o marido; os outros consideram-no um fracasso que não pede estes excessos de sangue. Além disso, se ele fosse o morto, bem, acabava-se: mas se visse cair o outro aos seus pés, qual seria depois a sua existência? Teria de fugir, abandonar os seus negócios, recomeçar a fortuna, numa terra estranha. Onde? E depois a grande dificuldade permanecia: onde haveria padrinhos para isso? Seria então o escândalo, o falatório, a verdade que se saberia. Enquanto do outro modo, tudo era fácil, secreto, decente, sem incomodar ninguém. Tiravam à sorte: aquele que perdesse, matava-se dentro dum ano. Se ele perdesse não hesitaria um momento, matar-se-ia logo. E não duvidava um momento que o Machado aceitasse!... Como poderia recusar? Desonrara-o, devia pagar com o seu sangue. E no mesmo tempo tinha um vago pressentimento que seria ele que perderia... Acabou-se, tanto melhor. Que gozos lhe poderia trazer a vida, agora, naquela casa só, sempre só, e não tendo mesmo o gosto do trabalho, desde que não tinha prazer em gastar? —E não hesitou um momento mais, escreveu logo um bilhete seco ao Machado, pedindo-lhe para comparecer, no dia seguinte, domingo, às onze horas da manhã, no escritório... Fechava a carta quando a Margarida veio dizer que estava o jantar na mesa. Pôs rapidamente o chapéu, desceu à rua, deitou a carta na caixa da mercearia, entrou na sala de jantar—quando a cozinheira e a Margarida, diante da terrina da sopa que arrefecia, pasmavam daqueles modos do senhor. A presença da Margarida incomodava-o: sentia-a cúmplice, na confidência daquela infâmia. Um momento pensara em a despedir.

Mas era como soltar, através doutras casas, e pelas casas das inculcadoras, aquela língua de sopeira, contando e comentando a sua desgraça. Preferiu conservá-la, aturar-lhe a presença, manter-lhe o silêncio pelo receio de ser despedida...

Tinha desdobrado o guardanapo, levantado a terrina da sopa, quando—a campainha retiniu com força.

Margarida foi à porta, e ele ficou com o coração aos pulos. A rapariga voltou correndo, dizendo com o tom com que anunciaria a aparição da Providência—castigadora e reparadora:

—Meu senhor, é o Sr. Neto! 



Capítulo IV

Neto entrou. Ao ver a mesa posta, com o grande empadão, o fiambre, e Godofredo de guardanapo entalado no colarinho, e com a garrafa ao lado, Neto ficou junto da porta, com um ar de surpresa, o chapéu numa das mãos, a bengala na outra. Terminou por murmurar, com uma ponta de amargura:

—Está bem, vejo que não falta o apetite.

Godofredo erguera-se logo, tomara uma vela de cima do aparador, dirigira-se à sala de visitas. Mas Neto não consentiu.

—Não senhor, temos tempo de falar, acabe você de jantar...

Mas Alves depois de levar à boca uma colher de sopa repelira o prato, tocou a campainha ao lado. Neto no entanto pousava, vagarosamente, o seu chapéu, a sua bengala, numa cadeira— enchendo o silêncio que se fizera, com a lentidão dos seus movimentos. Era um homenzarrão, que fora nos seus tempos belo homem, e conservava ainda um bom perfil, a que a extrema palidez dava uma finura e distinção. Sobre a calva tinha duas repas de cabelo, laboriosamente e singularmente arranjadas: o bigode grisalho parecia cortado rente, a direito, duma só tesourada: e os seus menores movimentos tinham tanto uma afectação de dignidade, e de seriedade, que mesmo, nesse momento, tirando devagar as luvas, parecia estar cumprindo um acto importante da vida oficial.

A criada no entanto trouxera o cozido: e como ela se demorava em volta da mesa, retardando, arranjando, na esperança de ouvir uma palavra, Neto, com um ar de homem de sociedade, mostrou indiferença, um ar natural, dizendo, que estava um calor de rachar.

— Muito calor, repetiu Godofredo, que desde a entrada de Neto, recostado na cadeira, puxando a ponta do bigode, a outra mão no bolso, não levantara os olhos da borda da mesa. Por fim a criada saiu, com ordem de esperar por outro toque da campainha «para trazer o resto». E logo Godofredo ergueu-se, a fechar a porta.

Então, Neto, vendo que podia falar livremente, sentou-se à borda duma cadeira, esteve um momento esfregando ambos os joelhos com ambas as mãos, e começou num tom lento, com palavras estudadas, de intenção eloquente, para impressionar:

—Eu cumpri o meu dever de pai...

Esperou um momento, olhando o genro, uma interrupção, uma palavra. Godofredo servia-se de arroz. Neto continuou:

— Cumpri o meu dever de pai, e estou-o cumprindo ainda neste momento que é solene... Logo que recebi a carta, logo que vi que havia cá na casa desinteligência, vim buscar a minha filha, para dar o tempo, para que se pudessem trocar explicações, para que se desembrulhasse a meada... Quando duas pessoas não estão de acordo, melhor é que cada um se safe para seu lado. De longe, a sangue frio, trata-se tudo melhor. Cara a cara, palavra puxa palavra, vai tudo pela água abaixo...

As palavras solenes iam-lhe escasseando. E acumulando as expressões vulgares, excitado, falou em cancaborrada.

—Enfim, concluiu ele, o que eu quero saber é o que significa todo este escândalo?

Godofredo ouvira em silêncio, picando vagarosamente grãos de arroz. Estava decidido a não se alterar, a ser respeitoso e rígido. Desprezava o sogro, por histórias equívocas que sabia dele, sobretudo pelos seus sujos amores com a cozinheira. Aquele ar solene não o impressionava: e com duas ou três palavras secas ia facilmente dominá-lo.

—O escândalo não é mais nem menos, do que eu lhe escrevi. Encontrei sua filha com um homem, e mandei-lha para casa.

O Neto estremeceu. Aquele tom seco pareceu-lhe um insulto. Ergueu-se, com o olho aceso, a calva irritada:

— Ora essa! Ora essa! E se eu não a quisesse em casa? Essa não está má! Então casa-se com uma filha-família, tem-na quatro anos, e ao fim de quatro anos, agora minha menina, volta para casa de teu pai? Essa não está má! E se eu a não quisesse em casa, meu caro senhor, e se eu a não quisesse em casa?

Bracejava, esquecidas todas as precauções, com uma voz que se devia ouvir na cozinha.

Muito friamente Godofredo disse:

—Nesse caso ficava na rua.

Isto acabou de enfurecer o Neto.

—Na rua? Na rua?

—Perfeitamente. Desonrou-me, desonrou a minha casa, aqui não a consinto... Faça as sua malas, adeus! Se o pai, se ninguém a recebe, está claro que fica na rua.

Neto não podia acreditar, nesta teima implacável. Tinha cruzado os braços, contemplava o genro, com um olhar que chamejava.

—Homem deixe-me olhar para si. Deixe-me olhar para si que o senhor é um monstro. Então quer o senhor dizer que, abandonava sua mulher, a deixava na rua, sem um canto para se abrigar.

Tanta palavra torturava Godofredo. Era como o remexer numa ferida que ainda sangrava. Ergueu-se, querendo dizer ainda uma palavra, acabar a discussão. Mas o Neto não o deixou abrir os lábios, gritou:

—E não se põe uma mulher fora de casa, porque se encontrou só a receber uma visita!

Godofredo ficou a olhar para ele, com os lábios trémulos, sem poder soltar as palavras que lhe estrangulavam a garganta. Era como um horror, de dizer alto, ali, mesmo a um sogro, como a tinha encontrado, nos braços do outro. E diante deste silêncio, Neto exaltava-se, mais, triunfando:

—E necessário provar! A lei pede o flagrante... O senhor não viu nada, não apanhou uma carta...

Toda a cólera de Godofredo fez explosão:

—Cartas infames, senhor. Cartas obscenas, senhor! Sabe o que lhe dizia, que queria ter um filho dele! Um filho, que eu havia de vestir, de sustentar, de estimar, de educar... Um filho! E aqui está a educação que o senhor deu à sua filha...

Neto ficara cabisbaixo. A filha não lhe falara de cartas. Passou a mão pelas duas repas da calva com um ar atrapalhado, e murmurou depois dum grande silêncio:

—As mulheres, quando lhes chega a veneta, escrevem coisas sem tom nem som. . .

Godofredo não respondeu. Passeava pela sala, com as mãos nos bolsos; e sobre a mesa, o seu prato ainda com arroz, ficava esquecido e arrefecendo. Neto então bebeu um grande copo. E subitamente, como tomando uma grande resolução, dizendo a coisa suprema que ali o trouxera, exclamou:

—Mas enfim, de que quer o senhor que ela viva? Eu não tenho para a vestir, nem para a calçar?...

Godofredo parou logo, no seu lúgubre passeio. Esperava aquilo, estava preparado, tinha a sua resposta, em que pôs um tom de dignidade, de homem superior às misérias do dinheiro:

—Enquanto sua filha estiver em casa de seu pai, e se portar bem, tem trinta mil réis por mês.

A calva do Neto iluminou-se: e pareceu subitamente satisfeito, toda a sua cólera desapareceu.

—É razoável, é razoável, disse ele num tom quase enternecido.

Depois os dois homens ficaram calados como se não tivessem mais nada a dizer...

Godofredo tocou a campainha: a criada correu, dardejando desde a entrada um olhar a um e a outro.

—O café, disse Alves.

—E uma chávena para mim, senhora Margarida, disse o Neto retomando na casa a sua familiaridade de sogro.

Godofredo continuava passeando na sala, Neto sentara-se à mesa, e preparava cuidadosamente um cigarro, dando de vez em quando um olhar de lado ao genro. E levou uma eternidade a preparar o cigarro: enrolou-o gordo e liso, depois metendo a onça na algibeira, para tirar a isca, exclamou, com um vago suspiro.

—O pior é o falatório!

Godofredo não disse nada, o outro petiscou lume, acendeu pausadamente o cigarro.

—E a você, na sua posição, na praça, não lhe faz senão mal...

Godofredo, voltou-se impaciente.

—E de quem é a culpa?

Pois bem, perfeitamente, a culpa não era dele, Neto sabia-o bem... Mas enfim, o melhor seria evitar o falatório. Pelo menos naqueles primeiros tempos... Margarida entrou com o café. Godofredo sentara-se. E remexendo o açúcar, um diante do outro, o genro e o sogro, estiveram um momento calados. Neto provou o café, deitou-lhe ainda mais açúcar. Depois deu duas fumaças. E voltou à sua ideia:

—Nem para você, nem para mim, é bom que se ponham por aí a falar.

Então aquelas lentidões, aquelas pausas, irritaram Godofredo.

—Mas que diabo! Que quer que eu lhe faça?

Mas Neto conservava agora o seu ar calmo e reflectido. E com uma voz tranquila falou dos seus sentimentos. Ele sempre se tivera por bom pai; e se não fossem as circunstancias em que estava, não teria aceitado mesada para sua filha... Não teria exigido nada. Levava-a para casa, lá viveriam todos, e acabou-se... E tudo o que fosse necessário para fazer cessar o escândalo, fá-lo-ia à sua conta.

Godofredo começava a perceber. O Neto tinha uma outra ideia para apanhar dinheiro: e ele quis logo as coisas claras.

—Vamos lá a saber, sem mais circunlóquios, o que o senhor pensa.

Mas o Neto continuou com circunlóquios. O melhor meio de evitar o escândalo era sair de Lisboa. E a estação favorecia-os, era o tempo de ir para banhos, ninguém se admiraria que ele fosse por exemplo para a Ericeira levando sua filha casada. Todo o mundo suporia que Alves não podia acompanhá-la, nem deixar os seus negócios... Mas ninguém sabia se ele ia ou não ver sua mulher todas as semanas. A ideia era famosa, mas...

Godofredo interrompeu-o:

—Mas quer que eu lhe dê o dinheiro para isso...

—A não ser que eu o vá roubar, ajuntou o outro muito francamente.

Godofredo reflectiu. Havia ali uma maneira hábil de ir passar o Verão para a praia, à custa dele: mas ao mesmo tempo a ideia era prática, matava o falatório. Aceitou. E num instante regularam os detalhes. Para o aluguer da casa na Ericeira, jornadas, transporte de alguma mobília, o Godofredo dava trinta libras: e nos meses de Agosto, Setembro e Outubro, a mesada à filha, para despesas de praia, seria elevada a cinquenta mil réis. E apenas dissera isto, ergueu-se, querendo por todos os modos cessar aquela entrevista.

—E não falemos mais nisto, que tenho a cabeça em água.

Estava com efeito pálido como um morto, com um começo de enxaqueca, um desejo de se deitar, de adormecer por muito tempo.

Mas Neto, de pé, ainda queria dizer uma última palavra. De ora em diante, ele era o responsável por sua filha. Confiava em Deus, tinha a certeza que mais tarde, passado aquele primeiro desgosto, haveria mútua indulgência, e eles se viriam a juntar... Godofredo negou, com um movimento de cabeça, um sorriso doloroso. Não, nunca se juntaria com ela.

— O futuro pertence a Deus, disse Neto. Agora concordo, que é melhor que estejam separados por algum tempo. E era a isto que eu queria chegar: enquanto ela estiver em minha casa, é como se estivesse num convento... Respondo por ela.

Godofredo fez com os ombros um movimento vago. Tudo aquilo lhe parecia palavreado. O que queria agora era estar só. Tinha tocado a campainha, Margarida preparava-se para abrir a porta, alumiar ao Sr. Neto. Ele tomou o seu chapéu, bebeu, já de pé, o último gole de café, e depois de apertar a mão ao genro, saiu, recomendando baixo à criada que tivesse prontas as malas da senhora...

—E manda dizer que não lhe esqueça aquele açucareirito de prata que lhe deu o padrinho nos anos dela... O açucareiro é dela.

E desceu as escadas, regozijando-se desta boa ideia. A filha não lhe dissera nada do açucareiro. Mas enfim era dela, uma bonita peça de prata, e era bom que lhe recolhesse a casa, também.

Fora, a noite estava abafada, e Neto dirigiu-se a casa devagar, levando o chapéu na mão, calculando as despesas da Ericeira, contente consigo.

Os banhos iam-lhe fazer bem. Com cinquenta mil réis por mês, da Ludovina, podia-se estar com conforto: e como a Ludovina não devia aparecer, nem havia toilettes a fazer, ainda se metia dinheiro no bolso.

Quando depois de subir, aos poucos, os seus cento e cinquenta degraus, bateu à campainha da porta,—foi a Teresa, a filha solteira, que veio abrir, a correr, com os olhos brilhantes, toda excitada. Ninguém lhe disfarçara a verdade. Sabia já que a Ludovina tinha sido apanhada com um homem, que havia um grande desgosto, que o pai fora para ter uma explicação com o Godofredo.

—Então, perguntou ela, sofregamente.

—Lá dentro, lá dentro falaremos.

Atravessaram a cozinha, que estava às escuras com uma claridade de brasa no fogão, onde fervia a chaleira, e entraram na sala de jantar, uma espécie de cubículo nas traseiras. Sentada à mesa redonda, coberta de oleado, a criada, a Sra. Joana, uma raparigota fresca, com dois brincos ricos de senhora, e vestido de merino azul, lia o Diário das Novidades à luz dum candeeiro de petróleo, com abat-jour; e junto ao aparador na sombra, estendida numa cadeira de vime, calada, vestida, estava Ludovina.

Quando o pai apareceu, ela ergueu-se, com os olhos ainda vermelhos, toda vestida de preto. Neto sentara-se, limpando com o lenço de seda o suor do pescoço. Os olhos das três mulheres devoravam-no. E como ele não se apressava, gozando a ansiedade da família, foi a Sra. Joana que gritou:

—Vamos lá, então, fale!

Ele enrolou devagar o lenço e respondeu, no silêncio profundo da sala:

—O Godofredo dá trinta mil réis por mês.

Houve uma vaga respiração de alívio, correu um frémito de satisfação. Teresa, olhava a irmã, pasmada daqueles trinta mil réis que lhe vinham assim para o bolso, por ter sido apanhada com um homem. A Sra. Joana confessou que era de cavalheiro. Mas a Ludovina não via nada de extraordinário: era o que faltava é que a pusesse fora da porta, sem cinco réis.

Então o pai voltou-se para ela com a testa enrugada.

—E no fim dizes que não tinhas escrito nada, e ele diz que te apanhou cartas indecentes.

—É mentira, disse ela simplesmente, as cartas não diziam nada... Eram uma brincadeira.

Houve um silêncio, o Neto com os olhos na borda da mesa, acalmava dignamente as repas da calva. E as três mulheres continuavam a olhá-lo , esperando outros detalhes, toda a história da entrevista.

— E as malas da Lulu, ó Papá, perguntou a Teresinha, que vivia desde essa tarde com o desejo de ver chegar as malas, de as ver desfazer, apanhar algum presente.

Mas o papá, todo noutra ideia, continuou, sem responder:

—E ficou combinado que para evitar falatório vamos passar o Verão à Ericeira.

Então foi uma alegria. Teresinha bateu as palmas. Joana ria, de satisfação, ela que tanto precisava de banhos. Só Ludovina ficava indiferente, com uma sombra de tristeza na face, pensando no belo plano de que Godofredo andava ultimamente falando, os dois meses de Agosto e Setembro passados em Sintra. E foi sentar-se de novo,—enquanto Joana e Teresinha torturavam o papá de perguntas, já com planos, ambas com o entusiasmo daquela estação de banhos... E eram já mil planos. Teresa já palrava desabaladamente. Joana lembrava coisas que seria necessário levar, os colchões, a louça de mesa, e o piano, para dar mais alegria. O melhor seria irem todos à Ericeira, para alugar a casa... Então Ludovina, saiu do seu silêncio.

—E é necessário uma casa em que se caiba... Que para dormir num cubículo como este de cá, não tem jeito.

Diante desta exigência, o pai franziu a testa. E não se conteve, disse logo:

—Hás-de dormir onde puderes... Se querias os cómodos da casa de teu marido, portasses-te bem, ficasses lá.

Houve um silêncio na sala. Ninguém jamais ousava replicar quando Neto erguia a voz. Então, naquele silêncio de respeito e de susto, que se fizera em torno da sua voz irritada, ele aproximou-se da mesa, tirou da algibeira um lápis, encavalou a luneta no nariz, e sob o candeeiro, começou a fazer à margem do jornal, os cálculos das despesas da Ericeira. Toda estendida pela mesa, Teresinha via alinhar os números—tanto para casa, tanto da carruagem que os levasse, como uma enfiada de prazeres que brilhavam uns entre os outros. Por trás, de pé, Joana dava as suas ideias. Dentro na cozinha a chaleira do chá fervia. Uma tranquilidade honesta envolvia a casa: —e na sombra Ludovina, calada, como esmagada diante da existência que agora a esperava, os incómodos, a má comida, o génio do pai, a autoridade da criada na casa, tudo o que a esperava e tudo o que perdera, e amaldiçoava a sua infelicidade de ter caído assim nos braços dum sujeito que ela não amava, de quem não recebia prazer, levada àquilo sem saber porquê, por tolice, por não ter que fazer, nem ela sabia porquê.


Capítulo V


Na manhã seguinte um raio de sol, entrando pela janela, despertou bruscamente Godofredo. Ergueu-se de repente sobre o cotovelo, e batendo as pálpebras, ficou espantado de se ver num sofá, vestido, com botas. Então bruscamente a ideia toda da sua desgraça caiu-lhe sobre o coração pesadamente. E um véu de crepe pareceu envolver tudo em torno dele. Na véspera, depois que o Neto partira, estendera-se ali, morto de fadiga, e adormecera logo, dum sono fundo e pesado. Então sentou-se no sofá. Havia um grave silêncio na casa e na rua: eram apenas seis horas. Em redor o quarto conservava a desordem da véspera, com a mala ao centro, o chambre de Ludovina atirado aos pés da cama. Olhou muito tempo aquele chambre, o grande leito intacto, onde ninguém se deitara, com as duas travesseirinhas ao lado uma da outra. Depois como na véspera, percorreu a casa: na sala de jantar, a mesa ainda tinha a toalha da véspera e em cima uma vela esquecida derretera-se e extinguira-se dentro dum castiçal. Depois diante da porta da sala de visitas tomou-o uma cobardia, não se atreveu a mover o reposteiro. E voltou para o quarto, tornou a sentar-se no sofá, as mãos ao acaso, o olhar vago, sem saber o que havia de fazer àquela hora matutina, em que a cidade ainda dormia. Àquela hora Ludovina decerto dormia também. E recordava-se das manhãs em que ele acordava cedo, se erguia de manso, abria uma fresta da janela,—enquanto ela dormia, com os seus cabelos numa rede, uma renda do chambre em volta do pescoço, e as longas pestanas negras fazendo-lhe uma sombra na face... Agora o leito, ainda feito, àquela luz clara da manhã, dava-lhe uma sensação de frialdade, de desconforto... Uma tristeza invadiu-o, imensa, sem fim, que o dissolvia, lhe dava vontade de deitar a cabeça para um canto do sofá, ficar ali a morrer... E a mesma ideia da véspera voltava, a ideia da morte, entrando-lhe no espírito como a lenta suavidade duma carícia.

Mas daí a horas tudo estaria decidido, talvez ele fosse como um homem morto. Era às onze horas que devia encontrar o outro. O coração batia-lhe à ideia que o ia ver, outra vez, diante de si; e parecia-lhe, agora, impossível de o imaginar numa outra atitude, que não fosse como o vira na véspera, com o braço em torno da cinta dela. Mas agora a sua ideia da véspera, o tirar à sorte o suicídio, que parecera tão natural, espantava-o um pouco. Parecia-lhe estranho que fosse ele, ele Alves, que, ali, naquela Rua de S. Bento que o sol da manhã dourava, tivesse tido semelhante ideia, uma ideia trágica, e própria dum coração violento. E tomava-o uma inquietação. Que diria o outro, a semelhante proposta? Se recusasse? E outras dificuldades de detalhe surgiam. Como tirariam à sorte? Com papéis brancos? E subitamente veio-lhe o receio que diante duma proposta tão exaltada, o outro se risse... Nesse caso esbofeteava-o. Mas não, não poderia recusar, era um homem de honra! Enfim daí a horas o saberia. E não queria pensar mais nisso. Aquela ideia ocupava-o, quase o impedia de sofrer, por outro lado, dava-lhe uma espécie de consideração por si mesmo, encobria o ridículo —e não queria pensar em nada que diminuísse a importância desse plano. No entanto sentiu passos na cozinha, as criadas tinham-se erguido. Na rua, um rumor ia subindo, vozes de pregoada, as carroças, a sussurração da cidade que acorda. E então pouco a pouco ele foi entrando na rotina diária, pôs os botões na camisa lavada, afiou a sua navalha de barba. Mas aquela grande mala no quarto incomodava-o... De repente, lembrou-se que devia fazer o seu testamento. E imóvel diante do espelho, com metade da cara ensaboada, ficou revolvendo esta ideia:—e um vago espanto, uma estranheza tomava-o de estar ali pensando no seu testamento. Porque agora todas as ideias que na febre da véspera lhe tinham parecido naturais e fáceis—tomavam agora, naquela luz clara da manhã, entre a rotina da sua toilette, uma frieza pouco natural, falsa, que repugnava ao lado positivo do seu carácter.

Às oito horas a campainha retiniu. Ele foi escutar. No patamar duas vozes de mulher conversavam. Depois a criada andou para dentro, para fora, —ele perguntou quem era? A criada do Sr. Neto. E não ousou perguntar mais nada, nem o que ela queria.

Depois foi o almoço. Ele devorou. Estranhou mesmo de não ver o fiambre na mesa—e a criada depois de o trazer, disse que a senhora ia mandar buscar as malas à noite. Ele não disse nada—detestando cada vez mais a Margarida, que parecia continuar a zelar os interesses da senhora, receber os recados dela, ser ainda a sua confidente. E como faltava o açucareiro, Godofredo foi áspero, exagerou aquela falta, ameaçou-a de a pôr na rua.

A criada dentro no corredor resmungou. Ele gritou:

—Pouco barulho!

E a cada momento o coração dava-lhe pulos à ideia de se ir encontrar com o outro. Com um terror de atravessar a rua, onde talvez se pudesse já falar na sua desgraça, mandou buscar uma tipóia. A criada tardou. O relógio caminhava. E ele nervoso, quase com febre, ia da janela à cancela, calçando as luvas, e parecendo-lhe que o solho que pisava era mole, e que lhe cedia sob os pés. Enfim o coupé chegou. E ele desceu, com a garganta apertada numa angústia horrível. A voz sumia-se-lhe quase ao dar a addresse do seu escritório ao cocheiro. Pareceu-lhe que o trem voava: e naquela emoção ia-se-lhe embrulhando o estômago, o almoço subia-lhe à garganta. Enfim chegou. E era uma atarantação, mal podia achar na algibeira uma placa para pagar ao cocheiro. O escritório dormia no grande silêncio do dia feriado—e quando ele empurrou o batente de baetão verde o relógio dava onze horas, com o seu tom que soava cavo e triste, sob aqueles tectos baixos. Correu ao seu gabinete,—e pareceu-lhe que não tinha entrado ali havia séculos, e que havia alguma coisa de diferente nos móveis, e na ordem das coisas. No seu vaso o ramo acabava de secar.

E então bruscamente, uma reacção fez-se no seu ser. Diante daqueles móveis, daquelas duas carteiras de sócios, postas uma junto da outra, lembrando-lhe uma intimidade, uma confiança de anos, veio-lhe uma cólera furiosa contra o Machado. As coisas mesmas o acompanhavam nesta cólera. Sim, o Machado era um infame que merecia a morte. E cada cadeira, as paredes mesmas, como embebidas da honra comercial que ali habitava, eram uma acusação muda contra a traição do Machado.

De repente um passo leve soou fora: era o Machado.

Godofredo, instintivamente refugiara-se por trás da sua carteira, remexendo ao acaso papéis, com a mão trémula, sem ousar erguer os olhos.

O batente abriu-se, era o Machado, pálido como um morto, com o chapéu e a bengala numa das mãos,—a outra no bolso das calças, fazendo uma saliência.

Mas Godofredo não via isto, não ousava fixá-lo: os seus olhares erravam aqui e além, procurando uma palavra, uma coisa profunda e digna a dizer. Por fim, com um esforço, encarou-o: e aquela mão no bolso, feriu-o logo, teve um gesto, receando uma arma, um ataque. O Machado compreendeu, lentamente retirou a mão do bolso, foi colocar o chapéu, a bengala, sobre a sua carteira. Então Godofredo, trémulo, com a pressa, a ansiedade de dizer alguma coisa, balbuciou isto:

—Depois do que se passou ontem, não podemos continuar a ser amigos.

Machado, que tinha a face contraída, com uma expressão de ansiedade, cerrou os olhos, respirou livremente. Esperava uma violência, alguma coisa terrível, e aquela moderação, aquele gemido triste, duma amizade traída, espantou-o, quase o impressionou... Nesse momento desejava poder lançar-se nos braços do seu sócio. E respondeu, com uma emoção sincera, um soluço na garganta:

—Infelizmente, infelizmente...

Então Godofredo, fez-lhe sinal que se sentasse. Machado, com a cabeça baixa, foi pousar-se à borda do sofá de reps, Godofredo deixou-se cair, como uma massa inerte, sobre o mocho, junto à carteira. E durante um momento um silêncio profundo reinou, tornado maior ainda por aquela rua de negócio adormecida ao domingo, sob a calma. Godofredo passava a mão trémula pela face, pelo rosto, procurando uma palavra.

O outro esperava, olhando a esteira.

—Um duelo entre nós é impossível, disse enfim Godofredo com esforço.

O outro balbuciou:

—Estou às suas ordens, disponha...

—É impossível! repetiu o Godofredo. Riam-se de nós... Sobretudo esses duelos que para aí há... Era cair no ridículo... Não podemos, na nossa posição. Toda a praça se ria, dum duelo entre dois sócios...

E um momento ficou trabalhado por esta ideia de serem sócios. Então todo aquele passado que os ligava pareceu erguer-se diante de Godofredo: e nunca sentira tanto a infâmia do Machado, como vendo-o ali, naquele gabinete, onde três anos tinham trabalhado juntos. E disse-lho.

—A sua infâmia não tem nome...

Tinha-se erguido, a sua voz fortalecia-se, e o seu sentimento de amigo traído, dava-lhe ao tom agora uma dignidade, uma solenidade que esmagava o outro. Então falou baixo, atirando-lhe as palavras, como punhaladas.

Conhecera-o de pequeno; fora ele que o protegera no seu começo da vida ; tinha-o feito seu sócio, seu amigo, quase seu irmão. Abrira-lhe as portas de sua casa, recebia-o lá, como um irmão.

—E pelas minhas costas, o senhor que faz, desonra-me!

O outro erguera-se, com a face angustiosa, querendo acabar aquela tortura.

—Sei tudo isso, balbuciou, estou pronto a dar-lhe todas as reparações, ... todas, quaisquer que sejam.

Então Godofredo, exaltado, atirou a sua ideia:

—A reparação é só esta! Um de nós tem de morrer... Um duelo é absurdo... Tiramos à sorte qual de nós se há-de matar.

Aquelas palavras patéticas, apenas as soltara—tinham-lhe aparecido como sons estranhos e desconexos: os mesmos móveis as pareciam repelir... mas soltara-as, essas palavras; sentia um alívio, tendo enfim desembaraçado a alma daquilo que desde a véspera lha enchia de perturbação e de tormento.

Machado ficara a olhar para ele com os olhos esgazeados.

—Tirar à sorte! Como tirar à sorte?

Parecia não compreender. Aquele suicídio, tirado à sorte, parecia alguma coisa de grotesco e de doido.

Como Godofredo continuasse de pé, junto da carteira, sem dizer nada, mexendo no bigode, impacientou-se, exclamou:

—Isso é sério? Isso é dito a sério? Foi então Godofredo que o olhou interdito. O que ele receara realizava-se. Machado achava aquilo absurdo, recusava. Então a sua cólera cresceu, como se visse fugir-lhe a vingança.

—Já ontem o senhor fugiu, quando o apanhei, fugiu cobardemente. Agora quer fugir disto também.

O outro gritou, lívido:

—Fugir a quê?

Uma cólera surda invadia-o, acendia-lhe o olho. Todas as acusações do outro o tinham exasperado. Depois vinha aquela proposta absurda dum suicídio à sorte. Agora insultava-o. Não, isso não toleraria. Balbuciou, já excitado:

—Fugir de quê, repetiu, fugir de quê? Eu não fujo de nada...

— Então, disse Godofredo, batendo com a mão na secretária, já aqui, tiramos à sorte quem de nós há-de desaparecer!

O outro encarou-o um momento, como se o fosse esganar. Depois agarrou vivamente o chapéu e a bengala. E numa voz mordente, decidida, que vibrava:

—Eu estou pronto a dar-lhe todas as reparações, e com todo o meu sangue... Mas há-de ser dum modo sensato, regular, com quatro testemunhas, à espada ou à pistola, como quiser, a que distancia quiser, um duelo de morte, tudo o que quiser. Estou às suas ordens. Hoje todo o dia. amanhã todo o dia. lá espero, em minha casa. Mas com ideias de doido não me entendo. E não temos mais que conversar...

Atirou o batente, os seus passos furiosos soaram um momento fora, e tudo recaiu num grande silêncio. Godofredo ficava só, com as lamentáveis ruínas daquela sua grande ideia, humilhado, confuso, encavacado, com as fontes a latejarem-lhe, sem saber o que havia de fazer. 



Capítulo VI

Por fim, tal qual como fizera o Machado, agarrou vivamente o chapéu, e abalou do escritório. E tão estonteado ia que foi já na Rua do Ouro que se lembrou que não fechara a porta à chave: voltou atrás,—e isto pareceu pôr alguma ordem nas suas ideias. Agora estava decidido a bater-se com ele, num duelo de morte, e nenhuma coisa no mundo parecia dever satisfazê-lo, senão vê-lo aos seus pés, com uma bala no coração. Pois quê! Aquele homem desonra-o, rouba-lhe o amor da sua mulher, e agora, ainda por cima, trata-o como um insensato, chama-lhe doido! E isto enfurecia-o sobretudo, porque ele agora sentia vagamente que naquela ideia do suicídio à sorte, havia alguma coisa de insensato! Talvez houvesse! Mas o outro não lho devia dizer, devia aceitar tudo, resignar-se à reparação que ele exigisse. Não quisera, reclamava uma reparação dum modo regular e sensato. Pois bem, assim seria, bater-se-iam à pistola, com uma só pistola carregada tirada ao acaso, apontada à distancia dum lenço! Era ainda o acaso, era ainda a sorte, era deixar tudo à mão justa de Deus.

No entanto, dirigira-se rapidamente para o Rossio. O seu amigo íntimo, o Carvalho, aquele que fora director da Alfândega de Cabo Verde e que casara rico, morava lá; e era ele o primeiro a quem se dirigia, a contar-lhe tudo, a entregar-se à sua velha amizade; depois iria procurar o outro dos seus grandes amigos, o Teles Medeiros, homem de fortuna e de sociedade, que tinha panóplias de floretes na sala, e a experiência do ponto de honra.

Estava dando meio-dia, o sol de Julho abrasava as ruas: e as lojas fechadas, a gente nos seus fatos de domingo, as carruagens de praça abrigadas no lado à sombra, tudo dava uma sensação maior de calma e de inércia. Uma poeira subtil embaciava o azul; e o mesmo som dos sinos arrastava pesadamente, no ar mole. Quando Godofredo trepava as escadas do Carvalho—topou justamente com ele, que descia, satisfeito e fresco, no seu fato novo de cheviot claro, calçando as luvas gris-perle. A figura esbaforida, o ar aflito de Godofredo, espantaram-no: e tornou a subir, abriu ele mesmo a cancela com o trinco, fê-lo entrar num pequeno gabinete, onde havia uma estante, e uma longa cadeira de vime, em forma de leito de campanha. Ao lado na sala, tocava-se piano, um tom de valsa rápido, que fazia vibrar a casa.

E o Carvalho, correu o reposteiro, fechou a janela aberta, antes de perguntar o que era?

Godofredo pusera o chapéu a um canto da mesa, e imediatamente desabafou, dum jacto.

Às primeiras palavras de sofá, de braço pela cinta, Carvalho, que tirava lentamente as luvas, ficou petrificado, no meio do gabinete: e foi correr ainda mais o reposteiro, como se receasse que a história daquela traição lançasse uma exalação indecente através do seu prédio. Mas na atrapalhação com que o Godofredo contara a história, na sofreguidão com que a escutou, não percebera bem quem era o homem, apenas compreendendo que o Machado estava presente: e quando soube que era ele que estava no sofá, bateu as mãos uma contra a outra, teve uma exclamação de horror.

—Que infâmia!

—Um homem que era como um irmão para mim, exclamava Godofredo, baixando a voz, brandindo os punhos. E paga-me assim... Não, é necessário haver morte de homem. Quero um duelo de morte!

Então todo o rosto barbudo do Carvalho exprimiu uma inquietação. Agora percebia. Godofredo não viera ali só desabafar, viera arranjar uma testemunha: e tomava-o logo um susto de burocrata, um medo da lei, o receio de se comprometer. E o seu egoísmo revoltou-se diante das coisas violentas e perturbadoras que pressentia. Quis atenuar, logo, procurou explicações. Enfim, se Godofredo não vira mais nada... Se era só estarem na sala... Podia ser uma brincadeira, uma tolice...

Godofredo, febrilmente, procurava nas algibeiras. O piano dentro caíra agora a sons vagos, como de dedos que tenteiam, procuram uma melodia esquecida. De repente um bocado do Rigoletto rompeu, com um arranque gemido e soluçante. E Godofredo que achara enfim a carta, pô-la diante dos olhos de Carvalho. O outro leu a meia voz:

—«Ai Riquinho da minha alma, que beijinhos tão bons...”

E como se aquelas palavras, ouvidas na voz de outro, lhe parecessem mais infames que quando ele as lera, não se conteve, elevou a voz, gritou:

—Não, isso com sangue, é necessário um duelo de morte... Carvalho, inquieto, fez-lhe sinal que se calasse. E como o piano parou, um momento ficou escutando, receando que o grito do outro tivesse sido ouvido:

—É a Mariana, disse ele indicando a sala... Por ora é melhor que ela não saiba...

Depois voltou a ler a carta, lentamente: e palpou o papel, revirou-o, conservando-o nos dedos com uma curiosidade excitada, como se sentisse ali o calor dos beijinhos...

E Godofredo procurou ainda mais pelas algibeiras, descontente de ter esquecido as outras cartas. Porque havia ainda outras piores! E citou frases, exibiu toda a tolice, todo o descaro de Ludovina, tomado agora apenas do desejo de convencer bem o Carvalho que sua mulher era uma prostituta.

—De resto ele não negou, disse a tudo que sim!

—O quê, vocês falaram?

Então, depois duma hesitação, Godofredo acabou a confidência, a sua ideia de um suicídio à sorte, o encontro que tivera com o Machado. O Carvalho, que caíra para cima do sofá, como quebrado, esmagado por todas aquelas revelações, abria uns grandes olhos na sua face queimada de África, espantado de que aquelas coisas violentas, terríveis, se tivessem realmente passado, e fossem ditas ali, no seu tranquilo prédio do Rossio.

Quando Godofredo contou que o Machado achara aquilo insensato, Carvalho não se conteve.

—De doido! De puro doido! exclamou erguendo-se.

E gesticulando pelo estreito gabinete, procurava uma frase para classificar aquilo, falava ainda de doidice, terminou por dizer que semelhantes coisas só se viam no Rocambole:

—Vem a dar na mesma, disse Godofredo. Porque eu exijo que o duelo seja à pistola, uma só carregada, e tirada ao acaso...

Carvalho deu um pulo.

—Uma só pistola, ao acaso? Mas isso é um assassinato. Não, escusas de contar comigo. Não há motivo para isso... Mas nem que houvesse, numa dessas não me metia eu!

Vendo-se abandonado, Godofredo revoltou-se. Então, naquela crise terrível, ele, o seu melhor amigo, deixava-o assim ficar mal? De quem se havia de valer? A quem havia de confiar a sua honra?

O outro, despropositou. Falou outra vez de assassinato, de crime e de prisão: terminou por dizer:

—Se tu me viesses convidar para ir deitar fogo ao Banco de Portugal, achas que eu devia aceitar?...

Godofredo queria explicar que não era a mesma coisa: as duas vozes elevavam-se, entremeadas—e subitamente um silêncio do piano, fê-los calar a eles também. Uma conversação elevou-se dentro na sala: depois as vozes elevaram-se também, e havia uma altercação, em que as palavras de “saia branca», “sua porca”, “a senhora não disse nada” chegaram com um som irritado. Um momento Carvalho escutou. Depois encolheu os ombros; havia de ser algum novo desleixo da criada, uma desavergonhada, que tinham havia um mês, e que não fazia nada com jeito. Depois sentindo bater uma porta, dentro, não se conteve, foi ver.

Godofredo, só um momento, sentiu como um cansaço invadi-lo. Desde a véspera os seus nervos vibravam, retesados, como as cordas duma rabeca muito afinada. Tudo até ali lhe pareceu fácil, e a sua vingança segura. Mas agora, um depois do outro, recebia dois choques. O outro não quisera o suicídio à sorte; este não queria duelo de morte:—e alguma coisa dentro dele começava a afrouxar, como se a sua alma se fosse cansando de estar há tantas horas, numa atitude sombria de vingança e massacre. E vinha-lhe um começo de enxaqueca,—a enxaqueca que desde a véspera o ameaçava. Sentou-se no sofá, com a cabeça entre as mãos; um suspiro levantou-lhe o peito.

Carvalho entrou, vermelho, excitado. Tinha havido uma cena, ele pusera a criada fora. E então destemperou, queixou-se daquela sorte que o não deixava ter uma criada decente, tudo uma súcia de desavergonhadas, porcas, e que o roubavam. Tinha saudades das pretas, não havia nada como criadas pretas...

—E então, dize lá, que pensas tu, de tudo isto? exclamou com um ar desanimado Godofredo.

Carvalho, encolheu os ombros.

—O melhor é deixar tudo como está, tua mulher em casa do pai, tu na tua, e o que lá vai, lá vai...

Mas um remorso tomou-o, quis mostrar coração, acrescentou:

—Em todo o caso conta comigo para tudo... Lá um duelo regular, à espada, ou à pistola mesmo, para salvar a honra, sim senhor. Cá estou. Lá coisas trágicas não.

Godofredo disse então tomando o chapéu:

—Vamos ver o que diz o Medeiros, vamos a casa do Medeiros.

Carvalho ficou contrariado. Nesse dia ia passar o dia a Pedrouços com a mulher, a casa do sogro. Eram os anos do cunhado... Mas enfim, num caso daqueles, era necessário fazer alguma coisa pelos amigos.

—Vamos lá, deixa-me avisar a Mariana que não posso ir...

Daí a pouco voltou, calçando as luvas com um ar desagradável. E já no meio da escada, parou, voltou-se para o Godofredo que seguia:

—Sabes que minha mulher está de esperanças, hein?... Um susto pode ser fatal, e se ela sabe que eu sou testemunha. Não é brincadeira... Enfim, vamos lá... Os amigos é para as ocasiões. Em baixo tomaram uma carruagem, porque o Medeiros morava lá no inferno, adiante da Estrela. Era um coupé quase novo, fofo e asseado, que rolava sem ruído. Isto pôs Carvalho de melhor humor: e recostou-se, acabando de abotoar as luvas. Durante algum tempo não trocaram uma palavra. Depois quando o coupé atravessava o Loreto, subitamente uma grande curiosidade pareceu invadir o Carvalho. Godofredo não lhe dera detalhes nenhuns. Que tinha dito Ludovina? Como soubera ele do caso? O que dissera o Neto? Godofredo, com um ar fatigado, e em palavras curtas, completou a sua história. O outro desaprovava a mesada de trinta mil réis. Era uma gratificação dada à infâmia... E vendo Godofredo, com o ar abatido, que numa emoção mordia o beiço, como se o invadissem as lágrimas, murmurou:

—Esta vida é uma choldra.

E não trocaram mais palavra até casa do Medeiros. Quando bateram à campainha, o criado disse-lhes que o senhor Medeiros ainda estava na cama. Então Carvalho subiu as escadas, abriu o quarto do Medeiros, fazendo barulho, chamando-lhe mandrião, e debochado. Atrás, Godofredo ia topando com os móveis na escuridão do quarto. Da sombra dos cortinados, a voz mal-humorada do Medeiros perguntava que invasão era aquela: e quando lhe abriram a janela, berrou, enterrou-se nos lençóis, não podendo suportar bruscamente a invasão da claridade. Mas terminou por mostrar a face inchada de sono e estremunhada; depois espreguiçou-se, ergueu-se, sobre o cotovelo, e deitou mão a um cigarro, de cima da mesa-de-cabeceira.

Carvalho, sentado aos pés da cama, começou: durante um momento falaram daquelas preguiças do Medeiros. Ele explicou que se deitara às cinco da manhã...

Depois Carvalho começou:

—Vimos aqui para um negócio muito grave.

O outro interrompeu-o, dando um berro pelo criado. Queria saber se viera uma carta pela manhã. O rapazote trazia-a, na algibeira. Medeiros sentou-se na cama, com o cabelo todo esguedelhado, abriu-a, nervoso, leu-a dum olhar, e dando um suspiro de alívio, meteu-a debaixo do travesseiro.

—Caramba, ia sendo ontem apanhado. Por um segundo... E se o marido entra na cozinha, que é logo ao lado da porta, lá se ia tudo quanto Marta fiou. Irra, que não ganhei para o susto.

Carvalho e Godofredo tinham trocado um olhar. E Carvalho teve esta frase infeliz:

—Pois é por uma coisa dessas que nós cá vimos...

E acrescentou:

—O Alves teve um desgosto... 

E diante do olho arregalado do Medeiros, Godofredo sentiu no fundo, a garganta sufocada pelo seu ridículo... Sentiu-se pertencendo a essa tribo grotesca de maridos traídos, que não podiam entrar em casa sem que, de dentro, escapasse um amante. E era assim por toda a cidade, uma infâmia pelos cantos, amantes que fugiam e amantes apanhados. Ele apanhara o seu. O outro marido não teria apanhado, se entrasse na cozinha? O dia antecedente fora terrível... E parecia-lhe ver em toda a cidade esta sarabanda, de amantes escapulindo-se, de maridos apanhando-os, um chassez-croisez de homens, em torno das saias das mulheres... E agora sentia uma fadiga, um horror de tornar a contar a sua história. Mas os olhos do Medeiros, a face do Medeiros, esperavam: e ele terminou por dizer, com um ar exausto:

—Foi ontem. Apanhei a Ludovina com o Machado.

—Caramba!, exclamou o Medeiros dando um pulo na cama.

E deitando fora a ponta do cigarro, tomando vivamente outro, quis saber os detalhes. E foi o Carvalho que os deu, falador agora, gozando o seu papel, com aquela confiança de marido dum estafermo rico que ninguém jamais tentava. Contou tudo,—enquanto, esmagado sobre uma cadeira, com o chapéu alto ainda na mão, Godofredo ia aprovando com a cabeça.

—Deixa ver a carta, terminou por dizer o Carvalho.

E Godofredo tirou-a do bolso, o outro leu-a a meia voz, pela segunda vez o marido ouviu voz estranha murmurar aquelas palavras da sua mulher: “ai riquinho da minha alma, que tarde a de ontem...”.

E Medeiros, em camisa, repetia—a frase, lembrando-se dos olhos negros de Ludovina, do seu corpo de rainha, já aceso, palpando o papel, revirando-o também em todos os sentidos como o outro fizera.

E subitamente veio-lhe um furor terrível contra o Machado. Que diabo, já era necessário ser canalha! Enfim, ela tinha culpas no cartório. Quando elas queriam, que diabo, não se podia ser José do Egipto... Mas nunca com a mulher dum amigo íntimo, e de mais a mais dum sócio...

—Isso pede sangue, disse ele, excitado, saltando para o meio do quarto em camisa, com os pés nas chinelas.

Godofredo, exclamou, ressalvando logo a sua coragem:

—Eu queria um duelo de morte, mas este diz que não.

Então Carvalho apelou para o amigo Medeiros. Era por acaso realizável a ideia de uma só pistola carregada, escolhida ao acaso?

Medeiros olhou-os, espantado. Não, decerto que não. Nem havia motivo para isso, nem... Era a segunda vez que ele ouvia aquela razão que não havia motivo: e então barafustou:

—Não há motivo! Então qual é o motivo bastante para que dois homens se matem?...

—Um escarro na cara, ou uma coisa dessas, disse com autoridade o Medeiros que, ainda em camisa, dava à pressa uma penteadela no cabelo.

Godofredo queria argumentar, mas o outro, voltando-se, com o pente na mão, terminou a questão:

—Mesmo que houvesse motivo, eu uma coisa dessas não aceito. Numa dessas não me meto...

—Aí tens tu! exclamou Carvalho em triunfo. Que te disse eu? Ninguém quer uma responsabilidade dessas... Eu de mais a mais, com a mulher de esperanças... Olha que brincadeira.

Um momento Alves ficou como abatido. E todavia sentia um começo de alívio, como se parte de toda aquela indecisão em que estava desde a véspera desaparecesse, e alguma coisa se fixasse. Agora estava decidido que não haveria sortes, nem acasos; que não haveria morte de homem;—e em toda aquela atarantação em que até ali estivera, isto formava um ponto fixo, uma base, uma decisão, em que se poderia apoiar. E não era ele que o decidira: eram os seus melhores amigos, que raciocinavam a sangue frio. Mas em todo o caso, posta de parte a morte dum deles, alguma coisa se havia de fazer.

—Que aconselham então vocês, que se há-de fazer? Eu não hei-de ficar assim, de braços cruzados...

Medeiros, então, de pé no meio do quarto, em camisa, com as canelas magras à mostra, os pés numas grandes chinelas, exclamou, com solenidade:

—Queres pôr a tua honra nas minhas mãos?

Está claro que queria, não estava ali para outra coisa.

—Bem, exclamou Medeiros. Então não tens mais que pensar. Deixa-te levar, nós arranjaremos tudo.

E foi para dentro, para um cubículo, onde o ouviram lavar os dentes, bochechar, fazer uma tempestade dentro da bacia.

Godofredo porém não parecia satisfeito, aproximou-se da porta do cubículo, queria ainda saber...

—Não tens nada que saber, exclamou de dentro o outro, lavando-se, com um ruído de esponja e água... Nós também não podemos saber. Temos de ir primeiro ao Machado, ver o que ele diz, entendermo-nos com as testemunhas dele, etc... Tu vai para casa, e não saias até que nós apareçamos... E deixa-nos aí tipóia, ouviste, para dar esses passos todos... Domingos, escova a sobrecasaca preta; e calças pretas... Tudo de preto... Ouvindo isto, Carvalho deu um olhar ao seu próprio fato de cheviot claro. Mas ele não era dessas pieguices de toilettes: com uma camisa lavada em cima da pele, um homem estava decente para ir a toda a parte.

Godofredo todavia passeava ainda pensativo. E terminou por dizer ao Carvalho o que o perturbava:

—É necessário que vocês levem já condições feitas. E eu, menos de ser a pistola e a vinte passos...

—Deixa lá isso com o Medeiros, disse o Carvalho.

E o Medeiros, aparecendo logo, com a toalha na mão, o cabelo molhado, acrescentou:

—Olha, tu entenderás de coisas de negócios. Mas de coisas de ponto de honra, entendo eu... Tu desde este momento não tens senão a esperar que nós te vamos dizer—é a tais horas, em tal sítio, e com tais armas. E depois no dia seguinte, marchar! Não tens mesmo que te ocupar do médico. Eu peço ao Gomes, que entende muito de feridas... E não é homem para perder a cabeça, se um de vocês ficar escalavrado de todo.

Godofredo sentiu pela espinha um arrepio, e o coração encolher-se. E do lado, Carvalho dizia:

—E tu vai para casa, se tens que fazer, ou papéis a pôr em ordem, ou outra coisa...

Não falara em testamento, mas era uma alusão ao testamento. E aquilo irritou Alves. Decerto ele era o primeiro a querer que o duelo fosse sério, fosse mortal... Mas enfim, aqueles seus dois amigos, os seus melhores amigos, os seus íntimos,—um a falar já de feridas, outro a empurrá-lo para a porta para ir fazer testamento, pareciam-lhe grosseiros, inutilmente cruéis... Sem uma palavra, desceu.

E atirando-se para o fundo do coupé, moído na alma e no corpo, pensou esta coisa profunda:

—Aqui está para que a gente se casa! E aqui está para que se quer ter família! 



Capítulo VII


Às seis horas da tarde, Godofredo, em chinelos, no seu gabinete, acabava de lacrar um maço de papéis,—quando a campainha retiniu, e os seus dois amigos apareceram. Carvalho, apesar da sua indiferença pela etiqueta, fora mudar de fato, estava de sobrecasaca preta:—e ambos traziam um ar grave .

Medeiros, agora muito correcto, com o bigode encerado, sentou-se no sofá,—na sala onde a criada os introduzira—e começou a tirar lentamente as suas luvas pretas, e olhava Godofredo.

—Estás aí a rebentar de curiosidade? Pois olha, por ora nada feito.

Godofredo, que tivera os olhos cravados nele, e estava muito pálido, pareceu respirar melhor. Mas subitamente enfureceu-se. Como nada feito? Então o infame recusava-lhe uma reparação.

Carvalho acudiu:

—Não senhor. A cada um o que é seu, o Machado nisto anda bem.

—Então?

—Foram as testemunhas, que se mostraram recalcitrantes, disse o Medeiros. Aqui está o que foi.

Era uma longa história, que o Medeiros contou com detalhes, gozando. Tinham falado ao Machado, que lhes prometeu que dois amigos dele estariam às quatro horas em casa dele, Medeiros. E pontualmente apareceram lá o Nunes Vidal, que ele conhecia perfeitamente, rapaz de experiência em coisas de honra, e o Cunha, o Albertinho Cunha, que pouco falara, estava como um comparsa. Entraram, cumprimentos, etc., tudo muito grave, e toda a amabilidade. Depois vieram à questão: o Nunes Vidal declarou logo que, em princípio, o Sr. Machado estava pronto a aceitar todas as condições, todas quaisquer que fossem, propostas pelo Sr. Alves. Inteiramente todas. Mas que ele Nunes Vidal, e ali o seu amigo Cunha, entendiam que o dever das testemunhas, num conflito, era, antes de tudo, procurar paz e conciliação. E que portanto, se em princípio o seu constituinte, o Sr. Machado, por um excesso de pundonor e orgulho, estava disposto a deixar-se matar, eles, suas testemunhas, que tinham tomado nas suas mãos os interesses dele, estavam ali, e tinham vindo ali, não só para procurar, tanto quanto possível, o evitar que sucedesse uma desgraça no campo ao seu amigo, mas mesmo que em volta do nome dele se fizesse um escândalo, que o prejudicaria...

—Tudo isto muito bem dito, acrescentou o Medeiros, tudo muito bem explicado, com bonitas palavras... Sério, gostei do Vidal.

—Ah, rapaz de muito talento, murmurou o Carvalho.

Enfim o Vidal terminara por dizer, que tudo bem considerado, não julgavam que houvesse motivo para um duelo grave à pistola. Outra vez a falta de motivo. Godofredo despropositou:

—Com mil diabos, então que queria esse asno que o Machado me tivesse feito de pior?

Com um gesto, Medeiros conteve-o.

—Não te exaltes, não te exaltes... Deixa estar que lá lhe disse tudo. O Vidal é muito esperto, mas olha que eu não me calei. Pergunta ao Carvalho...

—Andaste como um rábula, disse Carvalho.

—Mas então que diabo disse o Vidal? exclamou ainda Godofredo.

O Vidal dissera que não havia motivo de sangue, porque o que se passara entre Machado e a senhora fora um simples namoro...

Godofredo teve um gesto furioso. E o Medeiros, erguendo-se também:

—Não te exaltes, escuta. Eu lá lhe disse tudo. Contei-lhe do modo como os apanhaste, e a carta, meu riquinho que tarde a de ontem, e o resto. Apresentei-lhe todos os dados para o convencer que o adultério era completo... Não é verdade, Carvalho?

—Todos.

—Disse-lhe claramente: o meu constituinte, o nosso amigo Alves, é em toda a extensão da palavra, um marido que... Enfim, necessita reparação. Não é verdade, Carvalho?

Carvalho fez um gesto de assentimento.

—Mas o Nunes provou-me que não. Tinha lido as cartas ele também, o Machado contara-lhe tudo, e depois de ter combinado, pensado, chegara a este resultado: que não passara de namoro.

Houve um silêncio na sala. Godofredo passeava vivamente, com as mãos nos bolsos. Carvalho, examinava vagamente um quadro representando Leda e o Cisne. De repente, Godofredo parou, exclamou, com uma voz surda, espaçando as palavras:

—Aí nesse sofá, os vi eu abraçados um ao outro... Que diz a isto o Nunes?

—Esse é que é o único ponto, exclamou Medeiros. Esse ponto é que se não pode negar, porque tu viste, com os teus olhos. Mas o Machado explicou ao Nunes. E o Nunes explicou-nos a nós. Era uma brincadeira, era a rir, era a fazer cócegas...

—E a carta, que tarde a de ontem, exclamou Godofredo.

—Disse o Nunes que naturalmente se refere a um passeio que vocês deram a Belém. Vocês foram a Belém?

Godofredo pensou um momento. Sim, tinham ido a Belém. Era verdade que tinham todos três ido a Belém.

—Então aí tens. Era a lembrar o prazer de terem ido todos, a patuscada, a passeata, etc...

—De modo que, exclamou Godofredo, fica tudo nisto... Não há nada. Tenho de tragar a afronta.

Medeiros ergueu-se indignado. Ora essa, então por quem o tomava ele? Tinha ou não Alves posto a sua honra nas mãos dele e do Carvalho? Tinha. Então não podia supor que eles, seus amigos, o deixassem na lama, miseravelmente... —Mas, murmurou Alves.

—Mas quê? Está claro que te hás-de bater. Foi o que se decidiu. Não há motivo para que seja à pistola, porque foi um simples namoro. Mas como o Sr. Machado não tem direito a namorar a tua mulher, há todo o motivo para que seja à espada, um duelo mais simples... Vamos-nos encontrar logo com eles em minha casa, às oito horas, e combinar tudo.

—E não temos muito tempo a perder, disse Carvalho puxando o relógio, porque são seis e meia, ainda temos de jantar. Eu estou a cair...

Godofredo ofereceu-lhes então que jantassem lá. De resto ele tinha calculado que apareceriam à hora do jantar, e mandara preparar um bocado de assado a mais.

—Não haverá mais que um bocado de assado, disse ele, mas enfim, em campanha tudo basta... E nós estamos em guerra.

Era a primeira vez que sorria desde a véspera. Mas aquela companhia dos seus amigos ao jantar, alegrava-o, evitando-lhe a solidão que ele temia.

E o jantar foi alegre. Tinha-se combinado que não falariam do duelo, nem do caso: mas logo desde o cozido, em todos os momentos que Margarida não estava presente, voltavam a essa ideia, por frases curtas, e alusões vagas. Por fim, Godofredo disse à Margarida que não voltasse sem que ele tocasse a campainha: e então a conversação não cessou mais. Godofredo contou como conhecera Ludovina, e o seu namoro, e o dia do casamento.

Depois falou do Machado, mas já sem cólera, chegando mesmo a dizer que era um rapaz bondoso. Era ele que o ia buscar ao colégio quando o Machado era pequeno: e às vezes levava-o ao teatro. E estas recordações enterneciam-no,—terminou por engolir um soluço, disse que se não falasse mais em semelhante coisa. Tocou a campainha, a Margarida trouxe o assado. Houve um curto silêncio, o Medeiros gabou o vinho de Colares. Carvalho, a respeito do Colares, que ele costumava beber em Cabo Verde, lembrou um caso de duelo em que ele lá fora testemunha: e apenas Margarida saiu, contou-o logo: era parecido com o do Alves, também por causa duma mulher, mas essa, preta. Isto parecia incrível ao Medeiros. Mas Carvalho gabou a preta, com o olho brilhante:

—Em a gente se acostumando, não quer senão daquilo... A preta é grande mulher.

—Mas que diabo, não falemos mais de mulheres, disse Godofredo.

E neste pedido, que ele acompanhou de um vago sorriso, havia como uma resignação na sua desgraça, uma ideia nascente de gozar a vida, na companhia de amigos, nas preocupações do negócio, sem os desgostos que traz invariavelmente a paixão das saias. Então falou-se do Nunes. Medeiros estava contente de num caso tão sério como aquele ter encontrado pela frente o Nunes, rapaz sério, de experiência, e de honra. Estava ao princípio com medo que o Machado tivesse a ideia de nomear para padrinho aquele idiota do Sigismundo, com quem andava sempre. E isto trouxe de novo à conversa o Machado. Então, um pouco animado pelo Colares, Medeiros confessou que já tinha pregado uma ao Machado: tinha sido o amante da francesa com quem ele estivera. Então começou a falar de si, das suas conquistas: e voltou à história da véspera, quando estivera para ser apanhado na cozinha. O Carvalho também tivera uma história assim, em Tomar. Mas aí tivera de saltar pela janela, e caíra em cima duma estrumeira... O Carvalho sabia pior do que isso: um amigo dele, o Pinheiro, não o magro, o outro, o picado das bexigas, que tinha estado escondido num curral de porcos seis horas. Ia morrendo. E quando via um porco punha-se branco como a cal. Então foi entre o Carvalho e o Medeiros um desfilar de anedotas de adultérios. O Godofredo, homem casado e honesto, não tinha destas anedotas: a sua vida fora toda doméstica, sem aventuras, e escutava, bebendo o seu café aos goles, gozando aquele fim alegre de jantar, sorrindo por vezes.

E terminou por sentir um hálito quente de mocidade, dizer filosófico:

—Homem, isto melhor é a gente divertir-se por sua conta, que os outros se divirtam à nossa custa...

As oito horas aproximavam-se. Carvalho começou a calçar as luvas pretas. Então Godofredo falou em os acompanhar: meter-se-ia dentro do quarto do Medeiros—enquanto se celebrava a conferência na sala—, e eles poupavam assim o trabalho de voltar, a dar-lhe parte do resultado, à Rua de S. Bento. E apesar de Carvalho ter achado isto contra a etiqueta—terminou por consentir, por não ser coisa muito grave.

Foi-se buscar uma carruagem, e apinhados dentro dela todos três—partiram para a Estrela.

Em casa do Medeiros, o criado já acendera velas nos lustres; e eles tinham apenas subido a escada, quando a campainha retiniu. Eram os outros, muito pontuais. Então Godofredo foi esconder-se no quarto:—os outros entraram na sala, onde se elevou logo o rumor de vozes. No quarto às escuras, Godofredo, sem ousar chamar o criado, procurava, apalpava, sobre a mesa e o toucador, à cata duma caixa de fósforos. Não achou, mas os seus dedos encontraram um reposteiro, correu-o, e viu diante uma fenda de luz numa porta, por trás rumor de vozes. Era, do outro lado, a sala, onde estavam a conferenciar. Adiantou-se, mas topou com um jarro, que rolou com um som de água, entornando água. Então ficou um momento imóvel, depois chapinhando humidade, foi encostar o ouvido à fechadura. Mas tinha-se feito um silêncio, que ele não compreendia. Só por vezes um dos amigos do Machado, tossia. Que diabo estavam fazendo? Quis espreitar, mas viu, vagamente, um bocado de espelho onde se reflectia a luz do candeeiro. Subitamente a luz desapareceu, houve diante dele o quer que fosse de negro, decerto as costas dum deles. Então uma voz elevou-se, era a do Medeiros, dizia “que lhe parecia concludente...” E foi logo um rumor de duas outras vozes, que se misturavam, cresciam, que ele não podia ouvir. Depois uma outra voz fria, disse muito distintamente:

—Nisto é necessário sobretudo dignidade.

Com efeito era necessário dignidade—e não era digno estar ele ali escutando. Voltou então ao quarto às apalpadelas,—e tendo topado com o sofá, sentou-se. Agora não havia rumor, e um ar abafado pesava no quarto. E aquela escuridão trouxe-lhe ideias de doença... No dia seguinte podia ele estar talvez, assim num quarto, às escuras, prostrado num leito; e só, sem ninguém, tratado pela Margarida. Isto causou-lhe um grande horror. Começou a lembrar-se de histórias de ferimentos que ouvira. Um golpe de espada ao princípio fazia apenas um frio—as dores eram depois, longas, nas noites longas, quando os colchões aquecem e o corpo se não deve mover... Então pensou em tudo que dissera o Nunes ao Carvalho: era a primeira vez que o Machado a abraçava, por brincadeira. E se isto fosse verdade? Também ela lho dissera, num grito de dor: era a primeira vez. Podia ser bem apenas uma leviandade, um galanteio, o que os ingleses chamam uma flirtation. Deveria perdoar? Não. Mas não era então motivo para haver um duelo. Bastava-lhe expulsar Machado de sua casa. E então outras coisas acudiam-lhe: nunca como ultimamente, Ludovina fora mais amante. Outrora era ele que lhe devia fazer festas, a provocá-la... Ultimamente era ela, que às vezes, sem motivo, lhe atirava os braços ao pescoço. Podia ele afirmar que ela o não amava? Não. E não era fingido, ele não era tolo, sabia bem conhecer uma emoção sincera. Porque consentia então ela na corte do outro? Quem sabe! Coquetismo, vaidade... Em todo o caso isso merecia castigo. Nunca mais a veria; e bater-se-ia com o outro... Depois pensou que nunca manejara uma espada. E o Machado tinha dado lições de esgrima. Decerto era ele que ficaria ferido. E o mesmo terror voltava-lhe. Parecia-lhe que não temeria tanto, a morte brusca, uma bala através do coração. Mas uma ferida grave, que o retivesse na cama semanas, com toda a sua lenta marcha, a febre, a inflamação, o perigo de gangrena. Era horrível. Toda a sua carne tremia, se encolhia a essa ideia. Mas enfim acabou-se, era a honra que o pedia.

De repente ouviu vozes no corredor, risos, todo um barulho cordial de amigos que se despedem. O coração batia-lhe. Tinha caminhado para a porta do quarto. Uma luz apareceu. Era o Medeiros com uma vela, com que alumiava os outros.

—Tudo resolvido, disse ele entrando.

Atrás dele entrava o Carvalho, dizendo também:

—Está tudo decidido.

Godofredo olhava-os, pálido, a tremer, de nervoso.

—Não te bates, disse o Medeiros pondo o castiçal sobre a mesa.

—Que te disse eu logo?, exclamou Carvalho, radiante. Tudo tinha de ficar na mesma, a não haver senso comum.

E foi desta vez ainda, o Medeiros, que explicou a conferência. O Nunes Vidal portara-se com um cavalheirismo extraordinário. Começara por dizer que se estivesse convencido que havia ali uma traição do Machado, um crime de adultério com a mulher do seu sócio, ele não se meteria nisso. Dissera-lhes que se eles exigiam o duelo, eles tinham normas de aceitar tudo, sem discutir, hora, e sítio, e estocadas. E chegado ao terreno, Machado tomaria a espada, deixar-se-ia ferir, como um gentleman. Mas então Nunes apelara para eles, como homens de honra e de bom senso.

—Não foi isto que ele disse, Carvalho?

—E homens de sociedade, acrescentou Carvalho.

—Justamente, e homens de sociedade. Apelou para nós, se nós devíamos consentir um duelo, quando não havia motivos, e quando o Machado, numa carta que o Nunes me deu a ler, lhe afirmava sob a sua sagrada honra de homem, que a Sra. D. Ludovina era inocente, perfeitamente inocente. Não houvera mais que umas cartas tolas trocadas, sem importância, e aquele abraço... Ora agora, dizia o Nunes: o que faz um duelo? Compromete a Sra. D. Ludovina, faz crer ao público que houve realmente adultério, torna ridículo o Sr. Alves e prejudica a firma comercial...

—É o dilema do Nunes, lembrou do lado o Carvalho.

—É verdade, o dilema, gritou Medeiros, recordando-se. O Nunes apresentou este dilema: os senhores pedem a espada, se houve adultério o duelo à espada é ainda pouco; se o não houve é demais. De maneira que resolvemos que não houvesse duelo...

Godofredo não dizia nada. Mas uma sensação de paz e de serenidade invadia-o silenciosamente. Aquelas grandes afirmações do Nunes, um rapaz de tanta honra, quase o convenciam de que realmente não houvera senão um galanteio. Ele mesmo o dissera: se estivesse convencido que havia adultério, não se teria metido nisso. E não, que era um verdadeiro fidalgo. Ora se era um simples galanteio não havia realmente motivo para que se batessem,—e isto dava-lhe um alívio, mil ideias abomináveis desapareciam, outras surgiam, de repouso, de tranquilidade, talvez de felicidade ainda. Decerto não perdoaria a sua mulher, aquele simples galanteio. Não tornaria a falar ao Machado. Mas a vida ser-lhe-ia menos amarga, pensando que eles realmente o não tinham traído.

Aquilo consolava o seu orgulho. E mostrava que era um marido rígido, e de honra—expulsando sua mulher só por um simples olhar trocado. Assim a sua honra estava salva, o seu coração sofria menos.

E agora invadia-o uma alegria, de sair enfim daquelas ideias violentas de morte, em que andava envolvido, e reentrar na rotina da vida, no seu negócio, nas suas relações, nos seus livros. Mas então, à ideia da rotina, da casa comercial, uma ideia tomou-o, encheu-o de perturbação.

—E o Machado? Eu não posso falar mais ao Machado!

Mas Medeiros tinha discutido esse ponto com o Nunes. E fora o Nunes que tivera uma ideia de bom senso. Aqui está o que o Nunes dissera. Desde o momento em que não há motivo para duelo,—não há motivo para que interrompam as relações comerciais...

Godofredo protestou:

—Então há-de amanhã entrar pelo escritório?

—Quem te diz amanhã, homem? Aqui está o que disse o Nunes, é o que faz o Machado. Amanhã escreve-te uma carta oficial, para que o guarda-livros veja, e o caixeiro, dizendo que vai para fora da terra, com a mãe, e que te pede que olhes pela casa, etc... Depois ao fim de um ou dois meses, volta, vocês cumprimentam-se, sentam-se cada um à sua carteira, falam no que têm que falar acerca do negócio, e acabou-se. O que não têm é relações íntimas, escusam mesmo de se tratar por tu. E como Godofredo olhava o chão, reflectia, os dois caíram sobre ele. —Tapas assim a boca ao mundo, disse o Carvalho. —Salvas-te do ridículo, disse o Medeiros. —Manténs a firma intacta e unida... —Livras tua mulher de má fama!... —Conservas um sócio inteligente e trabalhador. —E talvez um amigo! Então uma fadiga invadiu Godofredo. Os seus nervos relaxaram. Veio-lhe um desejo de não pensar mais naquele desgosto, não falar mais nisso, dormir tranquilo; e cedeu, abandonou-se, perguntou com a voz do coração: —Então vocês, acham em sua honra, que assim tudo fica bem? —Achamos, disseram ambos. Godofredo apertou a mão a um, depois ao outro, comovido, quase com lágrimas: —Obrigado, Carvalho. Obrigado, Medeiros. Depois para fazer logo tapar as bocas do mundo, foram ao Passeio Público—onde havia essa noite iluminação e fogo preso, indo primeiro tomar sorvete ao Martinho.



Capítulo VIII


Então começou para Godofredo uma existência abominável.

Tinham passado semanas e Machado voltara, ocupava agora, como sempre, a sua carteira, no gabinete de reps verde. Godofredo temera sempre aquele encontro, não julgara possível que eles pudessem passar dias, um ao lado do outro, manejando os mesmos papéis, tocando-se por mil interesses comuns, com a ideia daquele dia nove de Julho, aquele encontro sobre o sofá. Mas por fim tudo se passara convenientemente, e não havia atritos.

Na véspera da sua chegada Machado escrevera-lhe uma carta, polida, quase humilde, em que se percebia mesmo certo tom de tristeza: dizia-lhe que ia voltar, que no dia seguinte apareceria no escritório, e que esperava que toda a ideia do passado desaparecesse nas suas novas relações, e que estas fossem sempre dominadas por uma respeitosa cortesia; acrescentava que compreendendo porém as dificuldades desta nova situação, ele só a aceitava por algum tempo para salvar a dignidade, e fazer calar a maledicência, reservando-se o deixar a firma logo que o pudesse fazer sem escândalo. Nesse dia. Godofredo foi mais cedo ao escritório, e fez uma coisa hábil: disse ao guarda-livros, diante do caixeiro, que houvera entre ele e o Sr. Machado certas desinteligências, e que as suas relações tinham sofrido modificações. Estas palavras vagas tinham por fim evitar a surpresa, os comentários do guarda-livros, quando os visse agora, defronte um do outro, secos, corteses, e tratando-se por Senhor Alves e Senhor Machado. O guarda-livros murmurou que sentia muito; e dali a instantes Machado apareceu. Foi um momento desagradável. Durante todo o resto do dia mal puderam dar atenção ao que faziam: e o menor movimento do Machado, o puxar do lenço, um passo no soalho, despertavam em Godofredo toda a sorte de lembranças desagradáveis. Uma ou duas vezes atravessou-o um desejo violento de o vituperar, acusá-lo de todas as tristezas que agora enchiam a sua vida: mas conteve-se, apenas se vendo impotente para engolir um ou outro suspiro.

A atitude do Machado foi respeitosa e triste. E quase não trocaram uma palavra. O quer que fosse de angustioso pesava no ar. E o estúpido do caixeiro tornava todo este embaraço mais saliente, teimando em andar em bicos de pés, como numa casa onde há um moribundo.

Outros dias iguais repetiram-se: mas pouco a pouco a presença do Machado deixou de impressionar Godofredo. Já o podia ver sem pensar no sofá. Estabeleceu-se uma rotina. O que entrava por último dava os bons-dias polidos ao outro—e depois só falavam em assuntos de negócio; quando não havia que fazer, o Machado saía, abandonando o gabinete a Godofredo que ficava lendo os jornais no sofá. E isto continuou regular, sem atritos,—porque Machado não tinha senão, no fundo, estima pelo bom Alves, e Alves, a seu pesar, conservava um fundo de simpatia por aquele rapaz que quase educara. Debalde se dizia a si mesmo que fora do negócio era um traste: o simples tom da sua voz, os seus bonitos modos, atraíam-no a seu pesar.

Assim foi que, quando vieram os primeiros dias de Outubro, toda aquela tumultuosa agitação que se fizera na vida de Godofredo, e que o trouxera semanas como sonâmbulo, se calmou. Ludovina estava na Ericeira com o pai: e a lembrança daquele momento em que a vira no sofá amarelo, que ao princípio fora no coração do pobre Godofredo como uma chaga viva que o menor movimento, o menor atrito, irritava—era como uma ferida ainda, mas cicatrizada, causando apenas uma dessas surdas e vagas dores a que o corpo se habitua. O choque desagradável do encontro com o Machado passara também: no escritório da Rua dos Douradores estabelecera-se agora uma rotina de relações, frias, corteses, toleráveis. E agora, mais calmo, Godofredo podia reparar mais, sentir mais todos os detalhes daquela vida de viúvo, que devia ser agora a sua para sempre—e só descobria desconforto e tristeza. Ao princípio pensara em deixar a casa da Rua de S. Bento, ir viver para o Hotel: mas depois receou a opinião, a maledicência. Ninguém sabia que ele estava separado de sua mulher. Supunha-se que ela estava a banhos, com o pai;—e que Godofredo a ia ver de vez em quando. E ele tinha por todos os meios de manter esta ficção. Além disso, que havia de fazer às duas criadas? Porque persistia na ideia de manter o silêncio em torno da sua desgraça,—conservando sob chave, ligadas a ele pelo interesse duma boa situação, aquelas duas criaturas que a conheciam. Ficara pois em S. Bento, e a sua existência, ali, era desgraçada. Um a um os confortos que ele tanto amava tinham desaparecido—porque as duas mulheres, sem ama que as vigiasse, tendo percebido que o senhor as não despediria, dependia da língua delas, estavam inteiramente relaxadas. A tortura do dia começava para Godofredo às nove horas. Era toda uma tortura para que lhe trouxessem água para a barba: nunca havia água quente; a cozinheira, que se levantava agora tarde, não tinha o lume aceso às dez horas. Depois era outra luta para obter o almoço, e quando vinha, feito à pressa, sem cuidado, sem variedade, quase o enojava. Desde Agosto, que todas as manhãs lhe apareciam os mesmos ovos quentes—ora crus, ora cozidos de todo—e os mesmos bifes córneos, negros, como duas tiras de couro tisnado. Ele sentava-se, olhava com horror para o guardanapo sujo. Ai, onde estava o tempo em que Ludovina ela própria lhe ia fazer os seus ovos quentes, pelo relógio de areia? Então havia sempre flores na mesa, e o seu Diário de Noticias, e o seu Jornal do Comércio estavam ao lado do prato, ele desdobrava-os, sentindo em redor o rumor das saias dela, o calor da sua presença, o vago aroma de vinagre de toilette.

Quando voltava às quatro horas, os restos deste triste almoço ainda estavam sobre a mesa, com o molho dos bifes seco no prato, um resto de chá no fundo da chávena,—tudo sujo e triste sob o vôo das moscas. Pelo chão ficavam migalhas de semanas. Todos os dias se quebrava alguma coisa. E ao fim do mês eram contas enormes, um desperdício, um excesso absurdo de gastos. Já duas vezes encontrara homens na escada, ou visitas para as criadas. A sua roupa suja arrastava pelos cantos:—e quando ele se enfurecia, entrava na cozinha como uma bomba, dava berros, as duas criaturas não respondiam, fingiam uma compunção mais odiosa ainda do que uma resposta insolente. Baixavam a cabeça, davam com respeito uma desculpa absurda, depois ficavam dentro rindo, e bebendo copinhos de vinho.

Mas o pior eram as noites solitárias. Fora sempre um homem muito caseiro, que às nove recolhia, calçava os seus chinelos, e gozava o seu interior. Ordinariamente, na sala, Ludovina tocava um bocado de piano: ele mesmo ia acender as luzes, com a devoção de quem prepara um altar, porque adorava a música; e vinha acabar o seu charuto, numa poltrona, ouvindo-a tocar, vendo a massa negra do seu cabelo que lhe pendia nas costas, numa graça de desalinho e de abandono. E havia certas músicas que lhe davam a sensação de ter o coração acariciado por alguma coisa de aveludado e doce, que o fazia desfalecer: sobretudo uma certa valsa Souvenir d’Andalousie... Há quanto tempo ele a não ouvira.

Enquanto durou o Verão, todas as tardes dava o seu passeio: mas o espectáculo mesmo das ruas, trazia-lhe à memória a sua felicidade perdida. Era uma varanda aberta, com uma senhora de vestido claro tomando o fresco que lhe recordava a sua casa deserta, onde não havia um rumor de saia: ou era ao anoitecer, uma janela deixando sair a claridade discreta dum serão tranquilo, e donde vinham sons de piano... Ele, fatigado, com os botins empoeirados, sentia então, dum modo agudo e doloroso, a evidência da sua solidão.

Mas as noites piores eram as que passava no Passeio Público: levava-o lá o horror de estar só: mas aquela solidão entre gente, sob árvores alumiadas a gás, vendo tanto homem levando uma mulher pelo braço, era-lhe mais dolorosa que a sua sala deserta e fria, com o seu piano fechado.

Depois foi pior quando começou o Inverno. Novembro foi muito chuvoso. Ele voltava do escritório, e depois do jantar ordinário que comia à pressa, ficava, com os pés nos chinelos, aborrecendo-se e errando da sala para o quarto. Nenhuma cadeira, por mais confortável, lhe dava a satisfação de repouso e de bem-estar: e os seus livros queridos pareciam ter perdido subitamente todo o interesse, desde que não a sentia ao seu lado, costurando à mesma luz a que ele lia. E um pudor, um escrúpulo, uma vaga vergonha, impediam-no de ir aos teatros.

Além disso uma inquietação tomava-o constantemente, desde que ela voltara da Ericeira, e que a sabia ali na mesma rua, a dez minutos de caminho daquela casa onde ele sofria todas as melancolias da viuvez. Vinte vezes por noite, o seu pensamento fazia esse caminho, subia as escadas do Neto, penetrava na sala que ele conhecia, com a sua chaise-longue coberta de cretone vermelho. Era nessa chaise-longue que ela se costumava sentar quando iam ver o Papá: e vinha-lhe um ciúme, um desespero pensando que a essa hora ela estaria lá sentada, com uma costura ou um livro na mão, tranquila, sem pensar nele.

O Neto, à volta da Ericeira, viera vê-lo. E cada palavra daquele maroto, fora uma punhalada. Tinham gozado muito na Ericeira—não viam ninguém, enfim, porque as circunstancias da Ludovina, não permitiam folias e pic-nics—mas tinham passado bem em família. Ludovina tomara banhos; estava forte, gorda, e nunca ele a vira com tão boa cara: tinha-se aplicado muito ao piano; e parecia resignada e de bom-humor. E depois de lha pintar assim tão apetecível saíra, sem dizer a palavra por que Godofredo ansiava— uma simples palavra: fazer as pazes.

Porque o desejava ardentemente. Somente não queria dar o primeiro passo, por orgulho, por dignidade, por um resto de amuo e de ciúme. Mas entendia que o Neto é que devia impor essa reconciliação:—e começava agora a odiá-lo, vendo que ele queria conservar a filha em casa. Percebia bem. O patife não desgostava dos trinta mil réis, que lhe vinham assim todos os meses. Pensou mesmo em lhe retirar a mesada. Um sentimento de cavalheirismo impediu-lhe de o fazer.

E o que o torturava era não a ter visto ainda. Debalde passava e repassava pela casa do Neto; debalde ia aos domingos à missa, à igreja dela; debalde ia passar pela casa da modista dela, uma D. Justina no Largo do Carmo, com a esperança de a ver de lá sair, ou entrar. Nunca a encontrou até dois dias antes do Natal. Estava nessa manhã, numa tabacaria, ao alto do Chiado, acendendo o charuto, quando se voltou, a viu pelas costas. Ficou tão perturbado, tão trémulo, que em lugar de correr a segui-la, a vê-la, como o seu desejo reclamava furiosamente, recolheu-se para o fundo da loja, esteve ali a hesitar, a sentir bater o coração, com o ar pálido e estúpido. De repente quis vê-la ainda uma vez, mas debalde subiu, desceu o Chiado, não a encontrou: tinha-a perdido, e foi para casa com uma saudade imensa, tendo diante dos olhos toda a noite a figura alta, vestida de preto, com uma flor amarela no chapéu.

O encanto porém quebrara-se, e uma semana depois, ia descendo a Calçada do Correio, avistou-a que subia, com a irmã. Foi a mesma perturbação, o mesmo embaraço, a mesma ideia absurda, de se esconder dentro dum portal. Mas enfim com o coração aos pulos, decidiu-se ao encontro: afirmou o passo, deu um leve puxão aos punhos, aprumou-se, marchou. E pelo canto do olho, tremendo todo, viu-a baixar os olhos e corar, perturbada também.

Foi para casa num extraordinário estado de exaltação. Sentia que a adorava, e o coração desfalecia-lhe à ideia deliciosa de a apertar outra vez nos braços. E ao mesmo tempo era um ciúme furioso e vago, ciúme dos outros homens, da rua, dos passos que ela dava, das palavras que poderia dizer a outros, dos olhares que poderia dar a outros. Queria-a para si, ali, debaixo de chave, entre aquelas paredes que eram suas, na prisão dos seus braços.

Não pôde parar em casa, saiu era quase meia-noite, foi olhar as janelas do Neto. Depois voltou, escreveu-lhe uma carta absurda, seis páginas de paixão a que se misturavam ainda acusações. Rasgou-a, ao relê-la, achando-lhe muitas palavras, e insuficientemente amorosa. Não dormiu nessa noite. Via constantemente a sua bela face corar, as pálpebras baixarem-se-lhe. E estava como disse o Neto, mais cheia, mais bela. Oh, que mulher divina! E era sua, a sua mulher! Positivamente aquilo não poderia durar, aquela vida infeliz e solitária!

Todo o Janeiro passou sem ele a tornar a ver,—e a sua paixão crescia. Agora esperava um acaso que os ligasse: cada manhã imaginava que o dia não se passaria sem ele a ver, e estava decidido a falar-lhe. Uma vez já, encontrando o Neto, falara vagamente nos inconvenientes daquela separação. O Neto encolhera os ombros, com um ar de melancolia, e de dor paternal. Era bem triste, mas que se havia de fazer? Depois, uma noite no Martinho tornou a falar-lhe. E o Neto disse que reflectira, e que estava decidido a ir fazer com a filha uma viajata até ao Minho, para evitar falatórios. Godofredo ficou assombrado, não se conteve:

—Mas não há-de ser à minha custa.

E voltou-lhe as costas, veio para casa furioso. Eram sete horas da noite, e havia um luar claro e frio. Ele chegava à sua porta, quando deu de rosto no passeio com Ludovina, que recolhia, acompanhada pela irmã. Instintivamente, desceu vivamente do passeio, afastou-se: mas logo voltou, com uma inspiração, apressou, chamou:

—Ludovina!

Ela parara, voltou-se, espantada. Estavam junto duma loja de mercearia, na luz do gás,—e ficaram um defronte do outro, sem achar uma palavra, enleados, com todo o sangue nas faces. Godofredo estava tão perturbado que nem cumprimentou a cunhada, nem sequer a viu. E as suas primeiras palavras, foram absurdas.

—Então diz que vais para o Minho?

Ludovina olhou-o espantada, depois olhou para a irmã.

—Para o Minho?, murmurou.

E ele, numa voz atrapalhada:

—Disse-me teu pai... Eu achei que era a coisa mais ridícula!... Oh, Teresinha, desculpe, que a não tinha visto... Tem passado bem? E então tu, Ludovina, tens passado bem?

Ela encolheu os ombros:

—Assim, assim...

Ele devorava-a com os olhos, achando-a adorável, naquela capa de veludo que ele lhe não conhecia, e que devia ser nova.

—Diz que te divertiste muito.

Ela teve um sorriso amargo:

—Eu? Boa...—E acrescentou com um vago suspiro:— O que me tenho é aborrecido e chorado. Um amor, uma piedade imensa invadiu-o. E com a voz trémula, quase chorando:

—Ora essa, ora essa...

Depois, acrescentou ao acaso, já num tom de intimidade, como se desde esse momento a reconciliação estivesse feita:

—Pois aquilo lá em casa não vai bem... A Margarida tem-se desleixado muito. E é verdade, que te queria perguntar... Como diabo se acende o candeeiro de escrever, que não tem sido possível pô-lo em ordem?

Ela riu, Teresa também. Ela tinha percebido bem, de ora em diante era outra vez a mulher de Godofredo. Disse:

—Se queres eu lá vou ensinar a Margarida a arranjar isso.

Todo ele foi um grito de alegria:

—Pois vem, pois vem! A Teresinha pode vir também. É um instante.

E subiu adiante, galgou a escada, abriu a porta, desfalecendo de voluptuosidade ao ouvir o rumor das saias dela pela escada acima. Ouvindo vozes, Margarida tinha corrido, e ao avistar as senhoras ficou embatucada.

—Traga cá esse candeeiro de escrever... gritava atarantadamente Godofredo.

Ludovina e a irmã tinham penetrado na sala de jantar e conservavam-se de pé, de chapéu, com as mãos nos regalos. Godofredo, no entanto, como parvo, correra à cozinha, depois entrara no quarto, depois precipitara-se a acender as luzes da sala das visitas onde não havia gás. Ludovina no entanto olhava a sala de jantar, o aparador, escandalizada já daquele desleixo que ali se sentia,—parando a contemplar indignada uma linda fruteira de cristal que tinha uma asa quebrada.

Godofredo veio encontrá-la assim.

—Ai, isso vai aí uma destruição que nem tu imaginas. Olha, vem cá dentro, vem ver, vem cá ao nosso quarto.

Ele mesmo entrou, ela teve um rubor de virgem que penetra na câmara nupcial: e apenas entrou, ele apoderou-se dela, arrastou-a para a alcova do lavatório, e ali no escuro, violentamente, freneticamente, beijou-a pelos olhos, pelo cabelo, pelo chapéu, fartando-se da doçura da sua pele, sentindo-se morrer àquela frescura que ela trazia do frio da rua.

Ela disse baixo:

—Não, não, olha a Teresa!

—Manda-a embora, eu vou levá-la, murmurou ele. Tu ficas, amor, nunca mais nos separam.

Ela consentiu, num beijo.


Capítulo IX


No dia seguinte, num momento de enternecimento, querendo dar à sua felicidade um meio mais poético,—e como o tempo estava adorável,—Godofredo propôs o irem estar uns dias a Sintra. E aí foi uma lua-de-mel. Estavam na Lawrence, tinham um pequeno salão para eles sós; levantavam-se tarde, Godofredo quis champagne ao jantar, e beijavam-se às escondidas debaixo das árvores. E Godofredo não a deixava um instante, ávido de gozar de novo aquela intimidade, que ele julgava perdida, sentindo um prazer infinito em a ver apertar o colete, encontrar um chambre dela sobre uma cadeira, ou assistir-lhe ao penteado.

Ao fim de quatro dias voltaram; e esta lua-de-mel prolongou-se ainda em Lisboa, cheia e larga, sem considerações por despesas, com carruagem da companhia, e camarote em S. Carlos. Godofredo queria mostrar-se por toda a parte com ela, para tapar as bocas do mundo. Em S. Carlos mesmo tomava sempre uma frisa, bem em evidência, fazendo exposição da sua felicidade doméstica. E como Ludovina, com os ares da Ericeira, voltara mais forte, mais cheia, magnífica na sua forte beleza de trigueirona forte, os homens na plateia olhavam-na muito; havia sempre algum binóculo fixo sobre ela.

—Lá estão a olhar, dizia Godofredo. Estão pasmados de nos ver juntos... Pois é para que saibam.

E à frente do camarote puxava devagar os punhos, sorria à sua Lulu.

Numa dessas noites dava-se a Africana, pela primeira vez. E Ludovina, que durante toda a representação estivera torturada com um par de botinas novas, quis sair no meio do quinto acto: e ele cedeu logo, apesar do prazer que lhe davam os gorjeios patéticos da Alteroni, sob as ramagens das mancenilheiras, à luz trágica da lua cheia. Agasalhou-a, deu-lhe o braço:—e no peristilo, a um canto, esperavam que se aproximasse a carruagem da companhia, quando, de repente, apareceu o Machado, de charuto na boca, enfiando o paletó. Ele decerto não os viu porque continuou, através do peristilo, assobiando, com o seu ar um pouco gingado, de gravata branca, acabando de abotoar o paletot. Mas de repente deu com eles! Um momento pareceu hesitar, ficou enleado, pálido, com os dedos esquecidos nos botões. Depois decidiu-se, tirou profundamente o chapéu. De dentro da gola branca da saída de baile, ela fez um ligeiro movimento de cabeça, baixou os olhos, séria, impassível, imóvel, com a sua grande cauda azul apanhada na mão. E Godofredo, depois de hesitar também um instante, terminou por dizer alto um olá Machado, boa noite! Machado saíra vivamente, para fora.

No dia seguinte, quando Godofredo entrou no escritório, Machado já estava à sua carteira. Depois dos cumprimentos secos e usuais, Godofredo esteve um momento remexendo os papéis, lendo a correspondência; depois deu um olhar vago e distraído ao jornal; evidentemente estava preocupado, com o pensamento noutra coisa; e de repente recostou-se, fez estalar os dedos, perguntou ao Machado:

—Então ontem que tal lhe pareceu a Alteroni?

Era a primeira vez que lhe dirigia uma palavra—estranha aos negócios da firma! Machado ergueu-se um pouco nervoso para responder:

—Gostei muito... E você?... Boa voz, hein?...

E estas banais palavras, apenas soltas, foram como portas dum dique que se abre. Godofredo erguera-se também—e foi um fluxo de palavras, dum e doutro, ao princípio hesitantes, depois tomando calor, aproximando-os um do outro, formando uma viva corrente de simpatia. Era como dois amigos que se encontram depois duma ausência: e cada um reconhecia no outro aquilo que nele sempre estimara: com um trivial gracejo do Machado sobre o tenor, Godofredo ia rebentando a rir—e uma observação de Godofredo sobre o uníssono das rabecas, interessou imensamente o outro, fê-lo pensar que o Godofredo era realmente um grande entendedor de música. Depois Godofredo falou da estada em Sintra. E um momento conversaram sobre Sintra, dizendo cada um os sítios que lá preferia, a impressão que eles lhe davam—como se depois daquela longa separação sentissem a necessidade de conferirem as suas ideias e os seus gostos respectivos. Depois, como Machado tinha de sair mais cedo—o shake-hands que deram à despedida foi profundo, ardente, duma reconciliação completa, unindo-os outra vez e para sempre.


Então, outra vez, a vida de Godofredo foi calma e feliz. Na casa da Rua de S. Bento entrara de novo a ordem, e a alegria: os ovos ao almoço já não apareciam crus ou duros; já à noite o Souvenir d’Andalousie dava a Godofredo aquele não sei quê dos vergéis de Granada; e a todo o momento a voz dela, o frou-frou dos vestidos dela, banhavam de alegria o seu coração. E o Inverno tinha assim passado, passava a Primavera, estava-se nos primeiros calores de Março quando, uma manhã, ao sair, ao passar no corredor, avistou entre portas a Margarida que dava subrepticiamente, e em segredo, uma carta à senhora. Foi como um rochedo que lhe arremessassem contra o peito. Mal atinava com o fecho da porta: imaginou logo outro homem, outro amante,—e a sua felicidade, aquela felicidade tão laboriosamente reconstruída, de novo rachada por todos os lados. Sentiu um terror, como se se visse vítima dum fado, dum fado terrível e bestial, da fatal incontinência da fêmea. Pensou que seria outra vez o Machado:—e passou-lhe nos olhos uma onda de sangue, pensou que desta vez não haveria nem conferências, nem consultas, nem testemunhas, mas que entraria no escritório, e lhe meteria à queima-roupa uma bala no coração.

E sentiu-se tão agitado, que não supôs poder tolerar o aspecto do Machado: não foi ao escritório, vagueou pela Baixa, tendo sempre diante dos olhos a mão da criada, o papelinho branco, o ar embaraçado da Ludovina. Entrou em casa, sombrio e taciturno. E não podia estar quieto, ia duma sala a outra, atirava com as portas,—com o ar dum homem que sufocava, sentindo em volta de si o ar carregado de engano e de traição: Ludovina espantada terminou por lhe perguntar o que tinha ele.

—Nervos, respondeu com mau modo.

E daí a momentos, cedendo a um impulso furioso, voltou-se para ela, declarou que estava farto de mistérios, que aquela vida era um inferno, e que queria saber que papel era o que lhe tinha dado a Margarida.

Ela olhou-o, pasmada daquela violência, daquela voz estridente—levando instintivamente a mão ao bolso do robe-de-chambre.

Ele seguira-lhe o movimento:

—Ah, tens aí a carta! Deixa ver...

Ela então mostrou-se ofendida com aquela desconfiança. Recomeçavam outra vez as suspeitas, as questões? O quê, não podia ela receber um papel sem ele querer meter o nariz!

Ele, pálido, com os punhos fechados, gritou:

—Ou me dás a carta, ou te racho!

Ela fez-se pálida, chamou-lhe malcriado, caiu para o sofá a chorar, com as mãos no rosto.

—Dá-me a carta! gritava ele em bicos de pés: Dá-me a carta! E desta vez não há-de ser como da outra vez. Vais para um convento, mato-te!

E não esperou resposta, arremessou-se sobre ela, torceu-lhe o braço, rasgou a algibeira do robe-de-chambre, apoderou-se da carta. Mas não podia perceber a letra: era uma garatuja, sem ortografia, num pedaço de papel pautado. Começava, minha querida senhora; vinha assinada Maria do Carmo, e falava-se lá de esmola, do pequenito que estava melhor do sarampo, e de orações que não deixariam de se rezar por aquela boa esmola...

Trémulo, murcho, humilhado, com o papel na mão, ele veio sentar-se ao lado de Ludovina que chorava entre as mãos, e passando-lhe o braço pela cintura, balbuciou:

—Está bem, vejo que não é nada, desculpa, dize lá o que é.

Ela repeliu-o, pôs-se de pé, toda ofendida. Estava satisfeito? Tinha lido a carta, hein? Era dum homem, não era?...

Ele balbuciou, envergonhado:

—Mas também todos esses mistérios...

E como ela, bela e de pé, limpava os olhos engolindo os soluços, ele não se conteve, teve necessidade do seu perdão, pôs-se de joelhos, e com as mãos postas, murmurou:

—Perdoa, Luluzinha, foi tolice minha...

Com um outro soluço ainda maior, ela bateu-lhe com a ponta dos dedos na face...

E ele então quase chorou também, beijou-lhe as mãos, abraçou-lhe os joelhos—terminou por se erguer agarrado às saias dela, encheu-lhe o pescoço de beijos. E ainda na comoção dos dois, entre abraços, ela contou-lhe a história das esmolas secretas que fazia a uma pobre rapariga que conhecera na Ericeira, que um patife seduzira, e abandonara com dois filhos, um ainda de mama...

—Mas para que fizeste mistério, meu amor?, continuava ele, comovido, e apaixonado.

Ela então confessou que já lhe dera mais de cinco mil réis,—e tinha medo que ele achasse extravagancia...

E a alegria que ele sentia era tão viva que exclamou:

—Qual extravagância! Dá-lhe outros cinco... É por minha intenção.

Tudo terminou num beijo.

E então Godofredo sentiu-se envergonhado da sua cólera dessa manhã contra o Machado. Lá pensara outra vez em matar o Machado! E agora sentia a necessidade de o rever, apertar-lhe profundamente a mão—sentindo nesse instante por ele uma amizade maior, não sei que reconhecimento vago que o enternecia.

Mas no outro dia. quando entrou no escritório,—não se conteve, sem motivo abraçou pela cinta o Machado. E o outro correspondeu, ao abraço, sem estranhar esta efusão, mas com um modo, um ar de enternecimento, um abandono triste que surpreendeu Alves, e a sua surpresa foi maior quando viu que Machado tinha os olhos vermelhos, como se tivesse chorado.

—É minha mãe que está muito mal, disse o Machado, respondendo à interrogação do seu sócio. E Alves, com a sua alegria cortada por aquela dor, só pôde murmurar:

—Diabo!

Era o diabo, era! E o médico não dava esperança. A pobre senhora sofria duma complicação de doenças, de fígado, de bexiga, de coração, que pareciam resolver-se agora, num desarranjo total da vida. Na véspera tinha tido um desmaio de duas horas. Ele julgara-a morta: e nessa manhã tinha um alívio, extraordinário, de que ele desconfiava. E o pobre Machado suspirava dizendo isto. O amor da mãe fora até aí o seu sentimento mais vivo: eles tinham vivido ambos, sempre juntos; por causa dela ele nunca quisera casar, e agora aquela perda parecia tirar da sua vida tudo o que lha tornava cara...

—Deus não há-de querer uma desgraça, murmurou Godofredo comovido...

O Machado encolheu os ombros, e daí a instantes saiu, para voltar para junto da sua pobre doente.

Todos os dias então, três, quatro vezes, Godofredo ia a casa de Machado saber notícias. A pobre senhora piorava: felizmente não sofria,—e os seus últimos instantes eram consolados por aquele amor em que o filho a envolvia, não se arredando um instante do leito dela, recalcando a dor, escondendo a palidez, animando-a, falando de planos e de idas para o campo, e gracejando como nos bons tempos. Depois uma tarde Godofredo chegou a saber notícias. A criada apareceu com o avental nos olhos. A senhora morrera havia uma hora, como um passarinho. Ele entrou, Machado caiu-lhe nos braços, perdido de choro.

Godofredo não o deixou mais. Passou essa noite com ele: ocupou-se do enterro, dos convites, da compra dum terreno no Alto de S. João. E ao outro dia, na solenidade dos pêsames, os amigos da casa davam-lhe a ele apertos de mão, tão sentidos e tão mudos, como ao próprio Machado— reconhecendo, nele, mais que um irmão de Machado, quase um pai.

O enterro foi concorrido; havia vinte carruagens; Godofredo levava a chave do caixão, e no cemitério dirigiu tudo, convidou os amigos mais íntimos para as borlas do esquife, cochichou com os padres, prodigalizou-se,—e quando o caixão desceu à cova, as únicas lágrimas que houveram foram as dele.

No dia seguinte Machado partiu para Vila Franca para casa duma tia: e Godofredo foi levá-lo à estação, ocupou-se da sua bagagem, chorou outra vez ao abraça-lo.

Passados quinze dias Machado voltou, ocupou outra vez a sua carteira no gabinete de reps verde. Mas não parecia o mesmo. Estava mais sereno, sim mas tão triste no seu luto, que Godofredo, sempre romântico, pensou de si para si que aqueles lábios nunca mais sorririam.

Depois vendo-o demorar-se à carteira, sem vontade de ir para casa— para a casa agora vazia, para o jantar agora solitário—veio-lhe um dos seus bruscos impulsos de bondade, esqueceu tudo, abriu os braços ao Machado:

—O que lá vai, lá vai! Venha você daí jantar connosco! E nem o deixou hesitar, quase lhe enfiou o paletot, arrastou-o pela escada abaixo, chamou uma tipóia, atirou-o para dentro, levou-o em triunfo à Rua de S. Bento. Machado todo o caminho não disse nada, tremendo àquele encontro, empalidecendo já, procurando uma palavra natural para lhe dizer... Logo na escada sentiram o som do piano,—e daí a instantes Godofredo metendo a cabeça através do reposteiro da sala, exclamava radiante:

—Ludovina, trago-te aqui um convidado.

Ela erguera-se, e achou-se diante do Machado, que se curvava profundamente, disfarçando a sua perturbação na profundidade daquela cortesia. Ela fizera-se escarlate—mas a sua voz foi clara e firme, quando lhe estendeu a mão, dizendo:

—Como está, Sr. Machado? Então chegou bem?

Ele balbuciou umas palavras, e ficou de pé, esfregando as mãos, devagar —enquanto Ludovina dissipava aquele embaraço, com uma infinidade de palavras, contando a Godofredo uma visita duns certos Mendonças, e falando do Mendonça, e do Mendonça pequeno, vivamente, nervosa, e com as orelhas a arder.

Depois, para dar as suas ordens, apressou-se a sair.

Quando ficaram sós, Godofredo teve esta palavra profunda:

—Isto, quando há boa educação, tudo se vem a acabar bem!

Daí a pouco ela voltou, mais serena, tendo decerto posto na face uma camada de pó-de-arroz. Machado sentara-se no famoso sofá amarelo,—e quis-se erguer, dar-lhe esse lugar. Mas ela não consentiu, sentou-se ao lado, na poltrona amarela, e, como se quisesse emendar um esquecimento, apressou-se a dizer dum fôlego, como um recado:

—Eu senti muito a perda que o Sr. Machado...

Ele curvava-se, murmurando uma palavra.

E Godofredo acudiu, exclamando:

— Nisso não se fala agora! Devem-se aceitar os decretos de Deus, acabou-se.

Mas uma sombra passara sobre a face comovida de Machado; e um bafo morno de tristeza pesou na sala. E foi esta tristeza que, subitamente, os pôs à vontade. Era como se o Machado, com aquele luto pesado, aquela saudade da mãe, aquele túmulo ainda recente, não fosse o mesmo que ali bebera copos de vinho do Porto, com ela nos braços, sobre o sofá amarelo; mas um outro Machado, um rapaz grave, com uma dor que era necessário consolar, envelhecido, e para sempre incompatível com coisas de amor. Ela achava-o mudado, e olhando-o não se recordava de como ele era noutros tempos; ele também a achava tão estranha, como se fosse a primeira vez que viesse àquela casa. O marido esquecia, eles esqueciam ambos também. E terminaram por se olhar, falar, naturalmente, sem embaraço, ela dizendo «Sr. Machado», ele respondendo «Vossa Excelência», frios, tendo para sempre acabado de estremecer um defronte do outro, como dois carvões apagados.

E o jantar foi tranquilo, calmo, íntimo, quase alegre. 

Então a vida continuou, desenrolando-se, banal e corredia como ela é. O luto de Machado acabou, ele voltou aos teatros, teve outras vezes raparigas espanholas, e namorou senhoras. Depois o Neto morreu, de repente, de apoplexia, dentro dum omnibus: e a Teresinha veio viver com a irmã. Ao fim de dois anos Machado casou, com uma menina Cantanhede, por quem ele concebera uma paixão absurda, frenética, que não podia esperar, o fez concluir namoro, enxoval, licenças, e casamento, tudo dentro dum mês.

Houve um baile. Ludovina apareceu com uma bela toilette, mas dançou pouco, porque houvera um engano nos sapatos,—e os que tinha nos pés torturavam-na a ponto que esteve para desmaiar.

Depois ao fim dum ano a pobre Cantanhede morreu de parto—e outra vez Machado soluçou perdido de choro nos braços de Godofredo; outra vez Godofredo recebeu a chave do caixão, deu apertos de mão profundos e mudos, na noite de pêsames. Mas desta vez Ludovina ajudava-o, Ludovina chorando também, porque ela e a pobre Cantanhede eram íntimas, não se deixavam, passavam o seu dia a beijar-se. E a dor de Ludovina foi tão grande quase como a do Machado.

Depois a vida continuou banal e corredia como ela é. Ao fim de dois anos, Machado tinha por amante uma actriz do Ginásio. E por esse tempo houve em casa do Alves um desgosto—o casamento de Teresa feito contra vontade da irmã e do cunhado, com um empregado de alfândega, um imbecil, um tacanho, sem vintém, sem cabeça, que seduzira a menina por ser louro como uma espiga. E foi necessário casá-la porque se definhava, ameaçava de se deitar da janela abaixo, e havia outras desconfianças. Foi necessário casá-la.

E os meses passaram, depois os anos. A firma Alves e C.a crescia, enriquecia. O escritório, agora mais largo, mais rico, com seis caixeiros, era à esquina da Rua da Prata. Godofredo estava mais calvo, Ludovina engordara: tinham carruagem; e no Verão iam para Sintra. Depois Machado casou outra vez, com uma viúva,—casamento inexplicável porque nem era bonita, nem rica; tinha apenas uns olhos extraordinários, muito negros, muito pestanudos, muito quebrados, a expirar de langor.

Foi um casamento à capucha—e os noivos partiram para Paris. Voltaram, vieram viver para o pé dos Alves, que agora tinham mudado para um palacete a Buenos Aires. E uma outra grande amizade nasceu logo entre a Ludovina e a senhora dos olhos langorosos: bem depressa Ludovina se tornou a escrava desta curiosa criatura que escravizava também o marido, tinha uma influência absoluta em Godofredo, dominava tudo em redor de si, criados, relações, fornecedores, sem nenhum esforço, sem qualidade nenhuma superior, só com a sua figurinha roliça, e os seus olhos pestanudos que expiravam de langor.

Agora as duas famílias vivem junto uma da outra—e ao lado uma da outra vão envelhecendo. No dia dos anos de Ludovina há sempre um grande baile—e, sempre inseparável deste dia, vem à memória de Alves aquele outro dia de anos, em que ele entrou em casa, e viu no sofá amarelo... Mas há quanto tempo isso vai. E esta lembrança agora só o faz sorrir. E fá-lo também pensar—porque este facto permanece como o grande acontecimento da sua vida e dele extrai geralmente a sua filosofia, e as suas reflexões usuais. Como ele diz muitas vezes ao Machado—que coisa prudente é a prudência! Se naquele dia do sofá amarelo ele se tivesse abandonado ao seu furor, ou se tivesse persistido depois em ideias de vingança e rancor, qual teria sido a sua vida? Estaria agora ainda separado de sua mulher, teria quebrado a sua amizade íntima e comercial com o seu sócio; a sua firma não teria prosperado, nem a sua fortuna aumentado; e o seu interior teria sido o dum solteirão azedado, dependente de criadas, maculado talvez pela libertinagem. Nesses longos vinte anos que tinham passado quantas coisas belas teria perdido, quantos regalos domésticos, quantos confortos, quantos doces serões de família, quantas satisfações da amizade, quantos longos dias de paz e de honra! A estas horas estaria velho, azedado, com a vida estragada, a saúde arruinada, e aquela vergonha do seu passado, queimando-o sempre!

E assim, que diferença!

Tinha estendido os braços à esposa culpada, ao amigo desleal,—e com este simples abraço, tornara para sempre a sua esposa um modelo, o seu amigo um coração irmão e fiel. E agora ali estavam todos juntos, lado a lado, honrados, serenos, ricos, felizes, envelhecendo de camaradagem, no meio da riqueza e da paz.

Às vezes pensando nisto, Alves não pode deixar de sorrir de satisfação. Bate então no ombro do seu amigo, lembra-lhe o passado, diz-lhe:

—E nós que estivemos para nos bater, Machado! A gente em novo sempre é muito imprudente... E por causa duma tolice, amigo Machado!

E o outro bate-lhe no ombro também, responde sorrindo:

—Por causa duma grande tolice, Alves amigo.